quarta-feira, 6 de março de 2013

Filocalia Tomo I Volume 3 - Teognostes: Sobre a ação, a concentração e o Sacerdócio


 

TEOGNOSTES

 

 

SOBRE A AÇÃO E A CONTEMPLAÇÃO

E SOBRE O SACERDÓCIO


Teognostes

 

 

Se o bem-aventurado Teognostes, pai dos presentes capítulos, foi Alexandrino e exegeta como diz Photius, ou qualquer outra coisa, e em que tempo viveu, não sabemos exatamente. Mas na medida em que podemos reconhecer a árvore por seus frutos, ele foi um homem engajado na ação e no conhecimento, e, pela pureza de sua vida obteve em si a graça do Espírito Santo. Com o intelecto iluminado pelos esplendores aos quais está naturalmente ligada a revelação do todo e, qual um instrumento, inspirado pelos sopros da vida, ele cantou os presentes capítulos como uma melodia harmoniosa e sagrada. Pelo efeito da graça e dos significados espirituais destes capítulos, ele encanta o entendimento e a inteligência dos leitores e os conduz ao zelo prático da ação direita. Assim o extraordinário modo da ação mostra o caminho, e a subida da contemplação é ensinada sem falha. Quem é, e quem deve ser aquele que honra o cargo de sacerdote, isto é ensinado com precisão em cada uma destes capítulos. Para os que buscam também as penas da ascese esta obra é de grande valia moral: ela suscitará neles a nepsis, uma sobriedade e uma vigilância salutares.

 

 

*

 

“Se você quiser ser conhecido por Deus, seja desconhecido pelos homens”, escreve Teognostes no primeiro dos seus sessenta e quatro capítulos. Estaria ele pensando em si mesmo? Seu nome significa “conhecido de Deus”. Mas ignoramos, senão como, mas com quem, onde e quando ele viveu. Mas ele cita João Damasceno: portanto, ele não viveu antes da segundo metade do século VIII. É possível que ele tenha sido um destes padres letrados que, do século IX ao XII asseguraram a Constantinopla a transição entre os últimos místicos bizantinos e os Sinaítas, a quem ele seguia talvez de perto, talvez de longe. Que o vigésimo quinto capítulo de João de Cárpatos, próximo dos Sinaítas, esteja inserido tal e qual no vigésimo sexto capítulo da obra de Teognostes, poderia ser um sinal nesse sentido, mas não uma prova. Seria igualmente possível, a considerar seu testemunho, situá-lo entre os contemporâneos de Gregório Palamas, mas também aí nada existe de comprobatório. Resta a obra em si, breve, sólida e densa, inteiramente consagrada aos dois estado limítrofes da vocação cristã.

 

O primeiro é a pleroforia, a plena certeza da visão de Deus, aqui e agora. Esta experiência oculta e esta questão colocada atravessam de parte a parte da longa história do monaquismo que jamais deixou de ser trabalhado pela única necessidade do segundo nascimento: a passagem do criado ao incriado, impossível para o homem (que deve “se apagar”), mas possível a Deus, por meio de Cristo e do Espírito Santo. É isto que significa Teognostes. A pleroforia participa do paradoxo evangélico: “Quanto mais você descer, mais se elevará”, diz ele. Os caminhos de aproximação indicados aqui – a renúncia, a humildade (“desça ao abismo da humildade”), a hesíquia, a impassibilidade, a temperança, a prece do coração, a pureza, a morte – não têm senão um objetivo: polir o espelho no qual a imagem de Deus em nós pode receber, pela graça do Espírito Santo, a incandescência do incriado.

 

O segundo estado limite é o sacerdócio, tratado nos capítulos de 13 a 21, 49 a 60, 70 a 74. Teognostes coloca em alto lugar a consciência do sacerdote, tão alto que ela se une na origem do mundo ao próprio ato de amor a Deus, à sua descida e sua imolação. O sacerdote, para Teognostes, não é o sacrificador senão na medida em que é também, e acima de tudo, a imagem do Cordeiro. “Aniquile a si mesmo, diz ele, como o cordeiro enviado à imolação, considerando que todos estão em verdade acima de você”. Teognostes identifica pura e simplesmente a vocação sacerdotal à vocação monacal. Tornar-se sacerdote, para ele, equivale a se engajar em levar uma vida semelhante à dos anjos. Ele encabeça a hierarquia da santidade: o contrário da hierarquia do mundo. Assim, o sacerdócio, como a pleroforia, se situa no fundo na ordem do impossível, onde somente Deus pode agir.

 

A plena certeza da visão de Deus e a celebração eucarística tornam-se aqui as duas faces de um testemunho comum que não poderia ser transmitido abertamente, ostensivamente, mas que deve acontecer, interiormente e como que num vazio, pela via negativa da ascese, sob o duplo selo do mistério e da revelação: o próprio testemunho de Teognostes.

 


DE NOSSO SANTO PAI TEOGNOSTES,

SOBRE A AÇÃO E A CONTEMPLAÇÃO,

E SOBRE O SACERDÓCIO

 

 

1. Considere que você terá em si a virtude verdadeira quando tiver desprezado perfeitamente tudo o que existe sobre a terra, guardando seu coração, graças a uma consciência pura, sempre pronta a partir para o Senhor. Se você quiser ser conhecido de Deus, seja desconhecido pelos homens, na medida do possível.

 

2. Veja as consolações supérfluas do corpo e retire-se delas, para que elas não suprimam nenhuma de suas penas, na medida em que, com toda evidência, o conforto resultante destas consolações penetra então nas penas anteriores, tomando o lugar da impassibilidade. Considere que o mal, para você, não é ser privado das coisas agradáveis, mas desviar-se do melhor por desfrutar destas coisas.

 

3. Considere-se como uma formiga ou um verme em todos os sentidos, a fim de se tornar o homem criado por Deus. Pois se você não começar por aí, não haverá sequência. Quanto mais você descer, mais se elevará; será quando você se considerar como nada diante do Senhor[1], conforme o Salmista, que você se tornará grande, por ter estado oculto durante algum tempo. E será quando você considerar que nada possui e que nada sabe que você se tornará rico na ação e no conhecimento louváveis no Senhor.

 

4. Quebre o braço do pecador e do ladrão[2], vale dizer, do prazer e da malícia, dois quais nascem todos os vícios. Quebre-os por meio da temperança e da inocência trazida pela humildade, a fim de que nada seja encontrado em você, se uma nobre palavra lhe pedir conta de seus pecados, no momento em que suas obras forem examinadas. Pois as faltas são aniquiladas quando, odiando as causas que fizeram com que as tenhamos cometido, nos dedicamos a combatê-las: assim substituímos a primeira derrota pela vitória última.

