1.
“Deus se fez homem para que o homem pudesse se
tornar deus”. Estas poderosas palavras, que encontramos pela primeira vez em
Santo Irineu, foram retomadas pelos santos Atanásio, Gregório de Nazianze e
Gregório de Nissa. Os Padres e os teólogos ortodoxos as repetiram de século em
século, com a mesma insistência, querendo exprimir com essa frase lapidar a
própria essência do cristianismo: uma descida inefável de Deus até os últimos
limites de nossa decadência humana, até a morte – descida de Deus que abriu
para os homens uma via de ascensão, que abriu os horizontes ilimitados da união
dos seres criados com a Divindade. A via descendente (katabasis) da Pessoa divina de Cristo tornou possível às pessoas
humanas uma via ascendente, nossa anabasis,
no Espírito Santo. Foi preciso que tivesse lugar a humilhação voluntária, a kenosis redentora do Filho de Deus, para
que os homens decaídos pudessem realizar sua vocação, a da deificação (theosis) do ser criado pela graça
incriada. Assim a obra redentora de Cristo – ou antes, de um modo mais geral, a
Encarnação do Verbo – parece estar aqui em relação direta com o objetivo último
proposto às criaturas, a saber, a união com Deus. Se esta união se realiza na
Pessoa Divina do Filho, Deus feito homem, é preciso que ela se realize em cada
pessoa humana, é preciso que cada um de nós, por sua vez, se torne deus pela
graça ou pela participação na natureza divina, segundo a expressão de São Pedro[1].
Uma vez que a Encarnação do Verbo está tão estreitamente ligada à
nossa deificação final no pensamento dos Padres, poderíamos nos perguntar se
ela teria existido caso Adão não tivesse pecado. Esta questão, que se faz às
vezes, nos parece ociosa e irreal. Com efeito, nós não conhecemos outra condição
humana senão aquela que se seguiu ao pecado original, condição na qual nossa
deificação – o cumprimento do plano divino – se torna impossível sem a
Encarnação do Filho que se reveste necessariamente de um caráter de redenção. O
Filho de Deus desceu dos céus para realizar a obra da nossa salvação, para nos
libertar do cativeiro do demônio, para destruir a dominação do pecado em nossa
natureza, para arrasar a morte, tributo do pecado. A Paixão, a Morte e a
Ressurreição de Cristo, por meio das quais se realizou nossa obra redentora,
ocupam assim um lugar central na economia divina em relação ao mundo decaído.
Em virtude disso, é perfeitamente compreensível que o dogma da redenção receba
uma importância capital no pensamento teológico da Igreja.
E no entanto, quando tentamos tratar à parte o dogma da redenção
isolando-o do conjunto do ensinamento cristão, corremos o risco de limitar a
tradição interpretando-o exclusivamente em função da obra do Redentor. O
pensamento teológico evolui a partir daí em três termos: o pecado original, sua
reparação pela cruz e a apropriação do efeito salutar da obra de Cristo para os
cristãos. Dentro dessas perspectivas estreitas de uma teologia dominada pela
ideia de redenção, a sentença patrística – “Deus se fez homem, para que o homem
possa se tornar deus” – parece estranha e insólita. Esquece-se a união com Deus
ao se preocupar unicamente com a própria salvação, ou antes, a união com Deus
só é vista sob seu aspecto negativo, que levou à nossa miséria atual.
2.
Foi Santo Anselmo de Canterbury, no século XI,
com seu tratado Cur Deus homo (“Porque
Deus [se fez] homem”), quem primeiro tentou, sem dúvida, desenvolver à parte o
dogma da redenção separando-o de todo o resto. Os horizontes cristãos se
achavam limitados pelo drama que se desenrolava entre Deus, infinitamente
ofendido pelo pecado, e o homem, incapaz de satisfazer às exigências da justiça
vindicativa. Este drama se resolvia com a morte de Cristo, Filho de Deus
tornado homem para nos substituir e pagar nossa dívida com a justiça divina. O
que resultava da economia do Espírito Santo? Seu papel se reduzia ao de um
auxiliar da redenção, permitindo-nos usufruir do mérito expiatório de Cristo. A
perspectiva final de nossa união com Deus se achava excluída, ou ao menos
oculta aos nossos olhos pelas abóbodas austeras de um pensamento teológico
construído a partir das noções de nossa falta original e de sua reparação. Com
o preço de nossa redenção pago com a morte de Cristo, a ressurreição e a
ascensão não representavam mais do que um fim glorioso de sua obra, uma espécie
de apoteose, sem nenhuma relação direta com nosso destino. Essa teologia
redencionista, que coloca toda a ênfase sobre a Paixão, parece se desinteressar
do triunfo de Cristo sobre a morte. a própria obra do Cristo Redentor, sobre a
qual ela se pretende confirmada, aparece truncada, empobrecida, reduzida a uma
mudança de atitude divina em relação aos homens decaídos, sem nenhuma relação
com a própria natureza da humanidade.
