1.1. Reacendendo
o dom espiritual
Acreditamos ter demonstrado que o sacerdócio é um grande dom concedido
àqueles que se curaram das paixões e que se colocam na posição de médicos para
curar as paixões do povo.
Mas um médico precisa de constante renovação. De outro modo ele não
conseguirá curar as moléstias das pessoas com novos métodos. O mesmo se aplica,
em certa medida, ao caso dos sacerdotes. É preciso uma atenção vigilante e um
grande esforço para manter esse dom do sacerdócio todo o tempo. O sacerdote
traz consigo o sacerdócio de Cristo e deve mantê-lo incorruptível. Isso possui
um significado profundo.
Existem sacerdotes que não foram depostos e que consequentemente
continuam a celebrar a Liturgia e a celebrar os sacramentos pela graça de Deus.
Externamente, seu sacerdócio pode não ser um estorvo, porque eles não foram
condenados pela Igreja. Mas seu sacerdócio não tem poder porque eles o
corrompem com suas vidas. Eles podem consagrar os dons, mas eles próprios não
podem ser santificados por eles, como disse Nicholas Cabasilas.
Onde aparece essa impotência espiritual? Ela aparece principalmente no
fato de que eles não são capazes de curar, nem sabem como curar. Realizar os
Mistérios dos sacramentos é uma graça de Deus dada pelo sacramento do
sacerdócio. Mas curar as enfermidades das pessoas é uma graça de Deus que é
concedida à pessoa que torna sinergicamente produtivo o dom de seu próprio
batismo, que coloca em uso o dom real da graça. Isso explica porque muitos
sacerdotes não sabem como curar as paixões dos homens e são incapazes disso.
Eles não sabem qual método aplicar. Eles não têm ideia do que são o nous e o coração, de como o nous se torna escravo ou como o coração
morre. Muitas vezes eles consideram esses ensinamentos como sendo exclusivos
para monges, e dividem os ensinamentos de Cristo em monástico e secular. Mas
não existe essa distinção no ensinamento de nossa Igreja Ortodoxa.
A seguir gostaríamos de expor o ensinamento da Igreja, por intermédio
dos Apóstolos e dos Padres, sobre a necessidade do sacerdote de alimentar o dom
do sacerdócio, de reacender a graça recebida no sacramento da ordenação, pois,
de outro modo, ele não será capaz de curar as enfermidades espirituais dos
homens.
1.1.1.
Qualidades básicas dos sacerdotes terapeutas
A Apóstolo Paulo adverte seu discípulo Timóteo: “Não negligencie o dom
que existe em você[1]”.
Essa exortação é semelhante à exortação para os Cristãos: “Como colaboradores
de Deus, pedimos-lhes que não deixem se esvaziar a graça que receberam[2]”;
também as palavras do Apóstolo: “A graça que ele mostrou não era desprovida de
frutos[3]”.
Ele ainda instrui o Apóstolo Timóteo: “Por isso lembro a você que deve assoprar
a chama dessa graça especial que Deus acendeu em você quando eu impus minhas
mãos sobre você[4]”.
Nas epístolas pastorais o Apóstolo Paulo sempre se refere a esse tema.
O bispo e o clérigo em geral devem, com seu esforço, preservar o dom do
sacerdócio, servir a Deus e aos homens de modo digno e guardar sua herança
sagrada.
Gostaríamos de citar algumas de muitas passagens características:
“Treine a si mesmo para a bondade[5]”.
“Você será um bom ministro de Jesus Cristo alimentado com as palavras da fé e
da boa doutrina que você seguiu cuidadosamente[6]”.
“Seja um exemplo para os fiéis em palavras, conduta, amor, fé e pureza[7]”.
Paulo pede a Timóteo para cumprir sua missão “sem nódoa, irrepreensivelmente,
até a aparição do Senhor Jesus Cristo[8]”.
Ele o exorta a conservar a tradição: “Estas coisas boas que foram confiadas a
você, guarde-as pelo Espírito Santo que habita em nós[9]”.
