quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Filocalia - Tomo II Volume 4 - Calixto Cataphygiotes: Sobre a união divina e a vida contemplativa

CALIXTO CATAPHYGIOTES





SOBRE A UNIÃO DIVINA E A VIDA CONTEMPLATIVA


Calixto Cataphygiotes


Nosso bem-aventurado Padre Calixto, chamado de Cataphygiotes (talvez do nome de uma igreja da Mãe de Deus, também chamada de Cataphyges, ou seja, o refúgio), não deixou registro nos anais a respeito de quem ele foi, qual era sua pátria ou onde teria ele levado sua vida anacorética. Mas pelo testemunho dos presentes capítulos, ele foi um homem versado no conhecimento das coisas exteriores e das coisas interiores e, sobretudo, capaz de além de todos na altura, na profundidade, no comprimento e na largura inteligíveis das contemplações. O bem-aventurado estava voltado para aquilo que é mais do que o mundo, para o Um oculto, para o Deus Trinitário mais alto que o ser, a ponto de, liberto de uma vez por todas, obteve a visão imediata de Deus, a união imediata, o silêncio do intelecto e o desconhecimento mais que desconhecido, na superabundância da pureza, ao mesmo tempo em que caminhava sobre a terra na verdade, conforme nos foi reportado, como se fosse um anjo ou um deus pela graça.

Alguns, por certos indícios, disseram que este Calixto seria Calixto de Xanthopoulos, o Patriarca de Constantinopla que escreveu outros cem capítulos. Pois a maior parte daqueles, dizem, falam de ação, enquanto estes falam apenas da contemplação e da vida contemplativa. Como ação e contemplação estão unidas uma à outra, o intérprete das duas seria naturalmente a mesma pessoa. Eles afirmam ainda que diversos capítulos daquela centúria lembram os presentes capítulos, pois se referem à intervenção e ao recolhimento do intelecto, à união divina, à energia e à iluminação do coração. Outros dizem que as duas centúrias não se assemelham devido às diferenças de texturas entre as frases de uma e de outra. Quanto a nós, pensamos que se deve estar de acordo com os primeiros, uma vez que não concordamos com estas diferenças de texturas. Pois é possível, e mesmo fácil, para os sábios, adaptar a escrita das frases aos diferentes temas tratados, exprimindo em termos elementares o que é elementar e em termos sublimes o que é elevado. Mas é verdadeiramente lamentável que nesta centúria na qual, na medida em que podemos conjecturar, os presentes capítulos pedem outros, em especial aqueles que explicam a vida contemplativa – que a meu ver são os mais sublimes e mais completos no que se refere ao sentido, ao sublime das frases, à beleza da língua e ao rigor do raciocínio – sejam os únicos do manuscrito que temos em mãos conservados até aqui.


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O nome de Calixto Cataphygiotes significa “aquele que se refugia”, que vive na solidão, e designa assim um monge, cuja identidade histórica ignoramos, mas que talvez seja o mesmo que se exprime nos escritos de Calixto o Patriarca. Ou seja, Calixto Cataphygiotes, Calixto o Patriarca e Calixto Xanthopoulos seriam a mesma pessoa? Isto não é impossível, dado que suas obras, escritas todas no final do século XIV, logo antes da desaparição do Império Bizantino, constituem com toda evidência a chave de abóboda do memorial hesiquiasta, sendo que em todas se encontram esparsas expressões e referências que indicam uma mesma tensão em direção à última. Mas nada disto é certo. Cada qual a seu modo, eles lembram Simeão o Novo Teólogo, Denis o Areopagita e anunciam os místicos renanos, enquanto os escritos de Calixto Cataphygiotes são atípicos, como que saídos de uma história milenar em cujo decurso a continuidade do movimento monástico se identificava com a transmissão eclesial do Evangelho.

Aqui o hesiquiasmo é colocado sobretudo naquilo que ele é: um movimento do intelecto que, diz Calixto, “abandona o criado para buscar sua própria causa” e assim “adquirir a paz, penetrar no infinito e no incriado”, onde se encontra, “acima do mundo, Deus, que é o Um”, não o Um imanente e abstrato dos neoplatônicos, mas o Um transcendente, vivo, que representa a essência e as energias das três Pessoas divinas, como a irradiação do amor criador transmitida aos fiéis para que eles sejam um.

Entrementes, a ascese é rigorosa: o intelecto não pode alcançar a semelhante divina se não parar de se dispersar nas coisas do mundo e se não se encontrar “fora das paixões e da divisão”, em plena liberdade evangélica, a qual, diz Calixto, é “o sinal evidente da adoção divina”. Exige-se do intelecto livre que não volte atrás, que não se detenha no sensível, mas que vá em direção ao inteligível, para aquilo que não pode ser ´percebido senão pela noera aisthesis, o sentido intelectual: o Reino de Deus no coração do mundo.

A mensagem filocálica é aqui conduzida à sua ponta mais aguda. Dos três componentes platônicos da alma – o desejo, o ardor e a razão – somente a razão encontra a graça e faz corpo com o intelecto “retornado”, ele próprio conduzido à unidade e à simplicidade originais. Este intelecto em estado puro não pode senão amar a beleza de Deus. Ele está votado ao “eros divino”, ele se torna “filocálico”, diz Calixto. A perspectiva é perfeitamente cristã, mas o amor está de tal forma voltado para a beleza de Deus, o magnetismo desta é tão forte, que o discurso é como que absorvido pelo ponto de fuga (a visão beatífica) e se anula nele. A partir daí, resta a chave não mencionada: Cristo ressuscitado, o corpo glorioso.

Retomando as palavras do Eclesiastes, Calixto afirma que o monge contemplativo é de algum modo dividido entre o tempo de se calar, que é o arrebatamento do intelecto, e o tempo de falar, que é o combate espiritual e a transmissão da experiência. Mas a conclusão é imperativa: “reencontrar o estado de infância”, para alcançar a condição extrema, a contemplação silenciosa do Um oculto, “que a natureza, o espaço e o tempo não podem conter”. Este último grande texto da mensagem filocálica – certamente um dos mais belos e difíceis – permanece sendo sempre uma apologia do êxtase e do silêncio.



SOBRE A UNIÃO DIVINA E A VIDA CONTEMPLATIVA


1. Tudo o que vive está naturalmente submetido à energia que o domina, e recebe desta o repouso e o prazer que a acompanham. Assim se é cumulado de alegria, consagrando-se a isto de todo seu coração. Assim o homem, uma vez que possui um intelecto e que compreende naturalmente a vida, se alegra plenamente e recebe sua parte em repouso quando concebe as coisas mais elevadas e aquelas que lhe dizem respeito, boas ou belas, segundo o nome que se quiser dar a elas. É isto que lhe acontece em verdade, quando conserva a Deus em seu intelecto e considera as virtudes Daquele que está verdadeiramente acima de tudo, que é inteligível além de toda inteligência, que além de toda inteligência ama o homem até o fim, e que além de toda inteligência prepara aos que vão a ele uma herança de bondade e beleza. E esta herança é eterna.

2. Todo nascimento concede ao nascido uma semelhança com aquele que o engendrou. O Senhor disse: “O que nasce da carne é carne, e o que nasce do Espírito é Espírito[1]”. Portanto, se o que nasce do Espírito é Espírito, isto quer dizer que ele será Deus, segundo o Espírito que o engendrou, uma vez que é Deus o Espírito do qual nasceu pela graça aquele que tem parte no Espírito. Mas se este homem é Deus, ele será manifesta e naturalmente contemplativo. Com efeito, é por “contemplar” (theorien) que Deus é chamado de “Deus” (Theos). Assim, aquele que não contempla, não contempla por que o nascimento espiritual ainda não lhe foi concedido e ele ainda não recebeu o Espírito, ou por que, tendo-o recebido, perdeu por ignorância seu poder de contemplar e em sua inexperiência se desviou dos raios inteligíveis de Deus que envolvem o Sol inteligível da justiça[2]. Ele teve sua parte no poder contemplativo, mas permaneceu infelizmente privado desta energia, ainda que tenha até se votado para a santidade.

3. Todos os seres receberam Daquele que os criou pela palavra seu próprio movimento e sua própria natureza. O mesmo acontece com o intelecto. Mas o movimento do intelecto é a eternidade, e esta não possui fim nem limite. Será, portanto, ao encontro de sua própria condição e de sua própria natureza que o intelecto poderá ser detido ou limitado em seu movimento. Esta será a sua lei, se ele se mover em meio às coisas finitas e limitadas. Pois não é possível que as coisas sejam finitas e limitadas e que ao mesmo tempo o movimento do intelecto que as percorre ou as envolve vá até o infinito. O movimento eterno do intelecto tem necessidade de um ser que seja sem fim e sem limite, para o qual ele se encaminhe sempre e sempre, por que isto está em conformidade com a sua razão e lhe é natural. Mas nada é verdadeiramente sem limite senão Deus, que é um por natureza e em seu próprio ser. O intelecto deve assim voltar-se, mirar e se pôr em movimento em direção a Deus, para a unidade propriamente infinita. De fato, esta é a sua natureza.

4. Aquilo que contemplamos e que envolve a Deus não tem fim nem limite. No entanto, o intelecto que busca a Deus de quem vêm estas coisas não pode desfrutar delas plenamente. Pois cada ser recebe naturalmente sua alegria daquilo que lhe é semelhante. Ora, o intelecto é um por natureza, ainda que sejam múltiplos seus pensamentos, desde que ele esteja voltado para Deus e num movimento em sua direção, em direção a Deus, cuja natureza é uma e cuja energia é múltipla. E é impossível ao intelecto usufruir disto plenamente antes que alcance o Um naturalmente sem limites, como que passando através do múltiplo. O intelecto não pode usufruir de modo natural e pleno senão apenas de Deus. Cada ser encontra sua maior alegria em sua própria natureza. Assim, a natureza própria do intelecto consiste em se mover para, em votar-se para, em regozijar-se plenamente apenas no Deus simples e infinitamente uno.

5. Todo movimento de uma criatura, qualquer que seja ela, todo movimento do próprio intelecto, tende para a detenção e a calma, a imobilidade, a paz. O fim da criatura é forçosamente o repouso. Mas o intelecto, que é uma dentre as criaturas, não pode, por seu próprio movimento, participar da detenção e da calma em meio ao criado. Com efeito, se o criado está destinado a terminar – uma vez que teve um começo – é claro que o movimento eterno do intelecto deverá abandoná-lo para buscar sua própria causa. Assim, na medida em que permanecer encerrado nas coisas finitas e limitadas, o intelecto não poderá conhecer a paz, nem descobrirá sua própria finalidade, nem terá em si o movimento de que falamos. Aqui estamos longe de sua natureza própria, que é manifestamente o movimento eterno. E não é possível que o intelecto encontre a paz e se detenha, se ele permanecer entre as criaturas. Onde então poderá o intelecto assumir aquilo que lhe é próprio, vale dizer, deter por si só seu movimento e obter assim a calma, estar em paz e receber com toda certeza a sensação de repouso, se não penetrar no infinito e no incriado, onde se encontra essencialmente e acima do mundo, o Deus que é a própria unidade? É preciso, portanto, que, por meio do movimento, o intelecto alcance esta unidade e este infinito, descobrindo naturalmente no repouso intelectual a calma que é característica de sua natureza. De fato, esta é a detenção suscitada pelo Espírito, o repouso apátrida, o termo infinito de todas as coisas. No coração desta unidade, o movimento permanece em toda a inteligência que descobriu aquilo que não possui nem fronteira nem limites, o que não tem fim, o que não possui figura nem forma, o que é absolutamente simples, que é o Um de que falamos, ou seja, Deus.

6. Se Deus, segundo Davi, fez de seus anjos espíritos[3], e se dos homens gerados pelo Espírito ele os torna espíritos[4], como disse o Senhor, o homem assim nascido se torna anjo por sua clara participação no Espírito de Deus. Mas a obra dos anjos consiste em contemplar sempre a face de nosso Pai que está nos céus[5], conforme também disse o Senhor. Então é preciso que aquele que possui claramente o Espírito Santo esteja, como é natural, voltado para a contemplação da face de Deus. É o que ensina Davi quando diz: “Busquem o Senhor e sua força. Busquem sempre a sua face[6]”. Portanto, quem participa do Espírito vivificante, que concede a luz e executa a obra do amor, quem atingiu a experiência do nascimento inefável que provém do Espírito, quem se elevou até o estado angélico e que depois, por causa de uma piedade presunçosa, impede em si mesmo que o sentido espiritual perceba a Deus e recusa voltar-se para Deus e para o que é divino, este não guarda aquilo que deveria se tornar natural nele. Pois o Salvador manda que permaneçamos nele, para que ele permaneça em nós[7]. E Davi disse: “Vão ao seu encontro e irradiarão a luz[8]”. Na verdade, se fizermos o que devemos fazer e insistirmos até o final, veremos na luz a Deus o Pai, vale dizer, o Espírito Santo, a luz que está ao redor de Deus, ou seja, a verdade divina. Caso contrário, estaremos escolhendo, em nossa própria ignorância, não retornarmos para os raios divinos.

7. O intelecto se eleva por três caminhos à contemplação de Deus: por seu próprio movimento, por um movimento exterior e por um movimento que é a um tempo seu e estranho a si. O caminho do movimento próprio pertence unicamente à natureza do intelecto. Ele apela para a vontade deste, passa pela imaginação e se realiza na contemplação das coisas que cercam a Deus. De certa forma, é o que fizeram os Gregos. O segundo caminho é sobrenatural: ele se abre apenas pela vontade e a iluminação de Deus. Assim, ele está inteiramente sob o comando de Deus, ele é arrebatado nas revelações divinas, ele prova dos mistérios inefáveis, ele vê a realização das coisas por vir. O caminho médio compartilha dos dois caminhos. Como ele trabalha pela vontade e a imaginação, ele está em acordo com o movimento próprio do intelecto. Mas ele comunga do movimento exterior ao intelecto, uma vez que se une a ele sob a iluminação divina e vê a Deus inefavelmente, para além de sua própria união intelectual. Ele está assim fora de tudo o que podemos ver e dizer das coisas que cercam a Deus. Ele não vê nem a bondade original, nem a deificação, nem, a sabedoria ou o poder criativo, a providência ou qualquer das outras coisas divinas. Mas ele está repleto, no mais alto grau, da luz intelectual misturada à alegria que é suscitada pelo amor do fogo divino.

8. O intelecto que se serve de sua própria imaginação para contemplar o invisível é conduzido pela fé. Quando a graça o ilumina, ele se vê confirmado pela esperança. Mas quando ele é arrebatado pela luz divina, ele se torna um tesouro de amor pelos homens, e mais ainda de amor a Deus. Assim, a ordem tripla do intelecto, seu movimento na fé, na esperança e no amor, é perfeito e deificante, seguro e firme. Uma vez atingido este vasto lugar na acrópole, o intelecto se encontra seguro na cidadela do amor. É o que disse Paulo: “O amor cobre tudo, suporta tudo[9]”, pela graça da fé e da esperança. “O amor, disse ainda ele, não tomba jamais[10]”, por sua ardente união com Deus e sua inefável conjunção.

10. A mentira é dividida, mas a verdade é uma. Portanto, o intelecto que, no Espírito, volta-se para o Um, para o que está além do mundo, para o que está acima de tudo, para o que é a origem do múltiplo, volta-se para a própria verdade. Uma vez que o intelecto não pode se livrar das paixões senão for liberto pela verdade[11], ele precisará, para tanto, se voltar e se dirigir unicamente para o Um que está acima do mundo. A liberdade conduz o intelecto ao mais alto ponto, à impassibilidade, à semelhança divina e à filiação espiritual. Mas jamais à servidão. Pois foi dito que o escravo não sabe o que seu mestre faz[12]: a ignorância é própria do escravo. Mas é claro que aquele que participa da liberdade conhece os mistérios do Pai. Foi-lhe concedido elevar-se contra tudo e contra todos até alcançar o que é belo e bom, a dignidade da adoção. Com efeito, assim como a ignorância é o contrário do conhecimento, também o status do escravo é oposto ao status filial. Portanto, se quem não sabe é escravo, quem sabe não é escravo, mas livre: a bem dizer, ele é filho. Pois o Espírito de verdade liberta. Ele próprio torna filhos de Deus aqueles em quem penetra. De fato, foi dito: “Os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, estes são os filhos de Deus[13]”. Portanto, se dirigir-se ao Deus que está acima do ser é próprio da própria verdade, a verdade concede a liberdade ao intelecto, e a liberdade é o sinal evidente da filiação divina. Nada é maior do que este dom da adoção. E nada convém mais à natureza dotada de razão. Esta é uma coisa mais do que necessária, e é preciso muito refletir sobre ela: que o intelecto conduzido pelo Espírito se volte, para contemplá-lo e nele se recolher, tanto quanto lhe for possível, para o Um que está acima do mundo, ou seja, para Deus.

11. O Espírito Santo diz: “O Senhor seu Deus, o Senhor é um[14]”. É assim que é ordenado ao intelecto elevar-se pela divindade do Espírito em direção ao Um que está acima do mundo. Portanto, não é permitido pregar o Um e ao mesmo tempo negar o retorno e a contemplação do intelecto. Pois o desejo do intelecto é de entender o que diz o Espírito Santo, e ele deve se voltar para aquilo que compreende. E de fato, quando falha o retorno do intelecto para o inteligível, aí falha igualmente a compreensão dele. E falharão necessariamente a predicação do Um conforme mencionamos, e também a fé suscitada por esta predicação. Se isto é absurdo, absurdo é que a inteligência que regresse e se volte para o Um não o compreenda.

12. A natureza conduz os seres nascidos de uma causa, em especial os seres racionais, a se voltar e buscar por sua causa, regressando sobre si mesmos. A causa de tudo é Deus, de quem provém também o intelecto. Ora, Deus é o Um supremo, o Um absoluto. Portanto, a natureza conduz o intelecto a se voltar e buscar o Um supremo e absoluto, desde que se coloque de regresso à sua causa.

13. Se tudo provém dele, existe por ele e para ele[15], e se o intelecto é a unidade do todo, o intelecto provém dele e existe por ele. Mais precisamente, ele provém de Deus e existe por ele, por que se assemelha a ele. Assim ele deve em primeiro lugar voltar-se para ele. E quando dizemos para ele, isto significa que, regressando sobre si mesmo, ele deverá contemplar a manifestação do Um que está acima do mundo. É assim que o intelecto deve contemplar o Um.

14. O múltiplo provém do Um, mas não o contrário. Ora, se a criação é múltipla, claramente ela procede do Um. E o Um, que é o Criador e Ordenador, está acima da criação. A contemplação daquele que observa a criação como se deve se realizará necessariamente voltando-se para o Um acima do mundo. Pois as criaturas trazem em si numerosos ecos do Criador, por meio dos quais conhecemos Aquele que criou tudo com sua providência e ao seu bel prazer, com arte e sabedoria, poder e bondade. É por isso que Isaías disse no Espírito: “Ergam os olhos e vejam quem lhes mostrou todas essas coisas[16]”. Ele disse “todas essas coisas” por causa das numerosas criaturas, e “quem” elevando sua inteligência em direção Daquele de quem estas coisas provêm, o Um absoluto por natureza.

15. A criatura se encontra reunida na unidade, mas numa unidade composta, múltipla. Ela também não é sem começo, por que ela foi criada. O Um criador, ele não é um apenas por estabelecer harmonicamente as coisas múltiplas e diferentes com apenas um sopro que a tudo abarcou com o intuito de criar. Ele é ainda incriado, como causa anterior à fundação do mundo. É assim necessário que o intelecto que emerge a partir do Criador alcance a Unidade original, que fundamenta e comanda a ordem visível dos seres, sua gênese, sua harmonia e sua respiração comum no Um. Caso contrário, ele se dirigiria ao infinito, o que é absurdo. Pois todas as coisas que se movem e que nasceram nem sempre existiram: houve um tempo em que elas não haviam. Elas não existiam, e começaram a existir. E se começaram, é porque foram postas em movimento. É preciso buscar aquilo que lhes concedeu o movimento e as conduziu ao nascimento. Ora, o que incita o movimento não pode ser senão imóvel. Caso contrário, qual seria a causa do movimento, algo que não estivesse sujeito a nenhuma outra origem, por ser ela mesma sem origem? Ora, se ela é imóvel, é também imutável. E se ela é assim, ela tem que ser simples, a fim de que o ser composto não possa alterar aquilo que a nós aparece como imutável. Pois é a mistura dos elementos que implica a detenção. E o fim do movimento implica a dissolução. Portanto, na causa não pode existir nenhuma mistura de elementos, para que aí não haja detença, e para que, não havendo detença, não haja dissolução. Não havendo dissolução, não haverá tampouco mudança nem movimento no imutável e imóvel, que concede o movimento mas não o recebe, e que conduz ao nascimento mas não é ele próprio nascido nem submetido ao devir. Portanto, se a causa é imutável e imóvel, ela está necessariamente fora de toda mistura, e por isso ela é completamente simples, o Um absoluto que está acima do mundo. O intelecto que assim se volta para o Um se coloca de todas as maneiras fora de tudo, pelo olhar que ele dirige para aquilo que é mais do que belo, e pelo impulso que o empurra para junto do que está acima de tudo, ou melhor, para perto do lugar de onde provém tudo, e para o qual tendem naturalmente todas as coisas. Se esta tensão em direção ao Um se faz corretamente, o intelecto se coloca fora das paixões: desenvolvendo-se e se estabelecendo acima até do que há de mais belo, ele permanecerá em repouso, e sentirá vergonha das paixões. Por isso você não deverá adorar senão a ele[17], ou seja, ao Um, diz a Lei santa. Devemos, então, nos voltarmos para o Um supremo, se quisermos cumprir a Lei de Deus e nos colocarmos acima das paixões.

16. Foi dito que só o Senhor os conduziu, e que entre eles não haviam deuses estrangeiros[18]. Vê você aqui o poder do Um e do Único? Vê que não havia com eles nenhum deus estrangeiro, por que só o Senhor os conduzia? Ora, o Senhor conduz os que o seguem, não os que o rejeitam. E quem segue, se volta para aquele a quem segue. Então, se não quisermos ter conosco deuses estrangeiros, demônios ou paixões, sigamos o Um e Único através do regresso do intelecto, para que de nós também seja dito com razão: somente o Senhor os conduz, com eles não há deuses estrangeiros.

