Rei Celestial, Consolador, Espírito de Verdade,
Presente em toda parte e ocupando todo lugar,
Tesouro dos bens e dispensador da vida,
Vem e habita em nós,
Purifica-nos de toda mancha
E salva nossas almas, Tu que és bom.
Esta é a prece
ao Espírito Santo mais difundida na Igreja Ortodoxa. Ninguém inicia uma ação
importante, seja na Igreja, seja no mundo, sem antes a pronunciar. Na Igreja,
esta é a prece que introduz qualquer outra prece, pois toda prece autêntica se
desenvolve pelo sopro do Espírito. “O Espírito vem em socorro de nossa
fraqueza, pois nós não sabemos o que pedir em nossas orações. Mas o próprio
Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis”. Observações que valem para nossa prece no
mundo onde somente o Espírito é capaz de unir o visível ao invisível, os quais,
diz São Máximo o Confessor[1],
devem simbolizar-se mutuamente – imagem crística.
Com efeito,
Cristo existe no Espírito Santo e no-lo comunica. Seu Corpo eclesial é o lugar
de onde jorra, ou de onde brota gota a gota, esta comunicação. Unção de Jesus,
portanto de seu Corpo, ele unge seus membros, cristificando-os, fazendo deles
um povo de profetas. Se o Pentecostes começou no dia descrito simbolicamente
nos Atos dos Apóstolos, ele não se encerrou aí. Ele continua, se desenvolve, ou
se oculta, num impulso finalmente irredutível em direção ao Último, seja de
forma subterrânea, seja resplendente, preparando e antecipando, na eucaristia e
nos homens eucarísticos, o retorno de todas as coisas em Cristo.
Rei
Celestial, Consolador, Espírito de Verdade
A palavra
“rei” afirma a divindade do Espírito, como o fez em 381 o Segundo Concílio
Ecumênico. O Espírito não é uma força anônima, criada ou incriada: ele é Deus,
um modo único de “subsistência” da divindade, uma misteriosa hipóstase divina.
“Rei
Celestial”: este último termo designa aqui o “Mar da Divindade”, como diz a
tradição siríaca. Rei é aquele que rege. O Espírito do Pai, que repousa no
Filho, “Reino do Pai e Unção do Filho”, como diz, dentre outros, São Gregório
de Nisse[2],
rege, ou seja, serve, a comunhão das hipóstases divinas das quais a Tradição,
perscrutando as Escrituras, afirma ser a “terceira”. Existe o Um, o Pai, e o
Outro, o Filho, e a superação de toda oposição se faz no Terceiro, não por
reabsorção do Outro no Um, como, ao que parece, costuma acontecer nas
espiritualidades asiáticas e gnósticas, mas por uma Diferença três vezes santa
sem a menor exterioridade.
Simultaneamente,
esse Rei vem a nós para nos comunicar o celeste, para nos confortar, nos
transmitir a vida ressuscitada. É por isso que Cristo, no Evangelho de João, no
seu discurso de adeus, o nomeia Paráclito, que traduzimos por Consolador, ou
talvez “confortador”, aquele que conforta transmitindo a verdadeira força. “O outro
Paráclito”, diz Jesus, pois eles são inseparáveis: a imensa consolação, troca
de vidas, transfusão da força que reside em Cristo, é revelada e manifestada
pelo Espírito ao longo da história, segundo as buscas, as angústias, as
instituições que a lacera ou exalta.
Rei Celestial,
Consolador: no Espírito, Deus transcende sua própria transcendência, segundo
uma “transdescendência amorosa”, se podemos nos exprimir assim, um dom que Deus
faz de si mesmo, e que, embora inteiramente inacessível, se torna totalmente
participável. Como dizia Vladimir Lossky, Deus “rompe o muro de sua
transcendência” no Espírito Santo, por quem e em quem o Logos, o Verbo, não
cessa de se manifestar através das múltiplas expressões da Sabedoria e da
profecia, “luz que ilumina todo homem que vem ao mundo[3]”,
por quem e em quem o Verbo não cessa de se fazer carne: pois a encarnação do
Verbo se realiza pelo Espírito – e pela liberdade lúcida e forte da Virgem,
pois o Espírito é inseparável da liberdade.
