quinta-feira, 19 de maio de 2016

Hierotheus de Nafpaktos - Psicoterapia Ortodoxa - Capítulo II - Parte I



1.       O terapeuta Ortodoxo

Esperamos ter estabelecido a verdade de que o Cristianismo é principalmente uma ciência terapêutica. Ele busca a cura espiritual do homem. Ademais, a correta prática da medicina requer um bom médico, um profissional, e isso se aplica também à cura espiritual. É preciso que haja um bom doutor. Ele será um sacerdote ou um bispo.

Como já notamos, as pessoas de hoje sentem que a função do sacerdote é capacitá-las a tomar parte nos santos sacramentos. Elas sentem que ele foi ordenado por Deus, como seu servo ou diácono, de modo que elas podem lhe confessar seus pecados e dele obter a absolvição. Eles esperam que nele seja o diácono de Deus, chamado a orar para ele para que suas obras sejam abençoadas, e assim por diante. Certamente, ninguém irá negar que o sacerdote desempenha essas funções também, mas usualmente as pessoas parecem enxergar o sacerdote quase como um mágico, com o perdão da expressão. Pois, se enxergamos a vida de adoração independente da cura, então só pode se tratar de magia!

Repetimos, mais uma vez, para que fique bem claro, que o sacerdote é propriamente um médico espiritual que cura as enfermidades das pessoas. O culto e os sacramentos devem ser colocados dentre seus métodos terapêuticos e de tratamento.

Mesmo como confessor, o sacerdote é principalmente um terapeuta. O sacramento da confissão não é uma mera absolvição formal, especialmente como acontece no modelo Ocidental, como se Deus estivesse bravo e exigisse uma expiação. Ele é parte de um tratamento terapêutico. Existem muitos Cristãos que se confessam por anos e anos e não se curam de suas moléstias espirituais. Contribui para isso a ignorância, tanto de parte do povo, como de parte dos pastores.

A tarefa de bispos, sacerdotes e confessores é a de conduzir o povo para fora do Egito até a terra prometida, como novos Moisés. Essa orientação requer esforço e trabalho, privações e angústia. Ela consiste principalmente numa supervisão terapêutica. Os Padres insistem muito sobre essa verdade. Tomemos São João Clímaco como exemplo. Ele adverte que “aqueles de nós que desejam sair do Egito e fugir do Faraó necessitam de um intermediário perante Deus, que se coloque entre a praxis e a theoria e que estenda seus braços a Deus, para que aqueles que são guiados por ele possam cruzar o mar e por em fuga ao Amelek das paixões”. O Novo testamento nos mostra o tanto que Moisés suportou e como ele guiou seu povo teimoso.

Esse Moisés espiritual é um médico. De resto, todos nós estamos doentes e precisamos de um.

São Simeão o Novo Teólogo, falando a monges, esclarece essa verdade. Como sabemos pela Tradição Ortodoxa, os mosteiros são propriamente hospitais. Seria até melhor chamá-los de escolas de medicina. Como pessoas doentes, ali somos curados, e depois disso aprendemos como curar. Por isso a Igreja primitiva buscava seus sacerdotes nos mosteiros, que eram escolas médicas, para colocá-los no posto de observação de bispos.

Assim é que, falando a monges, São Simeão não hesita em dizer que somos todos pobres e necessitados. Ele explica o quanto cada um de nós que estamos em nossas celas fomos feridos e afetados por diferentes enfermidades; por isso não podemos fazer nada além de gritar dia e noite para que o médico das almas e corpos cure nossos corações dilacerados e nos devolva a saúde espiritual. O santo escreve: “E isso não é tudo: [além de estarmos nus e na miséria] jazemos vergonhosamente feridos, afetados por numerosas moléstias, ou nos movemos com dificuldades em nossas celas ou mosteiros, como nos hospitais e casas para idosos. Choramos e nos lamentamos, e chamamos por Aquele que é o médico das almas e corpos – ao menos na medida em que estamos conscientes da dor de nossas feridas e aflições, porque existem também os que sequer se dão conta de estar feridos e aflitos – para que Ele venha e cure nossos corações feridos e dê saúde às nossas almas que jazem no leito do pecado e da morte. Pois todos nós pecamos, como disse o santo Apóstolo, e temos necessidade de sua misericórdia e de sua graça”.

Apresentamos esse texto longo porque nele se coloca claramente a missão do monaquismo e da Igreja, bem como o trabalho dos pastores. Trata-se principalmente de uma tarefa terapêutica. Estamos enfermos na cama do pecado e da morte. Quem for incapaz de perceber esta verdade está “louco”. Sendo assim, os Cristãos que não permanecem na Igreja para serem curados ou que sentem que estão bem, podem ser considerados “loucos”.

De acordo com São Simeão o Novo Teólogo, o sacerdote é um médico: a pessoa vai ao “doutor espiritual arrasada pela paixão, com sua mente consternada”. O “doutor especialista”, “que é humano e compassivo, entende a fraqueza de seu irmão, a inflamação causada pela angústia, o tumor; ele vê a pessoa doente inteiramente sob o poder da morte”. Então o santo descreve o caminho pelo qual o médico especialista verifica a enfermidade, e o modo como ele a cura.

Já mencionamos as duas imagens básicas que caracterizam o trabalho do pastor: que ele é como Moisés que guia seu filho espiritual, e que ao mesmo tempo é um cientista e um médico solidário. Ambas as qualidades estão contidas num dos poemas de São Simeão que descreve sua própria cura por seu pai espiritual, seu Moisés pessoal. Ele aplica à sua própria vida a jornada do povo Israelita sob a conduta de Moisés. Ele escreve:

“Ele veio e me encontrou como escravo e estrangeiro,
E ele disse: Venha, meu filho, eu o levarei para junto de Deus!”