 

5. Nada é melhor do que a prece pura, de onde, como de uma fonte, jorram as virtudes: a compreensão e a doçura, o amor e a temperança, o socorro e a consolação que Deus concede pelas lágrimas. E esta é a beleza desta prece: a concentração se concentra nela apenas nas suas palavras e nos seus pensamentos. Tal é igualmente a insaciável e contínua tensão que a leva a descobrir o divino, quando o intelecto, seguindo as pegadas de seu próprio Mestre através da contemplação dos seres e buscando com um desejo ardente, sedento, encontrar e ver o invisível, ou, contemplando as trevas, sua retirada[3], se volta outra vez para si mesma, recolhida com toda piedade, pois neste instante ela se contenta com a contemplação que lhe é revelada para seu bem e que a consola. E ela tem toda a esperança de alcançar aquilo que ela deseja, quando se cumprirem as profecias, e aquilo que ela imaginava no meio das sombras, como num espelho e por enigmas[4], e que ela verá continuamente face a face com toda pureza.

 

6. Retire-se das mais altas contemplações se você ainda não atingiu o cume da impassibilidade, e não corra a buscar, sem poder atingir, aquilo que o ultrapassa. De fato, foi dito: se você quiser se tornar teólogo e contemplativo ao mesmo tempo, eleve-se pela vida que você leva e adquira por meio da purificação aquilo que é puro. E, como eu mencionei a teologia, vele para não se estender ao infinito sobre a sua altura, e considere que não é permitido aos que ainda bebem o leite das virtudes[5] tentar voar nestas alturas, para que não despenquem como passarinhos imperfeitos, mesmo que o mel do conhecimento excite o desejo. Mas quando, purificados pela castidade e pelas lágrimas, formos elevados da terra como Elias[6] ou Habacuque[7], anunciando então ao arrebatamento em meio às nuvens[8], e quando encontrarmos Deus estando fora de nossos sentidos pela oração pura, contemplativa e desembaraçada de toda distração, então talvez desabrochemos de algum modo a teologia.

 

7. Se você deseja se tornar digno da visão e da aparição divinas no espírito, primeiro abrace a vida pacífica da hesíquia. Assim desembaraçado, conheça a si mesmo e conhecerá a Deus. Pois se isto acontecer, nada impedirá que, como numa leve brisa, no estado puro que nenhuma paixão pode perturbar, seja visto em seu intelecto Aquele que é invisível a todos e que lhe anunciará a boa nova da salvação por uma manifestação altíssima de seu conhecimento.

 

8. Quando acaba de ocorrer o relâmpago, logo esperamos pelo trovão. Da mesma forma, onde brilha a reconciliação divina, a tempestade das paixões se acalma. E quando isto acontece, com quem atingiu esta conciliação estará também a garantia, a beatitude do Reino. Mas não há piedade divina nem esperança de impassibilidade numa alma que ama o mundo mais do que o Criador, que tem um gosto apaixonado pelas coisas visíveis e que agarra totalmente aos prazeres e ao desfrute da carne.

 

9. Não busque no intelecto o que pode ser o divino, nem onde ele está. Pois ele está acima do ser e não depende de lugar, uma vez está acima de tudo. Reflita apenas em você, como num espelho, na medida do possível, Deus o Verbo circunscrito em nossa natureza, irradiando luz em sua natureza divina e simbolizando num lugar Aquele que está em toda parte, pois a Divindade é infinita. Enquanto isto, quanto mais você se purificar, mais se tornará digno de iluminação.

 

10. Se você está tomado pelo conhecimento e pela indubitável certeza da salvação, dedique-se sabiamente a romper os laços passionais que ligam a alma ao corpo e, despojando-se de sua tendência para as coisas materiais, desça ao abismo da humildade: lá você encontrará a pérola preciosa[9] de sua salvação, escondida no conhecimento divino como numa concha e anunciando antecipadamente o esplendor do Reino de Deus.

 

11. Quem chegou à submissão do intelecto sujeitando a carne ao espírito não precisa de submissão humana. Pois este homem se submete à palavra e à lei de Deus, como um sujeito reconhecido. Mas nós, em quem o corpo combate a alma e lhe faz guerra, devemos nos submeter, entregando-nos a alguém que nos comande e nos dirija, segurando o leme com ciência e buscando o melhor, a fim de que não sejamos destruídos pelos adversários espirituais nem engolidos pelas paixões por nossa falta de experiência.

 

12. Quando você não está perturbado por nenhuma paixão e o desejo divino cresce em seu coração, quando, considerando-a como um sono, você não teme a morte e ao contrário deseja a dissolução, então você terá adquirido a garantia da salvação e fará retornar para você o Reino dos céus[10], regozijando-se numa alegria indizível.

 

13. Se você foi considerado digno do sacerdócio divino e venerável, você se colocou na obrigação de ser imolado pela morte das paixões e dos prazeres e de assim ousar se juntar ao sacrifício vivo e terrível, se não quiser ser totalmente consumido pelo fogo divino como uma matéria inflamável. Pois se o serafim não ousou tocar sem pinças a brasa divina[11], como tocaria você esta brasa sem a impassibilidade, por meio da qual você terá sacrificado sua língua, pela qual seus lábios terão sido purificados, sua alma e seu corpo terão se tornado castos e suas próprias mãos se terão tornado mais brilhantes do que o ouro, como servidores do fogo e da vítima mais elevada do que o ser?

14. Compreenda bem a força do que está dito aqui: você é iniciado a cada dia nesta salvação de Deus, que o velho Simeão viu de uma vez por todas: ele ficou maravilhado e pediu ao Mestre que o deixasse ir em paz[12]. Mas se você não recebeu do Espírito Santo ser um mediador entre Deus e os homens, como se fosse igual aos anjos, não se arrisque temerariamente a celebrar a terrível e pura iniciação aos mistérios divinos, esta iniciação reverenciada pelo anjos e que, por sua pureza sem mistura, muitos santos recusaram com toda piedade. Não tenha essa audácia, para não ser destruído como Ouza[13], por haver dissimulado o bem.

 

15. Vigie a si mesmo, como disse o Senhor, a fim de que, mesmo tendo recebido sobre si, talvez por fraqueza, alguma mancha, seja esta consumida pelo fogo divino, e que você possa sempre transportá-la para além dos seus pecados anteriores. Pois assim você será capaz de transformá-la na natureza da prata ou na natureza do ouro, como um vaso de eleição, útil, puro e digno de tal vítima, ainda que alguns vasos sejam de madeira ou barro, desde que, em sua liberdade, você tenha o pendor divino em você. Pois onde Deus está pronto a escutar, não há obstáculos na transformação disto naquilo.