A guarda da tradição deve ser feita por meio do Espírito Santo que habita em
Timóteo. Ele o exorta a ser cauteloso, atento, vigilante para estar pronto para
o grande chamado de Deus: “Seja vigilante em todas as coisas, suporte as
aflições, faça seu trabalho de evangelizador, cumpra seu ministério[10]”.
Os ensinamentos patrísticos se referem a todas as qualidades
essenciais que devem adornar o sacerdote de modo a que ele seja capaz de manter
essa grande obra e esse chamado. A seguir tentamos fazer uma seleção desses
ensinamentos, principalmente em São João Crisóstomo e São Teognosto. Os ensinamentos
desses dois Padres expressam toda a santa Igreja Ortodoxa.
De acordo com São Teognosto, o sacerdote deve não apenas estar cheio
com as tradições humanas, mas possuir a graça de Deus misticamente oculta em
si. “Esteja certo de que você não conta apenas com as tradições humanas ao
celebrar os divinos mistérios, mas deixe que a Graça de Deus o preencha
interior e invisivelmente com o conhecimento das coisas do alto”. “A dignidade
sacerdotal, como as vestes sacerdotais, é cheia de esplendor, mas somente na
medida em que é iluminada desde dentro pela pureza da alma”. Ademais, o
sacerdote deve guardar esse dom divino “como a pupila de seu olho” e manter sua
honra impoluta.
Essas coisas mostram a grande atenção que é requerida por parte do
sacerdote. E isso requer muito sofrimento. O sacerdote deve celebrar a Divina
Liturgia primeiramente para si próprio, “cuidadosa e diligentemente”.
A vigilância é indispensável para conseguir se manter puro, e para que
a graça sacerdotal e a bênção permaneçam. De acordo com São Teognosto, o
sacerdócio “requer de nós uma purificação angélica, e um grau de discrição e de
comedimento muito maior do que em nossa vida pregressa”. De acordo com São João
Crisóstomo, o sacerdote deve ser puro como se ele próprio estivesse nos céus,
em meio às potências angélicas. A alma do sacerdote deve ser mais pura do que
os raios do sol “a fim de que o Espírito Santo nunca o abandone desolado”.
O arrependimento é outra qualidade espiritual indispensável para o
sacerdote. “Com torrentes de lágrimas”, deixe que ele se torne mais branco do
que a neve, e então, com uma consciência limpa, deixe “que ele toque as coisas
santas com santidade”.
A pureza de um sacerdote deve brilhar e irradiar sobre os Cristãos. O
sacerdote deve ser puro de paixões, “em especial da falta de castidade e do
rancor, e deve manter sua imaginação livre das paixões”. Muitos Padres
enfatizam que essas duas paixões (falta de castidade e rancor) não devem chegar
perto dos sacerdotes, porque de outra forma a graça de Deus não poderá
trabalhar pela cura de seus filhos espirituais. Nesse caso, o sacerdote estará
doente, como já indicamos. Ele deve estar pessoalmente comprometido
“sacrificialmente para morrer para as paixões e para os prazeres sensuais”.
Ademais, de acordo com o Abade Doroteu, “tudo o que é oferecido como sacrifício
a Deus, seja uma ovelha, uma vaca, ou o que for, é uma vítima”. Ele deve assim
consagrar-se inteiramente a Deus.
O Evangelho, que descreve a jornada do Cristão que luta por obter a
comunhão com Deus, deve ser aplicado em primeiro lugar pelo seu servidor, o
sacerdote. A vida ascética da Igreja que descrevemos neste livro deve ser
conhecida pelos pastores da Igreja. E quando dizemos ‘conhecida’, não queremos
dizer que ela deve ser conhecida por meio de livros e leituras, mas por uma
experiência vivida. Pois aquilo que passa através do coração pode ajudar os
Cristãos fiéis. Uma pessoa oferece seu sangue para que outra seja alimentada.
Esse sangue é partilhado e todo o povo recebe a sua parte.
Por outro lado, além de sua purificação e arrependimento, da
sobriedade e da vigilância, o sacerdote deve estar cheio com todas as graças do
Espírito, todas as virtudes. A virtude básica é a santa humildade, a qual, de
acordo com Santo Isaac o Sírio, é a vestimenta da divindade, desde que Cristo,
para salvar o homem, humilhou a si próprio, como disse o Apóstolo. Ademais, a
Eucaristia que o sacerdote celebra, nos mostra a humildade de Cristo. Por
intermédio da Eucaristia podemos encontrar a santa humildade e adquirir o modo de
vida sacrificial.