Ele perguntou ao seu Moisés sobre as “garantias” de que ele seria capaz de fazer tal coisa.

“Ele me trouxe para junto de si e me aperou com força
E beijou-me com um beijo santo
E havia um perfume de imortalidade ao seu redor.
Eu acreditei, e amei seguir com ele
E desejei servi-lo, e apenas a ele...
Ele me tomou pela mão e caminhou na minha frente
E desse modo começamos a trilhar o caminho.”


Ao final de uma longa jornada na qual, por meio das intercessões de seu pai espiritual, ele teve sucesso no enfrentamento de suas paixões e se libertou de sua escravidão, São Simeão agradece ao seu pai espiritual:

Venha, eu disse, meu senhor, não me afastarei de você,
Eu não desobedecerei às suas ordens, e guardarei todas elas comigo.”

De qualquer modo, para que uma pessoa se torne um terapeuta Ortodoxo apta a curar os males espirituais de seu filho espiritual, é preciso que ela própria tenha sido previamente curada, tanto quanto possível, para que possa se colocar “entre a praxis e a theoria”. Como pode alguém curar sem ter sido previamente curado, ou sem ter experimentado ao menos o começo da cura? Assim sendo, São Simeão acusa aqueles que veem a si mesmo como diretores espirituais sem antes terem sido mergulhados no Espírito Santo, aqueles que recebem confissões precipitadamente e que ousam administrar mosteiros ou ocupar outras posições de autoridade, “impelindo vergonhosamente a si próprios, por meio de mil intrigas, para conseguir se tornar metropolitas ou bispos para guiar o povo do Senhor”, antes de ter acesso “câmara nupcial”, e antes de se tornarem “filhos da luz e filhos do dia”.

Tudo isso foi incomparavelmente colocado por São Gregório o Teólogo, que escreveu: “Primeiro é preciso ser purificado, e só então purificar; tornar-se sábio, para tornar sábio a outrem; tornar-se luz, para iluminar; aproximar-se de Deus, para levar outros a ele; santificar-se, para santificar”.

São João Crisóstomo, que foi saudado como um especialista em sacerdócio, escreve numa famosa passagem na qual procura justificar sua recusa em tornar-se bispo, que ele está ciente da fraqueza e da pequenez de sua alma, assim como da importância e dificuldade de guiar o povo: “Eu sei o quão fraca e insignificante é minha alma. Eu conheço a importância desse ministério e as grandes dificuldades que ele apresenta”.

Em sua discussão com São Basílio ele lhe diz não ter dúvidas sobre o que ele dissera, que ao mesmo tempo em que ama a Cristo, teme provocar escândalo ao assumir o ministério espiritual, “dado que a enfermidade de meu espírito me torna despreparado para esse ministério”. A grande pureza de seus pensamentos e sentimentos o fez sentir que a fraqueza de sua alma o incapacitava para esse grande ministério. Pois, de fato, como se pôde observar em outras ocasiões, paixões não curadas impedem o sacerdote de ajudar na cura de seu filho espiritual.

Se o terapeuta não tiver sido previamente curado, ele não passa de um “lugar comum”. “Eles simplesmente pegam pessoas desinteressantes, que nada acrescentam, e as encarregam dessas coisas”.

Todas essas coisas a que nos referimos mostram a grande verdade que os sacerdotes que pretendem curar as enfermidades do povo devem primeiro curar-se dessas enfermidades, ou no mínimo terem iniciado a cura, e devem também estar cientes do valor e da possibilidade dessa cura.

Aquilo que se seguirá deve ser visto dentro desse contexto. Devemos deixar claro que não pretendemos contemplar todo o espectro do sacerdócio e do papel dos sacerdotes. Não é nosso propósito explicar o valor e a importância do sacerdócio, mas observar esse grande e responsável ofício do ponto de vista da ciência terapêutica cuja maior obra consiste em curar os homens. Se em alguns pontos parecer que estamos salientando o valor do sacerdócio, o fazemos apenas de modo a ressaltar este lado que estamos enfatizando até aqui.


1.1. Pré-requisitos para a função de sacerdote-terapeuta

É o Espírito Santo, ou, em termos mais gerais, a graça do Espírito Santo que realiza a cura dos Cristãos doentes. O sacerdote é um servidor dessa cura. Toda  a organização da Igreja é divino-humana. Acima de tudo, a graça de Deus trabalha secretamente no sacerdote e ele conhece por experiência essa ação oculta da graça de Deus.

1.1.1.        O valor do sacerdócio

É grande o valor do sacerdócio. São João Crisóstomo escreve: “O trabalho do sacerdócio é feito na terra, mas é classificado dentre as ordenações celestes”, uma vez que ele não é ordenado pelo homem, anjo, arcanjo ou outro poder criado, mas “pelo próprio Paráclito”.

“Assim como o sol supera as estrelas”, a celebração pelo sacerdote “supera toda salmodia ou prece”, e difere de todos os outros serviços. Isso acontece porque através do sacramento da Eucaristia nós sacrificamos o próprio Filho único que sofreu por nossos pecados. Se alguém celebra corretamente “os divinos, reverenciados e terríveis mistérios, o benefício que se origina disso será maior do que aquele que deriva de qualquer outra obra ou da theoria”.

O valor do sacerdócio, que pode sacrificar o cordeiro, é devido ao fato de que ele pode auxiliar o homem a caminhar da imagem de Deus para a semelhança com Deus. Ele pode guiá-lo em direção à deificação, que é de fato a cura do homem, ou antes, ele pode manifestar sua cura.