17. Se o múltiplo provém do Um, dele provém por diferentes vias. Pois o modo pelo qual os seres provêm da Unidade primeira não é o mesmo para todos. Dentre eles, uns têm um começo e são criados, enquanto outros são incriado e escapam ao modo de origem temporal.  Para todos, de qualquer maneira, a causa é o Um mais alto que o ser. Agora, uns estão ligados à causa por serem criados, enquanto outros estão ligados naturalmente. E não podemos nos aproximar deles, de uns como de outros, nem nos ligarmos a eles da mesma maneira. Dos seres que estão submetidos a um começo e à criação é preciso se aproximar passando por um outro ser e não pelo que eles são em si mesmos; é como quando nos aproximamos de um espelho através daquilo que está figurado ou revelado nele. Com efeito, a criação não é capaz de aproximar do melhor senão pela revelação do Um absoluto nela. Mas quando nos voltamos para os seres que não têm começo e que estão naturalmente ligados à causa, nos dirigimos a eles sem passar por outro ser. E passamos por eles para descobrir a Origem, pois eles dela se aproximam em verdade por si próprios. E o Um supremo habita neles de maneira imediata e natural. Na verdade, eles fazem corpo com o Um supremo e absoluto, direta e naturalmente, como dissemos. E devemos não apenas nos aproximar deles como nos ligarmos a eles e nos esforçarmos por receber a marca divina, imitando por intermédio deles a beleza primeira, a única beleza, a fim de alcançar assim a sinergia e o socorro da graça, a dignidade da glória de Deus, à sua imagem e semelhança[19]. Portanto, através dos seres que têm sua causa na criação, se bem os observar e considerar, o intelecto se elevará pela contemplação em direção à visão do Um, e se unirá pura e simplesmente à concepção única do Um mais alto do que o mundo. Mas através dos seres que são naturalmente ligados à causa também é possível ao intelecto, animado por esta causa e identificando-se com estes seres, consiga se unir ao próprio Um. Portanto, a partir de todos estes seres nascido de uma causa, naturalmente ligados a ela ou criados, o intelecto pode se recolher normalmente na Origem única e absoluta, seja pela natureza, pela ação ou a contemplação. Porém, se o intelecto que se consagra ao Um – ou às numerosas criaturas, ou aos seres naturalmente primeiros – não o faz para alcançar o Um, nem para se voltar para o Um original e envolvente para compreendê-lo por inteiro, simples e unicamente, na santa comunhão e no impulso do Espírito que ilumina, isto lhe será imputado como pecado, mesmo que esta consagração lhe pareça um bem. O que provém do Um conduz ao Um aqueles que se consagram como devido. Ao se desenvolver, toda manifestação da luz gerada pelo Pai e que vem habitar em nós por um puro dom de sua bondade, diz o grande Denis, nos cumula uma vez mais, com efeito, por sua tensão como um poder unificante, e retorna à unidade do Pai que nos reúne e também à simplicidade deificante. Pois tudo provém dele e a ele retorna[20]. Mas se o intelecto não se eleva para este objetivo, ele fracassa e seu exercício se desvia do caminho natural.

18. Existe uma ação que precede a contemplação, e uma ação que se segue à vida contemplativa. Uma é realizada pelo corpo. Nos que refrearam os impulsos do corpo e se prepararam para ser conduzidos pouco a pouco à boa ordem, ela concede à inteligência que avance livremente naquilo que lhe é próprio, ou seja, para dentro do próprio intelecto, para aí trabalhar para seu benefício. A segunda, que parte do próprio intelecto e da compreensão em espírito, se recolhe no que existe de mais alto que a inteligência, ou seja, Deus. Uma vez que se aproxime de Deus, o intelecto se dirige para o Um, pois Deus é o Um.  Ele se une assim a si próprio em vista do Um e se torna indivisível. Pois o Um suscita a unidade e se deixa contemplar pela simplicidade semelhante a Deus. Que o intelecto contemple o Um mas não possua em si próprio a simplicidade no Um, estas são coisas impossíveis de conciliar. Ele se divide e se diversifica por que vê as coisas divididas e compostas. Já o Um absoluto é aquele que é simples por si só. Aquilo que o intelecto é está sujeito a alterações em sua energia, embora ele próprio permaneça simples; assim, é preciso que ele seja igualmente o Um em sua energia quando ver o Um. Ora, se ele vê o Um mas ainda está dividido em dois, o que pode fazer por si própria a parte separada daquela que vê o Um? De fato, ou bem ela verá outra coisa, ou bem não verá nada, e isto por duas razões: ou por que não quer, ou por que está embotada por outra força de ação que não a visão. Se supusermos que ela vê outra coisa, temos que considerar então que o intelecto não está vendo o Um absoluto, mas duas coisas, o que é contrário à razão. Por que, vendo duas coisas, ele não pode ser o Um, mas permanece dividido naquilo que contempla, como demonstramos. E se ele não vê, é impossível que seja por não querer ver, pois o intelecto dotado de razão não pode sofrer, por pouco que seja, de inação, nem ser reduzido assim à insignificância. Tampouco ele pode ser parte agudo e parte embotado, ou coisa assim, pois então ele será feito de partes dessemelhantes e será, portanto, composto e não simples. Ora, é o que aconteceria se, por um lado, ele visse e, por outro, se consagrasse a qualquer outra forma de energia: ele seria feito de uma mistura de elementos e não poderíamos dizer que a inteligência é simples. É por isso que a unidade e a simplicidade do intelecto, uma vez que ele considera o Um absoluto, se identifica ao Um pela energia. E se ela for pura e simplesmente o Um, ela contemplará o Um absoluto. Portanto, toda ação, ou toda contemplação, deve se voltar necessariamente para o Um que ultrapassa a inteligência. Senão o intelecto não chegará a lugar algum, e tudo o que fizer ou contemplar terá sido em vão. Pois, submetido à divisão ele provocará paixões, por não ser conduzido por nenhuma percepção da alma em direção à sua união com o Um que de maneira única ultrapassa o entendimento. Com efeito, esta união é capaz de iluminar e purificar a contemplação do intelecto, quando esta contemplação se eleva e se volta para o Um, cheia de amor em relação Àquele de quem, por quem e em quem todas as coisas têm seu ser[21], e em vista de quem elas se vieram a ser, existem e permanecem.

19. A união entre Deus e a alma, esta união que ultrapassa a inteligência, é o cume de todos os desejos. Mas para chegar à união divina, é preciso primeiro assemelhar-se a Deus. E para atingir a semelhança divina, é preciso agir segundo o intelecto, ou seja, é preciso contemplar. Uma tal contemplação é da ordem do divino: por isso lhe damos o nome de Deus. Com efeito, a contemplação se eleva diretamente para o pensamento de Deus. Pois de todas as partes e em todas as coisas Deus envia como que raios ao intelecto contemplativo. O intelecto que contempla tem a Deus diante de si. Ora, Deus é o Um que está acima do mundo. E a natureza do intelecto pode, em sua energia, se tornar semelhante àquilo que ele vê. É o que afirma o Teólogo, o divino Gregório, quando diz que viu e experimentou o esplendor de Deus. Pois o que o intelecto vê ele também experimenta, ou ainda, ele se torna como ele. O intelecto, diz ainda Pedro Damasceno, toma a cor daquilo que contempla[22]. Assim como, observando as coisas divididas ele se diversifica e se divide no múltiplo, também quando ele se eleva na contemplação do Um absoluto mais alto que o mundo ele se torna Um, como eu disse antes. E quando ele penetra no Um, ele vê aquilo que não tem começo nem fim, o que é simples e sem forma. Pois assim é o Um. É por isso que o intelecto, quanto à sua energia, é restabelecido no seu estado original, sem começo nem fim, simples e sem forma. Ao experimentar isto, ao se ver assim transformado, ele se encontra na semelhança do divino, na medida em que isto é possível. Daí para diante ele se lança para o cume de todos os desejos: a união divina e inefável que o ultrapassa. O objetivo supremo, o objetivo divino. Por isso o intelecto deve se esforçar por todos os meios e voltar-se e mirar no Espírito para atingir a contemplação e a consideração do Um que está acima do mundo.

20. Quando o intelecto se dispersa no múltiplo, ainda que apenas na dualidade, é claro que ele não contempla o Um absoluto. Ele então está limitado, encerrado, obscuro. Esta é, com efeito, a parte daquilo que não é absolutamente simples. Mas quando ele entra em contato intangível com o Um verdadeiro, através da contemplação intelectual no Espírito, ele se volta para ele com os olhos fechados e se torna sem começo nem fim, sem limites, forma ou figura, e se reveste de silêncio calando-se num arrebatamento, enchendo-se de delícias e saboreando o inefável. Mas não se diga que ele se tornou sem começo, sem fim e sem limites em sua essência, por que isto se dá em sua energia: a transformação do intelecto não é própria da sua essência, mas de sua energia. Pois se ele se transformasse segundo a essência, vendo e experimentando a deificação, ou seja, tornando-se deificado ao contemplar a Deus, o intelecto seria Deus em sua essência. Isto ele não é, assim como não o são os anjos tampouco. Apenas Deus, em seu absoluto e sua unidade, é Deus em essência. Assim, se a afirmação de que a deificação do intelecto em essência é absurda, resta dizer que ele experimenta a deificação pelo fato de ver. Pois ele não possui uma natureza que o permita mudar em sua essência, mas ele muda segundo sua energia. De resto, se o intelecto se transforma naturalmente, como dissemos, conforme aquilo que ele contempla, ele não contempla a essência divina, mas a energia. Então, ele próprio não se transformará segundo a essência, mas segundo a energia.

21. Todas as coisas, depois de brotar luminosamente do Um que está acima do mundo, não se afastam do lugar onde tiveram sua gênese, mas permanecem aí contidas e se realizam tal como nasceram. Não existe nada no universo que não testemunhe a irradiação e como que do perfume deste Um criador, deste Um verdadeiro. As coisas que participam do ser não podem deixar de expressá-lo desde que ele se revele, não como o Um acima do mundo (por que este está fundamentado acima de toda contemplação e de toda intelecção), mas como um raio do Um mais alto do que o mundo. Assim, desde que o Um é expressado por todas as coisas e que todas as coisas tendem para o Um, e que o Um acima do mundo se revela por si só ao intelecto através de todos os seres, é necessário que o intelecto seja conduzido, levado e guiado em direção ao Um acima do mundo. Seja por ser forçado a ir pela persuasão de tantos seres, seja por que o Um criador – já falamos disto – na superabundância de sua bondade quer ser contemplado pelo intelecto, a fim de que este, nesta contemplação, experimente a vida, como já o disse o Um eterno: “Eu sou a vida[23]”. E: “A vida eterna consiste em conhecê-lo, o único e verdadeiro Deus[24]”. E em outra parte: “Busque ao Senhor e sua alma viverá[25]”. Pois da busca vem a visão e da visão vem a vida, a fim de que a inteligência exulte, se ilumine e se regozije, como disse Davi: “Em você está a morada de todos os que se regozijam[26]”. E: “Na sua luz vemos a luz[27]”. Senão, como teria ele criado a inteligência contemplativa, como teria semeado em todos os seres aquilo que a ele pertence e por meio do qual, como que através de uma janela, revelando-se ao intelecto em seu flamejamento intelectual, ele o chama para si, pleno de luz?

22. Tudo o que fez o Deus bom, o Deus único em três Pessoas, ele o fez por sua vontade. E o que Deus quer é profundamente bom, pois a bondade é a sua natureza. Assim, ele criou a inteligência para que o contemple, ou contemple aquilo que dele provém. E ele é capaz de reunir esta inteligência quando ela contempla o Um. Então, é a vontade de Deus que a inteligência contempla – e isto é bom, profundamente bom. Ora, Deus é propriamente o Um absoluto. Assim, tender para o Um e se recolher simplesmente nele é profundamente bom, como demonstramos.

23. Se o eros absoluto é um em seu recolhimento, como afirmam os sábios de Deus, o ser amado será também um. Pois se os seres amados fossem dois (no mínimo), ou bem haveria dois eros, ou bem o eros único seria dividido, e não se poderia dizer que ele é um em seu recolhimento. Mas se afirmamos que na realidade o eros absoluto é um em seu recolhimento, daí decorre que o ser amado srá igualmente um. Mas o ser amado existe antes do amor que lhe é dedicado, e não é possível que haja amor antes de que o tenha recebido o ser amado. O eros é o amor dirigido que a lei natural e a lei escrita de Deus exigem que tenhamos por Deus. A primeira, ao persuadir profundamente a inteligência filocálica, a faz conceber o melhor, que é Deus. A segunda diz: “Você amará o Senhor seu Deus com toda sua alma, todo seu coração, todo seu pensamento. O Senhor seu Deus, o Senhor é um[28]”. Um é portanto o ser amado: é a unidade das três Pessoas, que existe antes do amor que o intelecto lhe dedica. É preciso, assim, que o intelecto deseje se dirigir para o Um mais alto do que o mundo. Pois assim, por sua descoberta e sua contemplação, o eros brilhará ao redor do Um e o homem terá o poder de realizar a lei e os mandamentos, amando, como foi dito, ao Senhor seu Deus.

24. Uma vez tendo se elevado até o Um que ultrapassa todo entendimento, é impossível que o intelecto não seja amado por ele. Pois a beleza inefável e incompreensível que provém dele nos é dada como uma raiz que fundamenta o universo. O intelecto se encontra diante dos esplendores divinos como a rede que está prestes a se romper sob o peso dos inumeráveis peixes que ele descobriu e atraiu[29], e está arrebatado na contemplação da beleza que o ultrapassa. Ele se embriaga como de vinho. Fica fora de si, como um louco. Prova do maravilhamento que ultrapassa todo pensamento. E já não consegue suportar a visão mais do que bela da incomensurável beleza. Ele se torna preso pelos laços do amor e é consumido como se pela sede. Pois o Um que ele contempla está além do seu entendimento. Mas ele foi pregado para todos, como sendo a causa primeira de todas as coisas, como o começo, como o fim, como a continuidade de tudo. Pelo transbordamento do poder que criou o belo e o bom, ele gerou a beleza e a bondade de todas as coisas belas e boas. Pois ele é o Ser único incomparavelmente acima do mundo, e fundamentado infinitamente ao infinito acima de toda beleza e de toda bondade. Ele é o único que ama naturalmente acima de todos os que amam, por que ele é o único propriamente belo e bom que está acima de toda bondade e de toda beleza, o único que é verdadeiramente amado em virtude da lei da natureza e da ordem, por que ele é a causa de tudo. Ele ama a tal ponto e de tal maneira é amado que, pelo transbordamento da beleza e da bondade ele ultrapassa todos os seres amados e todos os que amam. O Um mais alto do que o mundo é verdadeiramente como o único Ser que existe, o único Ser que criou todos os seres. Portanto, é preciso – e com a graça de Deus, como foi dito – retornar no Espírito à descoberta e ao conhecimento do único Um, de onde provém a origem de todas as coisas, e para onde segue o fim de todas as coisas. A porta do amor divino se abrirá por si só diante de nós pela graça de Cristo e nós entraremos no repouso de nosso Senhor[30], nós nos regozijaremos, exultaremos, conheceremos a alegria do Um e provaremos das delícias divinas, nos tornaremos um e já não seremos mais divididos e partidos, como pediu o Salvador a seu Pai quando disse: “Que eles sejam um, como nós somos Um[31]”. Então poderemos cumprir exatamente o mandamento que nos ordena: “Você amará o Senhor seu Deus com toda sua alma[32], e seu próximo como a si mesmo[33]”. Então teremos recebido a perfeição de que o homem é capaz. Pois o fim da lei é o amor[34], do qual dependem não apenas toda Lei e os Profetas[35], mas todos os que atingem a perfeição em Deus e em Cristo.

25. Para todo ser que alcance a unidade no Espírito, a divisão representa um relaxamento. Assim é que o intelecto, ao se dividir em sua energia, fica de fora daquilo que a graça lhe concede. E é o que lhe acontece quando se volta para o múltiplo, pois não lhe é possível ter em si o indivisível ao mesmo tempo em que considera a diversidade. Com efeito, se isto fosse possível, não seria fácil explicar por que o intelecto que se dedica à hesíquia é tão posto àquele que mira a confusão: isto equivaleria a demonstrar que o intelecto daqueles que se voltam para Deus é semelhante ao intelecto perturbado pela desordem das paixões, o que é absurdo. Pois este último, seja lá o que for que possa ver potencialmente, vê na verdade as coisas composta e acaba por modificar a si próprio. Ele se afasta da simplicidade e já não pode conter em si o indivisível. Ora, quem está sob os golpes da divisão nunca pode se dizer puro do pecado. É assim que esta divisão foi considerada por aqueles que puderam discernir as coisas. Com efeito, se o intelecto voltado para a visão do Um supremo e mais alto do que o mundo deve, em primeiro lugar, provar, por meio do sentido intelectual, a beleza que ultrapassa a natureza, é a graça que o faz escapar à divisão. É preciso assim conservarmo-nos junto ao Um mais alto do que o mundo e nos voltarmos para ele com toda nossa alma, unicamente e apenas para ele, se quisermos escapar da alienação e da divisão. Se o intelecto não se debruça sobre o Um, mas sobre o criado, é impossível que ele não seja dividido, por que não se pode dizer que o criado seja simples: ele é finito, composto, limitado. Por isso nunca podemos chamá-lo de Um absoluto. Ao se voltar para ele, o intelecto deixa de ter em sua própria energia toda e qualquer simplicidade, toda e qualquer unidade. Sua visão estará cercada e limitada, pois o criado é comporto. O que ele contemplar será sempre limitado, e ele terá decaído da graça divina que o fizera simples, sem começo e sem limite ou restrição.  Ele estará fora do Um oculto, deste Um que ultrapassa todo entendimento, e será privado de sua própria glória, que consiste na fruição de sua identidade original e sem começo, no ilimitado e na simplicidade, no fato de ser absolutamente independente de qualquer forma. Nestas condições, ele será incapaz de imaginar a beleza sobrenatural e inefável. É preciso, assim, que o intelecto se volte e se dirija para aquilo que não tem começo, para o simples, o ilimitado e o verdadeiramente Um, e que então ele se abra para a luz, que ele se uma à unidade que comanda o recolhimento e que por meio deste se una a si próprio, a fim de não apenas ser amado pelo melhor – por ter se tornado semelhante a ele, na medida do possível, na simplicidade, ilimitado, sem forma nem figura – mas ainda que ele possa amar a beleza divina mais do que bela e sobrenatural, elevando-se em direção à semelhança, como foi dito. Com efeito, se o estado amoroso encaminha naturalmente os seres para os seus iguais, é claro que o intelecto amará a Deus assim como por ele será amado. Pois o mesmo é semelhante ao mesmo. E assim como a similaridade implica sua recíproca, o amor terá sempre como resposta o amor. Nada, mais do que o amor, une a alma a Deus.

26. O intelecto ultrapassa sua própria natureza quando se eleva acima de si próprio, fora de toda imagem e figura, quando se torna todo divinamente sem forma, sem começo nem fim, e por assim dizer acima da união que lhe é própria. Mas quando ele traz consigo seu próprio pensamento, mesmo que se consagre ao divino e ao inteligível, dizemos que ele se move e age naturalmente, e que se mantém dentro de sua natureza. Ora, o sobrenatural ultrapassa em muito o natural: ele está muito acima deste. É preciso, assim, amar intensamente aquilo que ultrapassa a natureza, pois é aí que reside o melhor, conforme o mandamento que nos ordena buscar os melhores carismas[36]. Vale dizer que está em Deus o intelecto que se encontra no sobrenatural. Pois Deus está fora e além de toda natureza, por ser mais antigo e por ser o Um absoluto. É preciso, portanto, que o intelecto se volte, mire e se eleve ardentemente para aquilo que é mais antigo e que é o Um absoluto, a fim de que, elevado ao Um mais alto do que a natureza acima de sua própria energia natural, ele possa descobrir o que é melhor para si, ao invés de permanecer naquilo que ele já possui segundo a natureza.

27. Cada ser se regozija e repousa naturalmente naquilo que lhe é próprio e que preexiste inteiramente na origem mais antiga, que é a causa única. O intelecto entrará naturalmente nas grandes alegrias e terá em si uma longa felicidade, encontrando o maior repouso quando, depois de haver atravessado tudo e a tudo abandonado, se consagrar por meio do regresso intelectual a esta causa original e primeira da qual nasceram o universo e todas as coisas, por ser ela o começo, o meio e o fim; esta causa na qual tudo existe e se conserva, por meio da qual aquilo que é realizado é conduzido ao seu fim próprio, pela qual é feliz aquele que vive no bem, pela qual foi fundado o próprio intelecto tal como ele é. De certa forma, o intelecto é chamado a regressar sobre si mesmo a partir do instante em que ele retorna a esta causa soberana de todas as coisas, que é seu verdadeiro modelo. Todo ser que ama verdadeiramente a si mesmo – e esta é uma coisa que o intelecto experimenta realmente – como uma imagem da maravilhosa beleza do Um mais do que belo além do entendimento, é tomado de um grande amor ao retornar e contemplar sua própria origem. Pois, como foi dito, ao ver a si mesmo, ele vê o além e ama infinitamente. Aliás, esta é a afeição plena de amor que sentem naturalmente os nascidos em relação aos autores de seu nascimento, assim como, reciprocamente, os pais são tomados de amor por seus filhos. É por isso que aquele que regressa à origem de tudo, ao Um, recebe um grande e inefável prazer. Pois ele regressa para sua causa e para si próprio, como foi dito.  Tudo aqui preexiste em razão da causa. E, particular o intelecto, por ser a unidade de tudo, existe no Um que ultrapassa o entendimento, como em sua origem e modelo.

28. Assim como todo ser provém do Ser que está além do ser, que toda natureza provém do Ser acima da natureza, que o temporal e o composto provém do intemporal e do simples, e que, enfim, o criado extrai sua existência do incriado, também toda forma tem sua origem no que não tem forma e a multitude das coisas visíveis tem sua origem no Um que está acima do mundo. Portanto, quem não se consagra ao Um que está além da forma, que não o contempla e que não está como que suspenso nele, mas que olha para qualquer outra coisa que se possa ver numa forma e na criação, este coloca aquilo que está incomparavelmente abaixo antes do que está acima, e se aproxima assim dos idólatras. Por que ele busca o que o ocupa e o que enxerga, e o que ele procura o domina. E o que o domina o sujeita[37]. Assim é que este homem adora a criatura ao invés do Criador[38]. Com efeito, o intelecto de cada um se sujeita àquilo que ele vê e com o que se ocupa. A isto ele adora e ama. Mas se por um lado o fato de se ocupar e de enxergar para longe do Um absoluto e sem forma provoca tal queda, por outro não podemos dirigir para o Um absoluto e sem forma nosso esforço e nossa busca senão por meio de um retorno sobre nós mesmos e pela tensão intelectual, a fim de que os tesouros de todo conhecimento[39], onde quer que se encontrem, constituam o repouso e o fim de toda contemplação, a detenção do pensamento, o silêncio que ultrapassa a inteligência e o regozijo inefável num imenso maravilhamento.

29. Todos os seres buscam o ser. Mas em todos este ser tem sua causa no Um que está acima do ser. Portanto, todos os seres, e, em especial os dotados de razão e que caminham sobre a via reta, ao buscarem o ser, buscam pelo Um que está acima do ser. Assim sendo, o intelecto que não se volta para o Um acima do ser e que não o busca, dirige-se em verdade para a desordem e a perdição, e perde a dignidade que lhe é própria: o conhecimento do Um acima do ser, a divindade e a simplicidade da união e do amor que para além de si mesmo ele descobre no Um.