Dessa forma, ao celebrar a Div9ina Liturgia não estamos simplesmente
olhando o pão e o vinho se transformarem no Corpo e no Sangue de Cristo, mas
estamos tentando adquirir o modo de vida de Cristo, e sua humildade. Tentamos
nos revestir com o espírito da Eucaristia, que é um auto-esvaziamento.
Dentro dessa perspectiva São Teognosto adverte: “Torne-se humilde como
uma ovelha para o açougueiro, considerando verdadeiramente como superiores
todos os homens”. Ele exorta: “Veja a si próprio como cinzas e pó, ou como um
refugo, uma espécie de vira-latas”. É preciso celebrar o serviço sacerdotal
“com temor e tremor” e dessa maneira partilhar a palavra da verdade e trabalhar
pela própria salvação. Naturalmente, os Padres reconhecem a verdadeira
situação: eles estão cientes da existência de muitos sacerdotes indignos que,
sem possuir as qualidades essenciais, ousam ministrar o Santíssimo Sacramento.
De acordo com São João Crisóstomo, o sacerdócio, longe de acobertar as paixões
humanas, as expõe e as torna manifestas. Assim como o fogo testa o metal, “a
pedra de toque do ministério distingue as almas dos homens. Se um homem é
raivoso, convencido ou jactancioso, ou algo do gênero, ele logo revelará suas
faltas e as exporá a nu. Não apenas ele as desnudará, como elas se tornarão
ainda mais rudes e intratáveis”.
São João Clímaco diz que já viu sacerdotes idosos sendo “motivo de
riso dos demônios”.
Os Padres não hesitam em expor a punição dos sacerdotes indignos, aqueles
que praticam esse grande ofício sem ter sido adequadamente testados, preparados
e vividos. Por causa disso, ao invés de curar as almas do rebanho, eles as
tentam.
São Isidoro de Pelúsio escreve: “Não barganhe com as coisas divinas”.
São Teognosto se dirige ao sacerdote incorrigível que não renuncia ao
ministério sagrado: “Espere para cair nas mãos do Deus vivo e experimentar sua
ira. Deus não irá poupá-lo, sem compaixão”. Ele nos informa que “muitos
sacerdotes indignos foram retirados subitamente pela morte súbita e levados às
salas do julgamento”.
Ele tinha em mente dois exemplos de sacerdotes indignos com diferentes
consequências. Havia um que parecia externamente honrado entre os homens, mas
que não obstante, “era interiormente licencioso e corrupto”, e, no momento do
hino querúbico, quando estava lendo o trecho “ninguém é digno”, ele “morreu
subitamente”. O outro havia tombado na paixão da luxúria. Pouco depois ele caiu
incuravelmente doente e viu a morte chegar. Quando ele se deu conta de sua
indignidade e fez um voto de desistir de celebrar os mistérios “ele recobrou a
saúde de tal modo que nenhum traço da moléstia subsistiu”.
Nós nos demoramos neste tópico apesar de que ele possa parecer
deslocado do tema de nosso estudo, porque desejamos enfatizar especialmente que
o sacerdócio é um serviço pastoral para o povo. O sacerdote e o bispo têm essa
grande honra de servir ao povo. Servir ao povo significa curar, primeiro e
acima de tudo. A Igreja não existe simplesmente para fazer um trabalho social
ou para servir às necessidades sociais do povo, mas para guiá-los para a
salvação, isto é, para curar suas almas. Esse trabalho exige muitas qualidades.
O sacerdote deve ter em si a graça incriada de Deus. Ele não está aí apenas
para celebrar os sacramentos, mas também para ser santificado por eles, de modo
a que, tendo se santificado, possam santificar os homens com sua existência.
Esse é um trabalho elevadíssimo, e é assim que São João Crisóstomo declara: “Eu
não creio que haja um grande número de sacerdotes que se salvam, bem ao
contrário, a maior parte perece; isso acontece porque o assunto requer uma
grande alma”.