É por isso que
quando dizemos “Espírito de Verdade”, ou mais precisamente: “da Verdade”, não
estamos designando uma noção, um conjunto de conceitos, um sistema qualquer – e
existem tantos! – mas Alguém que nos disse que era e que é “o Caminho, a
Verdade e a Vida”, sendo que as palavras “caminho” e “vida” estão incluídas naquele
que é a Verdade, o Fiel, o Verídico, coisas que designam, conforme é sugerido,
especialmente o Espírito Santo.
A Verdade, a
revelação inseparável da verdade de Deus e da verdade do homem, é o Verbo
encarnado, o Deus feito Homem. É ele que o Espírito torna presente a nós nos
sacramentos, nos “mistérios” da Igreja, na Igreja-mistério do Ressuscitado, no
sacramento da ressurreição, pela graça, e graças, ao Espírito.
Cristo caminha
com os peregrinos de Emaús, mas estes não o reconhecem: mas suas palavras, que
levam seu Sopro, abrasam seus corações. E quando ele parte o pão já
eucarístico, ele se revela e, ao mesmo tempo, se retira, pois ele só pode estar
entre eles no Espírito Santo. É por isso que a Igreja Corpo de Cristo é também
o Templo do Espírito Santo. Em Cristo, a Igreja é a Igreja do Espírito Santo.
Presente
em toda parte e ocupando todo lugar
Tudo é
penetrado pela graça, tudo freme, vibra, desperta no Sopro imenso da vida, como
a árvore ao vento, o incomensurável invisível, como o mar “de mil sorrisos”,
como o impulso que empurra o homem e a mulher um contra o outro. As línguas
modernas tendem a opor o espírito à matéria, ou ainda, por causa de um
platonismo degenerado, o inteligível ao sensível. Mas o Espírito Santo, Ruah em hebraico, Pneuma em grego, Spiritus
em latim, é o Sopro, o Vento que sopra onde quer e cuja voz ouvimos[4],
pois é ele quem traz a Palavra e, com ela, os mundos visíveis e invisíveis.
A palavra Ruah, nas línguas semíticas pode ser
tanto masculina como feminina. Não que possamos empobrecer, “naturalizar” a
Trindade numa espécie de esquema familiar de Pai, Mãe, Filho, mas porque, nos
signos confusos de nossa linguagem, o fogo do Espírito é viril, enquanto seu
murmúrio, “no limite do silêncio[5]”,
é feminino, como uma mãe que nina seu filho cantando com a boca fechada. Aí
talvez possamos pressentir essa misteriosa Sabedoria que perpassa os últimos
livros do Antigo testamento e que nos lembra que Deus é “matricial” (como o
traduz André Chouraqui), rahamin,
plural enfático de rehem que
significa “matriz”.
São Máximo o
Confessor evoca a presença do Espírito Santo na própria existência do mundo,
nos seres e nas coisas que são logoi
do Logos, das palavras que Deus nos dirige. Paulo, em sua Carta aos Efésios[6],
evoca o Deus que está acima de tudo, através de tudo e em tudo. Com efeito, o Pai é o Deus que está sempre
além, princípio de toda realidade. O Verbo é o Logos que estrutura o mundo por
meio de suas ideias-vontade criadoras. E o Espírito é verdadeiramente Deus em
tudo, que vivifica e conduz todas as coisa à sua realização na beleza. Deus
alado, representado por signos de movimento, de voo, como o vento, o pássaro, o
fogo, a água viva, não a terra mas aquilo que faz da terra um sacramento.
Tesouro
dos bens e Dispensador da vida
A palavra “bem”, assim como a palavra “bom” ao
final dessa prece, possui um sentido ontológico, um sentido que diz respeito ao
ser, ou seja, ao amor, pois “Deus é amor”, como repete São João, e assim o ser
não é outra coisa que a profundidade e a densidade inesgotável deste amor. O
ser, poderíamos dizer, é relacional, e reside como no interior (e na irradiação)
da comunhão. Assim sendo, os “bens” que o Espírito dispõe e dos quais ele é o
“tesouro” – vale dizer, o lugar de doação e difusão – são a graça, a vida
ressuscitada, a “luz da vida”, como diz ainda São João: “O Espírito Santo se
torna em nós tudo o que as Escrituras dizem a respeito do Reino de Deus – a
pérola, o grão de cevada, o fermento, a água, o fogo, o pão e a bebida da vida,
a câmara nupcial...[7]”
É por isso que
o texto da prece especifica a palavra “bens”, que poderia possuir algo de
estático, por meio da palavra “vida”. O Espírito, como diz o Credo
Niceno-Constantinopolitano, é o “dispensador da vida[8]”.