30. As causas condizem ao mais alto grau a beleza dos efeitos que elas produzem. Ora, a causa de todas as coisas, e o que elas têm em comum, é o Um além do ser. Portanto, se o intelecto se liga a alguma das coisas que seguem o Um além do ser e considera que esta coisa é bela e de algum modo digna de atraí-lo, é claro que ele se perde de seu objetivo. Pois assim ele ama a beleza sem ser levado ao Um acima do ser, para o Um primeiro e soberano, de onde todas as coisas belas extraem sua beleza. Deixando-se levar pela negligência e a ignorância, ele se volta para as coisa que não fazem mais do que participar da beleza do Um. Quanto ao intelecto que alcança a visão última, este volta para o Um acima do ser os olhos de seu pensamento. Ele sabe com clareza que seu desejo será atendido além de toda medida, por estar na contemplação espiritual considerada como sua origem. E ele sabe que ninguém, salvo o Um além do ser, pode lhe dispensar a beleza que lhe é própria – ou qualquer beleza que seja. Alguns seres podem ter aparentemente a faculdade de dispensar o que lhes é próprio. Mas estas coisas não permanecem eternamente no intelecto amoroso. Somente o Espírito Santo as realiza, como e onde quer. Pois ele é o Senhor, uma das três pessoas da Unidade, e sua natureza é soberana. É preciso assim que o intelecto retorne para o Um acima do ser, onde se encontra não apenas a fonte de todos os seres, mas ainda a indefectível distribuição dos carismas.

31. Todos os seres buscam naturalmente o bem. Mas o verdadeiro bem é único, ainda que sejam numerosos os nomes do bem. Pois você não encontrará nada nas numerosas formas do bem que seja simplesmente bom e como que perfeito. Aquilo a que chamamos de bem o é sempre por uma certa participação no bem. Ele participa do bem do Um que está acima do ser, mas não possui o bem por si mesmo. Com efeito, somente este bem Absoluto, único, acima do ser, é mais do que bom e fonte de toda bondade. Somente ele dispensa o que lhe pertence, toda essência, toda existência, todo estado, todo poder, todo movimento, toda energia, toda propriedade, toda beleza, toda bondade, e ele retorna naturalmente sobre si mesmo. Simplesmente todos os seres e tudo o que vemos ao redor deles receberam do Um acima do ser sua manifestação, por que este os criou. É por isso que o movimento do intelecto se perde quando se volta para qualquer outra coisa e não para o Um absoluto além do ser. Talvez este intelecto se volte para o bem, mas não para o bem absoluto em si, para aquilo que o pode cumular de bondade pelo transbordamento da efusão benfazeja, para aquilo que concede o melhor a quem precisa receber o bom e o melhor.

32. O intelecto da maioria está dedicado à ignorância por causa da divisão. Ele está como que espedaçado entre numerosos bens, mas ignora o bem real, o Um absoluto. Nem o busca, por que não se consagra a ele. É destes bens que fala o Espírito em Davi: “Muitos dizem: quem nos mostrará os bens?[40]”. Mas não o bem, justamente. Eles se inquietam e se agitam por muitas coisas, enquanto que só uma coisa é necessária. Esta parte, a boa parte[41], que nos foi revelada pela santa palavra de Deus, ou a ignoraram passando ao largo, ou a negligenciaram e a perderam. Não lhes ocorreu ao espírito buscar o que vale a pena ser buscado mais do que toda outra coisa. Os que foram ensinados por Davi, que resolveram seguir suas pegadas, disseram: “Sobre nós se revelou a luz de sua face, Senhor[42]”. Vale dizer: o conhecimento de sua glória única se manifestou a nós como em um espelho. Assim a maior parte dos homens se regozija por possuir muitos bens. Mas os que vivem no Espírito recebem acima deste mundo a luz do conhecimento do bem único, o bem absoluto.

33. Assim como a impetuosidade de um curso d’água é tanto maior na medida em que este corre num só leito do que quando se divide e se separa em muitos ramos, também a contemplação do intelecto, o movimento e o impulso que lhe são próprios serão mais fortes se não o obrigam a se dividir e se modificar, mas se concentram num só ponto sem se dividir. É o que acontece naturalmente quando o intelecto, com toda sua contemplação, se volta e mira o Um absoluto acima do mundo. Pois o Um absoluto acima do mundo se lhe assemelha verdadeiramente. É impossível que o intelecto ao qual foi concedido ver o Um não receba naturalmente sua forma, como uma imagem, e não realize a unidade da ordem única, não se torne simples, sem cor e sem figura, inqualificável, intangível, invisível, sem limite nem forma, tal como o Um absoluto acima do mundo, iluminado pelos raios do eros divino que está acima de tudo, coroado pela revelação do conhecimento místico, pelo silêncio e pela incompreensibilidade que ultrapassam a razão e o entendimento, nas delícias do regozijo espiritual e da felicidade celeste. Pois ele conheceu a mudança que conduz ao mais divino, ele se revestiu da forma divina, ele adquiriu em espírito a simplicidade, a ausência de forma e de figura, a unidade e as demais qualidades que mencionamos. Mas se ele não chegar a este ponto, se não experimentar esta mudança divina, ser-lhe-á impossível tocar e ver o Um mais alto do que o mundo. Pois Deus é a Unidade que unifica, a Inteligência que ultrapassa o entendimento. A partir deste momento o intelecto vê a Deus, mais alto do que o mundo, quando, junto com tudo o que mencionamos, ele se torna o Um que ultrapassa todo o entendimento e experimenta a visão divina.

34. As três Pessoas da Divindade acima do ser estão reunidas sobrenaturalmente na Unidade. Pois Deus é a Unidade das três Pessoas. Assim, não é possível que a alma se torne uma imagem à semelhança de Deus se ela própria não for tripla e não tenha chegado sobrenaturalmente a se tornar o Um em si mesma. Digo que a alma é tripla, não por que ela esteja dividida em razão, ardor e desejo. Não é propriamente nisto que a alma é tripla. Por que a alma racional não tem por que se dedicar ao desejo e ao ardor, que são privados de razão, que pertencem à vida presente, à vida animal, e que são por si mesmos selvagens e tenebrosos. A alma está dedicada à razão, e sua natureza é cheia da luz intelectual. É preciso dizer aqui que ela possui por si só as coisas sem as quais ela não poderia pôr a trabalhar sua própria energia. Mas ela age bem sem o ardor e o desejo. Na verdade, é quando ela age sem estes que ela age realmente. Eles não fazem propriamente parte dela, mas, como foi dito, constituem nela potências de ordem animal e inferior. Pois a alma racional contempla pelo intelecto as coisas do alto, ela olha o inteligível, ela se coloca além de si mesma, ela rejeita para longe como meras bravatas o desejo e o ardor, e não tem o que fazer com eles. Como foi dito, ela se lança para o lugar onde estão a simplicidade, a ausência de imagens, de figura, de cor e de forma, e todas estas coisas que exigem uma inteligência livre e totalmente simples. É nesta própria simplicidade que a alma é tripla. Pois ela pé a inteligência que, pela razão e o espírito, executa o que lhe é próprio e que não prejudica absolutamente esta simplicidade. Com efeito, o fato de que seja simples a Origem única, a Divindade de quem a alma é a imagem semelhante não impede que ela seja uma e simples. A Divindade é justamente o Um absoluto acima do ser, mas nem por isso deixa de ser, e é certamente, a Trindade. O mesmo acontece com a alma. O intelecto (pois a alma é o intelecto, e o é totalmente), a razão e o espírito são sobrenaturalmente um. A alma nos permite que nos assemelhemos à Divindade única em três Pessoas. E isto não lhe vem aliás senão da consideração e da contemplação da Unidade sobrenatural das três Pessoas. É esta unidade que fez da alma esta imagem, e a tornou esta imagem antes da queda. E sem a consideração e a contemplação da unidade, é impossível que a alma se unifique. Se não chegamos a ver a unidade, se não reencontramos a semelhança, permaneceremos sempre imperfeitos. Assim, tudo o que nos permitir alcançar a contemplação e a verdade será digno de nossa atenção. Sem essas coisas nos será impossível alcançar o estado de impassibilidade. Pois assim como precisamos da ação para nos voltarmos para o bem, a fim de nos colocarmos entre os impassíveis, também precisamos da contemplação para descobrir a verdade, a fim de nos tornarmos semelhantes a Deus, e adorarmos a Deus que domina o universo, buscando tornarmo-nos deuses por adoção, na medida em que nos é permitido nos assemelharmos ao modelo. É então necessário que nos tornemos um, pela semelhança com o modelo, que é o Um acima do mundo. Esta é a obra da consideração e da contemplação deste Um, da tensão, do retorno do intelecto, do olhar voltado diretamente para ele. Assim é que é preciso nos esforçarmos por todos os modos para nos voltarmos para o Um acima do mundo e de todo entendimento, para a ele nos ligarmos inteiramente com todo fervor, de todo coração e com toda nossa alma, nutrindo em nós o eros voltado para o Um – e somente para ele – o Um que está acima do mundo e que se debruça sobre tudo, como se este eros que trazemos em nós nos desse asas santas para nos elevarmos até ele através do intelecto. Assim como no espaço, num estado de simplicidade além de toda forma, estaremos sempre juntos do Senhor[43], do Um verdadeiro. Pelo intelecto e a razão levaremos em espírito a tripla celebração à Trindade. Abertos naturalmente para ela, arrebatados, estaremos na simplicidade unidos ao Um por nossa própria união além de toda união.

35. A unidade sensível é o princípio de toda multitude possível de enumerar. E a unidade mais alta do que o mundo é o princípio de toda multitude visível e invisível e de todo ser. Assim, do mesmo modo como todo número extrai da unidade sua origem, também todo ser provém do Um mais alto que o mundo, no qual tem sua causa natural ou criadora. Mas o lugar da unidade numérica, dado que esta unidade é sensível, decorre de sua própria natureza. Pois ela é a origem de tudo o que está submetido ao número. E na ordem sensível dos números, ela é o primeiro. Mas quanto ao Um acima do mundo ocorre o contrário, por que ele está além da inteligência. Ele é por natureza a unidade original de todas as coisas, e o intelecto o coloca depois de todas as coisas. Pois nenhuma inteligência pode tomar como como origem o Um mais alto do que o mundo, e daí se dirigir para o múltiplo. Ao contrário, é do múltiplo que ele se eleva até o Um e nele se recolhe. Por um lado, o um numérico é necessário aos sentidos para progredir no múltiplo: de outro modo, nenhum ser poderia contar ou avançar como desejasse. Por outro lado, o múltiplo é necessário ao intelecto para que, através dele, este se eleve até o Um mais alto que o mundo e nele se recolha, por que não há outro ponto de partida para que ele se eleve por meio da contemplação deste Um acima do mundo. Portanto, o intelecto, segundo sua ordem e sua via próprias, começa pelo múltiplo e tem seu fim no Um supremo acima do mundo. Pois o um numérico, tal como o concebem os sentidos é fácil de conceber e definir: os sentidos o colocam naturalmente em primeiro lugar, como pede sua natureza. Mas a unidade que a inteligência busca, a que está acima do mundo, por ser sobrenatural e não se deixar compreender, está longe do lugar que é seu por natureza, um lugar tal que a inteligência pudesse partir dele. Ao contrário, o intelecto o encontra não como uma origem sobrenatural, mais alta do que a natureza, mas como um final que se segue à passagem, e por assim dizer depois da total enumeração do múltiplo. Com efeito, uma vez que a natureza do intelecto é de compreender, e que o Um acima do mundo é em si incompreensível e inacessível, a atividade do intelecto se inclina contra sua vontade para o múltiplo. O intelecto não pode passar sem compreender, mas também não tem força para captar o Um supremo mais alto do que o mundo. Quando ele observa o múltiplo, ele vê assim em cada coisa aquilo que é inteligível, não o que faz desta coisa um ser, mas aquilo que o liga a uma unidade. Recolhendo a seguir de cada coisa que ele vê tudo o que lhe parece inteligível, e considerando que os seres correspondem e não se opõem entre si, sendo como as flores de uma mesma raiz e de uma mesma planta, ele vai do múltiplo ao Um supremo, que permite à multidão de todos os seres se reunir naturalmente e passar do estado de natureza à ordem sobrenatural. Então ele contempla o Um acima da natureza e do ser, uma vez que ele agora se coloca em sua natureza de ver simplesmente o sobrenatural a partir das coisas naturais.

Então o intelecto, que teve sob seus olhos, inefavelmente, o jorro da fonte, o transbordamento criador de todas as bondades e de todas as belezas, e que se deliciou no Um mais alto do que o ser, já não retorna por si mesmo para o múltiplo, ainda que aí os seres sejam belos e tragam em si a boa parte. Pois ele ama naturalmente a beleza a ponto de não mais se afastar voluntariamente Daquele que está acima de tudo, a menos que alguma circunstância o obrigue. Mas uma vez que os seres não se apresentam todos da mesma maneira, o intelecto tem uma visão intelectual diferente de cada um deles, e, por intermédio deles, ele retorna diferentemente ao Um sobrenatural acima do mundo. A meu ver, é preciso ter se esforçado um pouco em caminhar sobre a via que conduz do múltiplo ao Um acima do mundo, para além do ser, para que o intelecto, elevando-se como que por degraus, afirme bem seu movimento próprio, saiba se este movimento não se apresenta defeituoso, se ele segue bem por onde deve andar, ainda que por algum tempo tenha se deliciado no Um, e saiba também qual foi o seu erro, na medida em que se afastou desta beleza e desta revelação, deste banquete divino, e como lhe será possível retornar para o lugar de onde caiu. Então ele conhecerá a bruma das paixões, a claridade do coração puro e a descoberta da verdade. Por que ele terá visto no espelho o que ele é. E tomará parte das contemplações celestes, e trará em si o sentido divino, e não voltará atrás, quer cresça quer decline na ciência destas coisas admiráveis. E ele compreenderá qual é o objetivo da hesíquia e do enclausuramento.

É justamente isto que dizemos aqui. Todos os seres estão distribuídos em seres criados e sensíveis, seres criados e inteligíveis e seres incriados e inteligíveis. O incriado que ultrapassa a inteligência é o Um mais alto do que o ser. No entanto, o olho da alma – ou seja, o intelecto – que se volta para o Um e o vê distintamente, caso escolha viver na hesíquia e na ascese, se elevará como que de um primeiro degrau desde a ação que o levará a fazer solitariamente aquilo que lhe é natural, até a contemplação que lhe permitirá permanecer no Um verdadeiro, onde receberá as delícias do celestial, onde se cercará e se regozijará com os raios da verdade, onde se enriquecerá infinitamente com o eterno, e dele se cumulará maravilhosamente de encanto e doçura. Pela sinergia da graça, quando chegar o tempo, quando a luz intelectual nele se firmar de modo contínuo, o intelecto poderá se elevar da terra. Tomado por Aquele que está além dele, e vendo Aquele que está incomparavelmente além de toda beleza, ele já não sentirá as coisas daqui.

Esta escada sagrada possui cinco degraus e se eleva de degrau em degrau até o objetivo extremo. Mas a distância entre os degraus não é espacial. A diferença, aquilo que separa um degrau do outro, é da ordem da qualidade ou da especificidade. Assim é que os seres podem ser criados e sensíveis ou criados e inteligíveis. Mas os segundos superam em larga medida os primeiros, assim como o intelecto, por sua beleza própria, supera os sentidos. Da mesma forma os seres incriado e inteligíveis superam em muito os criados e inteligíveis. Mas cada qual tem seu lugar na ordem dos seres. Os seres incriados e inteligíveis estão eles também submetidos ao Um, ao incriado que ultrapassa a inteligência. A partir daí a coisa é clara: o que permite ao intelecto que se desenvolve a partir da ação alcançar Aquele que o conduzirá acima de todos os seres e alçar-se ao cume do segredo que habita além de todo o sensível e de todo o inteligível, é sua visão e sua contemplação ao mesmo tempo mais altas e mais humildes no seio das criaturas sensíveis e, sobretudo, na vida ativa. Será preciso, então, uma vez que o intelecto ama a beleza por natureza, buscar aquilo que é o melhor de todas as maneiras, para não apenas usufruir, mas ter a experiência da maior mudança, aquela que naturalmente o ultrapassará. Pois, como foi dito, na medida em que vê ou que desfruta daquilo que vê, o intelecto recebe esta transformação. Porém, uma vez que o movimento giratório ligado à natureza do intelecto não terminará por si próprio enquanto durar este dia[44], e, como foi dito, até que desapareçam as sombras[45], ou seja, até que tenhamos partido desta vida presente, que nos mostra num espelho e num enigma[46] a verdade como uma sombra, é preciso que, inclinando-nos a partir da contemplação e da visão do incriado, do Um que ultrapassa a inteligência, aproximando-nos assim dos seres inteligíveis e incriados, façamos todo o possível para retornarmos a este incriado, ao Um que está acima da inteligência.

Quando se dissipar a bruma espessa que entenebrece toda compreensão e espalha a acídia que impede o intelecto de contemplar, devemos nos voltar, por meio da ação e com um coração humilde, para as orações. E quando, pelo poder da prece e as lágrimas, as trevas se forem, quando a luz do intelecto, pela energia anipostática do Espírito, ocupar o primeiro lugar no coração, ou seja, quando o intelecto for o primeiro a possuir o coração, deveremos regressar como criaturas sensíveis ao grau fundamental, ao poder da vida ativa sustentada pela ciência. Então intelecto se elevará naturalmente, como ao cume de uma montanha ou uma torre de observação, e contemplará não somente aquilo que a maioria não vê, mas ainda o que buscam sem compreender, aquilo sem o que ninguém pode enxergar a si próprio, e muito menos a Deus[47]. Falaremos agora rapidamente desta vida ativa, sem nos afastarmos de nosso objetivo.

36. A alma possui dentro de si três faculdades ativas: a razão, o desejo e o ardor. E três faculdades fora dela: a busca pela glória, pelo prazer e pela abundância. A alma que, com conhecimento de causa, vê estas duas tríades, na vida encarnada que Cristo viveu, através das suas quatro virtudes gerais – a sabedoria, a justiça, a coragem e a castidade – se cura pela graça do Senhor Jesus e permite ao seu próprio intelecto elevar-se para fora das trevas, ver o divino ao seu redor e contemplar a Deus. Com efeito, quando o Senhor Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto para combater o diabo[48], ele curou o desejo por meio do jejum, a razão por meio da vigília e a prece na hesíquia, e o ardor pela refutação. Ele não procurou nem o amor pelos prazeres, nem o amor pela vanglória, nem o amor pelo dinheiro, ainda que tivesse fome e o diabo lhe propusesse transformar as pedras em pão; ele tampouco se atirou do pináculo do templo para ser glorificado pela multidão quando a queda não lhe causasse nenhum ferimento; e ele se recusou a se prosternar diante da promessa de receber a riqueza de todos os reinos. Sua ardente refutação foi sábia e justa, casta e corajosa. Ele rejeitou Satanás, nos ensinando a vencê-lo cada vez que ele atacar.

As mesmas coisas veremos nós, e poderemos conhecê-las pela cruz do Salvador. Orava o Salvador, no tempo devido, afastando-se dos seus discípulos[49]? Esta é a cura da razão. Permanecia ele vigilante, velava, sofria a sede na cruz[50]? É o remédio contra o desejo. Ele não contestava, não disputava, não gritava[51]. Injuriado, não orava ele pelos que o ultrajavam[52]? Esta é a justa medida do ardor: refutar o diabo, responder com o silêncio, a paciência, aos homens que nos ultrajam, pois eles próprios sofrem o ultraje de Satanás, e orar por eles. Não recebeu ele os escarros e as bofetadas, não suportou a zombaria e os gracejos da multidão[53]? Este é o tratamento que previne o amor à vanglória. Não foi ele servido de vinagre, alimentado com bílis, crucificado, perfurado com a lança[54]? Esta é a cura do amor aos prazeres. Não foi ele suspenso à cruz, em pleno ar, nu, ao desabrigo, à vista de todos, como um pobre e um indigente? É isto que destrói todo pendor pelo amor ao dinheiro.

Assim o Salvador nos mostrou por duas vezes a cura das paixões de dentro e de fora: quando ele começou a se revelar ao mundo em seu corpo, e no momento em que deixou o mundo. É por isso que quem o vê, quem vê seu ensinamento e sua cruz, e que o imita tanto quanto possível, com a sabedoria e a justiça, a castidade e a coragem que ele próprio possuía, abolirá a energia dessas paixões que conduzem ao mal, e através destas a energia de todas as paixões, e as tratará como devem ser tratadas, e depois delas a todas as demais paixões. Este se tornará um homem que age segundo a verdade, pronto a contemplar e ver a Deus, e a se consagrar a esta tensão do intelecto. Assim é que o intelecto, que começou pela multitude dos seres que ele pode sentir – os seres criados –, viu realizar-se sua obra de beleza, daí compreendeu os seres criados e inteligíveis e em seguida se dirigiu aos seres inteligíveis e incriados, passou por quatro degraus, como numa escada. A partir deste momento já não se fala mais nada, vêm o silêncio e o arrebatamento divinos que ultrapassam a inteligência, numa palavra, a consideração e a contemplação do Um mais alto do que o mundo, a união que ultrapassa o entendimento, o coroamento da hesíquia, o objetivo extremo, o cumprimento perfeito do desejo – na medida em que este pode ser atingido na vida presente – a realização da verdade, o fruto da fé, o claro esplendor da glória esperada, o fundamento do amor, a realização da inteligência, a detenção de seu movimento contínuo, o fim do incompreensível, o estado de simplicidade, a obra que nos garante os penhores do século futuro, a causa da felicidade inimaginável, o tesouro da paz, a extinção dos cuidados da carne, o afastamento do século presente, a tensão em direção ao século futuro, o abandono da vida passional, a aquisição natural da impassibilidade, o alegre regozijo da alma, o recolhimento, o repouso e a guarda de seus movimentos e seus poderes, enfim, para resumir em poucas palavras, o conhecimento divino e a impassibilidade.

O intelecto que recolhe sua boa vontade, ou seja lá qual for a circunstância exterior, deve então considerar que terá que retornar à sua beleza própria, a beleza da contemplação, desembaraçando-se da paixão que o entrava e o afasta de seu objetivo. Ele deve considerar o quanto está distante de atingir o objetivo extremo de seu desejo e o porquê disto, ainda que lhe tenha sido dado contemplar os seres sensíveis e criados, os seres inteligíveis e criados ou os seres inteligíveis e incriados, ou ainda que esteja separado da Um acima do mundo, o único verdadeiro e além de toda unidade, por pensamentos vãos ou qualquer outra necessidade. Ele deverá afastar os obstáculos entre ele e este Um, a fim de retornar simplesmente, como o pede sua própria ordem, à contemplação e à consideração do Um acima do mundo. Pois o intelecto que se encontra fora deste Um, fora do Um incriado que o ultrapassa, está submetido à divisão e já não se encontra no seio da verdadeira beleza, ainda que se conduza bem. Esta beleza suprema é, com efeito, o Um mais alto do que o ser, simples e incriado, além de toda inteligência. É ela que oferece em verdade ao intelecto sua extrema realização. Assim, o intelecto que sabe se conduzir de modo são, se vê elevado por tudo o que dissemos e conhece a união que o ultrapassa.