1.1.2.
O sacerdócio espiritual
O sacerdote tem uma tarefa dupla. Uma é celebrar os sacramentos, outra
é curar as pessoas para que possam dignamente se aproximar e receber a Santa
Comunhão. Já apontamos muitas vezes que existem muitos sacerdotes que são
sacerdotes exteriormente e que executam sua função sem impedimentos, mas que na
sua essência corromperam o sacerdócio, e que isso fica evidente pelo fato de
não são capazes de curar. Eles realizam os sacramentos, e os dons são
santificados por seu intermédio, mas eles não podem curar os outros nem salvar
suas próprias almas.
Por outro lado, existem muitos leigos e monges que não possuem o
sacramento do sacerdócio, mas que podem curar as pessoas porque possuem o
sacerdócio espiritual. Vamos nos deter brevemente sobre esse ponto.
Por meio do batismo e de um esforço para guardar os mandamentos de
Cristo, todos os Cristãos se revestem de Cristo, e esse é o caminho para
participar do real, profético e altamente sacerdotal ofício de Cristo.
Esse ensinamento é relatado nos textos do Novo Testamento. No Livro do
Apocalipse, João o Evangelista escreve: “Para aquele que nos amor e que nos
lavou de nossos pecados com seu próprio sangue e que nos tornou reis e
sacerdotes para seu Deus e Pai[11]”. O Apóstolo Pedro diz: “Vocês são uma geração
escolhida, um sacerdócio real, uma nação sagrada, seu próprio e especialíssimo
povo[12]”.
E o Apóstolo Paulo escreve aos Cristão de Roma: “Doravante eu apelo a vocês,
irmãos, que, pelas misericórdias de Deus, apresentem seus corpos como um
sacrifício vivo, santo e aceitável a Deus, que será seu culto de adoração
espiritual[13]”.
Em muitos Padres encontramos também esse ensinamento de que qualquer
pessoa é sacerdote de Cristo, no sentido que definimos e desenvolveremos mais
adiante. São João Crisóstomo apresenta Abrahão também como sacerdote, porque,
havendo fogo, um altar e uma faca – como duvidar de seu sacerdócio? O
sacrifício de Abrahão foi duplo. Ele ofereceu tanto seu filho único como o
carneiro e, acima de tudo, sua própria vontade. Com o sangue do carneiro ele
santificou sai mão direita, com a morte do filho – que ele decidira executar-
ele santificou sua alma. Então ele foi ordenado sacerdote, pelo sangue de seu filho
único e pelo sacrifício do carneiro. Em seguida, São João Crisóstomo exorta
seus ouvintes: “Também vocês foram feitos reis, sacerdotes e profetas na pia
[batismal]: reis, por terem atirado ao solo todos os atos perversos e matado
seus pecados, sacerdotes por terem se oferecido a Deus e sacrificados seus
corpos, e também por se terem deixado matar”.
Todos os fiéis batizados em nome da Santíssima Trindade e que vivem de
acordo com a vontade do Deus Santo e Trino são sacerdotes, pois possuem o
sacerdócio espiritual. Preferimos a expressão ‘sacerdócio espiritual’ a outros
termos como ‘sacerdócio leigo’ ou ‘geral’, porque tanto os clérigos como os
leigos podem possuir esse sacerdócio, e porque nem todos os que foram batizados
o possuem, mas apenas aqueles que se tornaram morada do Espírito Santo. O fiel
que possui a prece noética possui o sacerdócio espiritual, especialmente
aqueles que buscaram esse nível de graça para orar pelo mundo todo. As orações
dessas pessoas que se sacrificam, orando pelo bem de todos, sustentam o mundo,
e curam os homens. A partir daí, pela prece, elas se tornam exorcistas,
expulsando os demônios que dominam as sociedades humanas. Esta é a grande obra
dos que oram incessantemente por todo o mundo.