A Vida parece ser a palavra-chave quando se fala do Espírito. Em grego
encontramos dois termos distintos: bios,
para designar a vida biológica, e zoé,
para designar a vida espiritual e, no seu limite (ou antes como fundamento e
realização), a vida ressuscitada em Cristo. Mas sem dúvida não devemos
distinguir aqui mais do que graus crescentes de intensidade. Tudo o que é vivo
é animado pelo Sopro divino. É o que acontece com essas estruturas invisíveis,
sempre em ação, que fazem com que a tendência universal à desagregação e ao
caos, à entropia, se veja transformada em reintegração, em complexidades mais e
mais sutis, de tal maneira que a vida nasce e morre sem cessar numa imagem
elementar da Cruz, do ciclo da morte e ressurreição. Um grande físico já disse
que o mundo está pleno de inteligência. O Espírito está presente e ativo em
tudo o que é vivo, da célula à união mística, passando por este grande
movimento do eros que marca e
intensifica toda existência, e que, por intermédio do homem, a torna para a
graça, voltando-a para o ágape.
E no entanto,
se podemos dizer que toda a vida, no mundo, é sustentada pelo Espírito, por sua
energia que por tanto tempo e ainda agora permanece anônima – aquilo que Santo
Irineu de Lyon no século II chamava de afflatus[9]
– esta vida está sempre ligada à morte. Mas desde que Cristo ressuscitou, a
fonte pessoal do afflatus, o Spiritus (para retomarmos o vocabulário
de Irineu) foi para sempre revelado. Ou antes, foi revelado-velado, o que pode
ser uma definição do sacramento, caso contrário já se trataria da Parúsia. Ora,
o Spiritus comunica, a partir do
cálice eucarístico, uma vida pura, uma vida que assume e como que devolve a
morte: de modo que tantas mortes parciais, estigmas inevitáveis de nossa
existência, e finalmente nossa morte biológica, são doravante páscoas,
passagens iniciáticas: como se diz, o véu do amor rasgado pouco a pouco. A
morte, no sentido global, a um tempo física e espiritual, está de certo modo
atrás de nós, enterrada nas águas de nosso batismo (de desejo inclusive, ou de
lágrimas, ou de sangue – que sabemos nós?). O fundo de nossa existência não é
mais a morte, mas o Espírito. E se prestarmos atenção a esta presença, se
cavarmos até ela, até suas grandes camadas de silêncio, de paz e de luz, a
angústia em nós se transforma em confiança, as lágrimas se tornam nossa veste
de bodas, a roupa dos mendigos – bom ou mau, pouco importa, diz o Evangelho de
Mateus, convidado ao festim por pura graça.
O Espírito é
também o Deus oculto, o Deus secreto, interior, esta superação que se
identifica com a própria raiz de nosso ser, este transbordamento do coração que
se torna uma atestação e que nos permite dizer que Cristo é o Senhor e de
murmurar com ele e nele, Abba, Pai,
uma palavra de ternura, de confiança e de respeito. O Espírito abraça o
coração, desperta em nós o “olho do coração”, o “olho de fogo”, que manifesta
em todo homem a imagem de Deus e nas coisas a “sarça ardente” das coisas que
virão. “O olho pelo qual eu vejo a Deus e o olho com o qual Deus me vê são um
só e mesmo olho”, dizia Maître Eckahrt[10],
e este olho único é o Espírito em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A
prisão do espaço-tempo fissura, uma respiração mais profunda se abre em nós com
uma alegria rasgada, nós “respiramos o Espírito”, segundo a admirável fórmula
de São Gregório Sinaíta[11].
Então, tornando-nos pouco a pouco “separados de todos e unidos a todos[12]”,
começamos a amar verdadeiramente, com um amor que nada sabe de perdas nem de
conquistas.
O olho do coração,
olho aberto pelo Espírito, adivinha, para falarmos como o Metropolita Georges
Khidr, o Cristo que dorme no secreto das religiões em acrescentarei eu, no
secreto dos humanismos e dos ateísmos providencialmente revoltados com tantas
caricaturas de Deus. O olho do coração vê não apenas a Igreja no mundo, forma
sociológica tantas vezes derrisória, mas o mundo na Igreja, uma Igreja sem
fronteiras na qual a comunhão dos santos alarga-se em comunhão com todos os
grandes vivos, criadores da vida, da justiça e da beleza, de todos os grandes
dilacerados que também desejaram “terminar com o julgamento de Deus”, como
Antonin Artaud, que pressentiu talvez e nos fez pressentir que “a cruz é o
juízo do juízo[13]”.
