sábado, 12 de dezembro de 2015

Olivier Clement - A oração do Espírito Santo


Rei Celestial, Consolador, Espírito de Verdade,
Presente em toda parte e ocupando todo lugar,
Tesouro dos bens e dispensador da vida,
Vem e habita em nós,
Purifica-nos de toda mancha
E salva nossas almas, Tu que és bom.

Esta é a prece ao Espírito Santo mais difundida na Igreja Ortodoxa. Ninguém inicia uma ação importante, seja na Igreja, seja no mundo, sem antes a pronunciar. Na Igreja, esta é a prece que introduz qualquer outra prece, pois toda prece autêntica se desenvolve pelo sopro do Espírito. “O Espírito vem em socorro de nossa fraqueza, pois nós não sabemos o que pedir em nossas orações. Mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis”.  Observações que valem para nossa prece no mundo onde somente o Espírito é capaz de unir o visível ao invisível, os quais, diz São Máximo o Confessor[1], devem simbolizar-se mutuamente – imagem crística.

Com efeito, Cristo existe no Espírito Santo e no-lo comunica. Seu Corpo eclesial é o lugar de onde jorra, ou de onde brota gota a gota, esta comunicação. Unção de Jesus, portanto de seu Corpo, ele unge seus membros, cristificando-os, fazendo deles um povo de profetas. Se o Pentecostes começou no dia descrito simbolicamente nos Atos dos Apóstolos, ele não se encerrou aí. Ele continua, se desenvolve, ou se oculta, num impulso finalmente irredutível em direção ao Último, seja de forma subterrânea, seja resplendente, preparando e antecipando, na eucaristia e nos homens eucarísticos, o retorno de todas as coisas em Cristo.

Rei Celestial, Consolador, Espírito de Verdade

A palavra “rei” afirma a divindade do Espírito, como o fez em 381 o Segundo Concílio Ecumênico. O Espírito não é uma força anônima, criada ou incriada: ele é Deus, um modo único de “subsistência” da divindade, uma misteriosa hipóstase divina.

“Rei Celestial”: este último termo designa aqui o “Mar da Divindade”, como diz a tradição siríaca. Rei é aquele que rege. O Espírito do Pai, que repousa no Filho, “Reino do Pai e Unção do Filho”, como diz, dentre outros, São Gregório de Nisse[2], rege, ou seja, serve, a comunhão das hipóstases divinas das quais a Tradição, perscrutando as Escrituras, afirma ser a “terceira”. Existe o Um, o Pai, e o Outro, o Filho, e a superação de toda oposição se faz no Terceiro, não por reabsorção do Outro no Um, como, ao que parece, costuma acontecer nas espiritualidades asiáticas e gnósticas, mas por uma Diferença três vezes santa sem a menor exterioridade.

Simultaneamente, esse Rei vem a nós para nos comunicar o celeste, para nos confortar, nos transmitir a vida ressuscitada. É por isso que Cristo, no Evangelho de João, no seu discurso de adeus, o nomeia Paráclito, que traduzimos por Consolador, ou talvez “confortador”, aquele que conforta transmitindo a verdadeira força. “O outro Paráclito”, diz Jesus, pois eles são inseparáveis: a imensa consolação, troca de vidas, transfusão da força que reside em Cristo, é revelada e manifestada pelo Espírito ao longo da história, segundo as buscas, as angústias, as instituições que a lacera ou exalta.

Rei Celestial, Consolador: no Espírito, Deus transcende sua própria transcendência, segundo uma “transdescendência amorosa”, se podemos nos exprimir assim, um dom que Deus faz de si mesmo, e que, embora inteiramente inacessível, se torna totalmente participável. Como dizia Vladimir Lossky, Deus “rompe o muro de sua transcendência” no Espírito Santo, por quem e em quem o Logos, o Verbo, não cessa de se manifestar através das múltiplas expressões da Sabedoria e da profecia, “luz que ilumina todo homem que vem ao mundo[3]”, por quem e em quem o Verbo não cessa de se fazer carne: pois a encarnação do Verbo se realiza pelo Espírito – e pela liberdade lúcida e forte da Virgem, pois o Espírito é inseparável da liberdade.