Devemos perseguir o quanto pudermos o infinito, buscar aquilo que ultrapassa a inteligência, contemplar o Um sem forma, e compreender desde o princípio o incompreensível, a fim de descobrir em sua simplicidade a herança do Deus Altíssimo, a herança do Um, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo e do Espírito vivificante, que nos concedem o esplendor da contemplação e o dom de Deus: pela adoção, nos tornarmos maravilhosamente deuses.

37. O intelecto que se eleva até o lugar onde Deus se oculta permanece naturalmente silencioso. A simplicidade o unificou. Na unidade e na comunhão do Espírito, ele se torna iluminado pelo Um que ultrapassa o entendimento. Com efeito, que poderá ele dizer, uma vez que se encontra acima de sua própria faculdade, colocado fora de todo e qualquer pensamento, inteiramente nu, acima da própria meditação? Pois se ainda lhe restasse uma palavra, por assim dizer, é sinal de que ele ainda se manteria pensando, pois toda palavra segue um pensamento. E, se ele ainda se mantivesse pensando, como poderia ter penetrado no lugar daquilo que é oculto? Com efeito, nada está propriamente oculto se o intelecto o puder ver, ainda que mais ninguém o veja. Se não fosse assim, existiriam muitas coisas ocultas. Pois a maior parte das coisas, e mesmo, por assim dizer, todas as coisas que vê o intelecto, ele as vê ainda que mais ninguém saiba o que ele está vendo. As coisas ocultas seriam então em número infinito, o que é absurdo. Pois o que é realmente secreto é o Um. E é em direção a ele que se eleva o intelecto depois de todas as coisas, como para a origem de tudo o que é visível ou inteligível. Evidentemente, ao se elevar para o que está além de tudo o que pode ser visto, dito e pensado, ele terá ultrapassado a visão, a palavra e o pensamento. Mas ele não terá alcançado ainda este ponto, nem terá penetrado no mistério de Deus enquanto puder falar. Pois ainda estará pensando, e o segredo é impensável, estando assim além de toda palavra. E o intelecto que se elevou até o lugar do segredo divino e a ele se uniu, se cala, voluntária e naturalmente, simplesmente, iluminado pelo Um que ultrapassa o entendimento.

38. Se as palavras fazem o intelecto avançar e progredir, também elas se elevarão e progredirão até o ponto em que já não existirão mais palavras, ou seja, na realidade, no silêncio perfeito. Mas se as palavras estão sempre ligadas ao intelecto, se a alma tem sempre necessidade delas, não vejo todavia qual progresso intelectual se pode obter falando. Pois, é claro, falar é útil, não apenas para agir como também, e não menos, para contemplar. Entretanto, a partir das palavras que representam os seres, o intelecto se eleva parcialmente em direção ao Um simples, sem forma, absoluto, que ultrapassa o entendimento. Ora, aí toda palavra parece deslocada, ou se torna, a bem dizer, um obstáculo. Pois as palavras geralmente passam de um pensamento a outro pensamento. Mas aquilo que é simples, absoluto, sem limite e sem forma, numa palavra, o Um que está além de qualquer palavra, como teria ele necessidade de palavras, e para ir aonde? Como o poderíamos compreender? Pois a palavra normalmente busca a compreensão, e o incompreensível não possui limite nem forma. E, se a palavra não é capaz de se adaptar ao Um que ultrapassa o intelecto, ela sempre poderá se adaptar ao silêncio. Os que progrediram falando devem ao final se calar, a partir do momento em que se dirigiram à pura contemplação, fora de toda figura e de toda forma.

39. As palavras estão ligadas ao conhecido, e o que é oculto é desconhecido. Portanto, o que está oculto está fora de qualquer palavra. Pois se a ignorância do que é oculto é mais alta do que o conhecimento, aquilo que está além do conhecimento não tem necessidade do conhecimento, nem precisará de palavras. O intelecto que se elevou até o Um absoluto, o Um oculto, se cala naturalmente. Mas se ele se calar sem que isto lhe seja natural e sem se dedicar ao silêncio, ele não terá ainda alcançado o Um oculto que se desenvolve acima de tudo.

40. Assim como acontece eventualmente aos homens que vivem na hesíquia sair de suas celas e, por meio desta experiência, conhecer a diferença entre se manter imóvel e sair, também os que, por meio da contemplação, se ligam à glória de Deus, que vivem no silêncio, mas que se põem a falar num dado momento, sabem por que, no estado em que se encontram, o silêncio lhes vem naturalmente e não por intenção, e por que se permitem falar mesmo possuindo em si este silêncio. Eles oram. Senão, mantendo-se em seu estado, eles jamais chegariam a abrir a boca. Por que eles estão na terra dos anjos: com os olhos fechados, em toda a unidade e toda a simplicidade, fora de qualquer figura ou forma, numa palavra, unidos à verdade nas visões imutáveis do intelecto, a sós consigo mesmos, eles se maravilham e se admiram sem pensar em nada, apenas se atirando de olhos fechados nos flamejamento divinos que não têm começo. Mas quando o intelecto, que tem a faculdade de mudar, retorna do êxtase, eles acabam por falar e se transportar pelo pensamento de um estado a outro, passando assim várias vezes e de diversas maneiras do silêncio à palavra. Depois, para retornar ao estado de silêncio – que é bem melhor do que a palavra – eles abraçam a hesíquia, se protegem de seus sentidos e de todo o sensível, e, ao mesmo tempo em que cessam de falar, se esforçam por todos os meios para não pensar, a fim de poder dizer com Davi: “Eu permaneci mudo, eu me humilhei, eu estou calado, longe dos bens[55]”. Falar dos bens está, portanto, abaixo do silêncio que acompanha a palavra.

41. O divino não é nem totalmente aparente nem totalmente oculto. É claro que ele existe, que ele é, mas aquilo que ele é permanece oculto. E é grande a diferença entre saber o que ele é e saber que ele existe. Uma coisa é revelada pela energia, mas a outra – aquilo que ele é – pertence à essência, aquilo que mesmo os anjos não podem saber de Deus. Pois Deus é ao infinito infinitamente mais alto do que todo ser, do que toda inteligência e do que todo pensamento. Quando ele se configura àquilo que revela o que é Deus, o intelecto tem muito a dizer e pouco a filosofar. Nestes casos, o filósofo pode também ser chamado de teólogo. Mas quando ele vai mais longe e mais alto, graças ao fato de que o segredo de Deus o envolve, ele é levado pela visão daquilo que é. A graça lhe concede ser sem forma naturalmente, sem contato, sem rosto. Toda palavra que pudesse dizer qualquer coisa de Deus se cala. O intelecto, reunido à unidade, permanece imóvel, e penetra no incompreensível. Ele se entrega inteiramente àquilo que está além de tudo, lá onde já não existe palavra, nem pensamento, nem nenhuma reflexão mutante, mas a simplicidade, a incompreensibilidade, o silêncio e o arrebatamento. Ele vê o Infinito, aquilo que não tem forma nem limite. Ele vê o invisível. Mas sua visão é estranha aos sentidos, por estar diretamente ligada à forma que não tem forma. O próprio intelecto se torna absoluto, fora de qualquer figura. Conforme o que ele houver contemplado no invisível e recebido de olhos fechados, numa palavra, ele se tingirá da divina beleza sobrenatural, e glorificará a Deus que criou semelhante beleza.

42. Não é apenas por ser Deus simples, além de toda composição, que ele é chamado de Um, mas por que ele é o único que em verdade é o Ser entre todos aqueles a quem chamamos seres, mas que extraem seu ser dele. Pois aquele que não é pura e simplesmente o Ser tampouco é pura e simplesmente o Um. Deus é, de maneira absolutamente incompreensível, Aquele que é. Ele é o único que difere de tudo e que existe puramente independente de tudo. Ele é eterno, nunca teve começo e jamais terá fim. Ele faz brilhar sobre todas as coisas igualmente e com a mesma pureza o raio divino de sua providência, ainda que nem todas as coisas recebam igualmente este raio. Em verdade, ele se revela absolutamente a todos como o Intelecto simples, sem forma, sem figura, sem cor, sem contato com qualquer ser que seja, absolutamente absoluto, sobrepujando ao infinito, fora de qualquer limite, o tempo, a lugar, a natureza e as coisas que envolvem a natureza, exigindo apenas ser contemplado na simplicidade, acima da união intelectual.

43. Quando, além de todo pensamento, tem lugar a união entre Deus e o intelecto, dizemos então que o intelecto que, por meio do sentido intelectual, vê absolutamente o sobrenatural oculto, atinge o que está acima de sua própria natureza. O intelecto se torna ele próprio aquilo que ele mesmo experimenta em sua natureza purificada pela graça. Pois o pensamento está para o intelecto aquilo que a visão é para o olho. Então, assim como aquele que vê nas trevas não enxerga nada senão estas trevas, como uma só e mesma coisa, e ele vê e não vê, pois, se fechasse os olhos, poderia pensar que a luz e outras coisas estivessem ao seu redor, mas agora ele olha e vê claramente que ele não vê: ultrapassar nas trevas a faculdade de ver e conhecer o que está oculto está, com efeito, acima da natureza do olho, que não é a de ver o que não se vê; da mesma forma, o intelecto que se elevou até o lugar oculto de Deus e se encontra além de todo pensamento, não contempla nada. Como? Ele contempla aquilo que não contempla, e o que ele não contempla é uma só e mesma coisa oculta como que por uma treva, donde se origina todo ser qualquer que seja, visível ou inteligível, contado entre a criação ou eternamente incriado. E, se ele não contemplasse, ele não se veria infinitamente estendido além de si mesmo. Mas na realidade ele contempla. E contempla com toda clareza que não contempla, por que está acima da contemplação. Pois lhe é impossível contemplar o que não contempla.

Penetrar e contemplar no interior do lugar de Deus, o lugar único e oculto que está acima de si, ultrapassa a natureza do intelecto. Mas considerar a treva divina deste lugar oculto, ver nela a unidade inefável que domina todas as coisas num mistério indizível, e contemplar que nada contempla no interior da treva divina, isto é próprio do intelecto puro que contempla no Espírito. Com efeito, quando o intelecto contempla que nada contempla senão a unidade divina absoluta que reside no lugar oculto, a visão intelectual não se fecha, tapada e inerte. Isto é apenas o signo de sua ignorância. Quando ela contempla com clareza, então ela se eleva para aquilo que a ultrapassa e, considerando o lugar oculto, o lugar do Um contempla claramente que o Um é a origem de tudo o que é oculto. Mas não contempla aquilo que ele é.

Foi dito que o intelecto alcança neste momento aquilo que ultrapassa sua própria natureza. Pois ele considera o lugar de Deus, o lugar que é infinitamente simples e oculto. Mas chegar até lá não é natural para o intelecto, a menos que ele tenha se tornado puro. Sua natureza, então, passa a ser a de chegar de olhos fechados àquilo que está acima da natureza, ou seja, de se dirigir inconcebivelmente para o lugar de Deus, o lugar único e oculto que se estende infinitamente além dele. Pois então ele cessa de possuir em si seja lá qual forma de conhecimento for. Ele não conhece senão o Um indivisível. Tendo chegado a este ponto por seu próprio movimento, ele se detém na imobilidade e no repouso. Não falo da imobilidade desprovida de contemplação, pois isto é a demência. Falo da imobilidade e do repouso nos quais parramos de passar de um pensamento a outro, o que nos permite contemplar. Pois o intelecto que chegou até aí, que atingiu a incompreensibilidade do lugar de Deus, o lugar oculto e invisível, e que se encontra em plena luz intelectual, no coração de um espaço infinito que não tem limites, por assim dizer se abandona e permanece imóvel, não experimentando outra coisa que o arrebatamento que o cumula de alegria radiosa. Ele não sai de si, mas é animado pela energia da luz intelectual. Ele contempla imóvel o lugar oculto que está acima do ser. Na unidade e na simplicidade, ele está privado de todo conhecimento, mas se vê cumulado de beleza pela interioridade inacessível do indivisível flamejamento. A contemplação não o deixa inerte. Senão, como poderia ele provar do arrebatamento e a alegria radiosa? Mas quando o intelecto chega a este ponto dizemos que ele permanece imóvel. Ele contempla, ele descobre o Um sem ter que se agitar, ele se dirige para o esplendor do Um que o cumula de alegria e luz, e permanece imóvel. Mas ele próprio não deixa de usufruir da contemplação. Pois evitar esta experiência é algo condenável, cheia das trevas da ignorância: estaríamos, neste caso, completamente fora da contemplação.

A detenção do intelecto acontece diante de um flamejamento inacessível de luz. A contemplação, aqui, não busca a mudança, a passagem de um estado ao outro, mas o repouso e a detenção. Pois este Um sobrenatural que permanece acima do ser e se revela no lugar oculto, é infinito. Nenhuma inteligência pode chegar até aí. No entanto, não convém que o intelecto contemplativo contemple em outro lugar, desde que ele tenha recebido a purificação que lhe é própria e a elevação divina. Ele não descerá desta contemplação divina, deste esplendor que está acima de toda beleza e deste infinito, a menos que seja atraído pelas paixões, pela avidez ou pela versatilidade natural de que costuma sofrer.

44. A natureza do intelecto é o pensamento, e o pensamento reside na mudança e no movimento. Mas, uma vez que o intelecto que penetrou em Deus se encontra acima do pensamento e do movimento, podemos dizer com razão que, ao contemplar a Deus, ele ultrapassou completamente sua natureza. Pois está claro que todo pensamento tem sua origem em alguma coisa. Onde não existe nada para ver, nenhum pensamento pode nascer nem se encontrar aí. Deus, que de forma alguma pode ser visto em sua realidade, se revela naturalmente ao intelecto por meio daquilo que o cerca ou seja, por aquilo que ele anima com sua energia. Com efeito, todas as coisas são lugares de uma potência proveniente de um ser potente. Assim, a partir do momento em que o intelecto se habitua a contemplar as potências que acompanham os seres potentes, ele se volta para conhecer a Deus. Mas ele não consegue, por que isto está além da natureza de toda e qualquer inteligência criada. Ele contempla aquilo que está ao redor de Deus, e, com os olhos fechados, como dissemos, ele representa Deus para si colocando sobre ele, simples e em recolhimento, toda a sua atenção. Assim ele alcança o céu da hesíquia, ganha a bem-aventurança divina e, por meio da energia do Espírito de Deus, do Espírito de adoração que age sobre ele, se torna continuamente arrebatado para longe de todo pensamento, num estado simples, fora de qualquer figura e de toda propriedade. O poder sobrenatural do Espírito o faz penetrar no interior do coração rapidamente. Aí ele permanece imóvel na visão de Deus, e já não pensa em mais nada. Ele está além do pensamento. Do pensamento das coisas que estão ao redor de Deus ele se eleva à visão divina e se restabelece na simplicidade. É neste momento que se diz que ele ultrapassou sua própria natureza, por que atinge um ponto que está além de todos os pensamentos.

45. Tudo o que dizemos ser oculto deve se revelar de algum modo. Por isso estas coisas são chamadas de ocultas: senão elas estariam mais próximas do mero nada. De fato, podemos pensar: aquilo que não se dá inteiramente a conhecer, de uma maneira ou de outra, é semelhante àquilo que absolutamente não existe. O segredo de Deus não deixa de incluir pequenas revelações por meio das quais o intelecto que segue estas pegadas consegue pressentir este lugar oculto, elevando-se em direção à incompreensibilidade por meio daquilo que é compreensível em Deus. É então que ele se dá conta de que existe precisamente algo que escapa à sua compreensão natural, que é muito elevado para que ele possa perceber, por que este lugar oculto é sobre natural. Causa, começo e fim de toda a natureza, de todo ser e de toda existência, ele é em si mais alto dos que a natureza e do que o ser, infinitamente além de toda existência. Ele está fora de todo nascimento, de todo começo, de todo limite. A natureza, o espaço, o tempo simplesmente não o podem conter. Assim é o Um oculto que ultrapassa a inteligência.

E é dele que provém naturalmente a compreensão divina, que é tão abundante que nos conduz novamente para ela nas alturas e que, guiando-nos em espírito, chamando-nos a retornar e nos atraindo para si, nos une ao Um original e oculto, mais alto do que a natureza. E ele nos une de tal forma a si que sabemos que ele existe e é, e que ele é o Um, mas também que nos é absolutamente impossível conhecer este Um oculto. O que está acima da inteligência e que escapa ao pensamento, que se pode falar dele? Aquilo que é inteligível e do qual não se pode falar, o intelecto o contempla na unidade, em silêncio, indizivelmente, inefavelmente, além de todo pensamento, como segredo, regozijando-se aí como da causa e da providência, e disto se maravilha como do ser mais que luminoso, mais do que bom, mais do que sábio, mais do que poderoso, dele recebendo uma alegria divina, como através de todos os seres que que não têm fim nem limite, que revelam o Um oculto que está acima do ser, e, certamente, a continuidade da natureza dotada de razão. Não é normal que o intelecto que experimenta estas coisas as mencione ou que delas fale ao passar de um estado para outro. Portanto, se ele não se cala e se põe a falar, é por que ainda não atingiu seu estado extremo. Pois é assim o estado extremo, como o testemunham aqueles que nada colocam diante da verdade: quando o intelecto alcança o ponto mais alto de sua energia, o estado supremo consiste na contemplação deste ponto mais alto, a qual, como foi dito, se exerce bem abaixo, com os olhos fechados e em silêncio.

46. Quando o intelecto se dirige ao lugar de Deus com seus olhos fechados, para o cume do lugar oculto, único e além de todo o conhecimento, a própria percepção que ele tem disto é cega. Esta percepção lhe vem de além, marcada de simplicidade e de unidade, e cheia de esplendor inefável, acima de toda beleza e de toda luz. No silêncio ela chama para um abismo de admiração e arrebatamento. Ela investe o coração de energia espiritual e doce alegria. Ela se torna assim, no intelecto, a iluminação intelectual, flamejante, a imagem do eros divino, regozijo radioso. Ela tem sua fonte em Deus, de onde provém todo dom de bondade[56], por intermédio da pureza do intelecto. E ela extrai sua matéria, se podemos dizer assim, das revelações divinas reveladas pouco a pouco nas Escrituras e nos seres correta e sabiamente contemplados na hesíquia e na prece. Pois a visão do Um oculto no interior do divino, além de todo pensamento, não é fortuita. Vemos o Um no esplendor que provém do lugar oculto, esplendor simples que cumula para além de tudo a consideração e a contemplação intelectuais. Quem não experimentou isto na razão e no conhecimento sobe de modo exterior para o Um oculto, simples e sobrenatural, mas não tem em si a energia do coração nem a luz do intelecto.

47. A claríssima, pura e simples contemplação do intelecto em Deus, a contemplação voltada para o lugar de Deus, o lugar único e oculto, e para o esplendor que irradia deste lugar, a contemplação que recebeu o divino flamejamento da efusão luminosa sem começo nem fim, exige não somente o silêncio da boca mas também do intelecto. Quando a boca se cala ainda é possível que o intelecto siga trabalhando no interior, entregando-se aos pensamentos e às reflexões mais diversas, como se a palavra se encontrasse no interior. Mas neste caso o intelecto estará longe de se elevar até o lugar oculto da unidade divina, este lugar que se estende para além de toda figura. Com efeito, a contemplação do intelecto é uma coisa, e seu trabalho, seu pensamento que procede da palavra interior, é outra. O intelecto que penetrou nas coisas criadas e compostas, ou simplesmente diversas, começa por contemplar, depois ele próprio se diversifica e se põe a pensar. Muitas vezes ele encontra numa mesma coisa inúmeros pensamentos. Mas no lugar de Deus, no lugar interior oculto, único e simples, ele volta e derrama o olhar de sua contemplação e é iluminado pela simplicidade da irradiação divina. Ele quase não se dispõe a pensar, pois a simplicidade do Um escapa a toda mudança e dispersão do intelecto. E o lugar secreto está fora de toda palavra que pudesse explicar o pensamento por um discurso interior e pela boca, É por isso que o homem que se elevou em espírito até o lugar de Deus, o lugar oculto, o lugar único da maior glória, silencia naturalmente em sua boca e em seu intelecto.

48. Quando o intelecto se converte inteiramente a Deus, quando sua contemplação é absorvida pelos raios perfeitamente luminosos da beleza divina, quando ele se eleva além de toda figura, a simplicidade e no ilimitado do Um oculto que não tem forma, quando ele se torna em si mesmo o Um por sua própria tensão em direção a este e a admiração de seu olhar no sopro do Espírito, então esta busca do coração encontra claramente o estado de infância. O intelecto prova do Reino de Deus, inefável e sobrenatural, como disse o Senhor: “Se vocês não se converterem e não se tornarem como crianças, vocês não entrarão no Reino dos céus[57]”. Com efeito, o intelecto que ultrapassou os limites, que se voltou para o indizível desconhecido acima dele, vê-se inteiramente restabelecido em sua liberdade e em sua independência perante todo começo, todo pensamento, toda composição, toda diversidade. É com naturalidade que ele silencia. Seu estado não apenas se encontra acima de toda e qualquer palavra, como está acima de sua própria energia. Pois ao mesmo tempo em que aborda o lugar oculto onde já não existe forma, ele traz em si o sobrenatural, a graça e a doçura que culminam no regozijo intelectual.

49. É numa forma sobrenatural além de toda forma, numa beleza imaterial que não é composta, e na mais simples figura que os contemplativos contemplam a Deus, o Um em sua unicidade, coroado de bens infinitos, adornado de belas luzes inumeráveis, envolvendo todo o intelecto com as belezas luminosas de sua irradiação, como uma beatitude inefável e indizível, uma abundância incontida de coisas belas e boas que jorram da fonte infinitamente, um imenso tesouro de glória, insondável, inesgotável, que cumula as inteligências cegas com tantas delícias, alegrias, graça e o mais puro regozijo que brota sempre misteriosamente desta unidade divina sobrenatural mais alta do que tudo, oculta no segredo inacessível. Deste local oculto se espalha. Tão imenso que ninguém pode ver seus rastros, um oceano de inefável bondade, de amor inexplicável, de providência incompreensível, no coração de um poder que não tem limite e que é de uma sabedoria indizível: estas coisas que os próprios anjos e serafins não conseguem conceber, por que elas estão além de toda inteligência. Uma razão inefável nos permite tê-las em nós ainda no século presente, mas é no século futuro que elas serão reestabelecidas e como que geradas e realizadas, e elas maravilharão o intelecto dos querubins, que até então as compreendeu apenas obscuramente. Ó bondade e vontade de Deus, amor e doçura, sabedoria e providência divinas! Verdadeiramente bem-aventurados são aqueles cujas faltas foram apagadas e os pecados perdoados[58]! Bendito o homem que o Senhor instrui e ao qual ele concede o ensinamento de sua Lei e do Espírito[59]!