No coração
dessa Igreja sem limites, deste “amor sem limites”, como “um Monge da Igreja do
Oriente” intitulou seu belo livro, adivinhamos, celebramos Maria, a Mãe de
Deus, aquela que ao aceitar o Espírito para gerar o Verbo, rompeu o nó da
tragédia da liberdade humana. Pois o Espírito, acolhido por nossa liberdade, a
liberta e fecunda, oferecendo-lhe um espaço infinito de criação, esculpindo-a
de eternidade. É por isso que a Igreja Ortodoxa emprega a mesma expressão para
qualificar o Espírito e a Virgem: o Espírito panagion, santíssimo, e a Virgem panagia...
Vem e
habita em nós
“Vem”, diz
agora nossa prece. O Espírito, já qualificado e atestado, está presente em toda
parte e preenche tudo. E no entanto, agora ele nos faz implorar: “Vem”. Se
devemos chamar deste modo àquele que nos chama, é porque, evidentemente, ele,
que a tudo preenche, não nos preenche ainda.
Deus, tendo
criado e mantido o mundo, de certo modo se retira para dar às criaturas sua
consistência própria. E esse espaçamento, como dizem os Padres, se inscreve na
liberdade do homem – e do anjo, sendo que este dá à recusa do homem, ao exílio
voluntário do “filho pródigo”, uma dimensão cósmica, de tal modo que a beleza
do mundo, originalmente de celebração, se torna mágica, nostálgica, pesada de
tristeza, escorregando para uma paralisia desesperada. Assim é que o esplendor
do eros pode se tornar uma raiva de
possessão, uma droga, na ignorância e na destruição do outro. O Espírito que
nos sustenta e nos dá a vida, nos envolve como uma atmosfera pronta a penetrar
pela menor falha da alma, mas não pode fazê-lo sem nosso consentimento, sem o
nosso chamado. Por isso devemos orar: “Vem”.
“Vem, Pessoa
incognoscível; vem, alegria incessante; vem, luz que não declina... Vem,
ressurreição dos mortos... Vem, você que permanece para sempre imutável, e que,
a toda hora, se move e vem até nós, que jazemos no inferno... Vem, meu sopro e
minha vida[14]”.
Esta é bem a parte do homem, e a demanda se especifica.
O mundo tem
sua morada no Espírito. Este universo que podemos sondar até extensões de
milhares de anos-luz é o mesmo que São Bernardo de Núrsia viu subitamente como
um grão de poeira num raio de luz divina. O papa Gregório o Grande reportou
esta visão em seus Diálogos e São
Gregório Palamas entendeu esse raio como as energias divinas irradiando através
do Espírito Santo.
A criação só
existe porque Deus quis assim, e porque ele a ama e guarda, mas mesmo assim ele
é excluído do coração desta criação – porque este coração é o próprio homem.
Podemos então antecipar que, se por um lado a criação reside em Deus, por outro
Deus não pode habitá-la, pois o homem detém em si o poder invertido e
luciferiano das chaves: ele pode fechar o universo a Deus. Daí provêm as forças
do nada, paradoxalmente substancializado.
Maria entregou
a Deus, “este Rei sem cidade[15]”,
uma cidade, uma morada. Ela lhe permitiu se encarnar no seio mesmo da criação,
como para recriá-la. “Deus criou o mundo para encontrar uma mãe”, dizia Nicolas
Cabasilas. A humanidade acolhe seu Deus pela liberdade, no seio de Maria. Jesus
não tem uma pedra sobre a qual repousar a cabeça, s não ser pelo amor “marial”
daqueles que o acolhem. O Espírito, que é a morada do Filho por toda a
eternidade, pode fazer de cada um de nós a morada do Filho encarnado. Mas com
uma condição fundamental: a de que o homem ore – “Vem e habita em nós,
purifica-nos de toda mancha...”.