É por isso que quando dizemos “Espírito de Verdade”, ou mais precisamente: “da Verdade”, não estamos designando uma noção, um conjunto de conceitos, um sistema qualquer – e existem tantos! – mas Alguém que nos disse que era e que é “o Caminho, a Verdade e a Vida”, sendo que as palavras “caminho” e “vida” estão incluídas naquele que é a Verdade, o Fiel, o Verídico, coisas que designam, conforme é sugerido, especialmente o Espírito Santo.

A Verdade, a revelação inseparável da verdade de Deus e da verdade do homem, é o Verbo encarnado, o Deus feito Homem. É ele que o Espírito torna presente a nós nos sacramentos, nos “mistérios” da Igreja, na Igreja-mistério do Ressuscitado, no sacramento da ressurreição, pela graça, e graças, ao Espírito.

Cristo caminha com os peregrinos de Emaús, mas estes não o reconhecem: mas suas palavras, que levam seu Sopro, abrasam seus corações. E quando ele parte o pão já eucarístico, ele se revela e, ao mesmo tempo, se retira, pois ele só pode estar entre eles no Espírito Santo. É por isso que a Igreja Corpo de Cristo é também o Templo do Espírito Santo. Em Cristo, a Igreja é a Igreja do Espírito Santo.

Presente em toda parte e ocupando todo lugar

Tudo é penetrado pela graça, tudo freme, vibra, desperta no Sopro imenso da vida, como a árvore ao vento, o incomensurável invisível, como o mar “de mil sorrisos”, como o impulso que empurra o homem e a mulher um contra o outro. As línguas modernas tendem a opor o espírito à matéria, ou ainda, por causa de um platonismo degenerado, o inteligível ao sensível. Mas o Espírito Santo, Ruah em hebraico, Pneuma em grego, Spiritus em latim, é o Sopro, o Vento que sopra onde quer e cuja voz ouvimos[4], pois é ele quem traz a Palavra e, com ela, os mundos visíveis e invisíveis.

A palavra Ruah, nas línguas semíticas pode ser tanto masculina como feminina. Não que possamos empobrecer, “naturalizar” a Trindade numa espécie de esquema familiar de Pai, Mãe, Filho, mas porque, nos signos confusos de nossa linguagem, o fogo do Espírito é viril, enquanto seu murmúrio, “no limite do silêncio[5]”, é feminino, como uma mãe que nina seu filho cantando com a boca fechada. Aí talvez possamos pressentir essa misteriosa Sabedoria que perpassa os últimos livros do Antigo testamento e que nos lembra que Deus é “matricial” (como o traduz André Chouraqui), rahamin, plural enfático de rehem que significa “matriz”.

São Máximo o Confessor evoca a presença do Espírito Santo na própria existência do mundo, nos seres e nas coisas que são logoi do Logos, das palavras que Deus nos dirige. Paulo, em sua Carta aos Efésios[6], evoca o Deus que está acima de tudo, através de tudo e em tudo.  Com efeito, o Pai é o Deus que está sempre além, princípio de toda realidade. O Verbo é o Logos que estrutura o mundo por meio de suas ideias-vontade criadoras. E o Espírito é verdadeiramente Deus em tudo, que vivifica e conduz todas as coisa à sua realização na beleza. Deus alado, representado por signos de movimento, de voo, como o vento, o pássaro, o fogo, a água viva, não a terra mas aquilo que faz da terra um sacramento.

Tesouro dos bens e Dispensador da vida

 A palavra “bem”, assim como a palavra “bom” ao final dessa prece, possui um sentido ontológico, um sentido que diz respeito ao ser, ou seja, ao amor, pois “Deus é amor”, como repete São João, e assim o ser não é outra coisa que a profundidade e a densidade inesgotável deste amor. O ser, poderíamos dizer, é relacional, e reside como no interior (e na irradiação) da comunhão. Assim sendo, os “bens” que o Espírito dispõe e dos quais ele é o “tesouro” – vale dizer, o lugar de doação e difusão – são a graça, a vida ressuscitada, a “luz da vida”, como diz ainda São João: “O Espírito Santo se torna em nós tudo o que as Escrituras dizem a respeito do Reino de Deus – a pérola, o grão de cevada, o fermento, a água, o fogo, o pão e a bebida da vida, a câmara nupcial...[7]

