1.
O terapeuta Ortodoxo
Esperamos ter estabelecido a verdade de que o Cristianismo é
principalmente uma ciência terapêutica. Ele busca a cura espiritual do homem.
Ademais, a correta prática da medicina requer um bom médico, um profissional, e
isso se aplica também à cura espiritual. É preciso que haja um bom doutor. Ele
será um sacerdote ou um bispo.
Como já notamos, as pessoas de hoje sentem que a função do sacerdote é
capacitá-las a tomar parte nos santos sacramentos. Elas sentem que ele foi
ordenado por Deus, como seu servo ou diácono, de modo que elas podem lhe
confessar seus pecados e dele obter a absolvição. Eles esperam que nele seja o
diácono de Deus, chamado a orar para ele para que suas obras sejam abençoadas,
e assim por diante. Certamente, ninguém irá negar que o sacerdote desempenha
essas funções também, mas usualmente as pessoas parecem enxergar o sacerdote
quase como um mágico, com o perdão da expressão. Pois, se enxergamos a vida de
adoração independente da cura, então só pode se tratar de magia!
Repetimos, mais uma vez, para que fique bem claro, que o sacerdote é
propriamente um médico espiritual que cura as enfermidades das pessoas. O culto
e os sacramentos devem ser colocados dentre seus métodos terapêuticos e de
tratamento.
Mesmo como confessor, o sacerdote é principalmente um terapeuta. O
sacramento da confissão não é uma mera absolvição formal, especialmente como
acontece no modelo Ocidental, como se Deus estivesse bravo e exigisse uma
expiação. Ele é parte de um tratamento terapêutico. Existem muitos Cristãos que
se confessam por anos e anos e não se curam de suas moléstias espirituais.
Contribui para isso a ignorância, tanto de parte do povo, como de parte dos
pastores.
A tarefa de bispos, sacerdotes e confessores é a de conduzir o povo
para fora do Egito até a terra prometida, como novos Moisés. Essa orientação
requer esforço e trabalho, privações e angústia. Ela consiste principalmente
numa supervisão terapêutica. Os Padres insistem muito sobre essa verdade.
Tomemos São João Clímaco como exemplo. Ele adverte que “aqueles de nós que
desejam sair do Egito e fugir do Faraó necessitam de um intermediário perante
Deus, que se coloque entre a praxis e
a theoria e que estenda seus braços a
Deus, para que aqueles que são guiados por ele possam cruzar o mar e por em
fuga ao Amelek das paixões”. O Novo testamento nos mostra o tanto que Moisés
suportou e como ele guiou seu povo teimoso.
Esse Moisés espiritual é um médico. De resto, todos nós estamos
doentes e precisamos de um.
São Simeão o Novo Teólogo, falando a monges, esclarece essa verdade.
Como sabemos pela Tradição Ortodoxa, os mosteiros são propriamente hospitais.
Seria até melhor chamá-los de escolas de medicina. Como pessoas doentes, ali
somos curados, e depois disso aprendemos como curar. Por isso a Igreja
primitiva buscava seus sacerdotes nos mosteiros, que eram escolas médicas, para
colocá-los no posto de observação de bispos.
Assim é que, falando a monges, São Simeão não hesita em dizer que
somos todos pobres e necessitados. Ele explica o quanto cada um de nós que
estamos em nossas celas fomos feridos e afetados por diferentes enfermidades;
por isso não podemos fazer nada além de gritar dia e noite para que o médico
das almas e corpos cure nossos corações dilacerados e nos devolva a saúde
espiritual. O santo escreve: “E isso não é tudo: [além de estarmos nus e na
miséria] jazemos vergonhosamente feridos, afetados por numerosas moléstias, ou
nos movemos com dificuldades em nossas celas ou mosteiros, como nos hospitais e
casas para idosos. Choramos e nos lamentamos, e chamamos por Aquele que é o
médico das almas e corpos – ao menos na medida em que estamos conscientes da
dor de nossas feridas e aflições, porque existem também os que sequer se dão
conta de estar feridos e aflitos – para que Ele venha e cure nossos corações
feridos e dê saúde às nossas almas que jazem no leito do pecado e da morte.
Pois todos nós pecamos, como disse o santo Apóstolo, e temos necessidade de sua
misericórdia e de sua graça”.
Apresentamos esse texto longo porque nele se coloca claramente a
missão do monaquismo e da Igreja, bem como o trabalho dos pastores. Trata-se
principalmente de uma tarefa terapêutica. Estamos enfermos na cama do pecado e
da morte. Quem for incapaz de perceber esta verdade está “louco”. Sendo assim,
os Cristãos que não permanecem na Igreja para serem curados ou que sentem que
estão bem, podem ser considerados “loucos”.
De acordo com São Simeão o Novo Teólogo, o sacerdote é um médico: a
pessoa vai ao “doutor espiritual arrasada pela paixão, com sua mente
consternada”. O “doutor especialista”, “que é humano e compassivo, entende a
fraqueza de seu irmão, a inflamação causada pela angústia, o tumor; ele vê a
pessoa doente inteiramente sob o poder da morte”. Então o santo descreve o
caminho pelo qual o médico especialista verifica a enfermidade, e o modo como
ele a cura.
Já mencionamos as duas imagens básicas que caracterizam o trabalho do
pastor: que ele é como Moisés que guia seu filho espiritual, e que ao mesmo
tempo é um cientista e um médico solidário. Ambas as qualidades estão contidas
num dos poemas de São Simeão que descreve sua própria cura por seu pai
espiritual, seu Moisés pessoal. Ele aplica à sua própria vida a jornada do povo
Israelita sob a conduta de Moisés. Ele escreve:
“Ele veio e me
encontrou como escravo e estrangeiro,
E ele disse: Venha,
meu filho, eu o levarei para junto de Deus!”
Ele perguntou ao seu Moisés sobre as “garantias” de que ele seria
capaz de fazer tal coisa.
