PROCESSÃO DAS PESSOAS E ATRIBUTOS DIVINOS
Vladimir Lossky
A teologia cristão não conhece divindade abstrata: Deus não pode ser
concebido fora das três Pessoas. Se ousia
e hipóstase são quase sinônimos, isto é para destroncar nossa razão, para nos impedir
de objetivar a essência divina fora das Pessoas e de seu “eterno movimento de
amor”, nas palavras de São Máximo o Confessor. Um Deus concreto, porque a
divindade única é ao mesmo tempo comum às três hipóstases e própria a cada uma
delas: ao Pai, como fonte, ao Filho, enquanto gerado, e ao Espírito, que
procede do Pai.
O termo de “monarquia” do Pai é corrente da grande teologia do século
IV: ele significa que a própria fonte da divindade é pessoal. O Pai é a
divindade, mas, justamente por ser o Pai, ele a confere em sua plenitude às
duas outras Pessoas, e estas extraem sua origem do Pai, princípio único – daí o
termo “monarquia”. A “divindade fonte”, como disse Denis o Areopagita. Com
efeito, é dela que brota e nela se enraíza a divindade idêntica e não dividida,
mas comunicada distintamente, do Filho e do Espírito Santo. A noção de
monarquia anota assim em uma só palavra a unidade e a diferença em Deus, a
partir de um princípio pessoal. O maior teólogo da Trindade, São Gregório de
Nazianze, não pode invocar esse mistério senão por meio de verdadeiros poemas,
o único meio de fazer surgir algo que ultrapassa as palavras: “Eles não estão
divididos em vontade, escreveu ele, eles não estão separados em potências, nem
em nenhum outro atributo. Numa palavra, a divindade não é dividida entre
aqueles que partilham dela”. E: “Em três sóis que se co-penetram, uma só é a
luz”, pois o Verbo e o Espírito são dois raios de um mesmo sol, ou antes “dois
novos sóis”.
Assim é que a própria Trindade é o mistério inicial, o Santo dos
Santos da realidade divina, a própria vida do Deus oculto, do Deus vivo.
Somente a poesia pode evocá-lo, justamente porque ela celebra e não pretende
explicar. Toda existência e todo conhecimento são posteriores à Trindade e
encontram nela seu fundamento. A Trindade não pode ser captada pelo homem. É
ela que capta o homem e nele suscita o louvor. Fora do louvor e da adoração,
fora da relação pessoal da fé, nossa linguagem, ao falar da Trindade, é sempre
falsa. Se Gregório o Teólogo escreve das Três que “elas não estão divididas na
vontade”, é porque não podemos dizer que o Filho tenha sido gerado pela vontade
do Pai: nós não podemos pensar no Pai sem o Filho, ele é o Pai-com-um-Filho, e
é assim por toda a eternidade; não existe ato na Trindade, e até falar de
estado implicaria uma passividade que não tem cabimento. Como diz Gregório de
Nazianze: “Quando olhamos para a divindade, a causa primeira, a monarquia, o Um
nos aparece; e quando olhamos para aqueles em quem está a divindade e que
procedem do princípio primeiro na mesma eternidade e na mesma glória, então
adoramos os Três”.
A monarquia do Pai não implicaria uma espécie de subordinação do Filho
e do Espírito? Não, porque um princípio não pode ser perfeito se não for um
princípio de uma realidade que o iguale. Os Padres gregos falavam
propositadamente do “Pai-causa”, mas este não passa de um termo analógico do
qual o uso purificador do apofatismo nos permite avaliar a deficiência: em
nossas experiências a causa é superior ao efeito, mas em Deus, ao contrário, a
causa, enquanto realização do amor pessoal, não pode produzir efeitos
inferiores: ela os cria iguais em dignidade, sendo ela também a causa de sua
igualdade. Em Deus, de resto, não existe extraposição da causa e do efeito, mas
causalidade no interior de uma mesma natureza. A causalidade aqui não suscita
um efeito, como no mundo material, nem um efeito que seja reabsorvido na sua
causa, como nas hierarquias ontológicas da Índia e do neoplatonismo, mas
permanece como a imagem impotente de uma comunhão inexprimível. O Pai “não
seria o Princípio senão de um modo mesquinho e sem dignidade, se ele não fosse
o rpincípio da divindade e da bondade que adoramos no Filho e no Espírito
Santo: em um, como Filho e Verbo, no outro como Espírito que procede sem
separação”, nos diz Gregório de Nazianze. O Pai não seria uma verdadeira pessoa
se ele não fosse “pro”, ou seja, inteiramente voltado para as demais Pessoas,
inteiramente comunicado a elas, a quem ele torna Pessoas, e portanto iguais,
pela integralidade de seu amor.