É por isso que o texto da prece especifica a palavra “bens”, que poderia possuir algo de estático, por meio da palavra “vida”. O Espírito, como diz o Credo Niceno-Constantinopolitano, é o “dispensador da vida[8]”. A Vida parece ser a palavra-chave quando se fala do Espírito. Em grego encontramos dois termos distintos: bios, para designar a vida biológica, e zoé, para designar a vida espiritual e, no seu limite (ou antes como fundamento e realização), a vida ressuscitada em Cristo. Mas sem dúvida não devemos distinguir aqui mais do que graus crescentes de intensidade. Tudo o que é vivo é animado pelo Sopro divino. É o que acontece com essas estruturas invisíveis, sempre em ação, que fazem com que a tendência universal à desagregação e ao caos, à entropia, se veja transformada em reintegração, em complexidades mais e mais sutis, de tal maneira que a vida nasce e morre sem cessar numa imagem elementar da Cruz, do ciclo da morte e ressurreição. Um grande físico já disse que o mundo está pleno de inteligência. O Espírito está presente e ativo em tudo o que é vivo, da célula à união mística, passando por este grande movimento do eros que marca e intensifica toda existência, e que, por intermédio do homem, a torna para a graça, voltando-a para o ágape.

E no entanto, se podemos dizer que toda a vida, no mundo, é sustentada pelo Espírito, por sua energia que por tanto tempo e ainda agora permanece anônima – aquilo que Santo Irineu de Lyon no século II chamava de afflatus[9] – esta vida está sempre ligada à morte. Mas desde que Cristo ressuscitou, a fonte pessoal do afflatus, o Spiritus (para retomarmos o vocabulário de Irineu) foi para sempre revelado. Ou antes, foi revelado-velado, o que pode ser uma definição do sacramento, caso contrário já se trataria da Parúsia. Ora, o Spiritus comunica, a partir do cálice eucarístico, uma vida pura, uma vida que assume e como que devolve a morte: de modo que tantas mortes parciais, estigmas inevitáveis de nossa existência, e finalmente nossa morte biológica, são doravante páscoas, passagens iniciáticas: como se diz, o véu do amor rasgado pouco a pouco. A morte, no sentido global, a um tempo física e espiritual, está de certo modo atrás de nós, enterrada nas águas de nosso batismo (de desejo inclusive, ou de lágrimas, ou de sangue – que sabemos nós?). O fundo de nossa existência não é mais a morte, mas o Espírito. E se prestarmos atenção a esta presença, se cavarmos até ela, até suas grandes camadas de silêncio, de paz e de luz, a angústia em nós se transforma em confiança, as lágrimas se tornam nossa veste de bodas, a roupa dos mendigos – bom ou mau, pouco importa, diz o Evangelho de Mateus, convidado ao festim por pura graça.

O Espírito é também o Deus oculto, o Deus secreto, interior, esta superação que se identifica com a própria raiz de nosso ser, este transbordamento do coração que se torna uma atestação e que nos permite dizer que Cristo é o Senhor e de murmurar com ele e nele, Abba, Pai, uma palavra de ternura, de confiança e de respeito. O Espírito abraça o coração, desperta em nós o “olho do coração”, o “olho de fogo”, que manifesta em todo homem a imagem de Deus e nas coisas a “sarça ardente” das coisas que virão. “O olho pelo qual eu vejo a Deus e o olho com o qual Deus me vê são um só e mesmo olho”, dizia Maître Eckahrt[10], e este olho único é o Espírito em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A prisão do espaço-tempo fissura, uma respiração mais profunda se abre em nós com uma alegria rasgada, nós “respiramos o Espírito”, segundo a admirável fórmula de São Gregório Sinaíta[11]. Então, tornando-nos pouco a pouco “separados de todos e unidos a todos[12]”, começamos a amar verdadeiramente, com um amor que nada sabe de perdas nem de conquistas.

O olho do coração, olho aberto pelo Espírito, adivinha, para falarmos como o Metropolita Georges Khidr, o Cristo que dorme no secreto das religiões em acrescentarei eu, no secreto dos humanismos e dos ateísmos providencialmente revoltados com tantas caricaturas de Deus. O olho do coração vê não apenas a Igreja no mundo, forma sociológica tantas vezes derrisória, mas o mundo na Igreja, uma Igreja sem fronteiras na qual a comunhão dos santos alarga-se em comunhão com todos os grandes vivos, criadores da vida, da justiça e da beleza, de todos os grandes dilacerados que também desejaram “terminar com o julgamento de Deus”, como Antonin Artaud, que pressentiu talvez e nos fez pressentir que “a cruz é o juízo do juízo[13]”.