Nós encontramos uma concepção completamente diferente da obra
redentora de Cristo no pensamento de um Santo Atanásio, por exemplo. Cristo,
diz ele, tendo libertado da morte o templo de seu corpo, ofereceu um sacrifício
para todos os homens, a fim de torná-los inocentes e livres da falta original
de um lado, e, de outro, a fim de se mostrar vitorioso sobre a morte e fazer da
incorruptibilidade de seu próprio corpo as primícias da ressurreição geral.
Aqui a imagem jurídica da Redenção é completada por uma outra – uma imagem
física, ou melhor, biológica: a do triunfo da vida sobre a morte, da
incorruptibilidade triunfante na natureza corrompida pelo pecado.
Em geral, seja entre os Padres, seja nas Escrituras, encontramos
muitas imagens para exprimir o mistério de nossa salvação realizada por Cristo.
Assim, no Evangelho, o Bom Pastor é uma imagem “bucólica” da obra de Cristo; o
homem forte, vencido por alguém mais forte que lhe rouba as armas e destrói seu
domínio, é uma imagem guerreira que retorna com frequência entre os Padres e na
liturgia, como o Cristo vitorioso sobre Satanás, destruindo as portas do
inferno e fazendo da cruz sua bandeira. Uma imagem médica, a da natureza
enferma curada pelo antídoto da salvação; uma imagem que podemos chamar de
“diplomática”, a do truque divino que desarma a astúcia do demônio, etc. Enfim,
a imagem empregada com mais frequência, trazida por São Paulo do Antigo
Testamento, é emprestada ao domínio das relações jurídicas. Tomada em seu
sentido particular, a redenção é uma imagem jurídica da obra de Cristo, ao lado
de muitas outras imagens possíveis. Ao empregarmos o termo “redenção”, como o
fazemos atualmente, no sentido genérico que designa a obra salutar de Cristo em
toda a sua extensão, não devemos esquecer que esta expressão jurídica tem um
caráter figurado: Cristo é o Redentor do mesmo modo como um guerreiro que vence
a morte, um sacrificador perfeito.
O erro de Anselmo não constituiu apenas em desenvolver uma teoria
jurídica da Redenção, mas ainda no fato de que ele pretendeu enxergar nas
relações jurídicas implicadas no termo “redenção” uma expressão adequada do
mistério de nossa salvação realizada por Cristo. Rejeitando as demais
expressões desse mistério como sendo imagens inadequadas – quasi quaedam picturae – ele acreditou ter encontrado na imagem
jurídica, a da redenção, o próprio corpo da verdade, sua “solidez racional” – veritatis rationabilis soliditas – uma
necessidade que provasse que Deus deveria morrer para nossa salvação.