São Gregório do Sinai escreve sobre o sacerdócio espiritual que ele é
também o fundamento essencial do sacramento do sacerdócio. Pois, como dissemos,
aqueles fiéis que foram curados e que possuem a prece noética foram escolhidos
para receber a graça também a graça do sacerdócio. De acordo com São Gregório, “a
prece noética é a liturgia mística da mente. Uma pessoa que possua o dom da
prece noética sente a operação da graça em seu interior, que é purificadora,
iluminadora e mística. Todos os que alcançam esse estado são sacerdotes. O
verdadeiro santuário é um coração que foi liberto dos maus pensamentos e que
recebeu a operação do Espírito, pois tudo nesse coração será dito e feito
espiritualmente”.
Essa passagem do santo Padre me permite dizer que o sacerdócio
espiritual é aquele que deverá se consumar no século futuro, no Reino dos céus.
Sem querermos nos precipitar sobre o
tema do indelével ou não-sacerdotal sacerdócio, enfatizamos a verdade de
que o sacerdócio sacramental é feito para o benefício dos leigos, para servir
às suas necessidades, enquanto que o sacerdócio espiritual é aquele que
continuará a ser celebrado no altar celeste na vida futura. Todos os que
possuem o sacerdócio espiritual são verdadeiros clérigos agora e para sempre.
Esse sacerdócio pode incluir todos os tipos de homens, e, naturalmente, também
as mulheres. Dessa forma, não é muito importante que na tradição Ortodoxa as
mulheres não possam receber o sacramento sacerdotal, pois elas têm a
possibilidade de se tornarem verdadeiros clérigos.
Em outra parte São Gregório do Sinai é explícito: “Todos os reis e
sacerdotes devotos são verdadeiramente ungidos na renovação do batismo, assim
como aqueles antigos eram ungidos simbolicamente. Os sacerdotes do Antigo
Testamento eram verdadeiros símbolos da verdade, mas nosso reino e nosso
sacerdócio não são do mesmo caráter e forma”.
Quando o nous de um homem se
revela, quando ele se libertou de seu cativeiro e recebeu o Espírito Santo, ele
recebe o sacerdócio espiritual e então celebra uma liturgia mística no
santuário de sua alma e participa com o cordeiro das bodas com Deus. Em seu
sacerdócio espiritual ele come do Cordeiro de Deus no altar espiritual de sua
alma, mas ao mesmo tempo ele se torna como o cordeiro. Assim podemos entender
melhor que quando a prece noética opera em nós, inicia-se uma incessante
liturgia divina que nutre toda a nossa existência. São Gregório do Sinai
escreve: “O trabalho noético do nous
é a liturgia espiritual. Como o noivado antes das maravilhas que virão e que
ultrapassam todo entendimento, essa liturgia é celebrada pelo nous, que misticamente sacrifica o
Cordeiro de Deus no altar da alma e que dele participa”. Comer do Cordeiro de
Deus no altar interior significa não apenas apreendê-lo, ou participar dele,
mas também se ornar como ele na vida futura. Aqui desfrutamos das palavras dos
mistérios, mas lá esperamos receber sua verdadeira substância.
O mesmo santo escreve ainda que o Reino dos céus é como o tabernáculo
moldado por Deus para Moisés, porque no mundo por vir ele também terá dois
véus. E todos os sacerdotes da graça entrarão no primeiro tabernáculo, mas só
entrarão no segundo tabernáculo aqueles que doravante celebrarão
hierarquicamente na escuridão da teologia, em perfeição, tendo Jesus como
primeiro celebrante e bispo diante da face da Trindade. Dessa forma, todos os
que adquiriram o dom da teologia, conforme explicamos acima, ou seja, que
passaram da theoria natural para
penetrar na escuridão divina são eles próprios sacerdotes de Deus; eles
constituem o verdadeiro e espiritual sacerdócio. E, uma vez que possuem o
sacerdócio espiritual, eles podem curar os doentes.
Nicetas Stethatos ensina que qualquer sacerdote, diácono ou mesmo
monge que participa da divina graça com todos os pressupostos colocados pelos
Padres, é um verdadeiro bispo ainda que não tenha sido ordenado bispo pelos
homens. Ao contrário, alguém que não seja iniciado na vida espiritual é
falsamente chamado de bispo, mesmo que por sua ordenação ele tenha sido
colocado acima de todos, e deles escarneça ou se comporte de forma arrogante.