No coração dessa Igreja sem limites, deste “amor sem limites”, como “um Monge da Igreja do Oriente” intitulou seu belo livro, adivinhamos, celebramos Maria, a Mãe de Deus, aquela que ao aceitar o Espírito para gerar o Verbo, rompeu o nó da tragédia da liberdade humana. Pois o Espírito, acolhido por nossa liberdade, a liberta e fecunda, oferecendo-lhe um espaço infinito de criação, esculpindo-a de eternidade. É por isso que a Igreja Ortodoxa emprega a mesma expressão para qualificar o Espírito e a Virgem: o Espírito panagion, santíssimo, e a Virgem panagia...

Vem e habita em nós

“Vem”, diz agora nossa prece. O Espírito, já qualificado e atestado, está presente em toda parte e preenche tudo. E no entanto, agora ele nos faz implorar: “Vem”. Se devemos chamar deste modo àquele que nos chama, é porque, evidentemente, ele, que a tudo preenche, não nos preenche ainda.

Deus, tendo criado e mantido o mundo, de certo modo se retira para dar às criaturas sua consistência própria. E esse espaçamento, como dizem os Padres, se inscreve na liberdade do homem – e do anjo, sendo que este dá à recusa do homem, ao exílio voluntário do “filho pródigo”, uma dimensão cósmica, de tal modo que a beleza do mundo, originalmente de celebração, se torna mágica, nostálgica, pesada de tristeza, escorregando para uma paralisia desesperada. Assim é que o esplendor do eros pode se tornar uma raiva de possessão, uma droga, na ignorância e na destruição do outro. O Espírito que nos sustenta e nos dá a vida, nos envolve como uma atmosfera pronta a penetrar pela menor falha da alma, mas não pode fazê-lo sem nosso consentimento, sem o nosso chamado. Por isso devemos orar: “Vem”.

“Vem, Pessoa incognoscível; vem, alegria incessante; vem, luz que não declina... Vem, ressurreição dos mortos... Vem, você que permanece para sempre imutável, e que, a toda hora, se move e vem até nós, que jazemos no inferno... Vem, meu sopro e minha vida[14]”. Esta é bem a parte do homem, e a demanda se especifica.

O mundo tem sua morada no Espírito. Este universo que podemos sondar até extensões de milhares de anos-luz é o mesmo que São Bernardo de Núrsia viu subitamente como um grão de poeira num raio de luz divina. O papa Gregório o Grande reportou esta visão em seus Diálogos e São Gregório Palamas entendeu esse raio como as energias divinas irradiando através do Espírito Santo.

A criação só existe porque Deus quis assim, e porque ele a ama e guarda, mas mesmo assim ele é excluído do coração desta criação – porque este coração é o próprio homem. Podemos então antecipar que, se por um lado a criação reside em Deus, por outro Deus não pode habitá-la, pois o homem detém em si o poder invertido e luciferiano das chaves: ele pode fechar o universo a Deus. Daí provêm as forças do nada, paradoxalmente substancializado.

Maria entregou a Deus, “este Rei sem cidade[15]”, uma cidade, uma morada. Ela lhe permitiu se encarnar no seio mesmo da criação, como para recriá-la. “Deus criou o mundo para encontrar uma mãe”, dizia Nicolas Cabasilas. A humanidade acolhe seu Deus pela liberdade, no seio de Maria. Jesus não tem uma pedra sobre a qual repousar a cabeça, s não ser pelo amor “marial” daqueles que o acolhem. O Espírito, que é a morada do Filho por toda a eternidade, pode fazer de cada um de nós a morada do Filho encarnado. Mas com uma condição fundamental: a de que o homem ore – “Vem e habita em nós, purifica-nos de toda mancha...”.