50. É em espírito e verdade[60] que se revelam as coisas invisíveis aos habitantes do mundo que não podem receber o Espírito Santo[61], conforme nos mostrou o Senhor. Alguns no entanto imaginaram que seria melhor partir, morar longe do mundo e daqueles que vivem no mundo. Pela graça divina, a luz da inteligência, o Oriente altíssimo[62], o Oriente do sol inteligível, iluminou os olhos de seus corações. Eles receberam o socorro que vem de Deus, e as revelações estão em seus corações[63]. A irradiação das visões divinas os ilumina. Eles veem de forma natural e clara inúmeras coisas que vêm de Deus, que são oferecidas ao intelecto e que são dignas da contemplação espiritual. Aqueles que assim levaram uma vida santa estão ainda prometidos ao restabelecimento futuro, eterno, imutável, que não apenas não será sensível como ainda ultrapassará o intelecto. Com efeito, todos os que tiverem alcançado o estado mais alto do que a inteligência, que tenham alcançado a vida e as delícias que ultrapassam o entendimento, serão inteiramente transformados. Eles serão como que deuses por adoção, transbordando de alegria diante Daquele que é naturalmente Deus, e se regozijarão dos bens sobrenaturais que o Deus supremo lhes dispensará, ele, o Deus único por natureza. Eles estarão ao redor dele. Sua vida, em toda santidade, em toda pureza, será no mais alto ponto do cume divino, cume que ultrapassa o intelecto. Eles dividirão com todas as ordens inteligíveis dos anjos a única alegria regozijante, a única celebração das delícias bem-aventuradas. Imenso é o fluxo da pura alegria das belezas últimas, é impossível se fazer uma ideia do que seja. Pois se a beleza sensível que, por intermédio dos sentidos, toca o intelecto, esta beleza que é limitada e que passa, que não é ímpia nem incriada, suscita na alma delícias que não são da graça, e se os que têm inteligência e consideram a analogia não estão longe de ver e de compreender, que podem se tornar os que atingem as coisas inteligíveis, das que ultrapassam a inteligência, que não têm limites, que não escoam, mas que têm sua origem em Deus de onde vêm todas as coisas belas e boas? Pois estas não são criadas, elas jamais tiveram começo, elas são feitas para o regozijo, para a alegria, para a vida divina, de maneira digna do século futuro e deste estado.

51. O intelecto que expressou sua alegria diante das expansões do tempo e do espaço e diante das propriedades que definem as naturezas, e que depois ultrapassou estas coisas, se torna em verdade despido na simplicidade única e na vida despojada de toda arte e de toda forma. Sem mais véu algum, sem qualquer vestimenta, fora de todo começo e de toda compreensibilidade, de todo fim e de todo limite, ele cessa de pensar e de falar, penetra sobrenaturalmente no poder e na irradiação divina, poder e irradiação que o Espírito anima e que, o infinito, se estende aparentemente à própria contemplação do intelecto. Então a paz de Deus se eleva sobre a alma, e a alegria inefável, o indizível regozijo do Espírito Santo se espalha sobre ela. O arrebatamento que ultrapassa o conhecimento a leva a cantar. Ninguém a verá. Mas o Deus dos deuses se revela em Sião[64], no intelecto que se eleva e contempla a altura. Senhor Deus dos Exércitos, bem-aventurado o homem que se confia a você[65]!

52. Quando o intelecto que se encontra entre Deus e as coisas divinas é iluminado no arrebatamento daquilo que ele não consegue nem pensar nem dizer, ele devora o quanto pode dos verdadeiros frutos do conhecimento espiritual, ele é deificado, ele se regozija, ele progride no eros divino. Ele já não fala nem disserta, nem consigo mesmo, nem em seu interior. Ele cessa de pensar. Ele vê em si próprio, na unidade, na luz da verdade e do Espírito, e daquilo que ele vê ele faz suas imutáveis delícias.

53. Quando o rosto do intelecto que se debruça para o interior do coração vê brotar de si como um jorro contínuo o flamejamento do Espírito, este é o momento de se calar[66].

54. Quando todo o rosto do intelecto vê a Deus, quando todo o intelecto penetrou em Deus e, por assim dizer, quando Deus penetrou todo o intelecto, este é plenamente, e daí por diante, o tempo de se calar[67].

55. Quando o intelecto que, na comunhão com o Espírito, recebeu a permissão de entrar em contemplação diante de Deus, usufrui, na medida em que lhe é possível, da glória e do esplendor que irradiam da face de Deus, é naturalmente necessário se calar e contemplar na hesíquia, na ausência de qualquer ruído. Mas se, suscitado por uma palavra como um fogo luminoso e abrasador, alguma coisa da perturbação das trevas vier, de um modo ou de outro, se insinuar entre o intelecto e Deus, é preciso rejeitar imediatamente esta palavra das trevas, que pode até ter uma aparência divina, a fim de, afastando o mais depressa possível as trevas por meio da luz, as brumas por meio do calor, iluminando e aquecendo desta maneira o intelecto, poder novamente compreender a Deus como antes, contemplar sua beleza, usufruir naturalmente dele, revestir-se de glória, numa palavra, experimentar as coisa que, vindas de Deus, se derramam sobre a inteligência quando recebemos o Espírito vivificante; é preciso retornar à simplicidade e estar em Deus em espírito e verdade, desembaraçado de todas as coisas, inclusive daquelas que envolvem a Deus. É isto que é natural, e que convém ao contemplativo.

Aquele que se dedica apenas à ação deve também se ligar a este estado. Pois ele ainda não se acha unido a si mesmo, e por si mesmo a Deus. É assim normal que este homem cante, que fale muito e muitas vezes das coisas de Deus, de várias maneiras. Suas palavras são como flechas que ele não cessa de lançar, atemorizando e expulsando os que nos oprimem com sua maldade e nos combatem. Pois também para ele, que espera, chegará o tempo. O sopro do Espírito irá chegar quando a cintilação de tantas odes, cantos e palavras divinas, como uma luz flamejante, se reunir num mesmo fogo, quando ele impor ao inimigo um golpe mortal, abrasador, dissipando – ou melhor, destruindo – as trevas, iluminando a si próprio no fogo, aquecendo-se e se elevando o mais possível em direção ao eros divino, levando ao próprio Deus o hino do seu coração no silêncio e no arrebatamento, representando para si mesmo o quão extraordinários são os milagres dos mistérios. Pois não é sem razão que são chamados de bem-aventurados os que esperam o Senhor, ou que, ao chegar o tempo, como mansos herdarão a terra prometida[68], a terra inteligível, em Cristo nosso Senhor.

56. Quando o intelecto, iluminado por todas as efusões luminosas do Espírito, experimenta a vertigem, perde o pé e se vê transformado, cada vez mais para longe de si próprio em direção ao infinito, para o ilimitado, este é o tempo de calar[69].

57. Mas quando o intelecto se sente esgotado pelo excesso de claridade que vê, quando sente que quer se desembaraçar para encontrar algum repouso depois de relaxar a tensão, então este é o tempo natural para falar[70], ainda que brevemente, daquilo que concerne a iluminação divina.

58. Quando o intelecto, fugindo em meio às águas do Faraó inteligível, atravessa sua noite à luz do fogo e seu dia sob a cobertura da nuvem[71], então é chegado o tempo do justo silêncio e da hesíquia, o começo, para a alma, de sua purificação. Mas quando ela é combatida pelo temível Amalec espiritual e pelas nações que o seguem, impedindo-lhe a passagem para a terra prometida[72], então o tempo é de falar[73]. Mas ela é sustentada perante Deus pela ação espiritual e pela justa contemplação, como outrora teve Moisés as mãos sustentadas por Aarão e Hur[74].

59. Quando o poder espiritual que se derrama do coração vem do abismo da divina contemplação do intelecto, esta inspiração que jorra da fonte, chega naturalmente o tempo de calar[75]. Com efeito, é neste momento que se celebra inefavelmente o culto de Deus, sua adoração pelo intelecto em espírito e verdade[76], por intermédio do verdadeiro sentido intelectual.

60. Quando, à custa de mirar a Deus por intermédio do intelecto, a razão da alma se enche inteiramente do arrebatamento divino, quando sua inteligência se enche com a visão, quando a própria alma se enche de alegria, este é incontestavelmente o momento de se calar. Pois em seu recolhimento e em sua sensibilidade o intelecto vê em espírito a verdade, venera a Deus que ali brilha e o adora em seu arrebatamento.

61. Aqueles que, como convém, adoram e servem naturalmente a Deus, em espírito e verdade, não apenas não o adoram e servem num dado lugar, como não o podem adorar e servir pela expressão da palavra. Com efeito, assim como o sentido intelectual que se elevou retamente não pode adorar num dado lugar Àquele que nada pode conter e que não tem lugar onde repousar[77], também quando ele guarda o que lhe é necessário e alcança a verdade, ele naturalmente não pode sofrer por adorar e depois servir por uma diversidade de palavras e definições de linguagem Àquele que é infinito, que não tem limite, nem começo, nem forma, que é perfeitamente simples e que, por assim dizer, ultrapassa o intelecto, uma vez que chegou para o intelecto, pela impulsão e o sopro do Espírito, o tempo de brilhar na simplicidade e no conhecimento da verdade divina[78]. Assim, quando chegado o tempo, o intelecto se desembaraça de tudo e sai de si mesmo, não apenas ele deixa de falar, mas deixa de pensar, ele se dedica com alegria e arrebatamento àquilo que a luz intelectual concede de melhor à própria razão e a si mesmo, e ele o contempla, imóvel e imutável, fora de toda arte, numa atenção cega e na união que o ultrapassa.

62. É preciso que o intelecto, cuidadosamente atento a si mesmo, organize seu próprio estado espiritual com prudência, sabedoria e justiça. A partir do momento em que ele sente que contempla os mistérios da teologia, os mistérios simples, isentos de qualquer figura, é preciso que ele permaneça em silêncio na hesíquia e no maravilhamento, sem se afastar de seu próprio coração que recebe a energia e a luz do Espírito. Pois então é chegado o tempo, não apenas para todos os sentidos do ser em estado de hesíquia, longe das coisas sensíveis, mas para a palavra, que deve cessar todo discurso e se calar. E, sobretudo para os que possuem o conhecimento, é preciso dizê-lo, é chegado o tempo de repousar de toda ocupação intelectual na hesíquia e de deixar de ver. Pois é preciso que ele se aplique a permanecer perfeitamente imóvel nos sentidos, nas palavras, nos pensamentos, a fim de que o intelecto, totalmente isolado – como é justo e devido – em sua pura contemplação do Deus uno e único em três Pessoas, possa com toda liberdade e na medida em que lhe for permitido, ver o que não tem começo, fim ou limite, e as demais coisas divinas, numa palavra, as coisas imutáveis e absolutas, e se unir a elas, transformado e simplificado pela contemplação, e, com alegria e maravilhamento, tornado, pela graça divina, totalmente semelhante a Deus. E, querendo o intelecto, se fosse possível, permanecer neste estado – embora ele não possa, por que ele é mutável, ele vive com as coisas que mudam e está conforme o corpo e as circunstância – ele deve em conhecimento de causa, não se afastar, não decair da contemplação simples, e não falar em excesso. Ele pode falar um pouco, e falar das iluminações divinas, a fim de não apenas retornar o mais depressa possível à união com Deus que o ultrapassa, mas de sentir em si esta união a um tempo mais evidente e mais contínua. Quanto mais o intelecto guarda aquilo que recolheu em si e não deixa que escorra para fora, mais depressa ele se nutre da união divina, mais ele se une com clareza aos flamejamentos da luz, e mais fecundos se tornam seus flamejamentos no contínuo habituar-se ao divino.

63. Quando o intelecto que prova a revelação da pura e simples luz divina se vê transformado pela visão intelectual e iluminado em todo o seu redor pelo desconhecido além de todo conhecimento, ele é restabelecido em sua natureza indivisível, simples, ilimitado, e se torna iluminado tanto na luz como nas trevas. Em sua simplicidade transbordante ele contempla a beleza infinita, a beleza sem figura acima de toda figura, a beleza sem começo que ultrapassa todo começo, que não tem limites e que é infinita, por que preenche num transbordamento de plenitude todos os bens que nela se encontram, os limites e a extensão de todas as coisas, quaisquer que sejam elas. Numa palavra: quando, acima de todos os seres, ele contempla a todos na visão do Um pela razão inefável de uma potência intelectual que ultrapassa o entendimento, este é o momento de se calar, simultaneamente imerso no mistério e além do mundo, ou, por assim dizer, o tempo de experimentar sem ver e sem falar o puro e simples regozijo que concede uma iniciação mais divina à verdade.

Mas quando tudo isto a que nos referimos deserta do intelecto e ao redor dele surge a divisão, é o momento de falar, mas apenas para dizer coisas dignas da elevação que conduzem ao silêncio. O silêncio que ultrapassa a palavra e que, se podemos dizê-lo, vem a seu tempo e naturalmente, é, com efeito, bem melhor do que qualquer palavra. Salomão colocou o silêncio em primeiro lugar quando disse: “Existe um tempo para calar e um tempo para falar[79]”. O melhor é colocar em primeiro lugar o silêncio que vem em seu tempo. Mas se este silêncio ainda não chegou, se o intelecto ainda não se voltou unicamente para aquilo que ultrapassa a palavra, que entrementes a palavra em seu tempo seja secundária a fim de que falar seja como calar e esteja próxima do silêncio. Falemos quando for o tempo, mas apressemo-nos em retornar ao silêncio, falando das coisas de Deus e nele pensando continuamente, contemplando a criação, nela vendo seu Criador como num espelho, do qual ela nos conta maravilhas. Nisto consiste em falar a seu tempo. E é assim que deve ser compreendido o que definimos.

64. Quando o intelecto que ultrapassou todas as coisas daqui e que se elevou naturalmente acima dele próprio cala em sua alegria, é chegado para ele o tempo de usufruir das coisas inefáveis mais altas do que o mundo. É o tempo do flamejamento e da luz intelectual, da união do intelecto e da contemplação, da simplicidade, do ilimitado, do infinito e do conhecimento mais do que luminoso. Numa palavra, é o tempo da percepção e da comunhão da sabedoria espiritual, que permite ao intelecto atingir o repouso e o silêncio, depois que ele recebeu a inexprimível alegria do arrebatamento.

65. Quando a alma que recebeu a verdade, que bebeu do cálice da graça como o melhor de todos, se sente embriagada e fora de si, é claro que chegou para ela o tempo de calar.

66. Quando o homem interior chega num estado em que clama: “Senhor, numerosos são os que me atormentam, numerosos os que se levantam contra mim[80]”, é então o tempo de falar, mas de falar naturalmente, sem dizer qualquer coisa, e de opor aos inimigos, como se deve, a linguagem comedida conveniente.

67. Quando a luz da face do Senhor se imprime na alma[81], quando esta se vê cumulada de sua beleza e esplendor, e sobre ela se espalha uma efusão de alegria divina: este é o tempo de calar.

68. Mas quando ela vê levantarem-se contra ela os testemunhos injustos que dela exigem o que ela não conhece[82] e a perturbam, então é tempo de falar, e mesmo de contender.

69. O cume, se podemos dizê-lo, o ponto extremo, a mais alta ponta do belo e bom é Deus, em todos os seres inteligíveis como em todos os seres visíveis. Em sua natureza o homem é um ser bem melhor, sem dúvida incomparavelmente maior do que si mesmo, e, pela graça, verdadeiramente maior do que os próprios anjos. Portanto, o intelecto contemplativo, que dentre tantas coisas que existem entre Deus e os homens, se aproxima daquilo que ultrapassa o entendimento, se vê restabelecido no arrebatamento mesmo que ainda não tenha experimentado da abundância da graça que ilumina. Mas quando ele a prova, pelo poder ativo do Espírito que reside no coração, se posso dizê-lo, ele se eleva ao cimo do belo e do bom, em direção a Deus, e, por intermédio de um dom mais do que divino, nele penetra. Ele enxerga o coração da unidade e é arrebatado, permanecendo em silêncio no abismo que o ultrapassa. Aí estão, se podemos dizê-lo, os penhores do primeiro repouso sabático, cuja imagem é o repouso de Deus após a criação dos seres[83]. Mas o intelecto contemplativo desfruta manifestamente de outro repouso sabático, maior e diferente, cujo exempli iniludível nos foi dado pelo povo de Deus[84] que se voltou para si próprio, para longe de Deus, abandonando o sábado. É então que o intelecto conhece a si mesmo como a imagem que segue o modelo, é então eu ele conhece por completo as coisas que estão entre Deus e os homens. Não apenas ela toma o caminho do modo que convém, num arrebatamento maravilhado, em direção ao que é mais alto do que si próprio e que ultrapassa o pensamento, mas ainda, para além de tudo o que se pode descrever ele se enche de alegria e regozijo espiritual, irradia em silêncio sob os flamejamentos e os milagres das visões de Deus que o abrem para além de si mesmo. E ele se une a esta unidade da Divindade sobrenatural, em Jesus Cristo.

70. Quando aquilo que verdadeiramente é apaga como se fossem nada todas as coisas criadas que lhe estão submetidas, então o intelecto que contempla em espírito e verdade, na infinita eminência indizivelmente, acima da energia e da união de que é capaz. Ele se torna simples, ou ele se torna Um, por assim dizer, inefavelmente possuído pelo silêncio. Ele já não está apenas cheio de amor e de alegria, mas das coisa que provêm da energia do Espírito, das delícias dos anjos.

71. Assim como, Senhor, você é absolutamente incompreensível em sua essência, e que ninguém – nenhuma natureza dotada de razão e de intelecto, nenhum conhecimento criado, ainda que aquele dos querubins – pode compreendê-lo, por ser infinitamente ao infinito mais alto do que todo o conhecimento, também as coisas que estão ao seu redor, Mestre, são totalmente sem fim e sem limites. É isto o que, numa insuperável solicitude, você ordenou a Moisés, o legislador do Antigo Testamento, no sentido de pregar que você é e de falar de você. E é também o que você, que não mente, que é o único, a mais alta verdade, disse de alguns dos seus. De fato, você lhes apareceu, e, no entanto, não revelou seu nome. Por que ele está incomparavelmente acima de todo nome[85], não apenas dos nomes dos seres que vivem sobre a terra, mas ainda dos nomes dos seres que estão nos céus. Os que estão cheios de luz revelam a sua essência, mas não aquilo que você é fundamentalmente. Por que a inteligência que temos de você não tem nada de fundamental. Assim é que você se revelou mais alto do que o ser, para se dar a conhecer claramente além do entendimento, infinitamente desconhecido, infinitamente mais alto do que todos os que têm o poder de se dar a conhecer. Você se revelou mais alto do que o tempo, sem começo, por que você é a própria vida. Você não tem limites, você escapa por completo a todo pensamento espacial, você que está sobejamente presente em toda parte e que está acima de tudo, como criador do mundo inteiro. Você é verdadeiramente o único a abarcar as naturezas intelectuais, e você é o lugar inacessível. Você ultrapassa prontamente o intelecto e prevê seu pensamento, por que você está acima de tudo, você é a mão que inexplicavelmente sustenta o universo. E você não está submetido, se isto fosse possível, aos limites da natureza, por que você não tem limites. Não apenas você é como que sobrenaturalmente incompreensível na própria natureza, como ainda é incompreensível nos seres naturais que o cercam, por que você é a sabedoria mais do que sábia, a potência mais do que potente, o amor a bondade que ultrapassam todo pensamento de amor e de bondade.

Que dizer do que é você? A luz, da qual se diz ser inacessível? Mas você está acima da luz. Que dizer do que é você? O juiz para quem nada é desconhecido antes mesmo do nascimento? E isto lá é próprio de algum juiz? Você é muito mais do que um juiz. E que tipo de criador podemos dizer ser você, que deifica num único e mesmo impulso de sua vontade a multitude e a diversidade das coisas imateriais? Ó profundidade da eminência! Com uma única impulsão do Espírito, por assim dizer, sua natureza única suscita tantos e tantos seres espirituais quão diferentes são as condições e as pessoas. Esta é uma coisa maravilhosa e que ultrapassa do pensamento. Mas é isto próprio de um criador? Absolutamente. Existe aqui mais do que criador. Pois podemos chama-lo de criador do mesmo modo como chamamos um pedreiro ou um artesão? Que pedreiro constrói sem uma fundação, sem nenhuma base, e, rapidamente, como você, Mestre que fundou a terra sobre o nada[86] – com todas as suas montanhas, suas pedras e todos os demais elementos da matéria – e que a fundou tão firmemente? Ou qual artesão criou a partir do nada tão grandes coisas geradas num único instante pela palavra, como você criou? Se dissermos que sua criatura foi feita por um pedreiro ou um artesão, será justo o que dizemos? Na verdade, jamais. Por que você é Deus, você está infinitamente acima de um pedreiro ou um artesão. Poderia jamais alguém conhecer, ou aprender, ou refazer um amor tal como o que sua bondade maravilhosa nos mostrou em condições tão extraordinárias, quando, para além de toda esperança, em seu grande amor pelo homem, você assumiu nossa natureza? Os que são capazes de sem dúvida contemplar estas coisas só o podem fazer por intermédio da graça, quando retamente se dirigem para a imensidão, para o oceano de um amor e de uma providência que lhes são estranhos. Mas a violência do eros os coloca fora de si, e eles já não sabem como nomear as coisas que a eles chegam vindas de você. As condições de sua encarnação no homem, ó Deus mais do que bom, ultrapassam com efeito, de longe, a inteligência e a razão, tudo o que podemos entender e pensar.

É você o Pai de todos, podemos chamá-lo assim? Mas você está inefavelmente acima de qualquer paternidade, de toda causa e de todo poder, de toda providência e de toda instrução, de toda paciência, de toda constância. Podemos chama-lo de rei? Mas sua realeza não se resume ao presente, e menos ainda ao futuro, e absolutamente ao passado. Mas como? Maravilhosamente, absoluta e independentemente. Seu Reino é, com efeito, ao mesmo tempo o Reino de todos os séculos, ele pertence igualmente ao presente, ao passado e ao futuro. E sua soberania se estende de idade em idade[87].
Assim, em tudo e por tudo, de uma vez por todas, você está absoluta, incomensurável e simplesmente acima de toda inteligência, Senhor incompreensível, você e as coisas que estão ao seu redor. O intelecto que contempla estas coisas é arrebatado por algo que ele não pode ver de você, ele mergulha por inteiro no sopro do Espírito, ele penetra como que numa treva mística, por que ele não pode vê-lo perfeitamente devido à natureza infinita e inacessível da glória. É assim que, na calma que sobrepuja o mundo, você concede inefavelmente o repouso aos que, maravilhosamente, o contemplam e o amam, e você nada faz sem que eles o vejam. Você lhes concede novamente o repouso divino e sobrenatural, Deus inefável, incompreensível, indefinível, ilimitado, numa palavra: infinito. Você lhes concede o repouso da essência e da energia. Amém.