“Ele me trouxe para
junto de si e me aperou com força
E beijou-me com um
beijo santo
E havia um perfume de
imortalidade ao seu redor.
Eu acreditei, e amei
seguir com ele
E desejei servi-lo, e
apenas a ele...
Ele me tomou pela mão
e caminhou na minha frente
E desse modo começamos
a trilhar o caminho.”
Ao final de uma longa jornada na qual, por meio das intercessões de
seu pai espiritual, ele teve sucesso no enfrentamento de suas paixões e se
libertou de sua escravidão, São Simeão agradece ao seu pai espiritual:
Venha, eu disse, meu
senhor, não me afastarei de você,
Eu não desobedecerei
às suas ordens, e guardarei todas elas comigo.”
De qualquer modo, para que uma pessoa se torne um terapeuta Ortodoxo
apta a curar os males espirituais de seu filho espiritual, é preciso que ela
própria tenha sido previamente curada, tanto quanto possível, para que possa se
colocar “entre a praxis e a theoria”. Como pode alguém curar sem ter
sido previamente curado, ou sem ter experimentado ao menos o começo da cura?
Assim sendo, São Simeão acusa aqueles que veem a si mesmo como diretores
espirituais sem antes terem sido mergulhados no Espírito Santo, aqueles que
recebem confissões precipitadamente e que ousam administrar mosteiros ou ocupar
outras posições de autoridade, “impelindo vergonhosamente a si próprios, por
meio de mil intrigas, para conseguir se tornar metropolitas ou bispos para
guiar o povo do Senhor”, antes de ter acesso “câmara nupcial”, e antes de se
tornarem “filhos da luz e filhos do dia”.
Tudo isso foi incomparavelmente colocado por São Gregório o Teólogo,
que escreveu: “Primeiro é preciso ser purificado, e só então purificar;
tornar-se sábio, para tornar sábio a outrem; tornar-se luz, para iluminar;
aproximar-se de Deus, para levar outros a ele; santificar-se, para santificar”.
São João Crisóstomo, que foi saudado como um especialista em
sacerdócio, escreve numa famosa passagem na qual procura justificar sua recusa
em tornar-se bispo, que ele está ciente da fraqueza e da pequenez de sua alma,
assim como da importância e dificuldade de guiar o povo: “Eu sei o quão fraca e
insignificante é minha alma. Eu conheço a importância desse ministério e as
grandes dificuldades que ele apresenta”.
Em sua discussão com São Basílio ele lhe diz não ter dúvidas sobre o
que ele dissera, que ao mesmo tempo em que ama a Cristo, teme provocar
escândalo ao assumir o ministério espiritual, “dado que a enfermidade de meu
espírito me torna despreparado para esse ministério”. A grande pureza de seus
pensamentos e sentimentos o fez sentir que a fraqueza de sua alma o
incapacitava para esse grande ministério. Pois, de fato, como se pôde observar
em outras ocasiões, paixões não curadas impedem o sacerdote de ajudar na cura
de seu filho espiritual.
Se o terapeuta não tiver sido previamente curado, ele não passa de um
“lugar comum”. “Eles simplesmente pegam pessoas desinteressantes, que nada
acrescentam, e as encarregam dessas coisas”.
Todas essas coisas a que nos referimos mostram a grande verdade que os
sacerdotes que pretendem curar as enfermidades do povo devem primeiro curar-se
dessas enfermidades, ou no mínimo terem iniciado a cura, e devem também estar
cientes do valor e da possibilidade dessa cura.
Aquilo que se seguirá deve ser visto dentro desse contexto. Devemos
deixar claro que não pretendemos contemplar todo o espectro do sacerdócio e do
papel dos sacerdotes. Não é nosso propósito explicar o valor e a importância do
sacerdócio, mas observar esse grande e responsável ofício do ponto de vista da
ciência terapêutica cuja maior obra consiste em curar os homens. Se em alguns
pontos parecer que estamos salientando o valor do sacerdócio, o fazemos apenas
de modo a ressaltar este lado que estamos enfatizando até aqui.
1.1. Pré-requisitos
para a função de sacerdote-terapeuta
É o Espírito Santo, ou, em termos mais gerais, a graça do Espírito
Santo que realiza a cura dos Cristãos doentes. O sacerdote é um servidor dessa cura. Toda
a organização da Igreja é divino-humana.
Acima de tudo, a graça de Deus trabalha secretamente no sacerdote e ele conhece
por experiência essa ação oculta da graça de Deus.
1.1.1.
O valor do sacerdócio
É grande o valor do sacerdócio. São João Crisóstomo escreve: “O
trabalho do sacerdócio é feito na terra, mas é classificado dentre as ordenações
celestes”, uma vez que ele não é ordenado pelo homem, anjo, arcanjo ou outro
poder criado, mas “pelo próprio Paráclito”.
“Assim como o sol supera as estrelas”, a celebração pelo sacerdote
“supera toda salmodia ou prece”, e difere de todos os outros serviços. Isso
acontece porque através do sacramento da Eucaristia nós sacrificamos o próprio
Filho único que sofreu por nossos pecados. Se alguém celebra corretamente “os
divinos, reverenciados e terríveis mistérios, o benefício que se origina disso
será maior do que aquele que deriva de qualquer outra obra ou da theoria”.
O valor do sacerdócio, que pode sacrificar o cordeiro, é devido ao
fato de que ele pode auxiliar o homem a caminhar da imagem de Deus para a
semelhança com Deus. Ele pode guiá-lo em direção à deificação, que é de fato a
cura do homem, ou antes, ele pode manifestar sua cura.
Os Padres, comparando o sacerdócio com outros tipos de trabalho, o
consideravam maior, porque outros ofícios ajudam o homem a resolver problemas
mundanos, enquanto que o sacerdócio o conduz à deificação. Dessa forma, “o
sacerdócio é mais elevado do que um reinado”, uma vez que o sacerdote “governa
as coisas divinas, enquanto os outros governam as coisas terrestres”.