Purifica-nos de toda mancha

Sem dúvida basta uma centelha de alegria mesclada à gratidão, sem dúvida é suficiente diante das muralhas de Hipólito[16] ou de Sartre um suspiro de angústia no qual sucumba a autossuficiência, basta um recuo diante do horror – não, não quero ser cúmplice de um olhar de criança cuja inocência espantada me desmascara, ou de um momento de paz em que o coração desperta: somente os rostos e a face oculta da terra, a terra-anjo[17], a terra celeste, a terra sacramento que eu evocava todo o tempo a propósito do êxtase, ao mesmo tempo celeste e telúrico, de um Aliocha Karamazov.

Se existe uma beatitude que os espirituais do Oriente cristão amam especialmente, é: “Bem-aventurados os corações puros, porque verão a Deus”. Esta Beatitude não é de ordem moral como se costuma interpretá-la. Trata-se da abertura e da limpidez do “olho do coração”: espelho manchado, que importa lavar e polir, fonte enterrada sob uma vida sem valor, e que é preciso resgatar para que brote a água viva.

O coração, este centro mais central onde todo o homem – inteligência, ardor, desejo – é chamado a se reunir para se ultrapassar em Deus, o coração deve ser purificado anão apenas dos “maus pensamentos”, obsessão culpabilizante, mas de todo pensamento, qualquer que seja. Então, imersa em sua própria luz, que não pode ser senão uma transparência, a consciência da consciência se torna um “ponto nulo”, puro acolhimento, copa oferecida, humilde cálice no qual pode descer para nos recriar, como um Pentecostes interiorizado, o fogo do Espírito.

Este tema da sujeira – da corrupção, como dizem os ascetas – nos envia aos textos mais fundamentais do Evangelho, à revolução evangélica que liberta o homem da mecânica infinitamente complexa e codificada do sagrado e do profano, do puro e do impuro. O que suja e mancha o homem, diz Jesus, não é esquecer-se de lavar ritualmente as mãos, não é o que entra pela boca segundo uma dieta do permitido e do proibido. Santo Agostinho foi maniqueísta durante muitos anos, ele havia sido ensinado sobre toda uma gnose para distinguir o luminoso do tenebroso – trevas do presunto, por exemplo, e luz do melão! E hoje em dia, quanto mais somos locupletados, mais encontramos distinções análogas, e o sagrado passa a se constituir da esbeltez do corpo que pretendemos para sempre jovem!

Mas, disse Jesus, o que suja é o que sai da boca do homem, vindo de seu coração: os dialogismoi; o jogo cego do medo, da raiva, da libido narcísica, do orgulho, da avidez, da “loucura”. Essas sugestões afloram dentro do coração, vindas dos abismos do inconsciente – pessoal, mas também coletivo, segundo as hipnoses da política – e é preciso saber atirá-las ao fogo do Espírito, para que ali elas se consumam e se transfigurem... É assim que podemos destruir a sujeira e a corrupção em suas raízes, que não são outra coisa que a morte e suas inumeráveis máscaras. A sujeira aparece então como tudo o que isola e confunde, que bloqueia e desvia as foças da vida, que impede o homem de compreender que ele precisa ser salvo, do contrário morrerá e não lhe restará mais do que o nada ou os pesadelos do nada. Tudo o que impede os homens de compreender que eles formam um único Adão, membros do mesmo Corpo, membros uns dos outros. E não podemos por nós mesmos nos lavar de toda essa sujeira. É por isso que imploramos aos Espírito: “Vem e purifica-nos de toda mancha”.

Nem a melhor psicanálise pode – o que já é muito – mais do que nos tornar lúcidos sobre os jogos e as apostas que acontecem em nós, do desejo e da morte; no máximo ela permitirá alguns deslocamentos para nos aliviar, como passamos um fardo pesado de um ombro a outro, mas sem nos liberarmos verdadeiramente de seu peso. Freud considerava Helmholtz como seu deus porque ele havia descoberto a lei da conservação da energia. Esta energia – aqui vital, psíquica – deslocada, mas sempre conservada, só pode ser pacificada pela vinda da graça, pela vinda do Espírito que a metamorfoseia em alegria pascal. A tampa da morte se parte. Ou: desta vez, não nos contentamos em trocar os móveis de lugar, mas abrimos as janelas ao Vento de muito distante para que ele entre e purifique a atmosfera.

Sim, implorar ao Espírito in profundis, das entranhas da terra, por uma ascese de abandono, uma ascese de confiança e de humildade.