 

16. Considere o tamanho da honraria, semelhante à dos anjos, da qual você foi considerado digno, e esforce-se por meio de todas as virtudes e de toda pureza, para se manter no grau de dignidade para o qual você foi chamado e aí permanecer intocável. Pois você sabe de que altura caiu Lúcifer em seu orgulho. Não sofra a mesma coisa se glorificando, mas considere que você é terra e cinzas[14], impuro e cão, e se lamente continuamente de ter sido inteiramente considerado digno de ser chamado à comunhão e ao parentesco divinos por seguir o caminho sobre o qual os santos cumpriram a terrível celebração, pelo indizível amor que Deus dedica ao homem e por sua inefável bondade.

 

17. O homem que se consagra deve se manter puro de todas as paixões, em especial da prostituição e do ressentimento, e não se abandonar à imaginação, para não ter o rosto destruído ou coberto de alcatrão quando tocar o corpo real, e não ser odioso e execrável.

 

18. Tornado acima de tudo mais branco do que a neve pelos flocos das lágrimas, com a consciência alva de pureza, agarre-se aos santos, como um santo, deixando transparecer a beleza interior da alma sob a brancura exterior semelhante aos anjos. E na celebração dos mistérios divinos, vigie para não ser investido apenas pela tradição dos homens, mas para que, de maneira oculta e misteriosa, a graça esteja em você, permitindo-lhe conhecer as coisas mais elevadas.

 

19. Se você foi tomado pela incorruptibilidade e a imortalidade, procure na fé, com veneração e piedade, aquilo que vivifica e não se altera, desejando partir daqui, pois, pela fé você chegou ao objetivo. Mas se você teme a morte, é porque você ainda não se uniu por amor a Cristo, cujo sacrifício você se tornou digo de celebrar com suas mãos, e de cuja carne você se sacia. Pois se você foi tomado pela incorruptibilidade, é porque você se esforçou para ir aonde se encontra o Bem-Amado, já não mais levando em nenhuma consideração a vida e a carne.

 

20. Tornando-se sacrificador e participando da carne de Deus pela comunhão, você deve se tornar da mesma natureza que ele e assimilar-se à sua morte[15], não vivendo mais para si mesmo, como diz o Apóstolo, mas para aquele que foi crucificado e que morreu por você[16]. Mas se, por causa da carne e do mundo, você vive de maneira passional, prepare-se, através da morte, para um castigo eterno se você não se detiver espontaneamente antes da celebração do sacrifício incruento. Pois muitos dos que celebraram indignamente o sacrifício aqui em baixo, levados por uma morte súbita, foram enviados à Geena no além.

 

21. Um sacerdote, que era monge ao mesmo tempo, tinha uma reputação de piedade e era honradamente considerado por sua aparência exterior; mas por dentro era secretamente sujo e debochado. Certa vez, quando ele celebrava a Divina Liturgia e se aproximava do Canto dos Querubins, ele se aproximou inclinando a cabeça diante da santa Mesa, conforme o costume, e começou a ler em voz alta: “Ninguém é digno”; neste instante, caiu morto: sua alma o havia deixado neste estado.

 

22.  Nada é melhor do que uma palavra e um conhecimento retos, pois é daí que nascem o temor e o desejo por Deus. O temor purifica a piedade e o aquietamento. O desejo leva à perfeição pela iluminação e o discernimento, e arrebata o intelecto às alturas pela contemplação suprema e pela elevação. Sem o temor é impossível ser transportado para o amor divino, é impossível voar graças a ele para aquilo que se espera e naquilo em que se deseja repousar.

 

23. Se você me crê, você que deseja a salvação ardentemente e que para alcançá-la corre até obtê-la, cansando-se na sua busca, pedindo sem descanso e batendo com paciência[17] até encontrá-la, depois de ter construído uma fé sólida e uma humildade que sejam como que uma fundação sob seus pés: você obteve o que desejava, não apenas quando conseguiu a remissão de seus pecados, mas quando já não sente apreensão nem teme mais o levante de nenhuma paixão, tendo se separado da carne sem medo e com toda segurança.

 

24. Peça, vertendo muitas lágrimas, para receber uma plena certeza, mas não antes do fim, se você for humilde, para não ser desprezado depois por seu descuido. Naquele momento, peça para se encontrar perto da morte e poder alcançá-lo, a fim de não perder aquilo que você deseja, por ser um ridículo presunçoso em sua suposta segurança, quando vier o tempo que você espera. E aonde iria você, infeliz, sem garantia e sem a plena e indubitável certeza que só o Espírito concede?

 

25. Você que está imbuído da impassibilidade deificante, descubra antes pela obediência e pela humildade aquilo que deseja, a fim de não se fatigar passando por outro caminho. Não possui a impassibilidade aquele que ora é perturbado pelas paixões ora está calmo e repousado, mas aquele que desfruta continuamente desta impassibilidade, que permanece sem balançar diante das causas presentes das paixões e aquele, por excelência, não se perturba nem como o pensamento das paixões.

 

26.[18] Combatendo e injuriando, o inimigo penetra destemidamente na alma que saiu do corpo, e se faz acusador amargo e terrível de suas faltas. Mas mesmo que em outros tempos a alma tenha sido muitas vezes ferida por pecados, podemos ver agora a alma que ama a Deus não mais atingida pelos assaltos e as ameaças do inimigo, mas antes confortada no Senhor, elevando-se em alegria como sobre asas, encorajada pelas santas potências que a conduzem, cercada pela luz da fé e replicando ao maligno com toda segurança: “O que existe entre você e nós, desertor dos céus e mau servidor? Você não tem nenhum poder sobre nós. Somente Cristo, o Filho de nosso Deus e Deus do universo, tem este poder. É contra ele que pecamos, será diante dele que responderemos, tendo como garantia sua misericórdia por nós, e como salvação sua cruz preciosa. Quanto a você, miserável, fuja para longe de nós: não existe nada entre você e os servidores de Cristo”. Quando a alma disser estas palavras resolutamente, o diabo dar-lhe-á as costas, lamentando-se e gritando, incapaz de suportar o nome de Cristo. De pé sobre o inimigo, a alma pisará nele e lhe baterá como faz ao corvo o “oxyptero[19]”, pássaro de asas rápidas. Neste momento a alma é reconhecida pelos anjos divinos e pode se regozijar no lugar que lhe foi assinalado na medida de seu estado.