Purifica-nos
de toda mancha
Sem dúvida
basta uma centelha de alegria mesclada à gratidão, sem dúvida é suficiente
diante das muralhas de Hipólito[16]
ou de Sartre um suspiro de angústia no qual sucumba a autossuficiência, basta
um recuo diante do horror – não, não quero ser cúmplice de um olhar de criança
cuja inocência espantada me desmascara, ou de um momento de paz em que o
coração desperta: somente os rostos e a face oculta da terra, a terra-anjo[17],
a terra celeste, a terra sacramento que eu evocava todo o tempo a propósito do
êxtase, ao mesmo tempo celeste e telúrico, de um Aliocha Karamazov.
Se existe uma
beatitude que os espirituais do Oriente cristão amam especialmente, é:
“Bem-aventurados os corações puros, porque verão a Deus”. Esta Beatitude não é
de ordem moral como se costuma interpretá-la. Trata-se da abertura e da
limpidez do “olho do coração”: espelho manchado, que importa lavar e polir, fonte
enterrada sob uma vida sem valor, e que é preciso resgatar para que brote a
água viva.
O coração,
este centro mais central onde todo o homem – inteligência, ardor, desejo – é
chamado a se reunir para se ultrapassar em Deus, o coração deve ser purificado
anão apenas dos “maus pensamentos”, obsessão culpabilizante, mas de todo
pensamento, qualquer que seja. Então, imersa em sua própria luz, que não pode
ser senão uma transparência, a consciência da consciência se torna um “ponto
nulo”, puro acolhimento, copa oferecida, humilde cálice no qual pode descer
para nos recriar, como um Pentecostes interiorizado, o fogo do Espírito.
Este tema da
sujeira – da corrupção, como dizem os ascetas – nos envia aos textos mais
fundamentais do Evangelho, à revolução evangélica que liberta o homem da
mecânica infinitamente complexa e codificada do sagrado e do profano, do puro e
do impuro. O que suja e mancha o homem, diz Jesus, não é esquecer-se de lavar
ritualmente as mãos, não é o que entra pela boca segundo uma dieta do permitido
e do proibido. Santo Agostinho foi maniqueísta durante muitos anos, ele havia
sido ensinado sobre toda uma gnose para distinguir o luminoso do tenebroso –
trevas do presunto, por exemplo, e luz do melão! E hoje em dia, quanto mais
somos locupletados, mais encontramos distinções análogas, e o sagrado passa a
se constituir da esbeltez do corpo que pretendemos para sempre jovem!
Mas, disse
Jesus, o que suja é o que sai da boca do homem, vindo de seu coração: os dialogismoi; o jogo cego do medo, da
raiva, da libido narcísica, do orgulho, da avidez, da “loucura”. Essas
sugestões afloram dentro do coração, vindas dos abismos do inconsciente –
pessoal, mas também coletivo, segundo as hipnoses da política – e é preciso
saber atirá-las ao fogo do Espírito, para que ali elas se consumam e se
transfigurem... É assim que podemos destruir a sujeira e a corrupção em suas
raízes, que não são outra coisa que a morte e suas inumeráveis máscaras. A
sujeira aparece então como tudo o que isola e confunde, que bloqueia e desvia
as foças da vida, que impede o homem de compreender que ele precisa ser salvo,
do contrário morrerá e não lhe restará mais do que o nada ou os pesadelos do
nada. Tudo o que impede os homens de compreender que eles formam um único Adão,
membros do mesmo Corpo, membros uns dos outros. E não podemos por nós mesmos
nos lavar de toda essa sujeira. É por isso que imploramos aos Espírito: “Vem e
purifica-nos de toda mancha”.
Nem a melhor
psicanálise pode – o que já é muito – mais do que nos tornar lúcidos sobre os
jogos e as apostas que acontecem em nós, do desejo e da morte; no máximo ela
permitirá alguns deslocamentos para nos aliviar, como passamos um fardo pesado
de um ombro a outro, mas sem nos liberarmos verdadeiramente de seu peso. Freud
considerava Helmholtz como seu deus porque ele havia descoberto a lei da
conservação da energia. Esta energia – aqui vital, psíquica – deslocada, mas
sempre conservada, só pode ser pacificada pela vinda da graça, pela vinda do
Espírito que a metamorfoseia em alegria pascal. A tampa da morte se parte. Ou:
desta vez, não nos contentamos em trocar os móveis de lugar, mas abrimos as
janelas ao Vento de muito distante para que ele entre e purifique a atmosfera.
Sim, implorar
ao Espírito in profundis, das
entranhas da terra, por uma ascese de abandono, uma ascese de confiança e de
humildade.