Os Padres, comparando o sacerdócio com outros tipos de trabalho, o consideravam maior, porque outros ofícios ajudam o homem a resolver problemas mundanos, enquanto que o sacerdócio o conduz à deificação. Dessa forma, “o sacerdócio é mais elevado do que um reinado”, uma vez que o sacerdote “governa as coisas divinas, enquanto os outros governam as coisas terrestres”.

De fato, como enfatizamos, no trabalho pastoral do sacerdote está o sacerdócio do próprio Cristo. O sacerdote ministra essa graça sobre o povo e assim se capacita a perdoar e curar os pecados dos homens.

Dissemos apenas essas poucas coisas a respeito do valor do sacerdócio, porque não é nosso objetivo nesse capítulo enfatizar o grande valor desse trabalho.

1.1.2.        O chamamento e a ordenação dos Apóstolos

O Senhor chamou aqueles que estavam talhados para essa obra e lhes concedeu Seu sacerdócio. Dessa forma, os primeiros bispos foram os Apóstolos. O Senhor chamou-os à dignidade apostólica, esteve com eles por três anos inteiros, e então lhes concedeu o Espírito Santo para que perdoassem pecados, e enviou-os a pregar a “todas as nações”, e para que guiassem os povos. Ele os fez pescadores de homens e pregadores do Evangelho. Foi essa escolha e esse envio que fez deles Apóstolos. Não existe evidência na Sagrada Escritura de que o Senhor tenha usado alguma cerimônia especial para conferir o serviço sacerdotal aos Apóstolos. Podemos dizer, no entanto, que “o Senhor, tendo ele próprio instituído os sacramentos, não estava limitado por eles, mas estava apto a torná-los efetivos apenas pela expressão de sua vontade”. O que quer que tenha acontecido, o fato é que o chamado dos doze Apóstolos por Cristo, sua aparição depois da Ressurreição, o dom da graça de perdoar pecados e a chegada do Paráclito no dia de Pentecostes estabeleceram-nos como os pastores do povo de Deus.

E temos ainda o caso do Apóstolo Paulo, que não foi discípulo de Cristo durante o período de vida deste, mas que também foi chamado ao grau apostólico. Ele próprio se considerava como apóstolo de Jesus Cristo: “Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, por mandamento de Deus nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo[1]”. Em outra passagem ele escreve: “Pois eu reivindico não ter feito menos do que os maiores dentre os apóstolos[2]”. Em outra parte, o mesmo Apóstolo escreve: “Agradeço a Jesus Cristo nosso Senhor, que me deu a força. Ao me chamar para seu serviço ele me considerou digno de fé[3]”. Ele tinha certeza de ter sido uma testemunha legítima da Ressurreição, porque no caminho para Damasco ele viu o Cristo ressuscitado. A partir daí, ao falar das aparições de Cristo ressuscitado, ele proclamava ousadamente: “Último dentre todos, também eu o vi, como o último filho que nasce inesperadamente[4]”. Ele se colocava entre as testemunhas da Ressurreição.

A aparição de Cristo a Paulo não apenas lhe conferiu a dignidade de Apóstolo como significou sua ordenação no sacerdócio de Cristo.

O Professos Romanides escreve: “De acordo com o Apóstolo Paulo, os profetas em uma paróquia[5] são aqueles que, como os apóstolos[6], atingiram a deificação, a visão de Cristo na glória da Santíssima Trindade. Paulo enfatiza isso claramente quando escreve sobre o ministério de Cristo, ‘que em outras épocas não era conhecido dos filhos dos homens, do modo como foi revelado agora pelo Espírito aos seus santos Apóstolos e profetas[7]’. É dentro desse contexto que a fala introdutória da lista dos membros do corpo de Cristo deve ser entendida: ‘Se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele[8]’. Isso equivale a dizer que o membro honrado foi deificado e feito profeta por Deus. É por isso que o Apóstolo, ao enumerar os vários membros do corpo de Cristo, começa pelos apóstolos e profetas e termina pelos que falam em línguas e as interpretam[9], que são as formas do culto noético[10]. Nos termos de Paulo, aquele que profetiza é o que interpreta o Antigo Testamento – o Novo Testamento ainda não existia -  com base na experiência da prece noética, que era chamada de ‘diferentes tipos de línguas’. Em contraposição, o Profeta é aquele que atingiu a deificação. Essa é precisamente a distinção patrística entre teologizar e teologia. Todos aqueles abaixo dos Apóstolos até a pessoa que profetiza e interpreta possuem ‘variedades de línguas’, isto é, diferentes tipos de culto do Espírito Santo em seus corações. Assim, eles são chamados por Deus para se tornarem membros do corpo de Cristo e templos do Espírito Santo. Ao serem chamados por Deus eles se diferenciam dos ‘desinformados[11]’, aqueles que ainda não haviam recebido a unção da visitação do Espírito Santo rezando continuamente em seus corações, e que ainda não podiam se tornar templos do Espírito Santo. Aparentemente eles haviam sido batizados em água para a remissão dos pecados, mas não batizados pelo Espírito, ou seja, crismados. Provavelmente o sacramento da unção da crisma era dado para confirmar que o Espírito Santo tinha vindo para rezar em seu interior e, portanto, dali por diante ele poderia ser chamado ‘confirmatio’ em Latim”.

“Os apóstolos e profetas deificados e os professores iluminados, junto com aqueles que possuíam o dom dos milagres, curas, auxílio, administração ou variedade de línguas[12], aparentemente constituíam o clero ungido e o sacerdócio real, como indica o serviço da Santa Crisma. O restante, conforme testemunham os Padres, era formado pelos leigos. A expressão ‘Aqueles a quem Deus apontou na Igreja[13]’ claramente se refere aos que haviam recebido a visita do Espírito Santo, com a deificação para apóstolos e profetas e iluminação para os demais, e não apenas mediante um ato litúrgico”.