 

27. O desejo pelas coisas que passam não o arrastará para baixo, para a terra, se você imaginar as coisas do céu. Mas se um pendor passional pelas coisas da terra o prender a ela, você se parecerá com uma águia presa pelas garras numa armadilha, incapaz de voar às alturas. Considere e veja todas as coisas como dejetos[20], na esperança do melhor. E depois de se ter desembaraçado desta carne, quando vier o tempo, siga o anjo de Deus que o buscará.

 

 28. Assim como a moeda que não possui o timbre real não pode ser colocada dentre os tesouros do rei com as peças usuais, também sem conhecimento direito e sem impassibilidade é impossível receber a garantia da beatitude do além, de partir das coisas daqui com segurança e plena certeza para ganhar aquilo que se espera e ser contado entre os eleitos. Chamo de conhecimento não a sabedoria, mas a infalível percepção de Deus e do divino. Assim, aquele que ama a Deus e não é atraído pelas paixões se eleva para a deificação por meio da graça do Espírito.

 

29. Ainda que você tenha praticado todas as virtudes, não tenha a pretensão de ter alcançado a impassibilidade e de permanecer descuidado neste mundo, para que não tenha dificuldade em partir depois de ter modelado aqui em baixo as formas das paixões. Dirigido continuamente pelo temor, vigie sua natureza versátil e mutante. Na sabedoria, afaste-se das causas das paixões. Pois a impassibilidade eminentemente imutável reside naqueles que alcançaram o amor perfeito, que por meio de uma contemplação contínua ultrapassaram as coisas sensíveis e que atravessaram a humildade ainda em seus corpos. A chama das paixões, extinta pela voz do Senhor[21], já não os abrasa, porque eles já foram transformados no caminho da incorruptibilidade.

 

30. Não se imagine impassível antes do tempo, a fim de não sofrer o que sofreu o primeiro homem ao comer o fruto prematuro da árvore do conhecimento[22]. Ao contrário, trabalhando pacientemente na via de uma temperança envolvente e um prece contínua, guardando os frutos de seu trabalho pela vergonha de si mesmo e pela extrema humildade, receba a graça da impassibilidade no tempo certo. Depois da grande tempestade e de tanto tumulto, chegue ao porto do repouso. Pois Deus não é injusto, que feche a porta da impassibilidade aos que caminham retamente.

 

31. Seja como a formiga em seu rebaixamento e sua negação, ó preguiçoso, você que ainda não foi testado, e aprenda comigo que Deus, a quem nada falta e que transborda, não tem necessidade de nossos bens, mas cumula de benesses abundantes e salva, com sua graça, seus eleitos reconhecidos, mesmo que, em seu amor pelos homens, ele receba os trabalhos que estes fizeram na medida de suas forças. Assim, se você se esforça porque lhe deve bens que antes de você já existiam, você faz bem e está perto da piedade divina. Mas se você considera que é Deus quem lhe deve por causa do bem que você imagina ter feito, você se afastou da via reta. Pois como pode o benfeitor dever? Corra como um servidor assalariado e, progredindo pouco a pouco, você conseguirá o que busca, com a compaixão de Deus.

 

32. Quer que eu lhe mostre outro caminho de salvação, ou melhor, de impassibilidade? Incomode o Criador tanto quanto puder com suas orações, não se afaste do objetivo que lhe foi assinalado, continuamente apelando, para chegar a ele, pela mediação de todas as potências celestes, de todos os santos e da Toda Pura Mãe de Deus. Não procure pela impassibilidade se você não for digno deste dom. Mas peça a salvação, trabalhando arduamente, e junto com ela você receberá a impassibilidade. Pois esta é semelhante à prata, mas a salvação é parecida com o ouro puro. E agarre-se tanto quanto puder à obra secreta que serve a Deus e às palavras dos mistérios ocultos junto a ele, estas palavras que o deificam, nas quais o divino se regozija e desce a nós.

 

33. Esforce-se para receber secretamente em seu coração, com plena e indubitável certeza, a garantia da salvação, para não se perturbar nem se aterrorizar desprevenido no momento da morte. Neste momento, se você não tiver mais um coração que o condena por suas faltas, ainda terá uma consciência que o fustiga por suas provocações. Se, pela graça de Deus, você pôde se libertar da selvageria das paixões brutais, se correrem as lágrimas da consolação, o intelecto rezará com toda pureza e sem nenhuma distração. Então, com o coração pronto, você receberá com doçura a morte terrível da qual a maioria foge.

 

34. As palavras de vida eterna de Deus o Verbo, conforme o testemunho do corifeu dos apóstolos[23], são as razões daqueles que ele criou, estas razões que o homem iniciado nos seus mistérios possui daí por diante: a vida eterna, a garantia do Espírito e a esperança da salvação, que nada pode confundir. Não é digno disto quem prefere a carne à alma e que tem um pendor passional pelas coisas terrestres.

 

35. O homem racional não é aquele que se exprime pela palavra; isto, todo homem faz. O homem racional é aquele que, pela razão, busca encontrar a Deus e segue suas pegadas. Ele não encontrará aquilo que o Supra-essencial é em sua essência; pois isto é impossível para qualquer natureza. Mas ele o descobrirá por intermédio da sabedoria criadora dos seres, pela providência e pela direção, a coesão, a conduta e a conservação, nas quais se encontra e nas quais, podemos dizê-lo, se pode ver o artista supremo e de certo modo também o arquiteto, através das obras de suas próprias mãos.

 

36. Você não acessará convenientemente a despossessão sem a impassibilidade; nem a impassibilidade sem o amor; nem o amor sem o temor e a prece pura; tampouco chegará aí sem a fé e a ausência de cuidados, por meio de quê o intelecto alado rejeita os pensamentos que o assaltam e voa para as alturas e os lugares elevados, à procura de seu próprio mestre.

 

37. Abrace a pureza como a menina dos olhos, para se tornar o templo de Deus e morada digna de ser amada. Pois é impossível, sem a castidade, conseguir se unir a Deus. Isto é engendrado pelo desejo divino, a ausência de pendores passionais e a fuga do mundo. E a humildade, a temperança, a prece constante, a contemplação espiritual, as lágrimas abundantes e a constância da alma conservam a castidade. Mas sem a impassibilidade, você não alcançará a beleza do discernimento.

 

38. Que ninguém o engane, irmão, dizendo-lhe que se pode ver a Deus independente da santificação de que fala o Apóstolo[24]. Pois o Senhor mais do que puro, que está acima de toda pureza, não aceita aparecer ao impuro. Do mesmo modo como aquele que ama a seu pai ou sua mãe, ou seus filhos e filhas mais do que a ele[25], não é digno dele, também não o é quem ama seja lá o que for de passageiro e material. Com mais razão ainda, não é digno dele quem prefere o pecado infame e pútrido ao amor do Senhor. Pois Deus derruba quem não se desvia da sujeira. O que é corrupto não pode herdar a incorruptibilidade[26].