E
salva nossas almas
Salvar – ou
seja, colocar a salvo, tornar são, santo, equivale a libertar da morte e do
inferno, desta “vida de morte” que tanto confundimos com a vida, do assassinato
do outro e do nosso assassinato, e sem dúvida do assassinato de Deus. O homem
foi criado do nada e, se ele se deixar possuir pelo medo e pela fuga
desesperada e paroxista diante deste medo, ele irá desembocar na ilusão, nos
sonhos ou na lucidez sem saída que o amor ofendido manifesta.
Cristo “desce”
aos infernos e à morte pelas escarpas noturnas nas quais o ser se extenua, para
dai arrancar cada um e a humanidade inteira. Cristo fez de todas as feridas de
nossa alma, identificando-as com as suas, fontes de luz – da “luz da vida”, a
luz do Espírito Santo. Em Caná Cristo transformou toda nossa seiva num vinho
abrasado pelo fogo do Espírito. Ele concedeu a terra dos vivos aos que não
enterram seus “talentos”, mas que os multiplicam. A salvação não é um mero
resgate, mas uma vivificação.
É por isso que
quando a prece diz: “Salva nossas almas”, não se trata de um espiritualismo,
uma salvação que consistiria em liberar a alma da prisão do corpo. A alma,
aqui, designa a pessoa que transcende e faz existir todo o nosso ser, que o
torna opaco ou luminoso; mesmo a escravidão do horror pode se transformar em
blasfêmia ou em grito de fé, como nos mostra o exemplo contrastante dos dois
ladrões crucificados à direita e à esquerda de Cristo. Poderíamos dizer ainda
que a alma é a vida em sua unidade na qual o visível se torna o símbolo do
invisível e o invisível o sentido do visível. Nós encontramos isso em alguns
textos evangélicos onde não sabemos se traduzimos por “alma” ou por “vida”.
A alma salva,
mesclada ao sopor do Espírito, penetra a partir do coração – “este corpo no
mais profundo do corpo”, como disse Palamas[18]
– todas as nossas faculdades, todos os nossos sentidos e até a ambiência humana
e cósmica. Desta forma se prepara, se antecipa por saturação de vida – “meu
corpo morre, mas jamais me senti tão vivo” – a ressurreição dos mortos na
unidade do Adão total e a transfiguração do cosmos: quando o Espírito Santo, o
Espírito de ressurreição, se revelará plenamente, ele, o Desconhecido, através
da comunhão dos rostos, dos corpos transformados em rostos, da terra “imagem da
imagem” onde as almas possuirão corpos a um tempo fiéis ao seu segredo original
e renovados no Último.
Salva
nossas almas, tu
A prece
culmina neste “tu” que nos lembra que o Espírito é uma “pessoa” oculta mas bem
real, a quem ouvimos falar, que vimos agir nos Atos dos Apóstolos. Uma pessoa,
chamemo-lo, mas não no sentido psicológico e social que esta palavra adquiriu,
mas uma “hipóstase”, ou seja, o próprio Deus fazendo-se nosso sopro, nossa
profundidade insondável, nossa vida. Entre nosso pertencimento fatigante ao
mundo das coisas e nossa certeza irredutível de sermos outra coisa, esta chama
de fogo indestrutível: o Espírito.
E a conclusão:
Tu
que és bom
É preciso
voltar aqui à ressonância ontológica, hebraica tanto quanto grega, da palavra
“bom”. No Gênesis, ao final de cada dia simbólico do processo criador, lemos:
“E Deus viu que isto era tov”,
palavra que significa ao mesmo tempo “belo” e “bom”. É por isso que na versão
grega dos Setenta, feita em Alexandria entre os séculos V e II antes de nossa
era, tov foi traduzido por kalon, que significa “belo”, e não por agathon, “bom”. Trata-se da plenitude do
ser que, criado e recriado pelo Verbo, animado e realizado pelo Espírito,
reflete a vida divina e, pelo homem, retornado em Cristo criador criado, é
chamado a se unir a ele. Vocabulário de artesão, de ofício, para quem o bom, se
verdadeiramente bom, não pode ser senão belo. Mas deixemos de lado nossas
distinções estéticas: as velhas ferramentas eram belas porque eram úteis.