A impossibilidade de expressar racionalmente a necessidade da obra
redentora explorando o conteúdo jurídico do termo “redenção” foi demonstrada
por São Gregório de Nazianze numa magistral redução ao absurdo: “É preciso que
examinemos um problema e um dogma que muitas vezes foram deixados de lado, mas
que para mim nem por isso deixam de exigir um estudo aprofundado. O sangue
derramado por nós, sangue preciosíssimo e glorioso de Deus, este sangue do
Sacrificador e do Sacrifício, por que foi ele derramando e a quem foi ele
oferecido? Estávamos sob o domínio do demônio, vendidos ao pecado, depois de
havermos adquirido a corrupção com nossa concupiscência. Se o preço de nosso
resgate foi pago àquele que nos mantinha sob seu poder, eu me pergunto: a quem,
e por que motivo foi oferecido tal preço? Se ele foi oferecido ao demônio, é
ultrajante! O assaltante recebe o preço da redenção! E não apenas ele o recebe
de Deus, como ele recebe o próprio Deus. Por sua violência, ele exigiu um preço
tão desmesurado que teria sido mais justo comutar nossa pena. Mas se esse preço
foi oferecido ao Pai, podemos nos perguntar acima de tudo, por que razão? Não
foi o Pai que nos manteve cativos. Assim, por que seria o sangue do Filho Único
agradável ao Pai, que não quis aceitar Isaac oferecido em holocausto por
Abrahão, substituindo o sacrifício humano pelo de um carneiro? Não é evidente
que o Pai aceitou o sacrifício, não por tê-lo exigido, nem por necessitar dele,
mas apenas pela economia? Era preciso que o homem fosse santificado pela
humanidade de Deus, era preciso que ele próprio nos liberasse triunfando sobre
o tirano por sua própria força, que ele nos chamasse para ele por intermédio de
seu Filho que é o Mediador, o qual a tudo realizou em honra do Pai, a quem ele
obedeceu em tudo... Que o demais seja venerado pelo silêncio...[2]”.
O que ressalta de mais evidente no texto citado acima, é que para São
Gregório de Nazianze a noção fundamental da redenção, longe de implicar a ideia
de uma necessidade imposta pela justiça vindicativa, se apresenta como a
expressão da economia cujo mistério não pode ser explicitado de modo adequado
por uma série de conceitos racionais. “Foi preciso, diz ele pouco adiante, que
Deus se encarnasse e morresse para que nós pudéssemos viver”; e: “Nada pode
igualar o milagre de minha salvação: algumas gotas de sangue reconstituíram a
totalidade do universo”.
Depois dos horizontes estreitos de uma teologia exclusivamente
jurídica, nós encontramos entre os Padres uma noção extremamente rica da
redenção que inclui a vitória sobre a morte, as primícias da ressurreição
geral, a libertação da natureza cativa do demônio, e não apenas a justificação,
mas também a restauração da criação em Cristo. Aqui a Paixão não pode ser
separada da Ressurreição – o corpo glorioso de Cristo sentado à direita do Pai
– e ambas da vida dos cristãos aqui na terra. E no entanto, se a redenção
aparece como o momento central da Encarnação, ou seja, da economia do Filho em
relação ao mundo decaído, ela nem por isso deixa de ser um momento de uma
economia mais ampla da Santíssima Trindade em relação ao mundo criado ex nihilo e chamado a realizar
livremente a deificação, a união com Deus, “a fim de que Deus se torne tudo em
todas as coisas[3]”.
O pensamento dos Padres jamais fecha essa perspectiva final. Tendo a redenção
como objetivo imediato nossa salvação, esta se apresentará, em sua realização
última, no século futuro, como nossa união com Deus, como a deificação dos
seres criados resgatados por Cristo. Mas essa realização última supõe a
economia de outra Pessoa divina, enviada ao mundo depois do Filho.
A obra do Espírito Santo é inseparável da do Filho. Para podermos
dizer com os Padres que “Deus se fez homem para que o homem possa se tornar
deus”, não basta suprir as falhas e insuficiências da teoria de Anselmo
remetendo a uma noção mais rica da redenção, própria dos Padres. É preciso
acima de tudo reencontrar o verdadeiro lugar da economia do Espírito Santo,
distinta mas não separada da do Verbo encarnado. Se o pensamento de Anselmo
pode se deter sobre a obra redentora de Cristo, isolando-a do resto do
ensinamento cristão e estreitando os horizontes da tradição, é justamente
porque nessa época o Ocidente já havia perdido a verdadeira noção da Pessoa do
Espírito Santo, relegando-o ao segundo plano e fazendo dele uma espécie de
auxiliar ou vigário do Filho. Deixaremos de lado essa questão, porque já
analisamos o dogma da “processão ab
utroque” e suas consequências para toda a teologia ocidental. Vamos nos
limitar a uma tarefa positiva, a de mostrar porque a noção de nossa deificação
final não pode ser expressa unicamente a partir de uma base cristológica, e
porque ela necessita de um desenvolvimento pneumatológico.
3.