Provavelmente aquilo que mencionamos antes, de que todos os que
constituem o sacerdócio espiritual podem curar os doentes, não tenha sido bem
recebido. Entretanto, o ensinamento de São Simeão o Novo Teólogo sobre esse
ponto é revelador. O santo escreve que o poder amarrar e desamarrar pecados
pertence apenas aos bispos, que o receberam por sucessão desde os Apóstolos.
Mas quando os bispos se tornaram decorativos, essa temível função passou para
os sacerdotes que levavam uma vida irrepreensível digna da graça de Deus.
Quando também os sacerdotes, juntamente com os bispos, caíram no erro
espiritual, essa função foi transmitida ao povo escolhido por Deus, em especial
os monges, não porque ela tenha sido tirada dos bispos e dos sacerdotes, mas
porque eles próprios se tornaram estranhos a ela.
De acordo com São Simeão, o poder de amarrar e desamarrar pecados não
foi dado simplesmente por causa da ordenação. A imposição das mãos apenas deu
aos metropolitas e bispos a permissão para celebrar a Eucaristia. O poder de
remir os pecados foi dado apenas aos sacerdotes, bispos e monges que foram
contados dentre os discípulos de Cristo por causa de sua pureza.
Acreditamos que São Simeão desenvolveu seu ensinamento em primeiro
lugar de modo a enfatizar que o sacramento do sacerdócio não transmite
magicamente a autoridade para perdoar aos homens seus pecados, se a pessoa não
possuir o sacerdócio espiritual interior; em segundo lugar, para mostrar a
miserável condição do clero de seu tempo; em terceiro, para sublinhar o valor
do sacerdócio espiritual, que reside na prece noética e na visão de Deus, e
que, infelizmente, como sabemos, era negligenciado; enfim, porque ele próprio
teve a experiência pessoal disso: se pai espiritual, que não havia sido
ordenado bispo, possuía a graça do Espírito Santo e era capaz de perdoar os
pecados.
Apesar disso seu pai espiritual, Simeão o Piedoso, não ignorava o
sacramento da ordenação. São Simeão o Novo Teólogo escreve: “Eu sei que a graça
de amarrar e desamarrar pecados é dada por Deus àqueles que são filhos por
adoção e santos servidores. Também eu fui discípulo e um pai assim, que não
recebeu a imposição das mãos de parte dos homens, mas por intermédio da mão de
Deus, ou seja, do Espírito, e que me inscreveu dentre seus discípulos e me
ordenou que recebesse a imposição das mãos pelos homens de acordo com a forma
prescrita, a mim que por um longo período fui impelido pelo Espírito a essa
realidade”. E ele continua: “Tendo ouvido os mandamentos de Cristo, ele se
tornou partícipe de sua graça e de seu dons e recebeu dele o poder de amarrar e
desamarrar, avivado pelo Espírito Santo”.
Quando falamos de remissão dos pecados entendemos com isto
principalmente a cura das paixões. Assim, vemos claramente hoje que os monges
que receberam os dons nos podem curar, sem que tenham recebido o sacramento do
sacerdócio. Sendo clarividentes, eles percebem o problema que nos aflige, nos
dão o remédio e o método de cura, e assim nos curamos daquilo que nos
perturbava interiormente. A existência desses homens santos é um conforto para
o povo.
1.1.3.
Nossa procura por terapeutas
Chegamos agora à busca por terapeutas. Agora que estamos cientes da
moléstia espiritual e do grande valor dos sacerdotes-terapeutas, devemos
procurar por eles de modo a livrar nossas almas das úlceras que as acometem. É
preciso um grande esforço para encontrar esses verdadeiros condutores do povo,
os doutores de nossas almas e corpos, uma vez que com certeza muitas doenças
físicas têm origem espiritual.