1.1.3.        Requisitos básicos para a ordenação

É certo que os apóstolos transmitiam o sacerdócio de Cristo por meio de um sacramento definido chamado de Sacramento das Santas Ordens. A Igreja também fixou os pré-requisitos canônicos para qualquer um que quisesse receber essa grande graça e exercitar essa alta função.

Essa ordenação era a dos diáconos na primeira Igreja de Jerusalém. Depois que foram escolhidos sete diáconos, escreve o Livro dos Atos, “eles foram colocados diante dos apóstolos, e depois que estes rezaram impuseram suas mãos sobre eles[14]”. Aqui temos a imposição das mãos e a prece. São João Crisóstomo, analisando essa passagem, escreve: “Não se fala sobre a maneira como foi feito, mas que eles foram ordenados com uma prece; e este é o significado da imposição das mãos: a mão é colocada sobre o homem, mas que opera é Deus”.

O que se pode notar nesse caso é que eles foram escolhidos por todo o corpo de Cristãos da primeira Igreja. Muitas qualificações foram exigidas, e a qualificação básica é de que tivessem recebido o Espírito Santo. Em relação à escolha de Estevão, lemos nos Atos dos Apóstolos: “Eles escolheram Estevão, um homem cheio de fé e do Espírito Santo[15]”. Assim, eles não apenas receberam o Espírito Santo no momento da ordenação, como possuíam a graça do Espírito Santo.

Interpretando isso, São João Crisóstomo diz que Estevão teve a graça do Espírito Santo “desde o banho” batismal. Somente essa graça não era o bastante, mas era necessária a ordenação por meio da imposição das mãos, “de modo a que houvesse um posterior acesso ao Espírito”. Ele também diz que Estevão recebeu uma graça maior do que a dos demais diáconos: “pois apesar de que a ordenação fosse a mesma para ele e os demais, ele alcançou uma graça maior”. Isso foi devido à sua maior pureza e à presença nele do Espírito Santo.

Isso mostra além de qualquer dúvida que os candidatos a esse grande ofício do sacerdócio não esperavam simplesmente pelo dia de sua ordenação para receber o Espírito Santo, mas tinham que se abrir previamente para o Espírito Santo.

A Igreja faz muita questão disso, como podemos ver pelas cartas pastorais do Apóstolo Paulo. Ele escreve a Timóteo: “quando eu me lembro da fé genuína que existe em você, que primeiro habitou sua avó Lóide e sua mãe Eunice, e que, estou persuadido, está também em você[16]”. Sabemos bem que a fé não consiste num ensinamento abstrato, mas numa “compreensão e numa visão do coração”, e que ela é a vida do Espírito Santo em nossa alma.

O Apóstolo escreve ainda a seu discípulo Timóteo, a quem ele próprio ordenara bispo: “Não negligencie o dom que existe em você, que lhe foi dado por profecia com a imposição das mãos do presbitério[17]”. Em outra parte, ele escreve: “Eu o encarrego disso, meu filho Timóteo, de acordo com as profecias referentes a você desde antes[18]”. São Teofilactos oferece esta interpretação: “O grau de sacerdócio, que concerne à instrução e à proteção do povo, sendo grande e elevado, requer que o candidato seja aprovado desde o alto por Deus. Por essa razão, nos tempos antigos aqueles que se tornavam sacerdotes ou bispos o faziam por intermédio de profecias divinas, ou seja, pelo Espírito Santo”.

Muita preparação e muitos requisitos estavam envolvidos na seleção de sacerdotes e bispos para esse grande ofício. O Apóstolo exorta: “Se um homem é irrepreensível[19]”, deixe que ele seja indicado para sacerdote ou bispo. Ele também recomenda que essa pessoa não deve “ser um noviço[20]”, porque o indicado deve ter uma experiência espiritual prévia e então ser batizado para o grande ofício, ele deve ter se purificado, como veremos mais adiante, e somente então receber a ordenação.

Também São João Crisóstomo escreve que um sacerdote deve ter mais atenção e força espiritual até do que os eremitas. Pois se os eremitas, que estão livres “da cidade, do mercado e de todo o povo”, não estão seguros em espírito, quanto mais força e vigor serão precisos para o exercício do sacerdote de modo a ser capaz de “arrancar sua alma de toda infecção e manter sua beleza espiritual inviolada”. É por isso que ele afirma que o clérigo que vive no mundo precisa ter ainda mais pureza do que os monges.

Esse tema da salvaguarda da pureza no sacerdócio nos ocupará mais adiante. Neste momento, queremos enfatizar as qualidades que deve ter o Cristão se quiser ser ordenado padre. Pois, se ele próprio não estiver curado, como poderá ser capaz de curar a espiritualidade enfraquecida e enferma?

A preparação para o sacerdócio é um dos temas dominantes nos trabalhos de São Simeão o Novo Teólogo. Qualquer um que não tenha abandonado o mundo e que não tenha sido considerado digno de receber o Espírito Santo, como o foram os santos Apóstolos, que não tenha passado pela purificação e pela iluminação e que não tenha sido considerado digno de “contemplar a luz inatingível” – “este homem não ouse aceitar o sacerdócio e a autoridade sobre as almas, nem agir nesse sentido!”.

Encontramos o mesmo ensinamento em São Teognosto. Se o sacerdote, diz ele, “não foi certificado pelo Espírito Santo”, para atuar como um intermediário aceitável entre Deus e o homem, ele não deve “presunçosamente ousar celebrar os terríveis e santíssimos mistérios”.