No Ocidente, o pensamento teológico de nossos
dias faz um grande esforço de retorno às nossas fontes patrísticas dos
primeiros séculos – em especial aos Padres gregos – que se tenta reintegrar
numa síntese católica. Não apenas a teologia pós tridentina, mas também a
escolástica medieval, malgrado sua riqueza filosófica, aparecem sempre hoje em
dia como teologicamente insuficientes. Há um esforço para retomar o valor da
noção da Igreja como corpo de Cristo, como criatura nova recapitulada por
Cristo, como uma natureza ou um corpo tendo Cristo crucificado como Chefe.
Como o primeiro Adão falhou em sua vocação – a de alcançar livremente
a união com Deus – foi o segundo Adão, o Verbo divino, que realizou essa união
das duas naturezas em sua Pessoa ao se encarnar. Integrando-se à realidade do
mundo decaído, ele esgotou o poder do pecado em nossa natureza e, com sua
morte, que marcou o grau extremo dessa integração à nossa decadência, ele
triunfou sobre a morte e a corrupção. No batismo, nós morremos com Cristo,
simbolicamente, para ressuscitar realmente nele na vida nova de seu corpo
vitorioso, para nos tornarmos membros deste corpo único, que existiu concreta e
historicamente sobre a terra, mas que tem sua Cabeça nos céus, na eternidade,
no seio da Santíssima Trindade. Sacrificador e Sacrifício ao mesmo tempo,
Cristo oferece sobre o altar celeste este sacrifício único que se realiza aqui
em baixo, sobre os inúmeros altares terrestres, no mistério eucarístico. Desta
forma não existe ruptura entre o invisível e o visível, entre o céu e a terra,
entre o Chefe que se senta à direita do Pai e a Igreja, seu corpo, no qual
corre sem cessar seu sangue precioso.
São Leão o Grande disse: “Aquilo que era visível em nosso Redentor
passou agora para os sacramentos”. Esta concepção da unidade dos cristãos
formando o corpo único de Cristo renasce um pouco neste momento por todo o
Ocidente. É um pensamento sobretudo litúrgico e sacramental que coloca em
relevo o caráter orgânico da Igreja, sob o aspecto de nossa unidade no Cristo
total. É inútil sublinhar toda a importância dessa teologia do corpo de Cristo
que recupera, sobre um novo plano, as riquezas da tradição patrística. O que
importa para o presente é o fato de que desta perspectiva a doutrina da
redenção se abre de novo a uma Cristologia e uma eclesiologia mais amplas, nas
quais a questão de nossa deificação, de nossa união com Deus, pode outra vez
ter seu lugar.
4.
Mais uma vez podemos dizer com os Padres: “Deus
se tornou homem, para que o homem possa se tornar deus”. Mas quando tentamos
interpretar estas palavras permanecendo sobre uma base unicamente cristológica
e sacramental, na qual o papel do Espírito Santo é o de um agente de ligação entre
o Chefe celeste da Igreja e seus membros, caímos em graves dificuldades e em
questões insolúveis.
Nessa concepção de Igreja como Corpo de Cristo, o Cristo total,
contendo em si os seres humanos, membros da Igreja (concepção que, de resto,
aceitamos plenamente), nesse totalitarismo cristão, podemos nós salvaguardar a
noção das pessoas humanas, distintas entre si e, sobretudo, distintas da Pessoa
única de Cristo que parece se identificar aqui com a pessoa da Igreja? Não
estamos nos arriscando a perder a liberdade pessoal e, depois de termos sido
salvos do determinismo do pecado, a cair numa espécie de determinismo
sacramental, no qual um processo orgânico de salvação que se realiza na
coletividade da Igreja tende a suprimir o encontro pessoal com Deus? Em que
sentido somos nós todos um só corpo em Cristo, e em que outro sentido não o
somos nem podemos sê-lo, sem cessar de existir como pessoas ou hipóstases
humanas, das quais cada uma é chamada a realizar em si a união com Deus? Pois,
ao que parece, existem tantas uniões com Deus quantas pessoas humanas, supondo
cada qual uma relação absolutamente única com a Divindade; existem tantas
santidades possíveis nos céus quanto destinos pessoais sobre a terra.