A Trindade, portanto, não é o resultado de um processo, mas um dado
primordial. Ela não tem princípio senão nela, e nada acima dela, pois nada lhe
é superior. A arché, a monarquia, não
se manifesta senão na, para e pela Trindade, na relação das Três Pessoas, numa
relação sempre ternária, à exclusão de toda oposição, de toda díade.
Já Santo Atanásio afirmava que a geração do Filho era uma obra de
natureza. E São João Damasceno, no século VIII, distinguia a obra de natureza,
geração e processão, da obra da vontade, que é a criação do mundo. A obra de
natureza, de resto, não é uma obra em sentido próprio, mas o próprio ser de
Deus: pois Deus é, por sua natureza, Pai, Filho e Espírito Santo. Deus
não tem necessidade de revelar a si mesmo, por uma espécie de tomada de
consciência do Pai no Filho e no Espírito, como acreditava Boulgakov. A
revelação não é pensável senão em relação ao outro-senão-Deus, ou seja, a
criação. Tanto quanto não existe na existência trinitária o resultado de um ato
de vontade, é também impossível ver aí i processo de uma necessidade interna.
É preciso portanto distinguir cuidadosamente a causalidade do Pai que
coloca as três hipóstases em sua diversidade absoluta e sem que seja possível
estabelecer entre elas uma ordem qualquer, sua revelação ou manifestação. O
Espírito, por intermédio do Filho, nos conduz ao Pai no qual descobrimos a
unidade dos Três. O Pai, segundo a terminologia de São Basílio, se revela pelo
Filho no Espírito. Aqui se afirma um processo, uma ordem da qual resulta a
ordem dos três Nomes: Pai, Filho e Espírito Santo.
Da mesma forma todos os Nomes divinos, que nos comunicam a vida comum
aos Três, nos vêm do Pai por intermédio do Filho, no Espírito Santo. O Pai é a
fonte, o Filho a manifestação, o Espírito é força que manifesta. Assim é que o
Pai é a fonte da Sabedoria, o Filho é a própria Sabedoria e o Espírito e força
que nos traz a Sabedoria. Ou ainda, o Pai é a fonte do amor, o Filho é o amor
que se revela e o Espírito o amor realizado em nós. Ou, segundo a admirável
fórmula do Metropolita Filarestes, o Pai é o amor crucificante, o Filho o amor
crucificado e o Espírito o amor triunfante. Os Nomes divinos são o escoamento
da vida divina da qual a fonte é o Pai, que nos mostra o Filho, e que nos é
comunicada pelo Espírito.
A teologia bizantina chama de “energias” a esses Nomes divinos: a
palavra convém em especial a essa irradiação eterna da natureza divina: melhor
do que os atributos da teologia escolar, ela evoca para nós essas forças vivas,
estas irrupções, esses transbordamentos da glória divina. Pois a teoria das
energias incriadas é profundamente bíblica: a Bíblia evoca com frequência a
glória flamejante e tonitruante que permite conhecer a Deus fora dele próprio,
dissimulando-o debaixo de uma profusão de luz. São Cirilo de Alexandria fala do
esplendor da essência divina que se manifesta. Os termos luminosos, que nada
têm aqui de metafóricos mas que exprimem a experiência da mais alta
contemplação, retornam sem cessar para designar o resplendor de uma beleza
ofuscante. A glória divina é multiforme. “Jesus fez ainda muitas coisas; se as
escrevêssemos uma a uma, o mundo inteiro, penso eu, não poderia conter os
livros em que estivessem escritas[1]”.
Da mesma forma, o mundo inteiro não é capaz de conter os inumeráveis
nomes da glória. Dunameis, diz o
Pseudo-Denis: ele tanto fala no singular como no plural. O número aqui não tem
importância. Nem um, nem muitos, mas a infinidade de nomes divinos. Deus é
Sabedoria, Amor, Justiça... não porque ele queira, mas porque ele é assim. Aqui
não cabem disfarces: Deus mostra o que ele é. Não podemos conhecer até o fundo
a essência divina, mas conhecemos essa irradiação de glória que é
verdadeiramente Deus: pois se por um lado chamamos de essência a natureza
divina na medida em que ela é transcendência inesgotável, e se por outro a
chamamos de energia na medida em que ela se manifesta gloriosamente, ela
permanece sempre sendo a mesma natureza. “Pai, glorifica-me com esta glória que
eu possuía antes que o mundo fosse[2]”.