 

39. Sem o conhecimento, você não será considerado digno do amor divino. E você não será considerado digno do conhecimento sem a fé. Eu chamo de fé não apenas a fé nua, mas a fé que deriva da prática das virtudes. Você alcançará a compunção verdadeira quando, depois de ter subjugado o prazer inato da carne por meio da temperança e das vigílias, da prece e da humildade, se crucificar junto com Jesus[27], não mais vivendo as paixões, mas vivendo pelo Espírito divino e seguindo a esperança da herança do alto[28].

 

40. Clame por Deus: “Veja por que eu reconheço sua benevolência: meu inimigo já não se rejubila sobre mim[29], ele que, por meio das paixões, me tiraniza e me ultraja. Mas para que você me resgate de suas mãos antes da morte, depois de ter me tornado digno de viver espiritualmente, conforme lhe apraz, possa você, para um bom final, me conduzir diante de seu Trono, salvo e trazendo, graças à sua compaixão, a garantia da salvação e da plena e indubitável certeza recuperada, uma vez que, sem perturbação e sem temor de não estar pronto no momento do êxodo, eu considero insuportável essa aflição, mais amarga e pior do que a morte e o castigo”.

 

41. A fé e a esperança não acontecem por si, pura e simplesmente, e não são fortuitas. A fé necessita de uma alma firme, e a esperança de uma vontade e um coração retos. Sem a graça, de fato, como crer facilmente naquilo que não vemos? E como esperar pelos bens invisíveis do século futuro, se não tivermos nenhuma experiência direta dos carismas do Senhor? É por meio destes carismas que recebemos a plena certeza dos bens futuros coo se eles estivessem presentes. Para uns e outros a virtude é necessária, assim como a impulsão e o socorro de Deus. Se estas coisas não estão em nós, nós nos estafamos sem saber aonde estamos indo.

 

42. O fruto da verdadeira virtude é, seja o conhecimento, seja a impassibilidade, seja ambos. Se isto não acontecer é por que agimos em vão, e a virtude é fingida e falsa. Pois se nos orgulharmos agora, não só das folhas mas também dos frutos, buscando o que agrada aos homens ou a n´[os próprios, ou buscando qualquer outra coisa que não agrade a Deus, estaremos sendo bastardos e não amados de Deus. Mas nós, que corrigimos a causa, sem dúvida receberemos, para nosso benefício, a graça de nosso Deus bom, esta graça que traz em si, quando necessário e na medida do necessário, o conhecimento e a impassibilidade.

 

43. Pela iluminação da graça, compreenda os pensamentos do inimigo e, derramando lágrimas diante de Deus, confesse sua fraqueza considerando a si mesmo como nada, mesmo se o enganador o persuadir a se ver como alguém. Não se considere digno de receber os carismas, exceto os que suscitam a salvação e preservam a humildade. Busque o conhecimento que não infla, como a causa do conhecimento de Deus, para não ser oprimido até o fim pelas paixões, como se estas fossem tiranos, e para se libertar da carne por meio da impassibilidade, ou, mais humildemente, pelo sofrimento que experimentado com as faltas.

 

44. Assim como não é possível voar sem asas às alturas e às regiões elevadas, também é impossível alcançar o que esperamos sem a plena e indubitável certeza do além. Ora, a plena certeza provém de uma extrema humildade, ou da graça do Espírito Santo naqueles que estão perfeitamente reconciliados com Deus e nos quais a impassibilidade se encontra total ou parcialmente, ou da maneira mais perfeita no momento da reconciliação e da purificação. Quanto aos que, ao contrário, se separam de seus corpos quando ainda estão no meio da tempestade das paixões ou no sábado[30] (ou seja. os que não praticam as virtudes), estes tombam sob o golpe do juízo e do exame, pois devem responder no tempo da retribuição.

 

45. Salvo gratuitamente, dê graças a Deus seu Salvador. Mas se você quiser oferecer dons, ofereça com todo o reconhecimento de sua alma viúva estas duas pequeninas peças: a humildade e o amor. Ele as receberá no tesouro[31] da salvação, disto sei bem, com mais gosto do que a multitude de virtudes depositadas por muitos. Mas se você pedir para voltar à vida como Lázaro, depois de ter conhecido a morte por causa das paixões, coloque-as na sua frente, a humildade e o amor, como duas irmãs, para que elas intercedam junto a ele, e assim você certamente obterá o que pede.

 

46. Depois de ser bem sucedido na prática das virtudes, não será por causa dela apenas que você poderá alcançar a impassibilidade, para orar com toda pureza e sem distração, se ao intelecto faltarem as contemplações espirituais do conhecimento esclarecedor e da compreensão dos seres, por meio de que, alado e iluminado, o próprio intelecto, no amor totalmente cativo da verdadeira prece, se eleva, despojando-se, até as luzes com as quais é aparentado, as luzes das ordens imateriais do alto, e daí, tanto quanto possível, até a grande luz do triplo sol da Trindade na divina Origem.

 

47. Não seremos castigados no século futuro por havermos pecado, não seremos condenados por isto, nós que recebemos em comum uma natureza versátil e mutante. Seremos condenados, isto sim, por que depois de termos pecado, não nos arrependemos nem deixamos o mau caminho para nos voltarmos para o Senhor, dele recebendo a faculdade e o tempo para o arrependimento, a fim de manifestar o bem (que é o divino e não o seu contrário, o passional, com a cólera e a violência) e não o mal (que não faz parte de nós, pois o bem exclui toda paixão e toda violência, mesmo que se diga que o Senhor se conforma com nossas obras e nossas disposições, tal como um espelho, remetendo a cada qual sua parte conforme valeu sua vida).

 

48. Sacudido a ponto de perder o equilíbrio, não grite, mas endireite-se retornando depressa ao estado anterior, com tristeza, amargura e vergonha de si, vertendo muitas lágrimas com o espírito quebrantado. É assim que, escapando à queda que você experimentou, você chegará ao vale do salutar regozijo, confortado daí por diante na medida do possível, a fim de que, sem mais irritar o Juiz, você possa pedir as lágrimas e a aflição que expiem suas faltas. Se você não fizer isto, certamente conhecerá o castigo no século futuro.

 

49. É preciso voltar ao sacerdócio venerável como a uma ordem e uma purificação angélicas, como a uma segurança e uma castidade maiores agora do que antes. O que era sujo se tornou puro, e agora como poderá o puro se tornar sujo? Caso contrário, por misturarmos as trevas à luz e os maus odores ao perfume, teremos em comum a perdição e o infortúnio, como se fôssemos sacrílegos semelhantes a Ananias e Safira[32].