Quando queremos falar de pessoas humanas em relação com a questão do
corpo de Cristo do qual somos membros, é preciso renunciar resolutamente ao
sentido da palavra “pessoa” –própria da sociologia e da maior parte dos
filósofos – para buscar a regra, o “cânon” de nosso pensamento mais elevado, na
noção de pessoa ou hipóstase, tal como ela se apresenta na teologia trinitária.
Este dogma que coloca nosso espírito diante da antinomia entre a identidade
absoluta e a diversidade não menos absoluta, se exprime por uma distinção entre
a “natureza” e as “pessoas” ou “hipóstases”.
Cada Pessoa existe aqui, não pela exclusão das outras, não pela
oposição àquilo que não é “eu”, mas (para falarmos numa linguagem psicológica
que é bastante inapropriada quando se trata da Trindade) por uma recusa em
possuir a natureza para si; vale dizer que a existência pessoal coloca uma
relação com o outro, uma Pessoa existe para a outra: O Logos em pros ton theon[4],
diz o Prólogo de São João. Em poucas palavras, diremos que a Pessoa não pode
ser plenamente Pessoa senão na medida em que não haja nada que ela queira
possuir para si só à exclusão das outras Pessoas, ou seja, apenas na medida em
que ela possui uma natureza comum com as outras Pessoas. Somente então intervém
em toda sua pureza a distinção entre as Pessoas e a natureza: de outro modo
estaremos em presença de indivíduos partilhando entre si a natureza. Mas não
existe nenhuma partilha, nenhuma divisão da natureza Una entre as três Pessoas
da Trindade: as Hipóstases não são três partes de um todos, da natureza Una,
mas cada uma compreende em si a natureza por inteiro, cada uma é o todo, porque
nenhuma possui nada por si: mesmo a vontade é comum às Três.
Se agora nos voltarmos para os seres humanos, criados à imagem de
Deus, poderemos encontrar, a partir do dogma trinitário, uma natureza comum
existindo em muitas hipóstases criadas. Porém, na realidade do mundo decaído,
os seres humanos tendem a existir por exclusão mútua, cada qual se afirmando
por oposição aos demais, ou seja, dividindo, despedaçando a unidade da
natureza, cada um possuindo para si uma parte da natureza que sua vontade opõe
a tudo o que não é “ele”. Sob este aspecto, o que costumamos chamar de natureza
humana não constitui verdadeiramente uma pessoa, mas um indivíduo, ou seja, uma
parte da natureza comum, mais ou menos semelhante às outras partes ou
indivíduos de que se compõe a humanidade. Mas, enquanto pessoa no sentido
verdadeiro, no sentido teológico da palavra, um ser humano não é limitado por
sua natureza individual; ele não é apenas uma parte do todo, mas cada qual
contém virtualmente o todo, o conjunto do cosmo terrestre, do qual ele é a
hipóstase; assim, cada um constitui o aspecto único, absolutamente original, da
natureza comum a todos. O mistério de uma pessoa humana, o que a torna
absolutamente única, insubstituível, não pode ser captado por um conceito
racional, definido em palavras. Todas as nossas definições se refeririam
inevitavelmente a um indivíduo, mais ou menos semelhante aos demais, e a última
palavra para designar a pessoa em sua diversidade absoluta sempre faltará. As
pessoas enquanto tais não são partes da natureza; mesmo estando ligadas a
individuações da natureza na realidade criada, elas contêm em si virtualmente,
cada qual à sua maneira, o todo, o conjunto da natureza. Em nossa experiência habitual,
não conhecemos nem a verdadeira diversidade pessoal, nem a verdadeira unidade
de natureza: o que vemos são indivíduos humanos de um lado e coletividades
humanas de outro, em perpétuo conflito.
Encontramos na Igreja a unidade da natureza realizando-se
perpetuamente, pois a Igreja é algo mais do que uma coletividade: São Paulo a
chama de “corpo”. É a natureza humana cuja unidade não é mais representada pelo
velho Adão, chefe do gênero humano em sua extensão como indivíduos; essa
natureza resgatada, renovada, é reunida e recapitulada na Hipóstase, na Pessoa
divina do Filho de Deus tornado homem. Se, nesta nova realidade, nossa
naturezas individualizadas se libertam de suas limitações – “helenos ou citas,
libertos ou escravos...[5]”
–, se o indivíduo que existe por oposição àquilo que não é “eu” é chamado a
desaparecer para se tornar membro de um corpo único, isso não quer dizer que as
pessoas ou hipóstases humanas sejam suprimidas. Bem ao contrário: é somente
então que elas podem realizar sua verdadeira diversidade. Não sendo partes da
natureza comum como o é o indivíduo, as pessoas não se confundem entre si
devido à unidade natural que se realiza, em devir, na Igreja. Elas não se
tornam, tampouco, parcelas da Pessoa de Cristo, não se veem contidas nela como
numa “super-pessoa”, pois isto seria contrário à própria noção de pessoa. Assim
é que nos tornamos um em Cristo pela nossa natureza, na medida em que ele é o
Chefe de nossa natureza, que forma nele um só Corpo.