72. Quando o intelecto que se confiava às coisas contraditórias e aos pensamentos divididos se afasta de toda atividade distrativa, quando ele se encontra acima de sua própria dispersão, na respiração e na participação do Espírito Santo que unifica e não cessa de soprar e de se derramar no coração, quando ele ama permanecer todo o tempo nos lugares divinos pela graça das visões de Deus, a partir do momento em que ele se alimenta da contemplação inefável, na unidade e no desejo do amor, como de um só e mesmo olhar espiritual, das grandes coisas que estão à volta de Deus, então ele penetra claramente no repouso divino, ele desfruta da paz profunda de Deus, do santo e calmíssimo repouso do coração, em nosso Senhor Jesus Cristo.

73. Quando o intelecto se volta para Deus e ora, como um filho, com todo seu ser, e se entrega ao seu pai afetuosíssimo, quando ele se regozija por ver inefavelmente a luz de Jesus, quando ele é arrebatado em seu grande desejo de amor, quando ele sente clara e sobrenaturalmente em seu coração o eros divino e a energia do Espírito Santo, quando ele deseja se elevar no mistério mais alto do que o mundo, acima mesmo das manifestações e das realizações divinas, ele repousa de todas as suas obras[88], acima de toda meditação, ele ultrapassa o pensamento, ele se regozija maravilhosamente e repousa verdadeiramente na paz do Espírito vivificante de Cristo.

74. Deus repousou de todos os trabalhos que havia feito[89], mas depois de se ter cumprido a criação no Verbo e no Espírito. Da mesma forma, o intelecto semelhante a Deus repousa de todas as obras que realizou desde o começo para realizar o mundo inteligível voltado para a virtude, mas não repousa senão depois de haver, no Verbo de Deus e no Espírito vivificante, considerado e refeito em si, continuamente, o mundo inteiro e as coisas vivificantes que ele contém, e não sem antes ter, desde aí, subido, no Verbo e no Espírito, àquelas coisas que dissemos se seguirem às naturais, e de se ter debruçado sobre as visões místicas da teologia, simples e absolutas. Então ele se verá de fato em repouso e desfrutará na verdade intelectual de uma grande paz. Ele será deificado pela luz do conhecimento e pela participação do Espírito vivificante, em nosso Senhor Jesus Cristo.

75. Assim como Deus repousou não de todas as suas obras, mas apenas daquelas que havia começado, e não repousou das obras incriadas que não têm começo e que lhe eram como que naturais, também o intelecto que, à imitação de Deus, conseguiu, pelo Verbo divino e o Espírito vivificante, superar e ultrapassar sobejamente a criação visível, não repousa de todas as obras que lhe são naturais, que não têm começo e que não terão fim, mas repousa apenas das obras visíveis que possuem um começo e que terminarão. A partir do momento em que, pela imobilidade, o repouso do corpo obedece ao que está repousado, é, ao contrário, ao estado do intelecto que ele obedece. Pois se o intelecto não está constantemente em movimento sob o sopro vivificante e contínuo do Espírito no conhecimento daquilo que ele vê, tampouco ele saberá se ele entrou no repouso intelectual, girando na unidade e num movimento contínuo em direção a Deus apenas, e contemplando Aquele que se entregou a ele no indizível e inefável repouso de Cristo.

76. “Não se apresse, disse Salomão, em falar diante da face do Senhor. Pois Deus está no céu altíssimo, e você está aqui em baixo sobre a terra[90]”. Ele indica e expõe com clareza e exatidão qual é o tempo de calar. Ele o diz abertamente: uma vez que você que está aqui em baixo sobre a terra foi levado até diante da face do Senhor que está nos altos céus, e que você foi tornado digno de uma graça tal que lhe permite desde baixo contemplar e meditar as coisas do alto[91], e, dirigindo-se a elas por intermédio do intelecto, erguer-se diante da face do Senhor, não se apresse em dizer palavra. Pois este é o tempo de calar. Não fale quando, na unidade e à imagem de Deus, seu intelecto é animado pela energia da verdade. Nisto consiste o ser em face do Senhor: voltando-se única e simplesmente para Deus, o intelecto o contempla em sua unidade a multidão dos seres que estão ao redor de Deus. Se você fizer esta experiência, se você se encontrar diante da face do Senhor, não se apresse em falar. Do contrário, ou você, voluntariamente e sem o saber, estará recuando e descendo de volta a si mesmo, ou ser-lhe-á necessário explicar o sentido de suas palavras.

A natureza humana era tal como era. Ela era pura, e com toda justiça estava distante do mal e próxima a Deus. Ela contemplava a Deus. Em Adão o Ancestral, com alegria e maravilhamento, ela desfrutava da glória da beleza de sua face. Suas delícias eram imateriais, intelectuais, celestes, incorruptíveis. Uma graça imensa envolvia, com sua efusão, a alma do primeiro homem. No coração do paraíso terrestre, seu intelecto semelhante a Deus se banhava numa multitude de tensões voltadas para Deus e de contemplações que lhe concediam todo o conhecimento. Assim, ele desfrutava do paraíso intelectual. Eu diria que sua vida era bem-aventurada. Ele estava unido a si próprio e permanecia em si mesmo próximo a Deus, ligado naturalmente a Deus pela simplicidade e divindade de seu estado, e com toda justiça, por que fora criado à imagem de Deus.

Numa palavra, esses bens que provinham de Deus estavam por toda parte ao nosso redor. Ora, isto é uma coisa que o maldito demônio, devorado pela inveja, hostil à nossa felicidade e à nossa glória, não podia suportar. Como? Este ser profundamente malfeitor, por meio de seus pretensos conselhos, iludiu e suspendeu nossa esperança. Atiçando o desejo que tínhamos por uma deificação ainda mais alta, o primeiro operário do mal nos desviou do caminho reto do mandamento de Deus[92].Então sofremos impiedosamente a perdição a que nos levou a mentira e fomos exilados para longe de Deus e para longe das delícias divinas[93], tombamos fora da vida espiritual simples à qual se dedicava o intelecto, decaímos do poder que tínhamos de contemplar a face de Deus e sermos glorificados, transfigurados pelo raio da beleza divina. Fomos divididos e submetidos a inúmeras divisões. E – coisa jamais deveríamos ter feito – gostamos destas vidas divididas e destas alienações. Nos afastamos até o ponto de venerar, em lugar do Deus único em três Pessoas, numerosos deuses que, na verdade, sequer deuses eram, mas demônios enganadores, corruptores e malfeitores; perdemos o Um em si, a vida e a ordem simples, dividimos nosso ser numa multitude de partes diferentes e nossa força intelectual, a tensão – ou, mais exatamente, a energia que nos elevava – acabou por nos faltar. Fomos dar nas profundezas de um mal extremo[94], em direção às coisas mais baixas. Nós que éramos a imagem de Deus[95], que éramos dignos da vida do alto, escolhemos a loucura[96].

Mas nossa natureza não é nem imutável, nem imóvel. Da mesma forma como fomos miseravelmente decaídos desta glória imensa até a mais baixa desonra, nos é felizmente possível retornar, voltar e rever a face santíssima de Deus. Claro, não mais a podemos como antes. Mas nos é concedido experimentar de longe o esplendor de sua beleza. Assim foi com o divino Moisés, com o conjunto de todos os profetas e com aqueles que vieram antes deles, com Abrahão e seus filhos: todos viram a face de Deus na medida em que lhes foi permitido. E a viram claramente. Desfrutaram suficientemente da luz desta beleza e foram arrebatados por sua glória inacessível. Alguns disseram: “Pobre de mim![97]” Outros, diz-se, consideraram que não passavam de terra e cinzas[98]. E outros nada puderam dizer sob o transbordamento da glória Daquele que contemplavam. Eles consideraram que sua voz era fraca e que sua língua muda[99]. E eles atravessaram gloriosamente muitas outras provas bem-aventuradas.

O maravilhoso Davi, queimando de desejo de ver o esplendor de beleza da face de Deus, clama por Deus e implora: “Quando poderei ver a face de meu Deus?[100]”. Querendo mostrar em que estado de alma é possível ver a face do Senhor, ele disse: “Os corações retos permanecerão com a sua face[101]”. E quando sabiamente ele mostrou a força concedida à alma pela contemplação da face de Deus, disse: “Você me rejeitou sua face e eu estou perturbado[102]”.

Mas se a perturbação vem quando a face de divina nos é rejeitada, a paz espiritual se segue à sua presença e visão na alma. O dom é tão grande que depois do amor divino e da alegria aparecem as coisas do Espírito – podemos chama-las de carismas ou de frutos – e os que vivem na santidade e na beatitude caminham à luz da face do Senhor. Foi dito: “Senhor, eles caminharão à luz de sua face e se regozijarão todo dia com seu nome[103]”. Este dia é o dia espiritual, a partir do momento em que o Sol inteligível, o Sol inefável, envia seus puros raios vivificantes apo homem interior e que a percepção das coisas mais altas que o mundo se acende no intelecto, ao mesmo tempo em que toda memória da alma é erguida da terra e levada ao céu.

Quem pode dizer até que ponto o homem é bem-aventurado, e exulta, canta os hinos naturalmente e se regozija na alegria, nas delícias e na felicidade? Ele está radiante e seu coração está em festa, cumulado pelo esplendor da face do Senhor. De resto, é por isso que ele suplica a Deus. Ele diz: “Não afaste de mim sua face, ou eu serei como aqueles que descem à cova[104]”. Pois a causa das trevas é o afastamento da face de Deus. Mas seu retorno nos enche de toda luz do intelecto, bem como, justamente, de alegria espiritual, como Davi diz de si mesmo: “A luz de sua face se levantou sobre mim[105]”. E ele acrescenta: “Ela trouxe alegria ao meu coração[106]”. Ele deu testemunho novamente do dom espiritual que lhe concedeu a graça divina cumulando-o com a luz da face do Senhor. Ele disse que os que se mantêm perto da face do Senhor e o invocam são os ricos do povo de Deus[107], os ricos em espírito. Pois se são numerosos os santos e os homens de Deus, seria sem mais permitido a todos que vissem a face de Deus, levando uma vida angélica enquanto ainda estão na terra? Faltaria muito. Só o podem os que, com sabedoria e conhecimento de Deus, consideram seu dever servir e adorar o divino em espírito e verdade[108]. Assim, é com justiça que eles são chamados os ricos do povo de Deus, os que iluminam os mistérios de tantas contemplações. Pois sua riqueza consiste na profundeza de uma imensa sabedoria e de um conhecimento divino e espiritual que, segundo Paulo, não é dada a todos[109]. É por isso que o maravilhoso Davi disse a Deus: “Os ricos da terra implorarão sua face[110]”.

Do mesmo modo, Salomão, que possuía o conhecimento mais do que todos, que mais do que todos estava cheio da sabedoria divina[111] e que ensinou com grande felicidade as coisas mais altas, disse: “Não se apresse em falar diante da face do Senhor. Pois Deus está nos altos céus, e você está sobre a terra aqui em baixo[112]”. Quando, por um dom de Deus, chegamos a estar diante da face do Senhor, quando vemos sua imagem divina e simples, ou seja, quando nos elevamos à contemplação do intelecto, é o tempo de calar. Não se apresse em dizer a menor palavra, seguindo seu hábito de tomar a palavra ao acaso, pois ainda não é tempo de falar. Você se tornou Deus, você também, enquanto ainda está sobre a terra, contemplando, à imitação dos anjos, a face de Deus que está nos céus. Pois os anjos, como disse nosso Salvador, veem continuamente a face de nosso Pai que está nos céus[113]. Então, quando você ouvir, como disse Salomão algures, que a luz brilha sempre sobre os justos[114], considere que estes experimentam naturalmente esta luz pela própria irradicação da face do Senhor, por que eles veem por intermédio da graça divina, à maneira dos anjos, esta face de onde a luz se derrama como de uma fonte. Pois o homem se torna e se constitui sobre a terra como um anjo, para não dizer Deus. Portanto, se você retornar ao dom da graça do Senhor, ao dom que o faz ver sua imagem, considere que aquilo que é Deus no alto o é também você sobre a terra, ou seja, Deus. Mas não fale desta maravilha, sequer pense nela. Caso contrário, você estará dividido em sua inteligência. Aplique-se com toda simplicidade, contemple como Deus na treva, imóvel, numa visão simples e única, e desfrute do esplendor inacessível que flameja e irradia da face do Senhor.

Esta é, digna de ser imitada, a alta condição daqueles cujo intelecto é sábio e voltado para Deus: a flor, por assim dizer, da pureza intelectual, a unidade desejada da fé[115] realizada na comunhão do Espírito, o fruto glorioso da sabedoria divina e deificante, o fundamento da paz espiritual, a morada da alegria inimaginável, a porta do amor de Deus, o germe do flamejamento, a fonte de onde se derramam as águas inesgotáveis do Espírito, o verdadeiro alimento simbolizado pelo maná, as delícias, o crescimento e a transformação da alma, o começo dos mistérios e das revelações inefáveis de Deus, a realização da única verdade primigênia, a desaparição de todo pensamento, o fim de todas as reflexões, o conhecimento mais alto do que toda compreensão, a origem do arrebatamento, a renovação da inteligência, a renovação que a ultrapassa, e sua mudança em vista daquilo que é simples, sem limites, infinito, incompreensível, sem figura e sem forma, puro, invariável, intangível, mais alto do que o mundo: em tudo o restabelecimento que conduz à imagem de Deus.

Uma vez que você atingiu este estado, e que a graça, em seu amor pelo homem, o fez conhecer o milagre de Deus, não se apresse, por ignorância, em dizer a menor palavra diante da face do Senhor[116]. Pois a ele cabe a glória única e simples pelos séculos dos séculos.

77. O intelecto que pretende contemplar os inteligíveis que o ultrapassam não vê senão coisas incertas, obscuras, confusas, se, por intermédio da graça de Deus, não obtiver o auxílio de seu coração para alcançar esta contemplação. É por isso que ela precisa conhecer o prazer que lhe é próprio, mesmo que, por ignorância, ele imagine provar deste prazer antes de tê-lo realmente provado, assim como alguém que come pão sem fermento imagina ter um certo prazer, enquanto que, não tendo jamais provado do verdadeiro pão, ainda necessita conhecer o prazer que dá o verdadeiro pão.

78. Depois de ter se unido ao coração por intermédio da graça, o intelecto contempla sem erro a luz espiritual e se volta para o objetivo de seu próprio desejo, que é Deus. Ele se encontra totalmente fora dos sentidos. Para além de toda cor, de toda qualidade, de toda imaginação, ele cessa de ver o sensível.

79. O intelecto que, por intermédio da graça, foi conduzido à contemplação, come sempre em verdade do maná espiritual. Pois o maná sensível de que Israel se alimentava e que nutria os corpos tinha o poder de fornecer um prazer real, mas ninguém sabia do que ele era feito. O próprio nome “maná” – que significa: “O que é isto?” – significa este desconhecimento: a palavra o diz. Os Hebreus comiam o que estavam vendo, mas, ignorando do que era feito aquilo que comiam, interrogavam-se, dizendo: “O que é isto?[117]”. O contemplativo se maravilha, ele também, em seu intelecto, e diz a si mesmo: “O que é isto?”. Aquilo que ele contempla alegra e alimenta o intelecto que se alimenta em espírito. Isto, de fato, ultrapassa todo pensamento. Pois é uma coisa divina, sobrenatural, paradoxalmente alimentando e dessedentando a inteligência, e que escapa ao estado desta, não apenas por ser incompreensível em sua essência, como por ser infinita e não possuir limites.

80. Três coisas dão testemunho da verdade, posso dizê-lo com toda certeza: a criação, a Escritura e a visão no Espírito. Com efeito, é a partir da Escritura, da criação e daquilo que vemos em Espírito, que podemos contemplar a verdade simples que é única, e a verdade composta que dela deriva. Se, por intermédio destas três coisas que mencionamos, chegarmos a estas duas verdades, e se aí nos mantivermos, teremos encontrado, pela graça de Cristo, o caminho direito. Pois a verdade simples nos permite atingir a altura e a profundidade inteligíveis, assim como a largura infinita pelas quais celebramos com arrebatamento e temor. E além destas coisas, a verdade composta nos permite descobrir a paz, o amor e a alegria do coração. Maravilhados, cantamos amorosamente.

Mas ao homem é preciso muito tempo, esforço e paciência para, de um modo ou de outro, rejeitar os sentidos, separar o intelecto do sensível e permanecer no inteligível. Só então a contemplação da verdade resplandece na alma. Não digo que a verdade seja necessária para descobrir essas coisas, uma vez que demanda tempo, esforço e paciência para as compreender. O que afirmo é que é o homem que as deve encontrar. Pois a verdade é coisa uma e simples, ainda que sua contemplação a revele como dupla. E ela se dirige a todos, para dar testemunho diante daqueles que a querem ver. Mas o homem é composto, ele está ligado aos sentidos, submetido às mudanças e à evolução, ele acaba saindo de si de um modo ou de outro, alienado pela malícia e a presunção e pela doença da descrença. Pois estas três coisas – a presunção, a malícia e a descrença – o fazem decair miseravelmente dos três testemunhos da verdade, ou seja, da Escritura, da criação e do Espírito. É por isso que devemos rejeitar a má presunção, ao mesmo tempo em que rejeitamos as demais coisas de que já falamos, a fim de que o intelecto, retornando à humildade, possa crer com toda simplicidade para em seguida ser capaz, por meio da Escritura e da criação, de conhecer claramente no Espírito não apenas a verdade simples, como também a verdade composta que dela é derivada. Acrescentarei ainda que estes males afastam a inteligência da contemplação e a impedem de desfrutar desta.

A verdade primeira é assim uma só e mesma coisa simples. Depois, para nós que somos compostos, vem a verdade composta que se segue à verdade simples. Tal é a última e melhor garantia de nosso intelecto, para a qual os que são conduzidos ao objetivo do Espírito entregam toda conduta e toda ascese, a fim de que o intelecto posto a nu possa ver o esplendor que provém da única verdade primigênia e desta verdade composta, e delas possa desfrutar maravilhosamente. Ora, isto não pode ser feito senão por meio da humildade e da simplicidade na fé, pelo testemunho da Escritura e da criação, no Espírito.

Quando o intelecto vê a verdade no espelho destas três potências, pelo triplo testemunho de que falamos, ele retorna naturalmente a si mesmo, tornando-se ainda mais humilde, mais simples, e reencontra a fé com toda a certeza. A partir daí, com os pés alegres, como se diz, ele se eleva para a contemplação desta verdade que brilha com toda luz de seus raios, que o farão retornar a si mesmo através da grandeza da glória que contempla, arrebatando-o e investindo-o na fé. Assim, regressando e voltando a si, percorrendo como um círculo divino, elevando-se por meio da humildade, a simplicidade e a fé, contemplando a verdade, fazendo-se a cada dia mais humilde na luz da verdade e mais e mais simples na fé, ele não mais cessa de caminhar por esta via, na medida em que lhe for possível dizer: “hoje[118]”. Com humildade, simplicidade e fé, pelo testemunho da Escritura e da criação, no Espírito, ele contempla a verdade e depois retorna para o ponto de onde partiu. Assim deificado a cada dia pela graça, brilhando com uma luz que o ultrapassa, levando uma vida cheia de graça em nosso Senhor Jesus Cristo, ele recebeu como penhor o gosto da fruição dos bens eternos por vir.

81. A integridade e a invulnerabilidade da vida contemplativa são asseguradas por estas três coisas, a saber: a fé, a clara comunhão do Espírito Santo e a sabedoria do conhecimento. Com efeito, por definição, a contemplação é o conhecimento do inteligível no seio do sensível. Em alguns casos, naqueles que progridem, ela é o conhecimento do inteligível puro, fora dos sentidos. Mas aqui a fé é necessária. Pois foi dito: “Se vocês não crerem, vocês não compreenderão[119]”. E também é necessário o Espírito, uma vez que o Espírito sonda tudo, mesmo as profundidades de Deus[120]. O divino Jó disse: “O sopro de Deus que domina o universo me ensinou[121]”. Depois a energia divina que brota fervente no coração, se posso me expressar assim, embora viva e vivifique para além do mundo, se recolhe naturalmente em si mesma, reúne inefavelmente o intelecto, afasta-o de toda distração e, com serenidade, profunda alegria, consolação e amor divino, lhe concede ver sem dificuldade as coisas de Deus, se voltar para elas, contemplar a Deus com toda novidade e se regozijar abundantemente nele no coração deste novo eros ainda maior e da alegria que dele recebe.

Mas, como eu disse, também é necessária a sabedoria. Pois a sabedoria, diz a Escritura, ilumina a face do homem[122]. Ela a ilumina para nos fazer passar alegremente dos sentidos à intelecção, para nos elevar das coisas sensíveis às visões inteligíveis de Deus, para nos dar a ver as coisas inefáveis da revelação intelectual. Ela a ilumina para que possamos contemplar no mistério e ver na unidade a Deus mais alto do que o ser. “Bendito é o home a quem você instrui, Senhor, e a quem você ensina com a sua lei[123]”. Pois é verdadeiramente sábio aquele que, pela instrução, atinge a fé, e que, pelo ensinamento do Espírito, aprende os segredos de Deus. É uma grande coisa, em verdade, um sábio que, pela fé, caminha na união e na comunhão sobrenaturais do Espírito. Como já foi dito, existem três coisas que ninguém pode dominar: Deus, o anjo e o home que ama a sabedoria. O sábio é uma espécie de anjo, estranho sobre a terra. Em tudo ele vela sobre a criação visível. Ele é o fiel iniciados das processões incriadas de Deus, vale dizer, de seus dons, e ele traz em si, por uma atenção concentrada, à imitação dos anjos, o conhecimento deste Deus invisível.

Tal é, em poucas palavras, o homem que, no Espírito Santo, pela fé, é sábio e bem-aventurado, ainda que, sem nenhuma dúvida, para encerrar me baste citar aquilo que Lucas explica nos Evangelhos a propósito de Jesus nosso Senhor, ao contar o poder e os louvores da sabedoria e da graça. Foi ele, de fato, que escreveu que Jesus progredia em sabedoria, idade e graça[124], e ainda que ele crescia e se fortalecia em espírito, cheio de sabedoria[125]. Ainda tentando expressar mais claramente o que precede, acrescentarei o que Salomão disse a Deus: “Quem poderia ter descoberto o que há no céu e quem saberia qual é a sua vontade, se você não concedesse a sabedoria e não houvesse enviado do alto seu Espírito Santo? Assim foram guardados os caminhos dos que estão sobre a terra. Assim os homens aprenderam o que lhe agrada, e foram salvos pela sua sabedoria[126]”. Vê quanto poder alcança a sabedoria, quando unida ao Espírito? E o quanto se afasta da salvação aquele que não possui nem a sabedoria nem o Espírito que vêm de Deus, e que não tem como se socorrer do sábio e daquele que participa do Espírito? Se estas coisas foram escritas sobre o Salvador em quem reside toda a plenitude da divindade[127], segue-se daí, numa palavra, que a toda a raça dos homens foi dado saber o quanto é necessária a sabedoria sob a impulsão do Espírito, e o quanto o sábio espiritual – que sonda o que há nos céus e caminha para o conhecimento da vontade do Altíssimo – pelar compaixão, maravilhosamente recebe o poder e o progresso deste Deus que ama aos homens.