 

50. Mesmo que, a partir de um vaso perdido e inútil, você pareça ter obtido toda a dignidade do sacerdócio celeste semelhante aos anjos e, por ter se purificado um pouco, tenha se tornado conforme Paulo[33] um vaso de eleição útil ao Senhor, conserve sem mácula a honra de que foi digno, guardando o dom divino como a menina dos olhos, para não ser atirado do alto no abismo por ter comungado sem atenção; dificilmente você encontrará o caminho de volta.

 

51. Considere com sabedoria que ninguém é condenado se for purificado por Deus[34]. Se, depois de ter sido chamado, você entrou na graça do sacerdócio divino, esta graça mais elevada do que o mundo, não se preocupe mais com sua vida anterior, caso esta tenha sido manchada por qualquer coisa. Graças a Deus, ela está no terreno que foi purificado pela sua correção. Daqui para diante seja ardente e vigilante em não ocultar a graça, para que ninguém duvide sem razão de sua celebração por causa de sua vida anterior, e para que se alguém o fizer, que ouça dizer a voz divina: “Não manche o que Deus purificou[35]”.

 

52. O fardo do sacerdote é leve e seu jugo é doce[36] na medida em que ele é assumido e carregado como se deve, e na medida em que a graça do Espírito divino não é algo que se adquire. Mas quando se negocia o invendável com uma aplicação inteiramente humana e como um dom corruptível, quando a vocação não vem do alto, o fardo se torna muito pesado, pois o carregamos além de nosso mérito e de nossas forças. Se ele não for removido, o jugo se tornará ainda mais duro, esgotando o pescoço e o vigor daquele que o sustenta, até consumi-lo totalmente.

 

53. Se você teve a audácia de se colocar sob o jugo do sacerdócio, endireite seus caminhos e distribua fielmente a palavra da verdade, como temor e tremor, obtendo com isto sua salvação[37], “pois nosso Deus é um fogo devorador[38]”. Se você o tocar, sendo você mesmo como o ouro ou a prata, não tema ser queimado, assim como as crianças da Babilônia não temeram o fogo[39]. Mas se você é como a erva e o junco, feito de matéria inflamável, porque só pensa na terra, trema para não ser queimado pelo fogo celeste se não fugir da cólera como Lot[40], abstendo-se daquilo que nos inspira o maior terror. Eu ignoro se as menores faltas cometidas por fraqueza serão ou não consumidas por este fogo divino no culto puríssimo, e se você mesmo não será queimado pelo fogo ou se permanecerá intacto, como o frágil arbusto[41].

 

54. Você que é incapaz de se libertar do estado passional em que o corrimento seminal o colocou por causa do hábito contumaz, como você ousa, infeliz, segurar aquilo que mesmo os anjos não tocam? Portanto, ou bem trema e se abstenha da celebração divina daqui para frente e, por meio desta expiação se reconcilie com o divino, ou, permanecendo insensível e incorrigível, espere para cair em plena cólera nas mãos do Deus vivo[42], que não o livrará, em seu amor pelo homem, mas que o castigará sem compaixão por ter você ousado comparecer às núpcias reais com a alma e a vestimenta manchadas, indigno não se de entrar[43], mas ainda de se sentar à mesa.

 

55. Eu conheci um sacerdote que ousou tocar indignamente nas coisas de Deus ao mesmo tempo em que estava sob o jugo de uma paixão que o prostituía. Primeiro ele caiu numa enfermidade incurável e penosa, e logo a morte se aproximava. Ele fez de tudo para deter o mal, mas nada conseguia: ao contrário, o mal se alastrava por ele. Então ele teve um lampejo de consciência de que morria assim por celebrar indignamente, e fez um voto de renunciar imediatamente à santa Liturgia. Rapidamente ele estava de pé e se curou, de tal modo que já não restou nem traço da doença.

 

56. O cargo do sacerdote e a vestimenta sacerdotal são luminosos, mas apenas na medida em que também a alma brilha por sua pureza. Quando ela é culpada de desatenção e a consciência que a acusa de vergonha é desprezada, a luz se torna treva e suscita as trevas e o fogo eternos. Se neste momento deixarmos este caminho cercado de precipícios, devemos nos voltar para outra via que, pela virtude e a humildade, nos conduza sem perigos ao Reino de Deus.

 

57. Alcançamos a salvação pela simplicidade e a virtude, não pelo sacerdócio glorioso, que exige que levemos uma vida semelhante à dos anjos. Assim sendo, ou bem você torna impassível, à maneira dos anjos, seu pensamento levando-o para fora do mundo e da carne, elevando-se por esta escada celeste, ou bem, reconhecendo sua própria fraqueza, tema as alturas, que podem causar uma enorme queda aos que não são totalmente direitos. Lembre-se de que a vida que a maioria leva e testemunha não está menos próxima de Deus do que a primeira. Mesmo se você cair levando esta vida, é fácil se endireitar pelo arrependimento, pela compaixão e pela graça de Deus.

 

58. A carne e o sangue não herdarão o Reino de Deus[44]. Como é que você, que comunga com a carne e o sangue de Deus, não se torna uma mesmo corpo com ele e não se une ao seu sangue? Você, que já tem em si o Reino dos céus, como pode ser ainda acossado pelas paixões da carne e do sangue? Temo que o Espírito de Deus não permaneça em você, porque você é carnal, e que você não será separado no momento do Juízo, quando lhe for retirado o venerável sacerdócio na medida em que você foi indigno de tal graça; temo que você seja enviado ao castigo eterno.

 

59. Quando o temor de Deus não está colocado diante dos seus olhos[45] você pensa que não haverá consequências em celebrar indignamente: mas você se engana por amor a si mesmo e se ilude a respeito do bem divino. É isto que um dia experimentaram Datan e Abiram, até que a terra os engolisse[46]. Você que teme isto e que teme verdadeiramente, compreenda a grandeza do que você faz: ou bem você exerce com toda a dignidade e pureza, para não dizer como um anjo, o encargo do sacerdócio divino, ou tenha o bom senso de não mais celebrar o culto divino, de medo que, tendo nisto desprezado e enganado a própria consciência que o denuncia, você, condenado, diga em sua dor, quando for julgado e corrigido: “Aquilo que eu temia chegou até mim. Aquilo de que eu tinha medo me aconteceu[47]”.

 

60. Sobriamente, com vigilância e aflição, ofereça primeira para si mesmo, com o coração contrito e lágrimas, o santo sacrifício expiatório que salva o mundo. Pois, que terá você para se afligir e para oferecer em sacrifício depois de morto? É por isso que, com o intelecto vivo e tomando a dianteira, prepare desde já seu enterro e comemore a si mesmo, quando intercedendo pela salvação, depois de oferecer a Deus estes santos dons sobre a Mesa santa, você rememore a lembrança de sua divina imolação voluntária aqui em baixo, em seu amor pelo homem.