A
bondade-beleza do Espírito designa este êxtase de Deus em sua criação, êxtase
que produz ao mesmo tempo a unidade e a diversidade desta. A ação do Espírito,
diz Denis o Areopagita, consiste justamente nessa expansão da Uni-diversidade
trinitária no mundo onde o múltiplo se tornou guerra, a fim de conduzi-lo, não
a uma reabsorção no indiferenciado, mas a uma harmonia tanto mais vibrante na
medida em que nasce da extrema tensão dos contrários. Com efeito, como disse
Heráclito, no Espírito “tudo o que se opõe concorda, e daquilo que difere
resulta a mais bela harmonia[19]”.
Pois não é apenas a unidade, como imagina vagamente um espiritualismo viscoso,
trata-se também da diferença que provém de Deus e que o nomeia. O Espírito de
bondade e de beleza preserva definitivamente, na unidade de Cristo, a figura
única de cada criatura: “Seu ser inteiro será salvo e viverá plenamente para sempre[20]”.
O Espírito, dizia Serge Boulgakov, é a Hipóstase da Beleza, uma beleza na qual
se expressa a força da bondade.
Aqui se impõe
o tema da deificação: “Deus se fez homem para que o homem possa se tornar
Deus”, diziam os Padres, mas não retirando sua humanidade, mas dando a ela sua
plenitude em Cristo, sob as chamas do Espírito. Atanásio de Alexandria
especificava: “Deus se fez sarcóforo (portador da carne) para que o homem
pudesse se tornar pneumatóforo (portador do Espírito)[21]”.
No homem santificado, com efeito, para empregarmos um vocabulário espacial
aproximativo mas significativo, a alma, penetrada pelo Sopro, já não está no
corpo: é o corpo que está na alma, e, através dela, no Espírito. O barro
original se tornou “corpo espiritual”, corpo do Sopro.
A bondade do
Espírito não se manifesta somente na transfiguração por vezes evidente dos
santos, mas também nos humildes gestos que reconstituem inconsutilmente o
tecido do ser, que o ódio e a crueldade despedaçaram. O Espírito é o grande
costureiro do cotidiano: como essas velhas senhoras de rosto de argila
craquelada, crisálida que se abre pouco a pouco para deixar escapar, no momento
da morte, o corpo do Sopro.
A beleza do
Espírito se exprime na qualidade de um olhar que não julga, mas que acolhe e
faz existir. Na boca-pássaro do sorriso.
“Tu que és
bondade, tu que és beleza”, que é plenitude no sacramento do instante, venha!
Que é o sopro de meu sopro e “vida de minha vida”, como dizia Santo Agostinho.
No coração de
toda ação sacramental, eminentemente na eucaristia, toma lugar necessariamente
a epiclese, esta súplica dirigida ao Pai, fonte da divindade, para que ele
envie seu Espírito Santo “sobre nós e sobre os dons que aqui estão”, o pão e o
vinho, quando se trata da eucaristia, a fim de integrar ao corpo de Cristo a
assembleia como oferenda e a oferenda como assembleia.
A prece que
tentei canhestramente comentar é uma imensa epiclese, um epiclese sobre a
humanidade e o cosmos para que venha o Reino, este Reino que uma antiquíssima
variante do Pai Nosso nos diz não ser outra coisa do que o Espírito Santo.
[1] Mystagogie 2.
[2] De l’oraison dominicale.
[3] Cf.
Paul Florensky, La Colonne et le
Fondement de la Verité.
[4] Assim
podemos traduzir o Versículo 9 do Prólogo de São João.
[5] I
Reis 19: 12.
[6]
Efésios 4: 6.
[7] São
Simeão o Novo Teólogo, Sermon 90.
[8]
“Creio no Espírito Santo, Senhor vivificante...”.
[9] Contre les hérésies, IV, 2.1.
[10] Sermon 12.
[11] Petite Philocalie de la prière du coeur.
[12] Evagro
o Pôntico, in I. Hausherr, Les leçons
d’um contemplatif.
[13] Máximo
o Confessor, Questions à Thalassius,
43.
[14] São
Simeão o Novo Teólogo, prefácio de Hymnes
de l’amour divin.
[15] São
Nicolas Cabasilas, Homélies mariales.
[16] Dostoievski,
O idiota.
[17]
Cf. Henry Corbin, La terre est um ange.
[18] Cf.
Jean Meyendorff, Introduction à l’étude
de Gregóire Palamas.
[19] Fragment 8.
[20] São
Denis o Areopagita, Noms Divins VIII,
9.
[21] Sur l’incarnation e contre les Ariens.
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