Em sua homilia do Domingo da Ortodoxia, São Gregório Palamas adverte:
“Que todo Cristão, após se apresentar na igreja aos domingos, procure
diligentemente alguém que, imitando os Apóstolos que estavam na sala superior
depois da Crucificação, esteja completamente absorto em si mesmo, desejando
estar com o Senhor no silêncio da prece e da salmódia, e de todas as maneiras
possíveis. Que o Cristão dele se aproxime, que entre em sua casa com fé como se
estivesse num espaço celeste no qual habitasse o poder santificador do Espírito
Santo. Que ele se sente com o homem que vive ali, que permaneça com ele tanto
quanto possível, perguntando sobre Deus e sobre as coisas de Deus, aprendendo
com humildade e pedindo por suas orações”. Então, dizia o santo, “eu sei que
Cristo irá até ele invisivelmente e concederá a paz interior à reflexão de sua
alma, aumentando sua fé e dando-lhe suporta, e quando chegar a hora, o
inscreverá no Reino dos céus”.
É preciso procurar por esse pai espiritual. A esse respeito é
vantajoso escutar o que São Simeão o Novo Teólogo tem a dizer. “Peça a Deus,
diz ele, pare que lhe mostre um homem capaz de orientá-lo, alguém a quem você
obedecerá. Devemos mostrar obediência ao homem que Deus nos mostrou em pessoa misticamente
ou externamente por intermédio de Seu servidor, e reverenciá-lo como se ele
fosse o próprio Cristo”. Devemos mostrar em relação ao nosso impassível pai
espiritual o mesmo tipo de confiança e amor que uma pessoa doente tem para com seu
médico, esperando dele o tratamento e a cura. Devemos ter ainda mais confiança
e amor, por causa da diferença entre a alma e o corpo. O próprio Cristo está presente
no pai espiritual. Ele é a boca de Deus.
Mais adiante, São Simeão equipara a atitude dos Apóstolos em relação a
Cristo com a atitude que devemos ter em relação ao nosso pai espiritual, porque
é dessa maneira que nossa alma pode ser curada. Assim como os Apóstolos seguiam
a Cristo, devemos fazer o mesmo. Quando as pessoas desonram em cospem em nosso
pai espiritual, não devemos abandoná-lo. E assim como Pedro tomou de sua espada
e cortou a orelha do soldado, devemos também segurar com força nossa espada em
nossa mão e cortar não apenas a orelha, mas a mão e a língua daquele que tenta
falar contra nosso pai ou atacá-lo. Se você o negar, chore como Pedro. Se o vir
crucificado, morra com ele se puder. Se não lhe for possível, não se junte aos
traidores e aos homens maus. Se ele for solto da prisão, retorne para junto
dele e venere-o ainda mais, como a um mártir. Se ele morrer por doença, procure
por seu corpo e lhe dedique ainda mais honra do que quando ele estava vivo, untando-o
com perfumes e lhe dando um faustoso funeral.
É bem característico que o pai espiritual, o terapeuta, seja colocado
no lugar de Cristo. São Simeão também emprega um tipo de oração na qual ele
pede para encontrar um guia espiritual adequado que possa oferecer a nós uma
cura espiritual: “Ó Senhor, que desejas não a morte do pecador, mas que ele se
recupere e viva, tu que vieste à terra para restaurar a vida aos que morreram
pelo pecado e para torná-los dignos de ver Tua verdadeira luz, tanto quanto pode
o homem, envia-me um homem que Te conheça, para que, servindo-o e submetendo-o
a ele com toda minha força, como a Ti eu servisse, e para que, fazendo a sua
vontade como se fosse a Tua própria vontade, possa eu agradar-Te, o único e
verdadeiro Deus, e para que mesmo eu, um pecador, me torne digno do Teu reino”.
Se um Cristão orar dessa maneira, Deus lhe mostrará o pai espiritual adequado,
que cuide de sua moléstia e das feridas de sua alma.
Certamente não devemos ignorar o fato de que tais terapeutas, tanto no
tempo de São Simeão como hoje, são raros. Ele disse: “Verdadeiramente, são
raros aqueles que possuem a arte de orientar corretamente e curar as almas
racionais, especialmente nos dias que correm”.
Concluindo, devemos dizer que é necessário procurar e encontrar esses
doutores, cientistas, terapeutas, ou mesmo enfermeiros, para sermos
espiritualmente curados. Não existe outro método de cura. Deus é o verdadeiro
Curador, mas também o são os amigos de Cristo, os santos nos quais habita o
próprio Deus Trinitário.
Estou relendo esta obra magnífica. Muito obrigada Pe. Tito.
ResponderExcluir