De fato, como enfatizamos, no trabalho pastoral do sacerdote está o
sacerdócio do próprio Cristo. O sacerdote ministra essa graça sobre o povo e
assim se capacita a perdoar e curar os pecados dos homens.
Dissemos apenas essas poucas coisas a respeito do valor do sacerdócio,
porque não é nosso objetivo nesse capítulo enfatizar o grande valor desse
trabalho.
1.1.2.
O chamamento e a ordenação dos Apóstolos
O Senhor chamou aqueles que estavam talhados para essa obra e lhes
concedeu Seu sacerdócio. Dessa forma, os primeiros bispos foram os Apóstolos. O
Senhor chamou-os à dignidade apostólica, esteve com eles por três anos
inteiros, e então lhes concedeu o Espírito Santo para que perdoassem pecados, e
enviou-os a pregar a “todas as nações”, e para que guiassem os povos. Ele os
fez pescadores de homens e pregadores do Evangelho. Foi essa escolha e esse
envio que fez deles Apóstolos. Não existe evidência na Sagrada Escritura de que
o Senhor tenha usado alguma cerimônia especial para conferir o serviço
sacerdotal aos Apóstolos. Podemos dizer, no entanto, que “o Senhor, tendo ele
próprio instituído os sacramentos, não estava limitado por eles, mas estava
apto a torná-los efetivos apenas pela expressão de sua vontade”. O que quer que
tenha acontecido, o fato é que o chamado dos doze Apóstolos por Cristo, sua
aparição depois da Ressurreição, o dom da graça de perdoar pecados e a chegada
do Paráclito no dia de Pentecostes estabeleceram-nos como os pastores do povo
de Deus.
E temos ainda o caso do Apóstolo Paulo, que não foi discípulo de
Cristo durante o período de vida deste, mas que também foi chamado ao grau
apostólico. Ele próprio se considerava como apóstolo de Jesus Cristo: “Paulo,
apóstolo de Jesus Cristo, por mandamento de Deus nosso Salvador e Senhor Jesus
Cristo[1]”.
Em outra passagem ele escreve: “Pois eu reivindico não ter feito menos do que
os maiores dentre os apóstolos[2]”.
Em outra parte, o mesmo Apóstolo escreve: “Agradeço a Jesus Cristo nosso
Senhor, que me deu a força. Ao me chamar para seu serviço ele me considerou
digno de fé[3]”.
Ele tinha certeza de ter sido uma testemunha legítima da Ressurreição, porque
no caminho para Damasco ele viu o Cristo ressuscitado. A partir daí, ao falar
das aparições de Cristo ressuscitado, ele proclamava ousadamente: “Último
dentre todos, também eu o vi, como o último filho que nasce inesperadamente[4]”.
Ele se colocava entre as testemunhas da Ressurreição.
A aparição de Cristo a Paulo não apenas lhe conferiu a dignidade de
Apóstolo como significou sua ordenação no sacerdócio de Cristo.
O Professos Romanides escreve: “De acordo com o Apóstolo Paulo, os
profetas em uma paróquia[5]
são aqueles que, como os apóstolos[6],
atingiram a deificação, a visão de Cristo na glória da Santíssima Trindade.
Paulo enfatiza isso claramente quando escreve sobre o ministério de Cristo,
‘que em outras épocas não era conhecido dos filhos dos homens, do modo como foi
revelado agora pelo Espírito aos seus santos Apóstolos e profetas[7]’.
É dentro desse contexto que a fala introdutória da lista dos membros do corpo
de Cristo deve ser entendida: ‘Se um membro é honrado, todos os membros se
regozijam com ele[8]’.
Isso equivale a dizer que o membro honrado foi deificado e feito profeta por
Deus. É por isso que o Apóstolo, ao enumerar os vários membros do corpo de
Cristo, começa pelos apóstolos e profetas e termina pelos que falam em línguas
e as interpretam[9],
que são as formas do culto noético[10].
Nos termos de Paulo, aquele que profetiza é o que interpreta o Antigo
Testamento – o Novo Testamento ainda não existia - com base na experiência da prece noética, que
era chamada de ‘diferentes tipos de línguas’. Em contraposição, o Profeta é
aquele que atingiu a deificação. Essa é precisamente a distinção patrística
entre teologizar e teologia. Todos aqueles abaixo dos Apóstolos até a pessoa
que profetiza e interpreta possuem ‘variedades de línguas’, isto é, diferentes
tipos de culto do Espírito Santo em seus corações. Assim, eles são chamados por
Deus para se tornarem membros do corpo de Cristo e templos do Espírito Santo.
Ao serem chamados por Deus eles se diferenciam dos ‘desinformados[11]’,
aqueles que ainda não haviam recebido a unção da visitação do Espírito Santo
rezando continuamente em seus corações, e que ainda não podiam se tornar
templos do Espírito Santo. Aparentemente eles haviam sido batizados em água
para a remissão dos pecados, mas não batizados pelo Espírito, ou seja,
crismados. Provavelmente o sacramento da unção da crisma era dado para
confirmar que o Espírito Santo tinha vindo para rezar em seu interior e,
portanto, dali por diante ele poderia ser chamado ‘confirmatio’ em Latim”.
“Os apóstolos e profetas deificados e os professores iluminados, junto
com aqueles que possuíam o dom dos milagres, curas, auxílio, administração ou
variedade de línguas[12],
aparentemente constituíam o clero ungido e o sacerdócio real, como indica o
serviço da Santa Crisma. O restante, conforme testemunham os Padres, era
formado pelos leigos. A expressão ‘Aqueles a quem Deus apontou na Igreja[13]’
claramente se refere aos que haviam recebido a visita do Espírito Santo, com a
deificação para apóstolos e profetas e iluminação para os demais, e não apenas
mediante um ato litúrgico”.
1.1.3.