Uma conclusão se impõe: se nossas naturezas individuais se incorporam
na humanidade gloriosa de Cristo, entrando na unidade de seu Corpo pelo
batismo, conformando-se com a sua morte e ressurreição, nossas pessoas, para
que cada um possa realizar livremente sua união com a Divindade, devem ser confirmadas
em sua dignidade pessoal pelo Espírito Santo: assim sendo, o sacramento do
batismo, aquele da unidade em Cristo, deve ser completado pelo sacramento do
Crisma, o da diversidade no Espírito Santo.
5.
O mistério de nossa redenção desemboca naquilo
que os Padres chamam de recapitulação de nossa natureza por Cristo e em Cristo.
Este é o fundamento cristológico da Igreja, exprimindo-se por excelência na
vida sacramental, com seu caráter de objetividade absoluto. Mas se quisermos
salvaguardar outro aspecto da Igreja, com um caráter de subjetividade não menos
absoluto, será preciso fundamentá-lo sobre a economia de outra Pessoa divina,
independente em sua origem da do Filho encarnado. Senão corremos o risco de
despersonalizar a Igreja, submetendo a liberdade de suas hipóstases humanas a
uma espécie de determinismo sacramental. Ao contrário, se quisermos insistir
sobre o lado subjetivo, perderemos, com a noção de Corpo de Cristo, o terreno “lógico”
da Verdade e cairemos nas divagações da fé “individual”.
Queremos com isso dizer que a Encarnação e a obra redentora de Cristo,
tomadas à parte da economia do Espírito Santo, não podem justificar a multiplicidade
pessoal da Igreja, tão necessária quanto sua unidade natural em Cristo. O mistério
do Pentecostes é tão importante quanto o da Redenção. A obra redentora de Cristo
é uma condição indispensável da obra deificadora do Espírito Santo. É o que o
próprio Senhor afirma ao dizer: “Eu vim lançar fogo sobre a terra, e como
gostaria que já estivesse aceso![6]”.Mas,
por outro lado, podemos dizer que a obra do Espírito Santo está, por sua vez,
submetida à do Filho, pois é recebendo o Espírito que as pessoas humanas podem
em plena consciência dar testemunho da divindade de Cristo. O Filho se tornou
semelhante a nós pela Encarnação: nós nos tornamos semelhantes a ele pela
deificação, participando da divindade no Espírito Santo, que a comunica a cada
pessoa humana em particular. A obra redentora do Filho se refere à nossa
natureza; a obra deificadora do Espírito Santo se dirige às nossas pessoas. Mas
as duas são inseparáveis e não podem ser pensadas uma sem a outra, pois elas se
condicionam mutuamente, estão presentes uma na outra – e, ao final, não são
senão uma só economia da Santíssima Trindade, realizada pelas duas Pessoas
divinas enviadas pelo Pai ao mundo. Esta dupla economia do Verbo e do Paráclito
tem como objetivo a união dos seres criados com Deus.
Considerado do ponto de vista de nossa decadência, este objetivo da
economia divina se chama salvação ou redenção. É o aspecto negativo do fim
último considerado em relação ao nosso pecado. Considerado do ponto de vista da
vocação última dos seres criados, ela se chama deificação. É a definição positiva
do mesmo mistério que deve se realizar em cada pessoa humana na Igreja e se
revelar plenamente no século futuro, quando, depois de haver reunido a tudo em
Cristo, Deus se tornará tudo em todas as coisas[7].
Extraído de:
Vladimir Lossky, A
imagem e a semelhança,
Aubier Montaigne 1967.
Nenhum comentário:
Postar um comentário