 

61. É inefável e inexprimível o prazer da alma que, com a plena certeza, se separa do corpo e se despoja dele como de uma vestimenta. Com efeito, desde que ela já obteve aquilo que esperava, ela se desembaraça do corpo sem tristeza e avança em paz para o Anjo que vem do alto radioso e alegre, ela atravessa o espaço sem encontrar obstáculos, sem que em nada a prejudiquem os espíritos do mal, elevando-se alegre com confiança e gratidão, até que, chegando ao objetivo, ela se prosterna diante do Criador e recebe a sentença que a coloca no número de seus semelhantes e iguais em virtude, esperando pela ressurreição comum.

 

62. Eu lhe proponho uma linguagem estranha, e não se espante se os pressupostos que talvez o tiranizem o impedem de adquirir a impassibilidade. Mas se, no momento do êxodo, você se encontrar no abismo da humildade, você será elevado acima das nuvens tanto quanto o impassível. Pois se o tesouro dos impassíveis é feita da reunião de todas as virtudes, a pedra preciosa da humildade tem mais valor do que todas juntas. Não apenas ela concede ao que a possui a expiação diante de Deus, como também o encaminha junto com os eleitos para o lugar das bodas em seu reino.

 

63. Se você receber de Deus a graça de expiar suas faltas, glorifique Aquele que esquece e suporta o mal, na medida em que você tiver certeza de estar acima dos seus erros voluntários, tanto quanto possível. Pois se até o êxodo, a cada dia você expiar suas faltas, parece haver em você uma inconsciência em pecar facilmente com conhecimento de causa. Porém, se, atirando-lhe a pedra da boa esperança, você expulsar o cão da desesperança, e se não cessar de pedir, obstinadamente e sem vergonha nenhuma, seus numerosos pecados serão perdoados[48], a fim de que também você, resgatado, possa amar acima de tudo Àquele que é compassivo e mais do que bom no século futuro.

 

64. Quando, levado pela graça divina, você se ver em lágrimas diante de Deus na oração, deixe-se cair por terra com os braços em cruz e, batendo no chão com a cabeça, peça para ir-se daqui para se livrar da corrupção e se libertar das tentações; não do modo como você quer, mas como Deus quiser, quando e onde ele quiser. Você já deseja e ama sua partida desta vida se se dirige em lágrimas ao Senhor no abismo da humildade, a fim de lá permanecer sem se preocupar com o fervor do desejo e da prece. Porém, agora suporte o tempo que o separa da vida melhor que Deus proverá[49]. Mas faça o juramento de buscar com todas as forças aquilo que conduz ao objetivo: o que não fazer, o que não dizer, o que não visar e não empreender, a fim de não se distanciar de Deus.

 

65. Você que carrega sua carne, não tente sondar as coisas inteligíveis tais como elas são, mesmo que a faculdade intelectual da alma o conduza a elas pela pureza. Pois se o incorpóreo retido pelo sopro e o sangue não dissolver a pesandez da carne e não reunir as coisas inteligíveis ele não poderá pensar e compreender estas coisas como convém. Assim, quando você estiver pronto para partir da matéria como de um novo ventre materno, como de uma segunda matriz tenebrosa, para ir em direção às coisas imateriais e luminosas, alegre-se, glorificando o Benfeitor que nos dez passar pela morte para nos conduzir até aquilo que esperamos. E esteja sempre sóbrio e vigilante, por causa dos demônios ímpios que vão e vêm ao nosso redor[50], que estendem armadilhas às honras que receberemos e que picam nossos calcanhares[51], no fim de nossas vidas: trema até sua partida, pois o século futuro é impenetrável, e você foi criado variável e mutante em sua liberdade.

 

66.  O inimigo caminha na nossa frente, nos enviando tentações selvagens e terríveis quando percebe a alma transportada por grandes volumes de virtude, demonstrados pelas palavras da prece e pelo movimento que nos eleva acima do par material da carne e das coisas sensíveis. Em sua inveja, o demônio, que odeia o homem, nos envia tentações tais que já não sabemos se poderemos sobreviver[52]. Mas tudo isto é em vão, e ele ignora os bens que suscita em nós quando, por meio da paciência, ele nos torna seres experimentados e nos trança coroas ainda mais radiosas.

 

67. Não existe combate maior do que o da castidade e da virgindade. Pois aquele que honra o celibato é admirado pelos próprios anjos e não é menos coroado do que os mártires. Quantas penas e suores são necessários para imitar pela pureza a imaterialidade dos incorpóreos quando ainda se está ligado à carne e ao sangue! A empresa é tão grande e tão elevada, em verdade, que parece quase impossível por estar acima da natureza, se Deus não a assumir conosco do alto, confortando a fraqueza de nossa natureza, sustentando a precariedade da terra e aliviando-a de certo modo com o amor divino e a esperança das honras que nos estarão reservadas.

 

68. Uma alma impregnada de bebidas e sono é um obstáculo à castidade. A verdadeira castidade permanece imóvel mesmo no meio das imaginações que atravessam o sono. Que o intelecto corra atrás delas é sinal de que ele recai na grave doença da paixão. Mas se ele foi tornado digno de estar, mesmo sem o corpo, em relação com Deus durante o sono, ele permanecerá intacto. Apaziguadas as imaginações, ele se mantém como o guardião atento da alma e do corpo, como um cão sóbrio e vigilante que vela, por causa dos lobos insidiosos, e não permite ser roubado.

 

69. Vou lhe dizer uma coisa paradoxal, e não se espante: existe um mistério que se desenrola secretamente entre Deus e a alma. Este mistério se refere aos graus mais altos: a purificação perfeita, o amor e a fé. Quando o homem, reconciliado até o fim, se une a Deus na intimidade por meio da prece e da contemplação contínuas, então Elias fecha o céu impedindo a chuva[53] e queima o sacrifício com o fogo celeste[54], Moisés abre o mar[55] e erguendo os braços derruba Amalek[56], Jonas é salvo do monstro marinho e do abismo[57]. Pois quem é considerado digno de Deus é por ele conduzido em seu amor por nós para onde ele quiser, mesmo se este homem ainda estiver na carne, desde que ele tenha ultrapassado a medida da corrupção e da condição mortal, vendo a morte como um sono ordinário, que o envia agradavelmente para aquilo que ele espera.