Requisitos básicos para a ordenação
É certo que os apóstolos transmitiam o sacerdócio de Cristo por meio
de um sacramento definido chamado de Sacramento das Santas Ordens. A Igreja
também fixou os pré-requisitos canônicos para qualquer um que quisesse receber
essa grande graça e exercitar essa alta função.
Essa ordenação era a dos diáconos na primeira Igreja de Jerusalém.
Depois que foram escolhidos sete diáconos, escreve o Livro dos Atos, “eles
foram colocados diante dos apóstolos, e depois que estes rezaram impuseram suas
mãos sobre eles[14]”.
Aqui temos a imposição das mãos e a prece. São João Crisóstomo, analisando essa
passagem, escreve: “Não se fala sobre a maneira como foi feito, mas que eles
foram ordenados com uma prece; e este é o significado da imposição das mãos: a
mão é colocada sobre o homem, mas que opera é Deus”.
O que se pode notar nesse caso é que eles foram escolhidos por todo o
corpo de Cristãos da primeira Igreja. Muitas qualificações foram exigidas, e a
qualificação básica é de que tivessem recebido o Espírito Santo. Em relação à
escolha de Estevão, lemos nos Atos dos Apóstolos: “Eles escolheram Estevão, um
homem cheio de fé e do Espírito Santo[15]”.
Assim, eles não apenas receberam o Espírito Santo no momento da ordenação, como
possuíam a graça do Espírito Santo.
Interpretando isso, São João Crisóstomo diz que Estevão teve a graça
do Espírito Santo “desde o banho” batismal. Somente essa graça não era o bastante,
mas era necessária a ordenação por meio da imposição das mãos, “de modo a que
houvesse um posterior acesso ao Espírito”. Ele também diz que Estevão recebeu
uma graça maior do que a dos demais diáconos: “pois apesar de que a ordenação
fosse a mesma para ele e os demais, ele alcançou uma graça maior”. Isso foi
devido à sua maior pureza e à presença nele do Espírito Santo.
Isso mostra além de qualquer dúvida que os candidatos a esse grande
ofício do sacerdócio não esperavam simplesmente pelo dia de sua ordenação para
receber o Espírito Santo, mas tinham que se abrir previamente para o Espírito
Santo.
A Igreja faz muita questão disso, como podemos ver pelas cartas
pastorais do Apóstolo Paulo. Ele escreve a Timóteo: “quando eu me lembro da fé
genuína que existe em você, que primeiro habitou sua avó Lóide e sua mãe
Eunice, e que, estou persuadido, está também em você[16]”.
Sabemos bem que a fé não consiste num ensinamento abstrato, mas numa
“compreensão e numa visão do coração”, e que ela é a vida do Espírito Santo em
nossa alma.
O Apóstolo escreve ainda a seu discípulo Timóteo, a quem ele próprio
ordenara bispo: “Não negligencie o dom que existe em você, que lhe foi dado por
profecia com a imposição das mãos do presbitério[17]”.
Em outra parte, ele escreve: “Eu o encarrego disso, meu filho Timóteo, de
acordo com as profecias referentes a você desde antes[18]”.
São Teofilactos oferece esta interpretação: “O grau de sacerdócio, que concerne
à instrução e à proteção do povo, sendo grande e elevado, requer que o
candidato seja aprovado desde o alto por Deus. Por essa razão, nos tempos
antigos aqueles que se tornavam sacerdotes ou bispos o faziam por intermédio de
profecias divinas, ou seja, pelo Espírito Santo”.
Muita preparação e muitos requisitos estavam envolvidos na seleção de
sacerdotes e bispos para esse grande ofício. O Apóstolo exorta: “Se um homem é
irrepreensível[19]”,
deixe que ele seja indicado para sacerdote ou bispo. Ele também recomenda que
essa pessoa não deve “ser um noviço[20]”,
porque o indicado deve ter uma experiência espiritual prévia e então ser
batizado para o grande ofício, ele deve ter se purificado, como veremos mais
adiante, e somente então receber a ordenação.
Também São João Crisóstomo escreve que um sacerdote deve ter mais
atenção e força espiritual até do que os eremitas. Pois se os eremitas, que
estão livres “da cidade, do mercado e de todo o povo”, não estão seguros em
espírito, quanto mais força e vigor serão precisos para o exercício do
sacerdote de modo a ser capaz de “arrancar sua alma de toda infecção e manter
sua beleza espiritual inviolada”. É por isso que ele afirma que o clérigo que
vive no mundo precisa ter ainda mais pureza do que os monges.
Esse tema da salvaguarda da pureza no sacerdócio nos ocupará mais
adiante. Neste momento, queremos enfatizar as qualidades que deve ter o Cristão
se quiser ser ordenado padre. Pois, se ele próprio não estiver curado, como
poderá ser capaz de curar a espiritualidade enfraquecida e enferma?
A preparação para o sacerdócio é um dos temas dominantes nos trabalhos
de São Simeão o Novo Teólogo. Qualquer um que não tenha abandonado o mundo e
que não tenha sido considerado digno de receber o Espírito Santo, como o foram
os santos Apóstolos, que não tenha passado pela purificação e pela iluminação e
que não tenha sido considerado digno de “contemplar a luz inatingível” – “este
homem não ouse aceitar o sacerdócio e a autoridade sobre as almas, nem agir
nesse sentido!”.
Encontramos o mesmo ensinamento em São Teognosto. Se o sacerdote, diz
ele, “não foi certificado pelo Espírito Santo”, para atuar como um
intermediário aceitável entre Deus e o homem, ele não deve “presunçosamente
ousar celebrar os terríveis e santíssimos mistérios”.