Quando a ordenação se tornava iminente, os Padres fugiam para as montanhas, como vemos pela vida de São Gregório o Teólogo. Em sua “Defesa da viagem a Pontos” ele procurou defender sua ação, dizendo que ninguém se comprometer a pastorear o rebanho espiritual a menos que tenha se tornado previamente um templo do Deus vivo, “uma morada de Cristo no Espírito”, ou a menos que tenha vislumbrado “por experiência e contemplação” todos os títulos e poderes de Cristo, e aprendido “a sabedoria oculta de Deus num mistério” – vale dizer, se ainda for um bebê “alimentado a leite”.

Certamente os santos Padres não estavam inconscientes do fato de que muitos foram ordenados sem preencher esses ideais, e que não haviam sido purificados, nem curados. Pois muitas ordenações se originaram “não da graça divina, mas da ambição humana”. E é bem conhecida a fala de São João Crisóstomo de que “Deus não ordena ninguém, mas opera por meio de todos”.

1.1.4.        Os três graus do sacerdócio

A partir de um estudo de fontes, principalmente da literatura patrística, fica claro que os graus do sacerdócio (diácono, padre, bispo) estão estreitamente conectados com os três graus básicos da vida espiritual. Isso significa que na medida em que um homem progride na cura ele ascende na escala espiritual da graça e bênção sacerdotal. Este é, pelo menos, o que ensinam os Padres. Desenvolveremos mais adiante este ponto fundamental do ensinamento patrístico quando falarmos da graça curativa do sacerdócio.

No capítulo anterior enfatizamos que a vida espiritual está dividida em três estágios, que são a purificação, a iluminação e a deificação. Encontramos essa divisão em muitos Padres, embora às vezes com nomes diferentes. Por exemplo, Nicetas Stethatos escreve que existem três etapas no avanço para a perfeição: a etapa inicial de purificação, a etapa intermediária de iluminação e finalmente a etapa de perfeição mística. Conforme o Cristão avança através dessas três etapas, ele cresce em Cristo. O trabalho de purificação consiste em submeter a carne e evitar todo pecado que excite a paixão; ele permite o crescimento do arrependimento, as lágrimas, etc. A etapa de iluminação assiste ao início da impassibilidade, que se caracteriza pelo discernimento, pela “contemplação dos princípios internos da criação” e pela “comunhão com o Espírito Santo”. Sua tarefa é a “purificação do intelecto (...) descobrindo os olhos do coração (...) e a revelação dos mistérios do Reino dos Céus”. E a etapa da perfeição mística permite à pessoa “buscar os mistérios ocultos de Deus”, preenche-a com a “companhia do Espírito” e lhe mostra como ser “um sábio teólogo no seio da grande Igreja”, etc.

Dessa forma uma pessoa que viva na Igreja e seja ajudada pela graça divina purifica a parte passional de sua alma, seu nous se ilumina e ela ascende à teologia mística, a deificação abençoada.

Na teologia de São Máximo o Confessor esses três estágios são expressos como filosofia prática (purificação positiva e negativa), theoria natural (iluminação do nous) e teologia mística (deificação). Os Padres da Igreja, tendo se retirado de todas as criaturas, ascenderam à visão de Deus, e essa visão alcançou seu mais alto grau na “ciência teológica”, ou “mistagogia teológica” ou “teologia mística”, que também é chamada de “inesquecível conhecimento espiritual”.

Assim, os Padres que viviam na theoria (visão de Deus) eram os verdadeiros teólogos e ao mesmo tempo eram a própria e real teologia, uma vez que a teologia preenchia totalmente sua existência.

De acordo com São Máximo, Moisés era teólogo, porque ergueu sua tenda fora do campo, “ou seja, quando estabeleceu sua vontade e sua mente fora do mundo das coisas visíveis, começando assim a adorar a Deus”. Os três discípulos escolhidos também se provaram teólogos no Monte Tabor, quando lhes foi concedido ver a luz da divindade três vezes solar. Também São Paulo, que foi elevado ao terceiro céu, era teólogo. São Máximo explica que os três céus correspondem aos três degraus da subida mística do homem, ou seja, a filosofia prática, a theoria natural e a teologia mística.

Apresentamos esse ensinamento patrístico de modo a relacioná-lo com o tema que nos concerne neste capítulo. São Máximo liga os três estágios da vida espiritual com os três graus do sacerdócio. Ele escreve: “Aquele que unta seu nous para a contenda espiritual e expulsa todos os pensamentos passionais daí tem as qualidades do diácono. Aquele que ilumina seu nous com o conhecimento das coisas criadas e destrói completamente o falso conhecimento tem a qualidade de sacerdote. Aquele que aperfeiçoou seu nous com a santa mirra do conhecimento e adora a Santíssima Trindade tem a qualidade de bispo”.

Quero agora comparar isso com outra interpretação, especificamente a de São Nicodemos o Hagiorita, uma vez que é básico na prática da Igreja que um santo interprete a outro santo, para que, dessa maneira, a Igreja encontre a expressão de sua experiência comum. São Nicodemos escreve: “Máximo, o inspirado por Deus, vê como a tarefa do diácono limpar os demais de suas paixões e dos maus pensamentos por meio de um esforço moral; a tarefa do sacerdote é a de iluminar os outros com a theoria natural dos princípios internos das coisas; finalmente, a do bispo consiste em aperfeiçoar as pessoas com a luz dos princípios interiores da teologia (...) e assim o sacerdote principal não deve ser apenas um filósofo moral, natural ou contemplativo, mas também um teólogo, porque ele aquelas funções pertencem ao diácono e ao padre”.

Devemos notar que a conexão entre os três graus do sacerdócio e os três estágios da vida espiritual é mencionada nos escritos de São Dionísio o Areopagita, que contém a tradição da Igreja. E se estes escritos são considerados como representativos da norma da Igreja nos primeiros séculos, parece claro que esses três estágios da vida espiritual correspondiam então aos três graus do sacerdócio.  Quero me estender um pouco a respeito, para mostrar essa conexão.