A manifestação da energia não depende, portanto, da criação: ela é a irradiação
de sempre, que absolutamente não condiciona a existência ou a inexistência do
mundo. É certo que a descobrimos na criatura, pois “desde a criação do mundo,
as obras de Deus tornam visíveis ao intelecto seus atributos invisíveis[3]”:
a criatura é marcada com o selo da divindade. Mas essa presença divina é uma
glória permanente, eterna, uma manifestação não contingente da essência, e,
como tal, incognoscível. É a luz que por toda a eternidade banha a plenitude em
si perfeita da vida trinitária.
A IMAGEM E A SEMELHANÇA
Vladimir Lossky
A filosofia
antiga conhecia a condição central do homem e a exprimia por meio da noção de “microcosmo”.
Para os estoicos em particular, se o homem é superior ao cosmos é porque ele o
resume e lhe dá sentido: pois o cosmos é um grande homem, e todo homem é um
pequeno cosmo.
A ideia de
microcosmo foi retomada pelos Padres, mas com uma vigorosa superação de todo
imanentismo. “Não existe nada de notável, disse São Gregório de Nissa, em que o
homem seja a imagem e a semelhança do universo: pois a terra passa, o céu muda,
e todo o seu conteúdo é tão efêmero como o continente”. Diante das magias
cósmicas da antiguidade decadente, um mero broto confirma a liberdade: “Acreditando
exaltar a natureza humana com esse nome grandiloquente, acrescenta Gregório,
não notamos que o homem é gratificado ao mesmo tempo com as qualidades dos
mosquitos e dos brotos”. A verdadeira grandeza do homem não está em seu
incontestável parentesco com o universo, mas em sua participação na plenitude
divina, no mistério que há nele da imagem e da semelhança. “Por minha qualidade
de terra, escreve Gregório de Nazianze, estou ligado à vida daqui de baixo; mas
como também sou uma parcela divina, trago em meu seio o desejo da vida futura”.
O homem é um
ser pessoal como Deus, não uma natureza cega. Este é o caráter da imagem divina
nele. Sua relação com o universo se acha de certo modo invertida em relação às
concepções antigas: ao invés de se “desindividualizar” para se “cosmiquizar” e
assim se fundir num divino impessoal, sua relação absoluta de pessoa com um
Deus pessoal deve permitir-lhe “pessoalizar” o mundo. O homem já não se salva
através do universo, mas o universo através do homem. Pois o homem é a
hipóstase do cosmo como um todo, o qual participa de sua natureza. E a terra
encontra s eu sentido pessoal e hipostático no homem. O homem, para o universo,
é a esperança de receber a graça e de se unir a Deus, mas também o perigo do
fracasso e a decadência; “A criação aguarda ansiosamente essa revelação dos filhos
de Deus, escreve São Paulo; ela foi submetida às vaidade, não por sua vontade,
mas por causa daquele que a sujeitou, mas com a esperança de que também a
criação será liberta da escravidão da corrupção para participar da liberdade
gloriosa dos filhos de Deus[1]”.
Submetida à desordem e à morte pelo homem, a criação aguarda também do homem,
tornado filho de Deus pela graça, sua libertação.
O mundo
acompanha o homem, porque ele é como sua natureza: a antroposfera, podemos
dizer. E essa ligação antropocósmica se realiza ao mesmo tempo em que se
realiza a ligação da imagem humana com Deus, seu protótipo: pois a pessoa não
pode, sem se destruir, pretender possuir sua natureza, sua qualidade notória de
microcosmo no mundo, mas ao contrário ela encontra sua plenitude quando ele a
entrega, quando ela assume o universo para oferecê-lo a Deus.
Assim é que
nós somos responsáveis pelo mundo. Somos a palavra, o logos, através do qual
ele fala, e ele só depende de nós para blasfemar ou orar. Somente através de
nós o cosmos, como o corpo do qual ele é um prolongamento, pode receber a
graça. Pois não somente a alma, mas o próprio corpo do homem foi criado à
imagem de Deus. “Juntos foram criados à imagem de Deus”, escreveu Santo
Gregório Palamas.
Portanto, a
imagem não pode ser objetivada, “naturalizada”, poderíamos dizer, sendo
atribuída a alguma parte do ser animal. Ser à imagem de Deus, afirmam os Padres
em última instância, equivale a ser um se pessoal, ou seja, um ser livre,
responsável. Mas por que, podemos perguntar, terá Deus criado o homem como um
ser livre e responsável? Justamente porque ele desejava chamá-lo para uma
vocação suprema: a deificação, ou seja, tornar-se, pela graça, e num impulso
tão infinito quanto Deus, aquilo que Deus é por sua própria natureza. Ou seja,
este chamado exige uma livre resposta, pois Deus deseja que este impulso seja
um impulso de amor. A união sem amor seria uma coisa automática, e o amor
implica a liberdade, a possibilidade da escolha e da recusa. Claro que existe
um amor não pessoal, um movimento cego do desejo, servo de uma força natural. Mas
este não é o amor do home ou do anjo por Deus: caso contrário, seríamos não
mais do que animais ligados a Deus por algum tipo de obscura atração sexual. Para
que as coisas aconteçam como devem nesse amor a Deus, é preciso admitir que
elas possam ser ao contrário, é preciso admitir a possibilidade da revolta.