Quando a ordenação se tornava iminente, os Padres fugiam para as
montanhas, como vemos pela vida de São Gregório o Teólogo. Em sua “Defesa da
viagem a Pontos” ele procurou defender sua ação, dizendo que ninguém se
comprometer a pastorear o rebanho espiritual a menos que tenha se tornado
previamente um templo do Deus vivo, “uma morada de Cristo no Espírito”, ou a
menos que tenha vislumbrado “por experiência e contemplação” todos os títulos e
poderes de Cristo, e aprendido “a sabedoria oculta de Deus num mistério” – vale
dizer, se ainda for um bebê “alimentado a leite”.
Certamente os santos Padres não estavam inconscientes do fato de que
muitos foram ordenados sem preencher esses ideais, e que não haviam sido
purificados, nem curados. Pois muitas ordenações se originaram “não da graça
divina, mas da ambição humana”. E é bem conhecida a fala de São João Crisóstomo
de que “Deus não ordena ninguém, mas opera por meio de todos”.
1.1.4.
Os três graus do sacerdócio
A partir de um estudo de fontes, principalmente da literatura
patrística, fica claro que os graus do sacerdócio (diácono, padre, bispo) estão
estreitamente conectados com os três graus básicos da vida espiritual. Isso
significa que na medida em que um homem progride na cura ele ascende na escala
espiritual da graça e bênção sacerdotal. Este é, pelo menos, o que ensinam os
Padres. Desenvolveremos mais adiante este ponto fundamental do ensinamento
patrístico quando falarmos da graça curativa do sacerdócio.
No capítulo anterior enfatizamos que a vida espiritual está dividida
em três estágios, que são a purificação, a iluminação e a deificação.
Encontramos essa divisão em muitos Padres, embora às vezes com nomes
diferentes. Por exemplo, Nicetas Stethatos escreve que existem três etapas no
avanço para a perfeição: a etapa inicial de purificação, a etapa intermediária
de iluminação e finalmente a etapa de perfeição mística. Conforme o Cristão
avança através dessas três etapas, ele cresce em Cristo. O trabalho de
purificação consiste em submeter a carne e evitar todo pecado que excite a
paixão; ele permite o crescimento do arrependimento, as lágrimas, etc. A etapa
de iluminação assiste ao início da impassibilidade, que se caracteriza pelo
discernimento, pela “contemplação dos princípios internos da criação” e pela
“comunhão com o Espírito Santo”. Sua tarefa é a “purificação do intelecto (...)
descobrindo os olhos do coração (...) e a revelação dos mistérios do Reino dos
Céus”. E a etapa da perfeição mística permite à pessoa “buscar os mistérios
ocultos de Deus”, preenche-a com a “companhia do Espírito” e lhe mostra como
ser “um sábio teólogo no seio da grande Igreja”, etc.
Dessa forma uma pessoa que viva na Igreja e seja ajudada pela graça
divina purifica a parte passional de sua alma, seu nous se ilumina e ela ascende à teologia mística, a deificação
abençoada.
Na teologia de São Máximo o Confessor esses três estágios são
expressos como filosofia prática (purificação positiva e negativa), theoria natural (iluminação do nous) e teologia mística (deificação).
Os Padres da Igreja, tendo se retirado de todas as criaturas, ascenderam à
visão de Deus, e essa visão alcançou seu mais alto grau na “ciência teológica”,
ou “mistagogia teológica” ou “teologia mística”, que também é chamada de
“inesquecível conhecimento espiritual”.
Assim, os Padres que viviam na theoria
(visão de Deus) eram os verdadeiros teólogos e ao mesmo tempo eram a própria e
real teologia, uma vez que a teologia preenchia totalmente sua existência.
De acordo com São Máximo, Moisés era teólogo, porque ergueu sua tenda
fora do campo, “ou seja, quando estabeleceu sua vontade e sua mente fora do
mundo das coisas visíveis, começando assim a adorar a Deus”. Os três discípulos
escolhidos também se provaram teólogos no Monte Tabor, quando lhes foi
concedido ver a luz da divindade três vezes solar. Também São Paulo, que foi
elevado ao terceiro céu, era teólogo. São Máximo explica que os três céus
correspondem aos três degraus da subida mística do homem, ou seja, a filosofia
prática, a theoria natural e a
teologia mística.
Apresentamos esse ensinamento patrístico de modo a relacioná-lo com o
tema que nos concerne neste capítulo. São Máximo liga os três estágios da vida
espiritual com os três graus do sacerdócio. Ele escreve: “Aquele que unta seu nous para a contenda espiritual e
expulsa todos os pensamentos passionais daí tem as qualidades do diácono.
Aquele que ilumina seu nous com o
conhecimento das coisas criadas e destrói completamente o falso conhecimento
tem a qualidade de sacerdote. Aquele que aperfeiçoou seu nous com a santa mirra do conhecimento e adora a Santíssima
Trindade tem a qualidade de bispo”.
Quero agora comparar isso com outra interpretação, especificamente a
de São Nicodemos o Hagiorita, uma vez que é básico na prática da Igreja que um
santo interprete a outro santo, para que, dessa maneira, a Igreja encontre a
expressão de sua experiência comum. São Nicodemos escreve: “Máximo, o inspirado
por Deus, vê como a tarefa do diácono limpar os demais de suas paixões e dos
maus pensamentos por meio de um esforço moral; a tarefa do sacerdote é a de
iluminar os outros com a theoria
natural dos princípios internos das coisas; finalmente, a do bispo consiste em
aperfeiçoar as pessoas com a luz dos princípios interiores da teologia (...) e
assim o sacerdote principal não deve ser apenas um filósofo moral, natural ou
contemplativo, mas também um teólogo, porque ele aquelas funções pertencem ao
diácono e ao padre”.
Devemos notar que a conexão entre os três graus do sacerdócio e os
três estágios da vida espiritual é mencionada nos escritos de São Dionísio o
Areopagita, que contém a tradição da Igreja. E se estes escritos são
considerados como representativos da norma da Igreja nos primeiros séculos,
parece claro que esses três estágios da vida espiritual correspondiam então aos
três graus do sacerdócio. Quero me
estender um pouco a respeito, para mostrar essa conexão.
