A festa da Dormição da Mãe de Deus, que é conhecida no Ocidente pelo
nome de Assunção, compreende dois momentos distintos, mas inseparáveis para a
fé da Igreja: a morte e o enterramento da Mãe de Deus, e depois sua ressurreição
e ascensão. O Oriente ortodoxo soube respeitar o caráter misterioso desse acontecimento
que, contrariamente à ressurreição de Cristo, não foi objeto da predicação
apostólica. Com efeito, trata-se de um mistério que não está destinado aos
ouvidos “daqueles do exterior”, mas que se revela à consciência interior da
Igreja. Para aqueles que estão confirmados na fé na ressurreição e ascensão do
Senhor é evidente que, se o Filho de Deus assumiu sua natureza humana no seio
da Virgem, aquela que serviu à Encarnação deveria por sua vez ser assumida na
glória de seu Filho ressuscitado e elevado ao céu. “Ressuscita, Senhor, em teu
repouso, tu e a Arca de tua santidade[1]”.
O caixão e a morte não puderam reter “a Mãe da vida”, pois seu Filho a
transferiu para a vida do século futuro, afirma o kondakion do ofício da Dormição.
A glorificação da Mãe é uma consequência direta da humilhação
voluntária do Filho: o Filho de Deus se encarna a partir da Virgem Maria e se
faz “Filho do homem”, capaz de morrer, enquanto que Maria, ao se tornar Mãe de
Deus, recebe “a glória que convém a Deus[2]”
e participa, pela primeira vez dentre os humanos, da deificação final da criatura.
“Deus se fez homem, para que o home seja deificado[3]”.
A extensão da Encarnação do Verbo surge assim no fim da vida terrestre de
Maria. “A Sabedoria é justificada por seus filhos”: a glória do século futuro,
o fim último do homem já está realizado, não apenas numa hipóstase divina
encarnada, mas também numa pessoa humana deificada. Essa passagem da morte para
a vida, do tempo para a eternidade, da condição terrestre para a beatitude
celeste, estabelece a Mãe de Deus além da ressurreição geral e do Juízo final,
além da Parúsia que colocará fim à história do mundo. A festa de 15 de Agosto é
uma segunda Páscoa misteriosa, porque nela a Igreja celebra, antes do final dos
tempos, as primícias secretas da consumação escatológica. Isso explica a
sobriedade dos textos litúrgicos que deixam entrever, no ofício da Dormição, a
glória inefável da Assunção da Mãe de Deus[4].
A festa da Dormição é provavelmente de origem hierosolimitana. Porém,
no final do século IV, Etério ainda não a conhecia. Podemos supor, entretanto,
que essa solenidade não tardou a aparecer, porque no século VI ela já se
encontra disseminada: São Gregório de Tours é o primeiro testemunho da festa da
Assunção no Ocidente[5],
onde ela era primitivamente celebrada em Janeiro. O missal de Bobbio e o
sacramentário anglicano indicam a data de 18 de Janeiro. Sob o imperador
Maurício (582-602) a data da festa foi definitivamente fixada em 15 de Agosto.
Dentre os primeiros monumentos iconográficos da Assunção, devemos
assinalar o sarcófago de Santa Engrácia em Zaragoza (início do século IV), com
uma cena que provavelmente representa a Assunção, e um relevo do século VI, na
basílica de Bolnis-Kapanakei, na Geórgia, que representa a Ascensão da Mãe de
Deus e faz par com a Ascensão de Cristo. O relato apócrifo que circulou sob o nome
de São Militão (século II) não é anterior ao começo do século V. Ele é
abundante em detalhes lendários sobre a morte, a ressurreição e a ascensão da Mãe
de Deus, informações duvidosas que a Igreja teve o cuidado de descartar. Assim,
São Modesto de Jerusalém (+634), em seu Elogio
da Dormição, é muito sóbrio nos detalhes que fornece: ele assinala a
presença dos Apóstolos, “trazidos de longe por uma inspiração do alto”, a
aparição de Cristo, que vem para receber a alma de sua Mãe, e enfim, o retorno
à vida da Mãe de Deus, “a fim de participar corporalmente da incorruptibilidade
eterna daquele que a fez sair do túmulo e que a atraiu para si, da maneira como
somente Ele conhece”. A homilia de São João de Tessalônica (+630), assim como
outras homilias mais recentes – de Santo André de Creta, de São Germano de
Constantinopla, de São João Damasceno – são mais ricas em detalhes, que
entrarão tanto na liturgia como na iconografia da Dormição da Mãe de Deus.