E salva nossas almas

Salvar – ou seja, colocar a salvo, tornar são, santo, equivale a libertar da morte e do inferno, desta “vida de morte” que tanto confundimos com a vida, do assassinato do outro e do nosso assassinato, e sem dúvida do assassinato de Deus. O homem foi criado do nada e, se ele se deixar possuir pelo medo e pela fuga desesperada e paroxista diante deste medo, ele irá desembocar na ilusão, nos sonhos ou na lucidez sem saída que o amor ofendido manifesta.

Cristo “desce” aos infernos e à morte pelas escarpas noturnas nas quais o ser se extenua, para dai arrancar cada um e a humanidade inteira. Cristo fez de todas as feridas de nossa alma, identificando-as com as suas, fontes de luz – da “luz da vida”, a luz do Espírito Santo. Em Caná Cristo transformou toda nossa seiva num vinho abrasado pelo fogo do Espírito. Ele concedeu a terra dos vivos aos que não enterram seus “talentos”, mas que os multiplicam. A salvação não é um mero resgate, mas uma vivificação.

É por isso que quando a prece diz: “Salva nossas almas”, não se trata de um espiritualismo, uma salvação que consistiria em liberar a alma da prisão do corpo. A alma, aqui, designa a pessoa que transcende e faz existir todo o nosso ser, que o torna opaco ou luminoso; mesmo a escravidão do horror pode se transformar em blasfêmia ou em grito de fé, como nos mostra o exemplo contrastante dos dois ladrões crucificados à direita e à esquerda de Cristo. Poderíamos dizer ainda que a alma é a vida em sua unidade na qual o visível se torna o símbolo do invisível e o invisível o sentido do visível. Nós encontramos isso em alguns textos evangélicos onde não sabemos se traduzimos por “alma” ou por “vida”.

A alma salva, mesclada ao sopor do Espírito, penetra a partir do coração – “este corpo no mais profundo do corpo”, como disse Palamas[18] – todas as nossas faculdades, todos os nossos sentidos e até a ambiência humana e cósmica. Desta forma se prepara, se antecipa por saturação de vida – “meu corpo morre, mas jamais me senti tão vivo” – a ressurreição dos mortos na unidade do Adão total e a transfiguração do cosmos: quando o Espírito Santo, o Espírito de ressurreição, se revelará plenamente, ele, o Desconhecido, através da comunhão dos rostos, dos corpos transformados em rostos, da terra “imagem da imagem” onde as almas possuirão corpos a um tempo fiéis ao seu segredo original e renovados no Último.

Salva nossas almas, tu

A prece culmina neste “tu” que nos lembra que o Espírito é uma “pessoa” oculta mas bem real, a quem ouvimos falar, que vimos agir nos Atos dos Apóstolos. Uma pessoa, chamemo-lo, mas não no sentido psicológico e social que esta palavra adquiriu, mas uma “hipóstase”, ou seja, o próprio Deus fazendo-se nosso sopro, nossa profundidade insondável, nossa vida. Entre nosso pertencimento fatigante ao mundo das coisas e nossa certeza irredutível de sermos outra coisa, esta chama de fogo indestrutível: o Espírito.

E a conclusão:

Tu que és bom

É preciso voltar aqui à ressonância ontológica, hebraica tanto quanto grega, da palavra “bom”. No Gênesis, ao final de cada dia simbólico do processo criador, lemos: “E Deus viu que isto era tov”, palavra que significa ao mesmo tempo “belo” e “bom”. É por isso que na versão grega dos Setenta, feita em Alexandria entre os séculos V e II antes de nossa era, tov foi traduzido por kalon, que significa “belo”, e não por agathon, “bom”. Trata-se da plenitude do ser que, criado e recriado pelo Verbo, animado e realizado pelo Espírito, reflete a vida divina e, pelo homem, retornado em Cristo criador criado, é chamado a se unir a ele. Vocabulário de artesão, de ofício, para quem o bom, se verdadeiramente bom, não pode ser senão belo. Mas deixemos de lado nossas distinções estéticas: as velhas ferramentas eram belas porque eram úteis.