É sabido que em seu trabalho “A hierarquia eclesiástica” São Dionísio
o Areopagita descreve os três estágios da vida espiritual: purificação,
iluminação e perfeição, sendo esta última equivalente à deificação. “A
dignidade dos bispos é aquela que possui por completo o poder de consagração
(...) sua tarefa não é apenas a de consagrar, mas de tornar perfeito. A
dignidade sacerdotal é iluminadora, ela traz a luz, enquanto que a tarefa dos
diáconos é a de purificar e de discernir o imperfeito”. O trabalho do clero é
litúrgico, santificador e purificador, uma vez que é através dos sacramentos
que a vida espiritual do homem se desenvolve. Em outras palavras, os sagrados
ritos da Igreja não são formas, mas eles purificam, iluminam e conduzem o homem
ao estado de perfeição.
Assim sendo, o trabalho de diáconos, padres e bispos está conectado
com o crescimento espiritual dos Cristãos. De acordo com o serviço batismal,
tal como apresentado por São Dionísio – e acreditamos que isso reflete o uso
dos primeiros séculos da Igreja – quando uma pessoa é trazida para o batismo, o
diácono a despe de suas roupas; isto mostra seu papel na Igreja como
purificador. O padre unta todo o corpo do candidato; isto mostra seu papel na
Igreja como iluminador. O bispo conduz a pessoa à perfeição ao batizá-la; isto
mostra seu papel como perfeccionador. A ordem dos bispos “executa toda
consagração hierárquica. Ela ensina como entender, explicando as coisas
sagradas, estabelecendo suas características e seus santos poderes”. A ordem
dos padres “guia o iniciado para as divinas visões dos sacramentos”, mas envia
aos bispos “aqueles desejosos de um completo entendimento dos ritos divinos que
estão sendo contemplados”. Dessa forma, o padre ilumina os Cristãos, sob a
autoridade de um bispo, mas envia a ele aqueles que desejam a perfeição, uma
vez que a divina ordem dos bispos é a primeira a contemplar a Deus. A ordem dos
diáconos, antes de conduzir os candidatos aos padres, “purifica os que se
aproximam, afastando-os de qualquer flerte com o que é mau. Isso os torna
receptivos para a visão ritual e a comunhão”.
É muito significativo que, de acordo com São Dionísio, os bispos não
devem se ocupar apenas da perfeição, mas também iluminar e purificar.
Similarmente, os padres possuem o entendimento tanto para iluminar quanto para
purificar, enquanto que os diáconos só o têm para purificar. “Os inferiores não
devem avançar sobre as funções dos superiores”. Assim sendo, os encargos de
cada grau do ministério da Igreja está estritamente regulamentado de modo a que
cada ordem possua sua própria ciência e conhecimento da vida espiritual. Penso
que devemos citar aqui uma passagem característica na qual Dionísio estabelece
esse ensinamento sobre a obra das três ordens: “O grau dos santos ministros
está dividido da seguinte maneira: o primeiro poder consiste em purificar os
não-iniciados por meio dos sacramentos. O poder intermediário consiste em
trazer a iluminação para os que foram purificados. Finalmente, encontra-se este
poder mais maravilhoso, que abarca todos os comungam da luz de Deus, o poder de
perfeccionar a estes por meio do perfeito entendimento daquilo para o quê eles
foram iniciados”.
Na medida em que estudamos os ensinamentos de Dionísio vemos que cada
um dos três graus do sacerdócio corresponde a um estágio da vida espiritual.
Uma vez que a tarefa do diácono é a de purificar os outros de suas paixões, ele
deve, antes de sua ordenação, ter atingido o estágio de purificação de modo a
se tornar um expoente vivo da filosofia prática. Uma vez que, de acordo com os
ensinamentos patrísticos, é tarefa do padre iluminar os outros, sua ordenação
pressupõe um nous iluminado, o qual,
como vimos corresponde ao grau da theoria.
Assim sendo, o padre deve se lembrar de Deus continuamente na prece, deve
conhecer o trabalho espiritual, ser fluente na Sagrada Escritura e ser capaz de
contemplar os princípios interiores de todas as coisas criadas. Quanto ao
bispo, dado que sua tarefa primária é a de perfeccionar as pessoas por meio dos
princípios interiores da teologia, ele deve possuir a experiência da teologia
mística e viver em comunhão com Deus. Esse estreito relacionamento com Deus o
tornará profeta, um iniciado divino capaz de misticamente partilhar a palavra
da verdade com o povo de Deus.
A forma que adquire a ordenação de diáconos, padres e bispos indica
também a condição espiritual que eles devem alcançar para preencher essas
tarefas essenciais. Pois como poderiam as pessoas ser ajudadas se aqueles que
as ajudam não possuírem experiência pessoal na tarefa que se supõe devam
desempenhar?
Isso se aplica mais especialmente ao bispo, que é o instrumento da
graça por excelência, sendo que “todo ato de consagração episcopal deve ser
diretamente inspirado pelo próprio Deus”. Moisés não conferiu uma “consagração
clerical” a seu irmão Aarão enquanto não recebeu ordens de Deus para tal. Como
consagrador, ele era submisso a Deus, apenas completando a divina consagração
pelo rito hierático.