É sabido que em seu trabalho “A hierarquia eclesiástica” São Dionísio o Areopagita descreve os três estágios da vida espiritual: purificação, iluminação e perfeição, sendo esta última equivalente à deificação. “A dignidade dos bispos é aquela que possui por completo o poder de consagração (...) sua tarefa não é apenas a de consagrar, mas de tornar perfeito. A dignidade sacerdotal é iluminadora, ela traz a luz, enquanto que a tarefa dos diáconos é a de purificar e de discernir o imperfeito”. O trabalho do clero é litúrgico, santificador e purificador, uma vez que é através dos sacramentos que a vida espiritual do homem se desenvolve. Em outras palavras, os sagrados ritos da Igreja não são formas, mas eles purificam, iluminam e conduzem o homem ao estado de perfeição.

Assim sendo, o trabalho de diáconos, padres e bispos está conectado com o crescimento espiritual dos Cristãos. De acordo com o serviço batismal, tal como apresentado por São Dionísio – e acreditamos que isso reflete o uso dos primeiros séculos da Igreja – quando uma pessoa é trazida para o batismo, o diácono a despe de suas roupas; isto mostra seu papel na Igreja como purificador. O padre unta todo o corpo do candidato; isto mostra seu papel na Igreja como iluminador. O bispo conduz a pessoa à perfeição ao batizá-la; isto mostra seu papel como perfeccionador. A ordem dos bispos “executa toda consagração hierárquica. Ela ensina como entender, explicando as coisas sagradas, estabelecendo suas características e seus santos poderes”. A ordem dos padres “guia o iniciado para as divinas visões dos sacramentos”, mas envia aos bispos “aqueles desejosos de um completo entendimento dos ritos divinos que estão sendo contemplados”. Dessa forma, o padre ilumina os Cristãos, sob a autoridade de um bispo, mas envia a ele aqueles que desejam a perfeição, uma vez que a divina ordem dos bispos é a primeira a contemplar a Deus. A ordem dos diáconos, antes de conduzir os candidatos aos padres, “purifica os que se aproximam, afastando-os de qualquer flerte com o que é mau. Isso os torna receptivos para a visão ritual e a comunhão”.

É muito significativo que, de acordo com São Dionísio, os bispos não devem se ocupar apenas da perfeição, mas também iluminar e purificar. Similarmente, os padres possuem o entendimento tanto para iluminar quanto para purificar, enquanto que os diáconos só o têm para purificar. “Os inferiores não devem avançar sobre as funções dos superiores”. Assim sendo, os encargos de cada grau do ministério da Igreja está estritamente regulamentado de modo a que cada ordem possua sua própria ciência e conhecimento da vida espiritual. Penso que devemos citar aqui uma passagem característica na qual Dionísio estabelece esse ensinamento sobre a obra das três ordens: “O grau dos santos ministros está dividido da seguinte maneira: o primeiro poder consiste em purificar os não-iniciados por meio dos sacramentos. O poder intermediário consiste em trazer a iluminação para os que foram purificados. Finalmente, encontra-se este poder mais maravilhoso, que abarca todos os comungam da luz de Deus, o poder de perfeccionar a estes por meio do perfeito entendimento daquilo para o quê eles foram iniciados”.

Na medida em que estudamos os ensinamentos de Dionísio vemos que cada um dos três graus do sacerdócio corresponde a um estágio da vida espiritual. Uma vez que a tarefa do diácono é a de purificar os outros de suas paixões, ele deve, antes de sua ordenação, ter atingido o estágio de purificação de modo a se tornar um expoente vivo da filosofia prática. Uma vez que, de acordo com os ensinamentos patrísticos, é tarefa do padre iluminar os outros, sua ordenação pressupõe um nous iluminado, o qual, como vimos corresponde ao grau da theoria. Assim sendo, o padre deve se lembrar de Deus continuamente na prece, deve conhecer o trabalho espiritual, ser fluente na Sagrada Escritura e ser capaz de contemplar os princípios interiores de todas as coisas criadas. Quanto ao bispo, dado que sua tarefa primária é a de perfeccionar as pessoas por meio dos princípios interiores da teologia, ele deve possuir a experiência da teologia mística e viver em comunhão com Deus. Esse estreito relacionamento com Deus o tornará profeta, um iniciado divino capaz de misticamente partilhar a palavra da verdade com o povo de Deus.

A forma que adquire a ordenação de diáconos, padres e bispos indica também a condição espiritual que eles devem alcançar para preencher essas tarefas essenciais. Pois como poderiam as pessoas ser ajudadas se aqueles que as ajudam não possuírem experiência pessoal na tarefa que se supõe devam desempenhar?

Isso se aplica mais especialmente ao bispo, que é o instrumento da graça por excelência, sendo que “todo ato de consagração episcopal deve ser diretamente inspirado pelo próprio Deus”. Moisés não conferiu uma “consagração clerical” a seu irmão Aarão enquanto não recebeu ordens de Deus para tal. Como consagrador, ele era submisso a Deus, apenas completando a divina consagração pelo rito hierático.

Desse modo, de acordo com Dionísio, que expressa a tradição de Igreja, o bispo é o supremo cientista da vida espiritual. Ele é o que vê a Deus e que possui uma experiência pessoal de deificação. “Assim sendo, a divina ordem dos bispos é a primeira dentre os que contemplam a Deus, a primeira e também a última”. O bispo é fruto da deificação, e, tendo ele próprio sido deificado, ele ajuda por meio da graça aos amados Cristãos ao longo de sua jornada para a deificação. “A existência, a proporção e a ordem da hierarquia da Igreja estão divinamente perfeccionadas e deificadas nele, e são a partir daí partilhadas com aqueles abaixo dele de acordo com seus méritos, enquanto que a sagrada deificação acontece nele diretamente a partir de Deus”. “Falar de um bispo é referir-se a alguém em quem toda a hierarquia está completamente perfeita e conhecida”. “Por todo seu esforço persistente para alcançar o Um, pela completa morte e dissolução da que se opõe à união divina, o bispo é agraciado com a capacidade imutável de amoldar-se por completo à forma do divino”. Assim é que o bispo, como fruto da purificação e da iluminação, é o homem inspirado por Deus que atingiu a perfeição e que é, portanto, dirigido pelo próprio Deus. Ele é “o porta-voz da verdade” e aquele que se senta “na forma e no lugar” de Cristo.