A bondade-beleza do Espírito designa este êxtase de Deus em sua criação, êxtase que produz ao mesmo tempo a unidade e a diversidade desta. A ação do Espírito, diz Denis o Areopagita, consiste justamente nessa expansão da Uni-diversidade trinitária no mundo onde o múltiplo se tornou guerra, a fim de conduzi-lo, não a uma reabsorção no indiferenciado, mas a uma harmonia tanto mais vibrante na medida em que nasce da extrema tensão dos contrários. Com efeito, como disse Heráclito, no Espírito “tudo o que se opõe concorda, e daquilo que difere resulta a mais bela harmonia[19]”. Pois não é apenas a unidade, como imagina vagamente um espiritualismo viscoso, trata-se também da diferença que provém de Deus e que o nomeia. O Espírito de bondade e de beleza preserva definitivamente, na unidade de Cristo, a figura única de cada criatura: “Seu ser inteiro será salvo e viverá plenamente para sempre[20]”. O Espírito, dizia Serge Boulgakov, é a Hipóstase da Beleza, uma beleza na qual se expressa a força da bondade.

Aqui se impõe o tema da deificação: “Deus se fez homem para que o homem possa se tornar Deus”, diziam os Padres, mas não retirando sua humanidade, mas dando a ela sua plenitude em Cristo, sob as chamas do Espírito. Atanásio de Alexandria especificava: “Deus se fez sarcóforo (portador da carne) para que o homem pudesse se tornar pneumatóforo (portador do Espírito)[21]”. No homem santificado, com efeito, para empregarmos um vocabulário espacial aproximativo mas significativo, a alma, penetrada pelo Sopro, já não está no corpo: é o corpo que está na alma, e, através dela, no Espírito. O barro original se tornou “corpo espiritual”, corpo do Sopro.

A bondade do Espírito não se manifesta somente na transfiguração por vezes evidente dos santos, mas também nos humildes gestos que reconstituem inconsutilmente o tecido do ser, que o ódio e a crueldade despedaçaram. O Espírito é o grande costureiro do cotidiano: como essas velhas senhoras de rosto de argila craquelada, crisálida que se abre pouco a pouco para deixar escapar, no momento da morte, o corpo do Sopro.

A beleza do Espírito se exprime na qualidade de um olhar que não julga, mas que acolhe e faz existir. Na boca-pássaro do sorriso.

“Tu que és bondade, tu que és beleza”, que é plenitude no sacramento do instante, venha! Que é o sopro de meu sopro e “vida de minha vida”, como dizia Santo Agostinho.

No coração de toda ação sacramental, eminentemente na eucaristia, toma lugar necessariamente a epiclese, esta súplica dirigida ao Pai, fonte da divindade, para que ele envie seu Espírito Santo “sobre nós e sobre os dons que aqui estão”, o pão e o vinho, quando se trata da eucaristia, a fim de integrar ao corpo de Cristo a assembleia como oferenda e a oferenda como assembleia.

A prece que tentei canhestramente comentar é uma imensa epiclese, um epiclese sobre a humanidade e o cosmos para que venha o Reino, este Reino que uma antiquíssima variante do Pai Nosso nos diz não ser outra coisa do que o Espírito Santo.




[1] Mystagogie 2.
[2] De l’oraison dominicale.
[3] Cf. Paul Florensky, La Colonne et le Fondement de la Verité.
[4] Assim podemos traduzir o Versículo 9 do Prólogo de São João.
[5] I Reis 19: 12.
[6] Efésios 4: 6.
[7] São Simeão o Novo Teólogo, Sermon 90.
[8] “Creio no Espírito Santo, Senhor vivificante...”.
[9] Contre les hérésies, IV, 2.1.
[10] Sermon 12.
[11] Petite Philocalie de la prière du coeur.
[12] Evagro o Pôntico, in I. Hausherr, Les leçons d’um contemplatif.
[13] Máximo o Confessor, Questions à Thalassius, 43.
[14] São Simeão o Novo Teólogo, prefácio de Hymnes de l’amour divin.
[15] São Nicolas Cabasilas, Homélies mariales.
[16] Dostoievski, O idiota.
[17] Cf. Henry Corbin, La terre est um ange.
[18] Cf. Jean Meyendorff, Introduction à l’étude de Gregóire Palamas.
[19] Fragment 8.
[20] São Denis o Areopagita, Noms Divins VIII, 9.
[21] Sur l’incarnation e contre les Ariens.

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