Desse modo, de acordo com Dionísio, que expressa a tradição de Igreja,
o bispo é o supremo cientista da vida espiritual. Ele é o que vê a Deus e que
possui uma experiência pessoal de deificação. “Assim sendo, a divina ordem dos
bispos é a primeira dentre os que contemplam a Deus, a primeira e também a
última”. O bispo é fruto da deificação, e, tendo ele próprio sido deificado,
ele ajuda por meio da graça aos amados Cristãos ao longo de sua jornada para a
deificação. “A existência, a proporção e a ordem da hierarquia da Igreja estão
divinamente perfeccionadas e deificadas nele, e são a partir daí partilhadas
com aqueles abaixo dele de acordo com seus méritos, enquanto que a sagrada
deificação acontece nele diretamente a partir de Deus”. “Falar de um bispo é
referir-se a alguém em quem toda a hierarquia está completamente perfeita e
conhecida”. “Por todo seu esforço persistente para alcançar o Um, pela completa
morte e dissolução da que se opõe à união divina, o bispo é agraciado com a
capacidade imutável de amoldar-se por completo à forma do divino”. Assim é que
o bispo, como fruto da purificação e da iluminação, é o homem inspirado por
Deus que atingiu a perfeição e que é, portanto, dirigido pelo próprio Deus. Ele
é “o porta-voz da verdade” e aquele que se senta “na forma e no lugar” de
Cristo.
Não podemos resistir a mencionar uma passagem característica de São
Dionísio, que diz que os raios divinos são concedidos àqueles que são mais
divinos, mais adequados para espalhar e partilhar a Luz. É a tarefa daqueles
que veem a Deus, revelar aos padres, “na proporção de sua capacidade” as
divinas visões que eles próprios contemplaram. Do mesmo modo é sua tarefa “tudo
o que deve fazer sua hierarquia, uma vez que eles receberam o poder de
instruir”. Isso significa que é somente depois de um aperfeiçoamento pessoal
que alguém pode atingir uma posição mais elevada; e a posição mais elevada será
ocupada por uma pessoa inspirada por Deus, alguém que conhece a Deus por
experiência.
Essas eram as qualificações para Cristãos entrarem para o sacerdócio.
Eles deviam passar por esses três estágios para ser confirmados e certificados
quanto a terem sido curados e poderem curar o povo do Senhor. Essas coisas
mostram com precisão que o bispo, o padre e o diácono não são apenas pessoas
ordenadas para realizar sacramentos, mas que eles são médicos espirituais que
ajudam o povo a ser purificado, santificado e avançar para a comunhão com Deus.
São Simeão o Novo Teólogo escreveu que um homem pode proceder a celebração da
Liturgia quando ele celebra “com a consciência de um coração puro, em honra da
pura, santa e imaculada Trindade”, se ele viu a Cristo, se ele recebeu o
Espírito e se “foi levado ao Pai por esses dois”.
Entrar para o sacerdócio é assim um puro chamado de Deus. E esse
chamado não é um mero sentimento abstrato de ter sido chamado por Deus para
servir ao povo do Senhor, mas uma certeza, que passa pela transformação da
pessoa, de que ela está capacitada para ser pastor desse povo. E apascentar o
povo é basicamente curar o povo. Sendo assim, sem a cura, o homem não é capaz
de alcançar a Deus, não pode ver a Deus, e sua visão não pode se transformar
numa luz que o ilumine, mas antes se torna um fogo que o consome. São Teognosto
refere-se à “graça supramundana do sacerdócio”. Se alguém não sente esse
chamado desde o alto, ou seja, se não foi curado, então “a carga será demasiado
pesada; porque estará sendo carregada por alguém indigno, cuja força não é
suficiente”.
As pessoas muitas vezes falam da tradição apostólica e a sucessão
apostólica, sugerindo que se trata de uma sucessão de imposição de mãos. De
fato, ninguém pode negar essa realidade, mas ao mesmo tempo é um fato
incontestável que a sucessão apostólica não é meramente uma série de imposições
de mãos, mas uma tradição que se refere a toda a vida da Igreja. Os Apóstolos e
depois deles os Padres não transmitiam simplesmente a graça do sacerdócio, mas
transmitiam a Cristo e toda a vida de Cristo. Eles geravam. Por essa razão, o
bispo carregava e carrega a graça da verdade. O Professor Romanides observa: “A
base da tradição apostólica e da sucessão não estava apenas nesta imposição das
mãos, mas a acompanhava de geração em geração, transmitindo a tradição da cura,
da iluminação e da deificação. O Conselho paroquial e o Conselho provincial
eram organizados para congregar os verdadeiros terapeutas, para excluir do
clero os falsos profetas que pretendiam possuir dons carismáticos, e para
proteger o rebanho dos heréticos. A parte mais importante da ordenação era a
seleção e o exame do candidato”.
Essa era a base da Igreja. Especialmente para selecionar um bispo era
princípio fundamental que ele deveria ser escolhido entre os monges, porque o
monaquismo é a escola médica de onde poderiam sair os mais habilidosos médicos capazes
de curar as doenças do homem.
Kallistos Ware, bispo de Diocleia, escreve: “Apenas um dos vinte ‘principais’
mosteiros (provavelmente o da Grande Lavra na Montanha Sagrada) forneceu 26
patriarcas e 144 bispos. Isso dá uma ideia da importância de Athos para a
Igreja Ortodoxa”.
São Nicodemos Hagiorita, explicando esse santo costume da Igreja,
escreve na introdução de seu “Manual do Concílio”: “Que tempos felizes e
dourados eram aqueles em que prevalecia o excelente costume de selecionar a
partir da modesta ordem dos monges todos (com exceção de alguns poucos leigos,
escolhidos por sua excepcional virtude) os que ascenderiam ao trono episcopal,
confiando a eles a guarda das almas”. As minutas do Concílio em Santa Sofia
refletem esse costuma: representantes das Igrejas da Cesareia e da Calcedônia
disseram ao representante do Papa João que “no oriente, se não houvessem
monges, não haveriam nem bispos, nem patriarcas”.