Devemos falar agora longamente da vida contemplativa e da contemplação, fazer progredir em parte e nutrir a razão de quem nos escuta atentamente, podemos dizer, sem nenhuma hesitação. Pois Deus ordena de uma vez por todas aos seres racionais: eles devem transmitir abundantemente aos que estão em baixo as coisas inteligíveis e acessíveis da irradiação divina, recebê-las do alto com piedade e, num espírito de comunhão e bondade, falar a seus semelhantes dos inteligíveis e de Deus. Assim, não apenas a retidão e a constância radiosas do Deus vivo poderá brilhar na Igreja, como a santidade do amor e a extrema beleza da face conhecida pelos discípulos de Cristo poderão resplender continuamente nos corações, derramadas sobre nós pelo Espírito Santo, no puro e perfeito amor aos homens. Assim poderemos levar sobre a terra, em meio às maiores delícias, uma vida angélica e verdadeiramente bem-aventurada, pois nos teremos ligado ao duplo amor divino e deificante do qual dependem toda a Lei e os profetas[128]. Nada é mais doce à alma do que este amor, em especial quando ele não cessa de irradiar profusamente da contemplação e do conhecimento de Deus e das coisas divinas, ou seja, da graça que nos ilumina.

Portanto, aquele que tem este objetivo, que se esforçou por elevar sua obra a Deus para se unir a ele, por assim ser deificado, para ser salvo – pois se o intelecto não for deificado é impossível que o homem seja salvo, como revelaram os pregadores de Deus – este avança na contemplação permitida dos seres e das aparências, colocando em prática na medida do possível os mandamentos do Senhor. Sua ação não é cega, uma vez que ela não se separa da contemplação. E sua contemplação não é inerte, uma vez que ela acontece conjuntamente com a ação.

Assim, com a sabedoria e a santa ciência da Escritura conformes à razão e à inteligência, ele começa com um bom impulso, como foi dito, a contemplar feliz, como a prova do Criador infinitamente poderoso e infinitamente sábio, o mundo das coisas sensíveis submetidas à razão, depois contempla no infinito o poder e toda a diferença, na medida em que se coloca diante delas com toda a sua atenção e que delas desfruta. Em segredo, por tudo o que é oculto, ele nutre então fartamente o intelecto, e assim, chegado o tempo, ele conduz uma vida calma na hesíquia, filosofando apenas com as coisas de Deus através da Escritura e do mundo visível. Em todas as suas obras, ele busca na medida do possível contemplar em espírito a criação pela Escritura, e os símbolos pela verdade, numa visão mais unificadora.

A partir daí, com a benevolência do Espírito de adoração e da energia que dele provém, o intelecto passa a se elevar na visão e na ciência da santa verdade, como disse o grande Denis: “Ele atinge o grau sagrado da contemplação, que é geralmente o segundo, ou seja, o das visões e dos pensamentos divinos, independente de todo véu e de toda imagem[129]”.  Assim é que o intelecto nu, aplicando-se às coisas intelectuais nuas, considerando que as manifestações divinas trazem nele, através de sua própria pureza e de sua tensão em direção a Deus, como num espelho limpo, os raios mais brilhantes do que o Sol, e novamente nutrido pela graça com aquilo que lhe foi concedido e que lhe é possível, avança para um terceiro grau, nestas numerosas visões bem-aventuradas e nestas processões divinas, cada vez com mais unidade. Em recolhimento e atenção, ele se eleva das numerosas diferenças ao inefável amor da unidade imutável e secreta. Ele se vê transformado pelo sentido intelectual. Assim, aquele que contempla em verdade e reminiscência se vê, pelo Espírito que ilumina, transformado em fogo e em eros do coração, em amor maravilhoso por Deus, em amor sem fim. Esta é, segundo o grande Denis, a divina participação no Um simples, na medida do possível. Sobre estes degraus de uma única participação, o intelecto que traz em si a Deus e pensa em Deus se eleva na tripla beatitude e, desfrutando manifesta e visivelmente dos insuportáveis aguilhões do delírio divino e do amor louco que está no coração deste delírio, ele se vê ferido de amor[130] e como que consumido pelo que lhe acontece. Ele se vê transportado em Deus e sai verdadeiramente de si mesmo. Ele penetrou, com o rosto radioso, nos mistérios apofáticos[131] da teologia. Com toda sua atenção cegada, ele fez sua morada naquilo que não possui começo nem fim, no que é incompreensível, totalmente inefável e impalpável. Ele contempla como um oceano o infinito e a inacessibilidade da essência de Deus que ultrapassa todo pensamento de Deus e de natureza, segundo nosso teólogo. Tal é, ainda conforme Denis, o festim, a visão atenta que nutre o espírito e deifica todo o ser que a ela se consagra, começando pela contemplação e o conhecimento dos seres, no além, onde o próprio Hierofante purifica os símbolos sagrados da hierarquia terrestre[132].

É o que o grande Basílio explica quando diz: “Quando alguém que, por meio da contemplação, ultrapassa a beleza que está nas coisas sensíveis, é levado diante do próprio Deus cuja visão não é concedida senão aos corações puros, depois de haver progredido até o cume da teologia, então ele pode se tronar contemplativo”.

E ainda: “Pela manhã irei diante de você e o verei[133]”. Assim falou no Espírito o grande Davi. Quando eu for em sua direção, disse ele, e quando, por intermédio do intelecto eu me aproximar da contemplação de sua face, então receberei a energia da visão por meio da iluminação do conhecimento. Podemos ouvir as mesmas coisas de são Máximo, que diz e mostra o grande progresso que realizam a contemplação e o conhecimento de Deus por meio da Escritura e da criação. Com efeito, é de lá que costuma vir a iluminação do conhecimento, enquanto que a deificação bem-aventurada, quando chega a ocorrer, é uma coisa rara e difícil para os que vivem na hesíquia, caso lhes falte o Mestre que ensina por sua própria experiência o que lhe foi concedido no tempo da graça, como disse santo Isaac o Sírio, este guia eminente dos caminhos da hesíquia, no discurso em que falou do sentido espiritual e o poder contemplativo. Assim é que são Máximo afirma: “Dizemos que os ensinamentos dos santos são luzes da obra divina, pois eles suscitam a luz do conhecimento e deificam aqueles que obedecem”. Nisto ele acompanha são Denis, que disse: “A tradição secreta de nossos guias divinos nos forneceu por suas palavras a revelação de outras luzes da obra divina, estas luzes nas quais nós mesmos fomos iniciados[134]”. Em outra parte ele diz: “O conhecimento de Deus eleva aqueles que para ele se dirigem tanto quanto é dado, e os unifica em sua união que os torna simples”. E ainda: “Todo progresso da manifestação luminosa que provém do Pai e permanece em nós como um dom de bondade, nos simplifica desenvolvendo-se para o alto como uma potência unificante, e retorna à unidade e à simplicidade deificante do Pai que a tudo reúne. Pois todas as coisas vêm dele e nele são[135]”.

Compreenda, então, que quem sabiamente encontrou a simplicidade desenvolvendo-se para o alto pelo retorno a Deus, ou seja, pela atenção divina, se une a Deus e é deificado se, em sua elevação, contemplar a Deus a partir dos seres e se contemplá-lo a partir da Escritura, seja de forma simbólica, seja divinamente. Como tal homem não seria chamado de Deus? Pois tudo aquilo que se voltou totalmente, tanto quanto possível, para a união com o segredo da obra divina que reside nas Inteligências espirituais, tende de uma maneira incompreensível, tanto quanto possível, para os esplendores divinos desta união, imitando a Deus com todo seu poder, se podemos nos exprimir assim, e se torna digno do nome divino[136].

É isto que diz também a língua teológica de Gregório: “O homem é um vivente que tem seu destino aqui em baixo e que depois é transportado para outra parte, para enfim ser deificado ante o chamado do mistério que conduz a Deus”. E são Máximo: “A forma intelectual da Escritura divina muda por meio da sabedoria os que têm o conhecimento. Ela os conduz à deificação transfigurando a palavra que está neles e, com o rosto descoberto, eles refletem a glória do Senhor”[137]. Mas esta vida contemplativa necessita, como eu disse, destas três coisas: a fé, a comunhão espiritual e a sabedoria do conhecimento, em nosso Senhor Jesus Cristo.

82. A vida contemplativa aberta ao Espírito vivificante enche de inúmeras e admiráveis maravilhas inteligíveis aquele que contempla no segredo. Ela não o cumula nem imediatamente nem de uma vez, mas com o tempo e através do longo amor pela sabedoria, progressivamente e como que por degraus.

Agora, escute este contemplativo, quando a eminência da hesíquia e sua fuga para longe de tudo – salvo Deus – o fazem dizer: “Eu me manterei solitário até que eu passe[138]”. Em outra parte, quando ele se volta para os seres para conhecê-los: “Quão grandes são suas obras, Senhor, tudo você fez com sabedoria[139]”. E: “O odor das suas vestes é como o odor de um campo fértil que você abençoou, Senhor[140]”. E quando ele chega mais alto e se eleva aos degraus inteligíveis, ele confia a Deus: “Eu corro atrás de você, ao odor de seu perfume[141]”. E: “Eu o exaltarei, ó Deus, meu Rei, eu bendirei seu nome pela eternidade, pelos séculos dos séculos[142]”. E: “O Senhor é grande e grande é seu louvor. Sua grandeza não tem medidas[143]”. E: “Seu conhecimento me deixou maravilhado: ele é tão alto que não consigo atingi-lo[144]”. E também: “Você, ó Senhor, é o Altíssimo por toda a eternidade. Sua memória dura por todas as eras[145]”.

Aqueles que veem, voltados para aquilo que na visão é mais alto do que o ser, são convidados pela vida contemplativa a cantar: você se elevou acima de todos os deuses! Outras vezes eles são levados a declarar abertamente: “Nada se parece com você dentre os deuses, Senhor. E nada é como suas obras[146]”. Aos que contemplam em espírito a montanha do conhecimento e o santo lugar de Deus, ela mostra onde se elevam e onde moram os que têm as mãos inocentes e o coração puro, ao mesmo tempo em que lhes permite ver as elevações até os céus e as descidas até os abismos, ou seja, a altura e a profundidade dos mistérios do Espírito. Ora ela se aplica admiravelmente em discernir o que lhe concede ver as Pessoas da Trindade; ora se ocupa, em arrebatamento, em se fixar sobre a contemplação de Jesus, da economia de sua encarnação e dos mistérios sobrenaturais que advêm disto. Enfim, após tantas visões bem-aventuradas, ela não mais abandona aquele que contempla, mas o encaminha por uma nova via – e, ó graça! – no próprio seio de Deus, iluminado numa verdadeira detença, num repouso inefável, nas delícias sobrenaturais do Espírito, para não dizer na embriaguez dos bens de Deus e num êxtase mais e mais divino. Pois este seio mais do que bendito possui a grande profundidade dos segredos divinos, e ele permite aproximar suficientemente o senti da supra-essencialidade de Deus. É este seio que Abrahão herdou do alto, quando o próprio Deus se fez herança de Abrahão ao dizer: “Eu sou o Deus de Abrahão[147]”. Deus é, assim, por excelência, o Deus de Abrahão. O seio de Deus é, por conseguinte, também o seio de Abrahão[148]. Portanto, é no seio de Deus – que também podemos chamar de seio de Abrahão -  que, ao se elevar, a vida contemplativa, a vida no espírito, permite penetrar com toda simplicidade, deifica no coração com uma imensa alegria de amor e conduz à beatitude, no regozijo das delícias inefáveis, ao intelecto que comunga da sabedoria e que coloca toda a sua atenção em voltar para o alto seu olhar, em Jesus Cristo nosso Senhor.

83. A partir do momento em que a criação e a Escritura se desenvolveram pela palavra de Deus, aquilo que se pode contemplar em espírito confirma o intelecto e todas as suas potências na visão e na compreensão de Deus, desde que o coração esteja previamente animado e posto em movimento pela energia do Espírito. Ensina-o o bem-aventurado Davi, com a maior sabedoria, ao dizer: “As inteligências – que ele aqui denomina ‘céus’ – foram fundadas pela palavra do Senhor, e todo o seu poder pelo sopro de sua boca[149]”. E em outra parte: “A terra inteligível – ou seja, nosso coração – está cheia da piedade do Senhor[150]”, vale dizer, do poder, da energia e do movimento do Espírito, de maneira sensível e manifesta. Mas enquanto o intelecto não sentir no coração a energia, o poder e o movimento, não apenas ler em espírito a criação e a santa Escritura pela contemplação como recolher numa só razão o que nelas existe, não o confortarão, e devemos temer a possibilidade de que ele se perca em ilusões. Portanto, se devemos nos consagrar à contemplação de Deus a partir da Escritura e da criação, reunindo em sua unidade e sua simplicidade, numa só razão e num só sopro, as numerosas razões dos seres e tudo o que neles vemos, e nos abrindo, além de todo limite, de todo fim e de todo começo, à contemplação única e simples, independente de toda forma, busquemos em primeiro lugar descobrir o tesouro que existe dentro de nosso coração e supliquemos ao Deus santo que encha de piedade nossa terra. Então, se pudermos, elevemos com toda liberdade nosso intelecto à contemplação de Deus, único, como foi dito, puro e simples, eterno, além de toda forma, de todo fim, de todo limite, na contemplação e no socorro do Verbo e do Espírito.

84. Quando, pela retidão e a simplicidade da alma, o homem, à custa das virtudes, com a humildade, a paciência e a esperança que são dadas pela fé, chega ao fim do caminho virtuoso; quando o poder e a energia vivificantes que jorram sempre e sempre do Espírito Santo fazem sua morada no coração, iluminando as potências da alma, chamando e apressando com seu movimento natural manifesto e pela invocação o intelecto ativo, e se unindo inefavelmente a este, de tal maneira que o intelecto e a graça se tornam verdadeira e indubitavelmente um só Espírito; então o intelecto, levado pelo sopro da graça, dirige-se por si só à contemplação, com seu movimento giratório e sua desorientação indizivelmente detidos pela energia e a luz do Santo Espírito vivificante. Ele vai e vem nas revelações dos mistérios espirituais de Deus. Por todas as formas do silêncio, pela calma de seu próprio olhar, ele consegue penetrar no sobrenatural inefável. E tanto mais ele contempla, e tanto mais é inspirado por Deus, e tanto mais se volta para a visão do próprio Deus, na ciência das coisas divinas, esta ciência que provém das leituras sagradas, que, animado por Deus no Espírito Santo, ele obtém propriamente, por analogia, a humildade e a prece. Ele já não está por fora do conhecimento teológico, mas se torna precisa e realmente teólogo, e já não suporta não se dedicar continuamente ao conhecimento teológico.

Entretanto, sem o dom celeste de que falamos, sem o Espírito sempre claramente em movimento e soprando no coração, o intelecto jamais vê o que imagina, e o que ele pode dizer de Deus não passa de palavras atiradas ao ar inconsideradamente, que não revelam o sentido da alma convenientemente.  Por que ele age por ouvir dizer e sob o efeito de palavras que provêm do exterior. É por este motivo que a terrível desorientação dos inteligíveis corrompe o próprio caminho por onde passa a teologia, por que esta não vem do coração nem é conduzida pelo Espírito que ilumina. O mesmo acontece com a verdade única dos inteligíveis, assim como com a verdade imutável da teologia, quando nele – de modo geral mas especialmente no coração – o poder e a energia vivificantes e irradiantes do Espírito não assistem de maneira manifesta e sempre transbordante aquele que as recebe, quer digamos que o Espírito sopra, quer digamos que jorra. Não existe aí nenhuma união intelectual, antes existe a divisão: nenhum poder, nenhuma estabilidade, mas fraqueza e versatilidade; tampouco alguma luz, nenhuma visão da verdade, apenas trevas, ficções arbitrárias da imaginação; em tudo, a via da irracionalidade e do erro.

Para os Padres, com efeito, o intelecto pode passar por três ordens, ou três vias: a via natural, a via sobrenatural e a via contra a natureza. Quando o intelecto contempla em sua matéria uma coisa inteligível, ele vê segundo a natureza, mas com a energia sobrenatural do Espírito. Quando ele vê a coisa de maneira fundamental, e não na matéria, ele pode ver um demônio ou um anjo. Se ele se une na paz, e se a iluminação do Espírito se faz mais e mais forte, ele vê sobrenaturalmente, e é claro que vê sem erro. Mas se, ao contemplar o visível, ele se divide e se entenebrece, se a potência vivificante se extingue, ele está vendo contra a natureza e esta visão é da ordem da ilusão. É por isso que não convém que o intelecto se eleve de maneira fundamental até a visão espiritual, nem que ele deposite confiança nesta visão, quando o coração ainda não se encontra animado e transportado pelo poder do Espírito Santo, se é verdade que devemos ter um intelecto são e sábio.

85. Alguns, que fazem tudo corretamente, tentam curar as queimaduras de suas paixões com o orvalho celeste da graça. Á a respeito destes que foi escrito: “O orvalho que procede de você será para nós um remédio[151]”. Em outros, este mesmo orvalho se une de alguma maneira a um socorro divino ainda maior e se transforma em maná, como se, pela contrição da humildade do coração, pela água das lágrimas e pelo fogo do conhecimento espiritual, ele se tornasse pão de trigo, num estado digno e justo, transformado num alimento semelhante ao dos anjos. É de tais seres que foi dito com razão: “O homem comeu o pão dos anjos[152]”. Outros há enfim, mais altos ainda, que se tornaram como cordeiros. Sua própria natureza se revela como maná. Os Evangelhos dizem deles: “Aquele que nasce do Espírito é Espírito[153]”. A primeira ordem é a dos sábios hesiquiastas. A ordem seguinte é a dos que vivem no silêncio e trazem consigo o conhecimento divino. A terceira ordem é a dos que se tornaram inteiramente simples e que foram transformados em Jesus Cristo nosso Senhor.

86. Quando, pela graça, como é natural, o intelecto foge em espírito do Faraó, do Egito e das coisas duras e penosas que aí ele encontrou, esta vida na carne sacudida pelas ondas passionais da amargura e do mal desagradável, quando ele penetra no deserto inteligível, num estado desembaraçado dos pensamentos faraonitas, numa palavra, quando em espírito ele se liberta das paixões, estes males que então fustigavam os Hebreus em seus sentidos, ele passa a comer doravante, pelo sentidos da alma, com toda certeza, o maná inteligível, cuja imagem foi Israel, quando comia outrora o maná sensível[154]. Mas pode acontecer ao intelecto, e não sem perigo ou risco de queda, de se lembrar em espírito dos sacrifícios egípcios e desejá-los, como os Hebreus se lembravam e desejavam a carne sensível[155]. Neste momento o intelecto experimentará o abandono de Deus, até que, pela prece do arrependimento, ela retorne e ele se reconcilie com o divino. Mas se, na hesíquia, ele se saciar do maná sem jamais relaxar, quando chegar o tempo, quando a graça lhe conceder a impulsão e a força, ele verá manifesta e claramente sua carne inteligível se transformar, por assim dizer, na própria natureza do maná.

Mas um intelecto como este que come o maná possui uma balança com pratos graças à qual, tomando seu peso de maná, ele não estoca mais do que o alimento cotidiano, a fim de que nada se perca, cheio de vermes e apodrecendo[156] por ter tomado mais do que a medida, e também ele não perde a si mesmo por comer demais, por não observar aquela mesma medida. Fica assim claro que o intelecto que se alimenta do maná, uma vez que não coma nada além disto, leva manifestamente uma vida melhor do que todo intelecto que coma, mesmo em espírito, não importa o que e não importa como. O sinal de que ele próprio, pela faculdade que adquiriu de se alimentar, se transformou naquilo que dá qualidade ao maná, é que ele não tem mais apetite pelas muitas coisas estranhas que ele desejava antes. Quando ele come o maná em todas as coisas e se torna como criança, ligado ao amor de Deus, não é de se estranhar que este intelecto se transforme no estado que ele experimenta continuamente e que o sacia desde há muito; a transformação do intelecto em estado de maná jamais se dá contra a natureza. O alimento, quando tomado contínua e ininterruptamente, costuma se transformar naturalmente naquele mesmo que é alimentado.

A partir daí, não apenas o intelecto se aproxima claramente da ordem angélica, como passa a tomar parte da filiação divina. Ele se torna digno de ser transportado de glória spiritual em glória espiritual[157]. Não apenas ele tende para o Um, como se torna ele mesmo Um, vivendo por ele, dele fazendo suas delícias, desfrutando por assim dizer dos mistérios inefáveis, levado pelo Espírito Santo pela semelhança divina e o amor a Deus, e se tornando assim de certa forma à imagem das coisas visíveis e celebradas, na medida em que ele próprio se vê em estado de maná. Esta ordem é bem mais elevada e mais venerável do que a do intelecto que conhece a si próprio por haver comido o maná, mas não por ter se transformado em estado de maná. O primeiro conhecimento é o do intelecto que começa a se recolher sob si mesmo na união inteligível. O segundo é a clara evidência de uma união mais visível, de uma revelação dos mistérios do conhecimento, da libertação última além de todas as coisas, e da intelectualidade transcendente.

87. O intelecto é simples por natureza. Pois aquilo de que ele é imagem é também simples, vale dizer: o divino. Portanto, se ele é simples, ele ama agir na simplicidade. De fato, ele ama tudo o que traz em si esta natureza simples. E no entanto ele se diversifica, não por si mesmo, mas pelos sentidos e pelo sensível, através dos quais ele recebe os inteligíveis. Mas quando ele permite à sua própria razão discernir e julgar com todo conhecimento, na medida do possível, entre ele próprio e os sentidos dedicados ao sensível, sem podar os sentidos que não devem ser podados, sem suprimir por negligência ou emular por preguiça a beleza do sensível, não submetendo a ela seu poder, por indiferença, mas atribuindo sabiamente a cada coisa o que lhe é devido, então o intelecto logo se restabelece na unidade e na simplicidade que é seu natural, e se afasta das coisas divididas. Ele retoma naturalmente seu amor pelo Um, pela simplicidade, pela ação una e simples que ele busca com seu amor. E é nesta busca que ele assegura seu próprio voo acima de tudo o que existe de composto, até descobrir aquilo que é em si verdadeiramente uno e simples – que é Deus – enquanto se regozija nas delícias, coberto agora apenas pelas asas divinas, e novamente erguido às alturas por estas mesmas asas, como é natural que se regozije uma inteligência guardada e carregada por Deus.