O tipo clássico da Dormição na iconografia ortodoxa se limita
habitualmente a representar a Mãe de Deus deitada em seu leito de morte, no
meio dos Apóstolos, e o Cristo em glória recebendo em seus braços a alma de sua
Mãe. Entretanto, às vezes, fez-se representar igualmente o momento de sua
assunção corporal: vemos então, no alto do ícone, acima da cena da Dormição, a
Mãe de Deus sentada num trono dentro de uma mandorla, que os anjos levam para
os céus.
No ícone que utilizamos para ilustrar nosso raciocínio, o Cristo
glorioso, envolvido na mandorla, observa o corpo de sua Mãe deitado sobre um
leito de aparato. Ele segura em seu braço esquerdo uma pequena figura infanta
vestida de branco e coroada com uma auréola: é a “alma luminosíssima” que ele
veio recolher. Os doze Apóstolos “se mantêm ao redor do leito e assistem com
temor” ao trespasse da Mãe de Deus. Podemos reconhecer em primeiro plano São
Pedro e São Paulo, dos dois lados do leito. Em alguns ícones está representado,
no céu ao alto, o momento da chegada milagrosa dos Apóstolos, reunidos “dos
confins da terra, sobre as nuvens[6]”.
A multitude de anjos presentes à Dormição forma algumas vezes uma borda
exterior ao redor da mandorla de Cristo. Sobre nosso ícone, as virtudes
celestes que acompanham Cristo são assinaladas por um Serafim de seis asas.
Três bispos aureolados estão de pé atrás dos Apóstolos. São eles São Tiago, “o
irmão do Senhor”, primeiro bispo de Jerusalém, e dois discípulos dos Apóstolos:
Hieroteu e Denis o Areopagita, que vieram com São Paulo[7].
Em último plano, dois grupos de mulheres representam os fiéis de Jerusalém que,
juntamente com os 633 bispos e os Apóstolos, formam o círculo interior da
Igreja onde se realiza o mistério da Dormição da Mãe de Deus.
O episódio de Nathonius, um Judeu fanático que teve as duas mãos
cortadas pela espada angélica, por ter ousado tocar no leito fúnebre da Mãe de
Deus, figura na maior parte dos ícones da Dormição. A presença desse detalhe
apócrifo na Liturgia e na iconografia da festa deve lembrar que o fim da vida
terrestre da Mãe de Deus é um mistério íntimo da Igreja que não deve ser
exposto à profanação: inacessível ao olhar daqueles do exterior, a glória da
Dormição de Maria não pode ser contemplada senão à luz interior da Tradição.
Artigo publicado no Le Messager
do Exarcado do Patriarcado Russo na Europa Ocidental
no. 27, julho-setembro de 1957
[1]
Salmo 131: 8. Este Salmo é repetido muitas vezes no ofício da Dormição.
[2]
Vésperas, Tom 1.
[3]
Santo Irineu, Santo Atanásio, São Gregório de Nazianze, São Gregório de Nisse,
e outros Padres.
[4] O
ofício do Enterramento da Mãe de Deus, em 17 de Agosto, é bastante tardio e, ao
contrário, bastante explícito; ele é calcado sobre as matinas do Sábado santo
(Enterramento de Cristo).
[5] De gloria martyrum, Miracula I 4 e 9.
[6]
Kondakion, Tom 2.
[7]
Kondakion, Tom 2; ver o trecho do Nomes
Divinos do Pseudo-Denis sobre a Dormição: III 2PG, 3, 681.
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