Na verdade, em sempre na história da Igreja as coisas foram tão “cor
de rosa”. Houve situações em que a verdade se perdeu, e o povo mergulhou nas trevas
da ignorância. As pessoas já não sabiam que existia algo como a cura espiritual,
nem como ela acontecia, porque não havia homens para ensiná-las no caminho da
cura. Já no século IV Isidoro de Pelúsio, no Egito, mostrava o quanto os
primeiros pastores eram diferentes daqueles do seu tempo. Naquele tempo, dizia
ele, os pastores morriam por suas ovelhas, enquanto que hoje eles próprios as
matam. Ele escreveu: “Nos dias antigos os amantes da virtude entravam para o
sacerdócio; agora são os amantes do dinheiro. Antes, eles fugiam do ofício
devido à magnitude deste; agora eles correm para ele com prazer. Antes eles
desejavam se orgulhar de sua pobreza; agora eles acumulam tesouros alegre e gananciosamente.
Antes a divina corte de justiça estava diante de seus olhos, mas agora ela lhes
causa indiferença. Antes esses homens eram alvo de pancadas; agora eles as
infligem. Preciso continuar? O ofício sacerdotal se transformou num modo de
tirania; a humildade se tornou arrogante; o jejum virou luxúria, a economia
despotismo; porque os ecônomos não visam administrar, mas, como déspotas eles
se apropriam fraudulentamente das riquezas”.
O Professor Romanides, que se preocupava particularmente com esse
tema, escreveu a respeito da perda dessa tradição Ortodoxa: “Com o passar do
tempo, no entanto, já não se podia encontrar em qualquer parte um homem
iluminado para as seleção e ordenação de bispos e padres. E mesmo que existisse
tal homem, os eleitores o rejeitariam. Muitas vezes, homens que eram
simplesmente morais e bons, mas que não possuíam a tradicional educação
terapêutica da iluminação e da deificação, eram preferidos. Surgiam bispos que,
no período anterior não teriam passado de leigos, uma vez que não possuíam o
Espírito Santo orando incessantemente em seus corações. É assim que São Simeão o Novo Teólogo explica
esse assunto”.
“São Simeão instigou uma rebelião contra a situação que ele descreveu,
com o resultado de que a missão curadora da Igreja foi restaurada a uma posição
central na Ortodoxia e o Hesiquiasmo dos Padres retomou a hierarquia uma vez
mais, como antecipara São Dionísio o Areopagita. Sob a liderança do Hesiquiasmo
dos Padres, a Igreja e a nação sobreviverem depois da dissolução do império,
porque o treinamento terapêutico patrístico que descrevemos deu à Igreja forças
para florescer nos tempos difíceis do domínio Árabe, Franco e Turco”.
“Vale dizer, os profetas, como pessoas deificadas e terapeutas, eram
como uma equipe de doutores de um hospital, um dos quais, sem discriminação nem
desigualdade, era escolhido como diretor. A mesma coisa aconteceu com os
apóstolos: Pedro tinha o primeiro lugar, embora fosse Tiago, como bispo da
Igreja local, que presidia os encontros dos apóstolos em Jerusalém”.
“Quando as paróquias começaram a se multiplicar e nenhum profeta ou
profetas no sentido que Paulo explicou podiam ser encontrados, a Igreja teve
que resolver o problema de até que ponto seria correto ordenar bispos homens
que não eram deificados, mas que eram iluminados. Diante desse dilema a Igreja
optou por ordenar padres para presidir os encontros paroquiais. Assim, os
bispos gradualmente adquiriram responsabilidades de supervisão sobre os padres
que presidiam as paróquias, como doutores num centro médico com seus
atendentes. Como o Sínodo não encontrou doutores em número suficiente para
supervisionar os centros hospitalares, atendentes foram colocados como padres. Chamar
um atendente de médico equivale a chamar de bispo uma pessoa que não foi
deificada, o que é irreal, e levou à dissolução do trabalho terapêutico da
Igreja”.
Com o passar do tempo, apareceram bispos e padres que sequer haviam
alcançado o estado de iluminação. Foi esse estado de coisas que provocou a revolução levada a cabo por São Simeão e que
conduziu os hesiquiastas à hierarquia, coisa que não havia ainda se realizado
plenamente no tempo de São Gregório Palamas”.
“O tratamento terapêutico apostólico foi preservado do período
pós-apostólico até o a aparecimento dos Francos e da Ortodoxia Neo-Helenística
imperial, pela concentração dessa tradição apostólica no monaquismo. Ou seja, o
treinamento para a iluminação e a deificação foi transferido das paróquias
seculares, que se tornaram fracas, para as paróquias monásticas Ao mesmo tempo
as sedes metropolitas e os bispados se tornaram mosteiros. É por isso que Santa
Sofia foi chamada de Grande Mosteiro, mesmo na tradição leiga. O monaquismo se
tornou um tipo de escola médica onde os candidatos a bispo estudavam a
terapêutica apostólica. Paralelamente a isso permanecia a tarefa de toda
paróquia secular de imitar a paróquia monástica tanto quanto pudesse – porque a
iluminação e a deificação continuavam a ser indispensáveis para a cura de todas
as pessoas, porque todas tinham o nous
obscurecido. Do ponto de vista doutrinal não existe diferença entre paróquias
seculares e monásticas em relação aos sacramentos oferecidos e em relação à
necessidade de cura. A diferença reside apenas na quantidade e na qualidade das
curas bem sucedidas”.
[1] I
Timóteo 1: 1.
[2] II
Coríntios 11: 5.
[3] I
Timóteo 1: 12.
[4] I
Coríntios 15: 8.
[5] I
Coríntios 14: 29.
[6] I
Coríntios 15: 5-8.
[7]
Efésios 3: 5.
[8] I
Coríntios 12: 26.
[9] I
Coríntios 12: 28.
[10]
Efésios 5: 19 ss.
[11] I
Coríntios 14: 16.
[12] I
Coríntios 12: 28.
[13]
Ibid.
[14]
Atos 6: 6.
[15]
Atos 6: 5.
[16]
II Timóteo 1: 5.
[17] I
Timóteo 4: 14.
[18] I
Timóteo 1: 18.
[19]
Tito 1: 6.
[20] I
Timóteo 3: 6.
Obrigada Pe. Tito pelo seu excelente trabalho! Sua benção!
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