Não podemos resistir a mencionar uma passagem característica de São Dionísio, que diz que os raios divinos são concedidos àqueles que são mais divinos, mais adequados para espalhar e partilhar a Luz. É a tarefa daqueles que veem a Deus, revelar aos padres, “na proporção de sua capacidade” as divinas visões que eles próprios contemplaram. Do mesmo modo é sua tarefa “tudo o que deve fazer sua hierarquia, uma vez que eles receberam o poder de instruir”. Isso significa que é somente depois de um aperfeiçoamento pessoal que alguém pode atingir uma posição mais elevada; e a posição mais elevada será ocupada por uma pessoa inspirada por Deus, alguém que conhece a Deus por experiência.

Essas eram as qualificações para Cristãos entrarem para o sacerdócio. Eles deviam passar por esses três estágios para ser confirmados e certificados quanto a terem sido curados e poderem curar o povo do Senhor. Essas coisas mostram com precisão que o bispo, o padre e o diácono não são apenas pessoas ordenadas para realizar sacramentos, mas que eles são médicos espirituais que ajudam o povo a ser purificado, santificado e avançar para a comunhão com Deus. São Simeão o Novo Teólogo escreveu que um homem pode proceder a celebração da Liturgia quando ele celebra “com a consciência de um coração puro, em honra da pura, santa e imaculada Trindade”, se ele viu a Cristo, se ele recebeu o Espírito e se “foi levado ao Pai por esses dois”.

Entrar para o sacerdócio é assim um puro chamado de Deus. E esse chamado não é um mero sentimento abstrato de ter sido chamado por Deus para servir ao povo do Senhor, mas uma certeza, que passa pela transformação da pessoa, de que ela está capacitada para ser pastor desse povo. E apascentar o povo é basicamente curar o povo. Sendo assim, sem a cura, o homem não é capaz de alcançar a Deus, não pode ver a Deus, e sua visão não pode se transformar numa luz que o ilumine, mas antes se torna um fogo que o consome. São Teognosto refere-se à “graça supramundana do sacerdócio”. Se alguém não sente esse chamado desde o alto, ou seja, se não foi curado, então “a carga será demasiado pesada; porque estará sendo carregada por alguém indigno, cuja força não é suficiente”.

As pessoas muitas vezes falam da tradição apostólica e a sucessão apostólica, sugerindo que se trata de uma sucessão de imposição de mãos. De fato, ninguém pode negar essa realidade, mas ao mesmo tempo é um fato incontestável que a sucessão apostólica não é meramente uma série de imposições de mãos, mas uma tradição que se refere a toda a vida da Igreja. Os Apóstolos e depois deles os Padres não transmitiam simplesmente a graça do sacerdócio, mas transmitiam a Cristo e toda a vida de Cristo. Eles geravam. Por essa razão, o bispo carregava e carrega a graça da verdade. O Professor Romanides observa: “A base da tradição apostólica e da sucessão não estava apenas nesta imposição das mãos, mas a acompanhava de geração em geração, transmitindo a tradição da cura, da iluminação e da deificação. O Conselho paroquial e o Conselho provincial eram organizados para congregar os verdadeiros terapeutas, para excluir do clero os falsos profetas que pretendiam possuir dons carismáticos, e para proteger o rebanho dos heréticos. A parte mais importante da ordenação era a seleção e o exame do candidato”.

Essa era a base da Igreja. Especialmente para selecionar um bispo era princípio fundamental que ele deveria ser escolhido entre os monges, porque o monaquismo é a escola médica de onde poderiam sair os mais habilidosos médicos capazes de curar as doenças do homem.

Kallistos Ware, bispo de Diocleia, escreve: “Apenas um dos vinte ‘principais’ mosteiros (provavelmente o da Grande Lavra na Montanha Sagrada) forneceu 26 patriarcas e 144 bispos. Isso dá uma ideia da importância de Athos para a Igreja Ortodoxa”.

São Nicodemos Hagiorita, explicando esse santo costume da Igreja, escreve na introdução de seu “Manual do Concílio”: “Que tempos felizes e dourados eram aqueles em que prevalecia o excelente costume de selecionar a partir da modesta ordem dos monges todos (com exceção de alguns poucos leigos, escolhidos por sua excepcional virtude) os que ascenderiam ao trono episcopal, confiando a eles a guarda das almas”. As minutas do Concílio em Santa Sofia refletem esse costuma: representantes das Igrejas da Cesareia e da Calcedônia disseram ao representante do Papa João que “no oriente, se não houvessem monges, não haveriam nem bispos, nem patriarcas”.