88. O que provém das paixões cobre o discernimento da alma como uma bruma espessa que toma o lugar da verdadeira visão. Mas quando, pela prece frequente, pela realização dos mandamentos, pela tensão em direção à contemplação de Deus, o intelecto recebe a graça de dissipar esta espessa bruma, ele percebe claramente e por si só que ele enxerga a Deus, sem precisar para tanto de nenhum intérprete, do mesmo modo como alguém que vê o mundo sensível não necessita de ninguém que lhe ensina, se nada vier turbar ou velar as pupilas de seus olhos. Com efeito, assim como o sensível está naturalmente ligado aos sentidos, desde que estes sejam sãos, também o inteligível está unido aos pensamentos purificados da nuvem das paixões. E, assim como a compreensão do sensível provém da percepção dos sentidos, também a visão dos inteligíveis provém normalmente do olhar do intelecto. Depois segue-se a contemplação de Deus, simples, fora de qualquer forma, propriedade ou imaginação, que retém a inteligência e a desembaraça de todo sensível e de todo inteligível, guardando-a no coração de um abismo de infinito, de incompreensibilidade, de ausência de limites, num arrebatamento e num maravilhamento que nenhuma palavra é capaz de descrever.

89. Ó Mestre que domina o universo, que é a origem de todo o visível e de todo o inteligível, Incriado que tem por início o que não tem começo, Infinito que tem por limites o que não tem limites, Incompreensível que tem por natureza o que está além da natureza, Não-gerado que tem como ser o que está além do ser, Invisível que tem como imagem o que não possui imagem, Incorruptível que tem como propriedade o que não tem propriedades, Inencontrável que tem como forma o que não possui forma, Ilimitado que ocupa um lugar que não se pode definir, Insondável que tem como compreensão o que não se pode compreender, Inacessível e Incompreensível que tem como conhecimento e contemplação o invisível e o desconhecido, Inexplicável que tem como palavra o indizível, Indizível que tem como explicação o inexplicável, Inconcebível que tem como pensamento o que não pode ser pensado, Mais-do-que-Deus que em tudo tem como morada o retiro acima de tudo, você que está inteiro em todos, maravilha, serenidade, coragem, amor, doçura, regozijo, confiança, verdadeira ausência de inquietação, alegria, você, a única glória, o único reino, a única sabedoria, a única potência anipostática. Por isso é você natural e indizivelmente o êxtase além de todo o visível, a realização além de todo inteligível e o repouso maravilhoso que recebem os que o contemplam e que participam do Espírito Santo, ó Deus inefável.

90. Aquilo que admiramos – ou seja, o divino – também desejamos. E o que desejamos nos purifica, diz a voz teológica de Gregório. Ora, o que purifica torna os seres semelhantes a Deus, e a estes seres se liga daí por diante, como o faz aos seus[158]. Não apenas Deus é assim. Aqueles que foram purificados aqui descobrem como seus, em espírito e verdade, o divino e Deus. O Teólogo acrescenta: “Deus está unido aos deuses e é conhecido dos deuses[159]”. Vê você a natureza maravilhosa da união? De fato, foi dito: “Deus está unido aos deuses”. Mas se a união se dá entre os mesmos, é claro que as disposições e a fruição desta união são forçosamente as mesmas. É por isso que também foi dito: “Ele é conhecido”. Realmente, assim como os que são semelhantes a Deus e são deuses pela graça encontram e conhecem como seus o divino e Deus, também Deus contempla e encontra para unir-se àqueles que, como dissemos, são semelhantes a Deus e são divinos.

Então o grande Gregório acrescenta, não sem razão, para explicar: “Deus é conhecido pelos seres puros que são deuses, na medida em que ele já os conhece, na medida em que Aquele que é Deus por natureza conhece os deuses por adoção[160]”. Quão grande é você capaz de representar para si a similitude, quando pensa nela? Bem-aventurados são os que, como se deve, tensionam sua alma com toda força e toda a ciência espiritual, nas visões e nas contemplações de Deus, quando, através da ausência de começo e de limites, a incompreensibilidade, a eternidade e o infinito absolutos o envolvem, são vistos na natureza impalpável de Deus todos os que receberam a maravilha mais do que maravilhosa e tamanho arrebatamento. A partir de então sua alma se dedica a seguir a Deus com todo seu amor[161]. Consumidos pela contemplação da face divina e da admirável beleza que nela reside, eles experimentam com alegria um desejo difícil de suportar. Então eles são purificados, até que em sua obra divina se tornem semelhantes a Deus e a ele se unam com todo o conhecimento.

Aquele que, pela eminência que cumula os deificados, e seguindo-se ao dom sobrenatural de sua deificação, alcança o conhecimento da união divina, capta maravilhosamente em sua beleza mais do que bela todo o sentido intelectual e todo o desejo, e os atrai ao redor de si como se fossem anjos que cantam sem descanso e com toda justeza: “Deus está na assembleia dos deuses e julga em meio aos deuses[162]”. E: “O Deus dos deuses, o Senhor, falou. Ele chamou a terra, os filhos da terra, do nascente ao poente[163]”. É por isso que os príncipes dos povos se juntaram ao Deus de Abrahão[164]. Eles se colocaram ao redor de Deus[165], como os serafins que o cercam, recebendo os esplendores divinos dos mistérios mais altos do que o mundo e ligando-se sem ruptura ao Deus que é infinitamente ao infinito separado de tudo. Assim, se os corações puros, segundo declarou o Senhor, são bem-aventurados por que verão a Deus[166], como não seriam manifestamente bem-aventurados os contemplativos purificados pelo maravilhamento do conhecimento de Deus e que, ao avançar, se elevam até a dignidade divina? É preciso, assim, que os que desejam experimentar a beatitude e a deificação, e assim se manter na imobilidade como os querubins ao redor de Deus, se liguem com toda sua força à ciência e à ação contemplativas em nosso Senhor Jesus Cristo.

91. Eu quero vê-lo e por isso mesmo celebrá-lo, a você que criou a vida, a você que é a vida dos que o veem, Senhor meu Deus. Mas eu não posso dizer nada por mim mesmo que seja digno. Na verdade, eu nada sei e sofro. Como pode o intelecto se unir a você, Mestre, Criador sapientíssimo? Aquele que não vê senão a Deus desfruta da paz e do repouso que lhe são naturais. Pois o intelecto, quando se liberta da rotação exterior das aparências e se detém sobre si mesmo, deseja meditar e compreender, com sua natural prontidão, as coisas mais altas, e se ligar por intermédio das coisas mais fortes ao devir de sua imaterialidade. Ele se encaminha naturalmente e como que por si mesmo para aquilo que está acima de tudo, para aquilo que é mais alto do que toda a imaterialidade. E assim ele recebe, como é natural, seu socorro pela fé, sob o impulso do Espírito Santo, e assim ele se dirige para você. Ou antes, a inteligência, atraída pelos seres intelectuais que o cercam como aparentados seus, deseja fortemente vê-lo com toda a resolução de sua alma. E assim ela experimenta naturalmente as coisas maravilhosas e bem-aventuradas.

A partir do momento em que sua natureza, que é intelectual, como eu já disse, mais leve e mais rápida do que todas as criaturas, o transporta com todo seu desejo em direção aos inteligíveis, ele deve pensar, assim como comem os animais sensíveis. Pois pensar é, para a inteligência, aquilo que comer é para os animais sensíveis. É pelo pensamento, com efeito, que a vida própria, o crescimento, a alegria e as delícias são concedidas ao intelecto, como o são aos animais sensíveis pelo alimento sólido.

É isto que o intelecto experimenta agindo assim, ou seja, pensando além de toda medida, e principalmente quando seu desejo misturado à atração de sua glória inefável chega, por sua bondade espiritual, àquilo que nasce indizivelmente em você. Com que finalidade, de fato, aquele que tem em si seu próprio desejo poderia experimentar naturalmente o que lhe vem Daquele que o atrai, e sobretudo de um ser como você, e isto por sua providência, em vista de um ser tão desejado quanto você? Pois é você, ó Rei sábio, todo-poderoso, Senhor mais do que bom, você que tornou vivificante a inteligência inteligível, é você que a criou tal que ela possa se alegrar com o que é seu e entrar indizivelmente na posse do seu eros divino em estado de arrebatamento, é você que a criou de forma a que ela possa se entregar loucamente a você num transporte divino.

O intelecto, criado assim, filocálico ao extremo, é então, por natureza, inteiramente filocálico. Ele tem em si, graças à providência, a tensão que o conduz a pensar o melhor, a deseja r sempre adiante as coisas mais altas e a se regozijar com o melhor em tudo o que lhe acontece. É aí que ele se manifesta, para que você o capture com toda sabedoria, atraído que ele é pelo eros no coração de sua contemplação e arrebatado de uma vez por todas para longe de tudo, com exceção apenas de você, na resolução da alma. Pois você não se revela, ó dulcíssimo, nem apenas diverso, nem apenas simples, nem apenas compreensível, nem apenas incompreensível, nem apenas terrível, nem apenas clemente. Você é tanto isto como aquilo, a fim de que o movimento e, portanto, a transformação do intelecto, vindo daqui e dali, não se debruce para alguma das coisas que estão fora de você, por causa da aparente diversidade, ou da simplicidade, ou do desejo da incompreensibilidade, ou do desejo da compreensão, ou por causa do terrível, ou por causa da clemência. Numa palavra, você é a única bondade, a única beleza englobante, a origem mais do que boa e mais do que bela, criadora de toda bondade e de toda beleza. O intelecto não pode absolutamente contemplar, permanecer e se alegrar, de muitas maneiras e frequentemente, em nada senão em você. Pois você contém em si o universo, do qual é a causa, e você é mais alto do que todas as coisas, por que é infinitamente ao infinito o Criador mais do que bom.

Assim, ó Deus, você é Um. Suas energias, em sua multitude, revelam de inúmeras maneiras a sua essência. E você é imenso, por sua própria grandeza. E o mais admirável, maravilhoso, é que você resida naqueles mesmos a quem se deu a compreender. Pois você é totalmente incompreensível em sua essência e em suas energias, e ninguém pode compreender o seu poder. Quem jamais descobriu a medida de seu poder? Quem conheceu sua sabedoria? Quem sondou o oceano de sua bondade? Quem jamais chegou ao fundo de qualquer coisa sua[167], embora, de algum modo e por outra via, seja possível compreendê-lo?

Portanto, o intelecto que, por intermédio do inteligível no coração do mundo sensível, começa a contemplar, se eleva em seguida à unidade e à incompreensibilidade que o cercam, ó Salvador. Pela doçura e as delícias perfeitas daquilo que compreende, e por ser filocálico, ele se apressa com grande ardor e se esforça de todas as maneiras para passar além tanto quanto lhe é possível. Mas enquanto ele não consegue ir mais longe, considerando aquilo que lhe escapa indubitavelmente, que está acima dele e que o transporta, ele se mantém presa do eros, irresistivelmente transportado de amor louco por você, e acende na alma um desejo intenso, inflamado pelo amor divino a partir do que consegue compreender do incompreensível, e fazendo da privação um modo de adquirir o eros, menos pelo encanto com que você o toca do que pela queimação daquilo que lhe escapa e que o dispõe, pela natureza inacessível de seu conhecimento, a se maravilhar ao mais alto grau, a desejar antes de tudo, e acrescentarei, a se persuadir a não buscar o que você é em sua essência, coisa que além disso é totalmente impossível. Mas a natureza do poder e da energia da essência divina é incompreensível, como a dos seres inteligíveis que contemplamos ao seu redor e que são infinitos em grandeza e insondáveis em sua multitude. Desde que estes seres são infinitos, é de fato impossível alcançá-los. Mas é possível, aproximando-se de você pela purificação e voltando-se para a sua beleza, atingir visões mais claras e mais luminosas dos seres que o cercam, e ser por conseguinte deificado. Você queima com a ferida do eros o intelecto que aguarda, iluminando-o pouco a pouco, e assim introduzindo-o nas maravilhas que ele contempla, inacessíveis, místicas, mais altas do que o céu.

Ó Unidade infinitamente celebrada, Trindade infinitamente venerada, Abismo sem fundo de poder e sabedoria! Como, a partir deste ponto ou desta linha de partida, qualquer que seja o nome que lhe dermos, fará você penetrar na divina treva que está em você o intelecto que se elevou como quer a Lei, conduzindo-o de glória em glória[168] e lhe concedendo tantas vezes habitar no próprio interior da treva mais do que luminosa? Eu não sei, como você sabe, se outrora Moisés penetrou nesta treva[169], se ele chegou a ser a imagem desta treva, ou se a treva foi sua imagem. Eu só sei de uma coisa: esta treva é manifestamente inteligível, e nela são celebrados divinamente, sobrenaturalmente, inefavelmente, no secreto da alma, os mistérios da união e do amor espirituais. Os que são introduzidos nesta treva com a chama do Espírito que ilumina se encontram na mais intensa luz.

92. Quem, vendo-o, Senhor, Trindade, não se regozija por descobrir em você o rei, o mestre que jamais nos deixa, o dispensador de todas as coisas belas e boas, quaisquer que sejam, e a fonte de sua alegria? E quem, antes de ver seu poder que domina o universo, pode conhecer a verdadeira felicidade? É evidente que ninguém é capaz. É por isso que são verdadeiramente bem-aventurados os corações puros[170], pois eles o veem com os olhos da alma, a você que é justamente e antes de tudo a alegria espiritual. Eles se regozijam, radiosos, com o coração profundamente feliz, e são cumulados de insuportáveis desejos de amor, ainda que sejam massacrados pelas vicissitudes do corpo e pelos ataques dos demônios. Pois a luz espiritual da beleza de sua face, Senhor, é infinitamente ao infinito mais alta do que toda submissão à tristeza do mundo, para aqueles que podem ser iluminados pela graça.

É por isso que quando você avança, você é todo doçura, inteiro desejo, santa tensão, eros inefável. Então seu amor restabelece os que foram feridos pelos aguilhões sobrenaturais insuportáveis e que, de certo modo, o veem em seu intelecto. Indo atrás de você, seguindo o odor de seu perfume[171], as almas daqueles aos quais você se revela, Deus inefável, correm com todas as suas forças, sem descanso, e se esforçam por todos os meios para atraí-lo para si mesmos, vencidos e esgotados que estão por seu desejo. Elevados à altura de sua beleza sobrenatural, eles o guardam em seu intelecto sem jamais esquecê-lo. Ou antes, é primeiro você quem guarda contínua e espiritualmente seus corações dia e noite. E o sono se vai de suas pálpebras (...)[172]. Eles repousam então, mas seu coração vigia[173], alegres em seus leitos[174], como disse o Profeta. Eles veem em abundância, sentem-se oprimidos e não suportam o que lhes acontece. Eles nada sabem, eles são arrebatados por que recebem o esplendor inefável de sua face, pela grandeza da glória de sua santidade, por suas elevações que vão mais alto do que o mundo e que eles trazem em si, pelas revelações místicas e pelas miríades de dos misteriosos e inefáveis, belos e bons, Pai, que o cercam (...)[175].

Possa você afirmar aqueles que, retamente, permanecem diante de sua face[176].




[1] João 3: 6./
[2] Cf. Malaquias 3: 20.
[3] Cf. Salmo 103 (104): 4.
[4] Cf. João 3: 6.
[5] Cf. Mateus 18: 10.
[6] Salmo 104 (105): 4.
[7] Cf. João 15: 4.
[8] Salmo 33 (34): 6.
[9] I Coríntios 13: 7.
[10] I Coríntios 13: 8.
[11] Cf. João 8: 32.
[12] Cf. João 15: 15.
[13] Romanos 8: 14.
[14] Deuteronômio 6: 4.
[15] Cf. Romanos 11: 36.
[16] Isaías 48: 26.
[17] Deuteronômio 6: 13.
[18] Cf. Deuteronômio 32: 12.
[19] Cf. Gênesis 1: 26.
[20] Cf. Romanos 11: 36.
[21] Cf. Romanos 11: 36.
[22] Cf. Pedro Damasceno, Livro II, Discurso 9.
[23] João 11: 25.
[24] João17: 3.
[25] Salmo 68 (69): 33.
[26] Salmo 86 (87): 7.
[27] Salmo 35 (36): 10.
[28] Deuteronômio 6: 4.5.
[29] Cf. Lucas 5: 6.
[30] Cf. Hebreus 4: 3.
[31] João 17: 22.
[32] Deuteronômio 6: 5.
[33] Levítico 19: 18.
[34] Cf. Romanos 13: 10.
[35] Cf. Mateus 22: 40.
[36] Cf. I Coríntios 12: 31.
[37] Cf. II Pedro 2: 19.
[38] Cf. Romanos 1: 25.
[39] Cf. Colossenses 2: 3.
[40] Salmo 4: 7.
[41] Cf. Lucas 10: 42.
[42] Salmo 4: 7.
[43] Cf. I Tessalonicenses 4: 17.
[44] Cf. Hebreus 3: 12.
[45] Cf. Cânticos 2: 17.
[46] Cf. I Coríntios 13: 12.
[47] Cf. Hebreus 12: 14.
[48] Cf. Mateus 4: 1 ss.
[49] Mateus 26: 36.
[50] Cf. João 19: 28.
[51] Cf. Isaías 42: 2; Mateus 12: 19.
[52] Cf. Lucas 23: 34.
[53] Cf. Mateus 26: 67 e paralelos.
[54] Cf. Mateus 29: 34 e 48; João 19: 20-30.34.
[55] Salmo 38 (39): 3.
[56] Cf. Tiago 1: 17.
[57] Mateus 18: 3.
[58] Cf. Salmo 31 (32): 1.
[59] Cf. Salmo 93 (94): 12.
[60] Cf. João 4: 23-24.
[61] Cf. João 14: 17.
[62] Cf. Lucas 1: 78.
[63] Cf. Salmo 83 (84): 6.
[64] Salmo 83 (84): 8.
[65] Salmo 83 (84): 13
[66] Cf. Eclesiastes 3: 7.
[67] Ibid.
[68] Cf. Mateus 5: 5.
[69] Cf. Eclesiastes 3: 7.
[70] Cf. Eclesiastes 3: 7.
[71] Cf. Êxodo 13: 21.
[72] Cf. Êxodo 17: 8.
[73] Cf. Eclesiastes 3: 7.
[74] Cf. Êxodo 17: 12.
[75] Cf. Eclesiastes 3:7.
[76] Cf. João 4: 24.
[77] Isaías 66: 1.
[78] Cf. I Timóteo 2: 4.
[79] Eclesiastes 3: 7.
[80] Salmo 3: 2.
[81] Cf. Salmo 4: 7.
[82] Cf. Salmo 34 (35): 11.
[83] Cf. Gênesis 2: 2-3.
[84] Cf. Hebreus 4: 9.
[85] Cf. Filipenses 2: 9.
[86] Cf. 26: 7.
[87] Cf. Salmo 144 (145): 13.
[88] Cf. Gênesis 2: 3.
[89] Cf. Gênesis 2: 3.
[90] Eclesiastes 5: 1.
[91] Cf. Colossenses 3: 2.
[92] Cf. Gênesis 3: 4-5.
[93] Cf. Gênesis 3: 23-24.
[94] Cf. Provérbios 18: 3.
[95] Cf. Gênesis 1: 27.
[96] Cf. Colossenses 3: 2.
[97] Isaías 6: 5.
[98] Cf. Gênesis 18: 27.
[99] Cf. Êxodo 4: 10.
[100] Salmo 41 (42): 3.
[101] Salmo 139(140): 14.
[102] Salmo 29 (30): 8.
[103] Salmo 88 (89): 16-17.
[104] Salmo 142 (143): 7.
[105] Salmo 4: 7.
[106] Salmo 4: 8.
[107] Cf. Salmo 44 (45): 13.
[108] Cf. João 4: 24.
[109] Cf. I Coríntios 8: 7.
[110] Salmo 44 (45): 13.
[111] Cf. I Reis 3: 12.
[112] Eclesiastes 5: 1.
[113] Cf. Mateus 18: 10.
[114] Cf. Provérbios 13: 9.
[115] Cf. Efésios 4: 13.
[116] Cf. Eclesiastes 5: 1.
[117] Cf. Êxodo 16: 15.
[118] Cf. Hebreus 3: 13.
[119] Isaías 7: 9.
[120] Cf. I Coríntios 2:10.
[121] 33: 4.
[122] Cf. Eclesiastes 8: 1.
[123] Salmo 93 (94): 12.
[124] Lucas 2: 52.
[125] Lucas 2: 40.
[126] Sabedoria 9:16-19.
[127] Cf. Colossenses 1: 19.
[128] Cf. Mateus 22: 40.
[129] Cf. Carta IX, 1.
[130] Cf. Cânticos 2: 5.
[131] Aproximação de Deus por negações sucessivas.
[132] Cf. Hierarquia eclesiástica I, 3.
[133] Salmo 5: 4.
[134] Nomes divinos I, 4.
[135] Romanos 11: 36; Hierarquia celeste I, 1.
[136] Hierarquia celeste XII, 3.
[137] Cf. II Coríntios 3: 18; Máximo o Confessor, Centúrias sobre a Teologia I, 97.
[138] Salmo 140 (141): 10 (Ofício de Vésperas).
[139] Salmo 103 (104): 24 (Ofício de Vésperas).
[140] Gênesis 27: 27.
[141] Cânticos 1: 4.
[142] Salmo 144 (145): 1.
[143] Salmo 144 (145): 3.
[144] Salmo 138 (139): 6.
[145] Salmo 101 (102): 12.
[146] Salmo 85 (86): 8.
[147] Gênesis 26: 24.
[148] Cf. Lucas 16: 22.
[149] Cf. Salmo 32 (33): 6.
[150] Cf. Salmo 32 (33): 5.
[151] Isaías 26: 19.
[152] Salmo 77 (78): 25.
[153] João 3: 6.
[154] Cf. Êxodo 16: 35.
[155] Cf. Êxodo 12: 8.
[156] Cf. Êxodo 16: 18-20.
[157] Cf. II Coríntios 3: 18.
[158] Gregório de Nazianze, Discurso XXXVIII, 7.
[159] Ibid.
[160] Ibid.
[161] Cf. Salmo 62 (63): 9.
[162] Salmo 81 (82): 1.
[163] Salmo 49 (50): 1.
[164] Salmo 46 (47): 10.
[165] Cf. Isaías 6: 2.
[166] Cf. Mateus 5: 8.
[167] Cf. Sabedoria 9: 17; Isaías 40: 13.
[168] Cf. II Coríntios 3: 18.
[169] Cf. Êxodo 20: 21.
[170] Cf. Mateus 5: 8.
[171] Cf. Cânticos 1: 3.
[172] Lacuna no texto.
[173] Cf. Cânticos 5: 2.
[174] Cf. Salmo 149: 5.
[175] Lacuna no texto.
[176] Cf. Salmo 139 (140): 14.

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