Somente a resistência da liberdade dá sentido à adesão. O amor que Deus exige
não consiste numa imantação física, mas numa tensão viva entre contrários. Essa
liberdade provém de Deus: ela é o selo de nossa participação divina, a obra
prima do Criador.
Um ser pessoal
é capaz de amar a qualquer um mais do que sua própria natureza, mais do que sua
própria vida. A pessoa, vale dizer, a imagem de Deus no homem, consiste, portanto,
na liberdade do homem em relação à sua natureza. “o torna livre da necessidade
e o livra de estar submetido à dominação da natureza, podendo assim determinar
livremente a si próprio”, disse São Gregório de Nissa. Normalmente o homem age
sob impulsos naturais: ele é condicionado por seu temperamento, seu caráter,
sua hereditariedade, o ambiente cósmico ou psicossocial, sua própria historicidade.
Mas a verdade do home está além de todo
condicionamento, e sua dignidade está em poder se libertar de sua natureza, não
para consumi-la ou abandoná-la a si mesma como os sábios antigos ou orientais,
mas para transfigurá-la em Deus.
O objetivo da
liberdade, explica São Gregário de Nazianze, consiste em que o bem pertença a
quem o escolheu. Deus não quer ser o possuidor do bem que ele mesmo criou: ele
espera do homem mais do que uma participação cega, puramente natural. Ele quer
que o homem assuma conscientemente sua natureza, para possuí-la livremente como
boa, para reconhecer com gratidão, na vida como no universo, os dons do amor
divino.
Os seres
pessoais constituem o apogeu da criação, por que eles podem se tornar Deus por
sua livre escolha e pela graça. Com ele a onipotência divina suscita uma “intervenção”
radical, uma novidade integral: Deus criou seres que, como ele, podem –
lembremo-nos do Conselho divino do Gênesis – decidir e escolher. Mas esses
seres podem se decidir contra Deus: não é este, para ele, um risco de destruir
sua criação? Este risco, devemos responder, se inscreve paradoxalmente no
cúmulo da onipotência. Para se “inovar” verdadeiramente, a criação suscita o “outro”,
ou seja, um ser pessoal capaz de recusar aquele que o criou. O ápice da
onipotência se apresenta assim virtualmente como uma impotência de Deus, como
um risco divino. A pessoa não é a mais alta criação de Deus senão na medida em
que Deus introduz nela a possibilidade do amor e, portanto, de sua recusa. Deus
arrisca a ruína eterna de sua mais alta criação, exatamente para que ela seja a
mais alta. O paradoxo é irredutível: em sua própria grandeza, que é poder se
tornar Deus, o homem é falível – mas sem falibilidade, não há grandeza. É por
isso, afirmam os Padres, que o homem deve passar pela prova, a fim de tomar
consciência de sua liberdade, do livre amor que Deus espera dele.
“Deus criou o
homem como um animal que recebeu a ordem de se tornar Deus”, diz São Basílio
gravemente, referindo-se a palavras de São Gregório de Nazianze. Para executar
esta ordem, e preciso poder recusá-la. Deus se torna impotente diante da
liberdade humana: ele não pode violá-la, por que ela procede de sua
onipotência. É verdade que o homem foi criado pela simples vontade de Deus, mas
ele não pode ser deificado apenas por ela: uma só vontade bastou para a
criação, mas são necessárias duas para a deificação. Uma só vontade pode
suscitar a imagem, mas são precisas duas para tornar esta imagem semelhante. O amor
de Deus pelo homem é tão grande que ele não pode constrangê-lo: pois não existe
amor sem respeito. A vontade divina se submeterá sempre às hesitações, aos
desvios, às revoltas da vontade humana para conduzi-lo a um livre
consentimento: esta é a providência divina, e a imagem clássica do pedagogo
parecerá frágil a quem quer que tenha pressentido a Deus como um mendicante do
amor, esperando à porta da alma sem jamais ousar forçá-la.
Extraído
de Théologie dogmatique,
conferências
orais registradas,
transcritas
e preparadas por Olivier Clément.
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