Na verdade, em sempre na história da Igreja as coisas foram tão “cor de rosa”. Houve situações em que a verdade se perdeu, e o povo mergulhou nas trevas da ignorância. As pessoas já não sabiam que existia algo como a cura espiritual, nem como ela acontecia, porque não havia homens para ensiná-las no caminho da cura. Já no século IV Isidoro de Pelúsio, no Egito, mostrava o quanto os primeiros pastores eram diferentes daqueles do seu tempo. Naquele tempo, dizia ele, os pastores morriam por suas ovelhas, enquanto que hoje eles próprios as matam. Ele escreveu: “Nos dias antigos os amantes da virtude entravam para o sacerdócio; agora são os amantes do dinheiro. Antes, eles fugiam do ofício devido à magnitude deste; agora eles correm para ele com prazer. Antes eles desejavam se orgulhar de sua pobreza; agora eles acumulam tesouros alegre e gananciosamente. Antes a divina corte de justiça estava diante de seus olhos, mas agora ela lhes causa indiferença. Antes esses homens eram alvo de pancadas; agora eles as infligem. Preciso continuar? O ofício sacerdotal se transformou num modo de tirania; a humildade se tornou arrogante; o jejum virou luxúria, a economia despotismo; porque os ecônomos não visam administrar, mas, como déspotas eles se apropriam fraudulentamente das riquezas”.

O Professor Romanides, que se preocupava particularmente com esse tema, escreveu a respeito da perda dessa tradição Ortodoxa: “Com o passar do tempo, no entanto, já não se podia encontrar em qualquer parte um homem iluminado para as seleção e ordenação de bispos e padres. E mesmo que existisse tal homem, os eleitores o rejeitariam. Muitas vezes, homens que eram simplesmente morais e bons, mas que não possuíam a tradicional educação terapêutica da iluminação e da deificação, eram preferidos. Surgiam bispos que, no período anterior não teriam passado de leigos, uma vez que não possuíam o Espírito Santo orando incessantemente em seus corações.  É assim que São Simeão o Novo Teólogo explica esse assunto”.

“São Simeão instigou uma rebelião contra a situação que ele descreveu, com o resultado de que a missão curadora da Igreja foi restaurada a uma posição central na Ortodoxia e o Hesiquiasmo dos Padres retomou a hierarquia uma vez mais, como antecipara São Dionísio o Areopagita. Sob a liderança do Hesiquiasmo dos Padres, a Igreja e a nação sobreviverem depois da dissolução do império, porque o treinamento terapêutico patrístico que descrevemos deu à Igreja forças para florescer nos tempos difíceis do domínio Árabe, Franco e Turco”.

“Vale dizer, os profetas, como pessoas deificadas e terapeutas, eram como uma equipe de doutores de um hospital, um dos quais, sem discriminação nem desigualdade, era escolhido como diretor. A mesma coisa aconteceu com os apóstolos: Pedro tinha o primeiro lugar, embora fosse Tiago, como bispo da Igreja local, que presidia os encontros dos apóstolos em Jerusalém”.

“Quando as paróquias começaram a se multiplicar e nenhum profeta ou profetas no sentido que Paulo explicou podiam ser encontrados, a Igreja teve que resolver o problema de até que ponto seria correto ordenar bispos homens que não eram deificados, mas que eram iluminados. Diante desse dilema a Igreja optou por ordenar padres para presidir os encontros paroquiais. Assim, os bispos gradualmente adquiriram responsabilidades de supervisão sobre os padres que presidiam as paróquias, como doutores num centro médico com seus atendentes. Como o Sínodo não encontrou doutores em número suficiente para supervisionar os centros hospitalares, atendentes foram colocados como padres. Chamar um atendente de médico equivale a chamar de bispo uma pessoa que não foi deificada, o que é irreal, e levou à dissolução do trabalho terapêutico da Igreja”.

Com o passar do tempo, apareceram bispos e padres que sequer haviam alcançado o estado de iluminação. Foi esse estado de coisas que provocou  a revolução levada a cabo por São Simeão e que conduziu os hesiquiastas à hierarquia, coisa que não havia ainda se realizado plenamente no tempo de São Gregório Palamas”.

“O tratamento terapêutico apostólico foi preservado do período pós-apostólico até o a aparecimento dos Francos e da Ortodoxia Neo-Helenística imperial, pela concentração dessa tradição apostólica no monaquismo. Ou seja, o treinamento para a iluminação e a deificação foi transferido das paróquias seculares, que se tornaram fracas, para as paróquias monásticas Ao mesmo tempo as sedes metropolitas e os bispados se tornaram mosteiros. É por isso que Santa Sofia foi chamada de Grande Mosteiro, mesmo na tradição leiga. O monaquismo se tornou um tipo de escola médica onde os candidatos a bispo estudavam a terapêutica apostólica. Paralelamente a isso permanecia a tarefa de toda paróquia secular de imitar a paróquia monástica tanto quanto pudesse – porque a iluminação e a deificação continuavam a ser indispensáveis para a cura de todas as pessoas, porque todas tinham o nous obscurecido. Do ponto de vista doutrinal não existe diferença entre paróquias seculares e monásticas em relação aos sacramentos oferecidos e em relação à necessidade de cura. A diferença reside apenas na quantidade e na qualidade das curas bem sucedidas”.





[1] I Timóteo 1: 1.
[2] II Coríntios 11: 5.
[3] I Timóteo 1: 12.
[4] I Coríntios 15: 8.
[5] I Coríntios 14: 29.
[6] I Coríntios 15: 5-8.
[7] Efésios 3: 5.
[8] I Coríntios 12: 26.
[9] I Coríntios 12: 28.
[10] Efésios 5: 19 ss.
[11] I Coríntios 14: 16.
[12] I Coríntios 12: 28.
[13] Ibid.
[14] Atos 6: 6.
[15] Atos 6: 5.
[16] II Timóteo 1: 5.
[17] I Timóteo 4: 14.
[18] I Timóteo 1: 18.
[19] Tito 1: 6.
[20] I Timóteo 3: 6.

Um comentário:

  1. ROCHELLE CYSNE FROTA D ABREU4 de junho de 2018 às 03:08

    Obrigada Pe. Tito pelo seu excelente trabalho! Sua benção!

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