 

70. Reverenciando os sofrimentos do Mestre e a kenose do Verbo de Deus que se despojou por nós, bem como o sacrifício e a comunhão em nós do corpo e do sangue divinos e vivificantes dos quais fomos considerados dignos não apenas de receber mas ainda de celebrar, humilhe-se, como o cordeiro levado à imolação, considerando que na verdade todos estão acima de você. E esforce-se para não ferir a consciência de ninguém, principalmente sem razão. E se você não foi santificado, não tenha a audácia de tocar nos santos dons, para não ser destruído, queimado como a erva e fundido como a cera pelo fogo divino.

 

71. Certamente que, se você cumprir convenientemente a terrível celebração da divina e venerável hierurgia e se sua consciência não o acusar em nada, pode esperar desta celebração a salvação. Pois o benefício que você extrair dela lhe será concedido acima de todo trabalho e de toda contemplação. Se não for assim, você verá por si mesmo, é melhor reconhecer a própria fraqueza e renunciar à altura do sacerdócio do que assumi-lo de maneira imperfeita e impura e de aparecer a todos suspenso no ar, pendurado como um cadáver por sua indignidade.

 

72. O culto que o venerável sacerdote oferece, o sacrifício que ele celebra para obter a graça do divino, a súplica que ele lhe dirige, o colocam acima de toda salmodia e de toda prece, assim como o sol supera as estrelas. Pois nós oferecemos e expomos o sacrifício do próprio Filho único e invocamos Aquele que, por amor ao homem, foi gratuitamente imolado por nossos pecados. Não apenas pedimos o perdão por nossas faltas, mas também por eles, os pecadores, para seu bem, se sua consciência não foi manchada. E, como uma brasa que inflama toda a matéria das iniquidades, o que se uniu à Divindade ilumina os corações dos que se aproximam com fé. Do mesmo modo, o sangue divino e precioso lava e purifica, mais do que qualquer hissopo, toda marca e toda mancha dos que ousam tocar os santos dons tão pura e inocentemente quanto possível, quando se colhe em si o que acontece lá.

 

73. Não é o corpo do Verbo de Deus depois de sua Ascenção que é sacrificado ao descer dos céus, como disse um santo[58], mas o próprio pão e o vinho que são transformados no corpo e sangue de Cristo, oferecidos em sacrifício com fé, temor, desejo e piedade pelos que são considerados dignos do sacerdócio divino: o pão e o vinho são o lugar da mudança, pela energia e a vinda do Espírito Santo. O pão não se torna outro corpo que o corpo do Mestre mas, transformado neste corpo, concede a incorruptibilidade sem se destruir. Quanta pureza e santidade precisa ter o sacerdote quando ele toca o corpo divino! E de quanta segurança ele precisa, ele que se torna o mediador entre Deus e os homens e que, para interceder junto a ele, se cerca da puríssima Mãe de Deus, de todas as potências celestes dos anjos e dos santos desde a origem dos séculos! Assim como ele necessita da dignidade angélica e arcangélica, me parece que ele precisa também da intimidade divina.

 

74. Você deve notar, Pisinius, que os santos dons são expostos sem véus sobre a Mesa santa depois do Símbolo da fé, quando serão consagrados, para que o padre reze de certa maneira pelo que é oferecido e para que chame com palavras inefáveis Aquele que habita nos céus. Pois o Deus que olha não olha de lado, ele que vê e parece não ver. Ele se lembra da kenose voluntária pelos pecadores, de sua inefável descida entre nós e de sua imolação por amor ao homem. Pois não foi por nós, que fomos justificados, que o bom Deus que suporta o mal deu a redenção e a salvação por meio de seus sofrimentos, mas ele teve piedade daqueles que haviam naufragado e que ele resgatou.

 

75. Mesmo que você se dedique à prece pura que une imaterialmente a Deus o intelecto imaterial, e que tenha visto como num espelho a sorte que o espera depois desta vida aqui de baixo por ter recebido a garantia do Espírito[59] e mesmo que você tenha em si o Reino dos céus[60] que você percebe plenamente e como toda certeza, não aceite ser libertado da carne sem primeiro conhecer a morte. Ore muito para aí chegar e tenha a boa esperança de chegar antes do êxodo, se for para seu benefício, Prepare-se continuamente para partir, rejeitando todo temor, quando, depois de ter atravessado o espeço e escapado dos espíritos do mal, você penetrar com confiança e sem medo no interior das abóbodas celestes, unindo-se às ordens angélicas, aos eleitos e aos justos desde a origem dos séculos; então você verá o divino, tanto quanto possível. Se você se encontrar aí, você terá a intelecção dos bens divinos e do Verbo de Deus que ilumina com seus raios o que está além do céu, celebrado numa adoração única, com sua carne puríssima e com o Pai e o Espírito, por todas as ordens celestes e todos os santos. Amém.



[1] Cf. Salmo 38 (39): 5-6.
[2] Salmo 9: 36.
[3] Cf. Salmo 17 (18): 12.
[4] Cf. I Coríntios 13: 12.
[5] Cf. I Coríntios 3: 2.
[6] Cf. II Reis 3: 2.
[7] Cf. Daniel 14: 36.
[8] Cf. I Tessalonicenses 4: 17.
[9] Cf. Mateus 13: 46.
[10] Cf. Lucas 17: 21.
[11] Cf. Isaías 6: 6.
[12] Cf. Lucas 2: 29.
[13] Cf. II Samuel 6: 6-8.
[14] Cf. Gênesis 18: 27.
[15] Cf. Romanos 6: 5.
[16] Cf. Gálatas 2: 20.
[17] Cf. Mateus 7: 7.
[18] Este parágrafo repete quase textualmente João Cárpatos, Exortação aos monges da Índia, 25.
[19] Literalmente: “de asas rápidas”
[20] Cf. Filipenses 3: 8.
[21] Cf. Salmo 28 (29): 7.
[22] Cf. Gênesis 3: 6.
[23] Cf. João 6: 68.
[24] Cf. Hebreus 12: 14.
[25] Cf. Mateus 10: 37.
[26] Cf. I Coríntios 15: 40.
[27] Cf. Gálatas 2: 19-20.
[28] Cf. Gálatas 5: 25.
[29] Salmo 40 (41): 12.
[30] Cf. Mateus 24: 20.
[31] Cf. Marcos 12: 41-43.
[32] Cf. Atos 5: 10.
[33] Cf. II Timóteo 2: 21; Atos 9: 15.
[34] Cf. Romanos 8: 33-34.
[35] Atos 10: 15.
[36] Cf. Mateus 11: 30.
[37] Cf. Filipenses 2: 12.
[38] Hebreus 12: 29.
[39] Cf. Daniel 3: 17-18.
[40] Cf. Gênesis 19: 17-29.
[41] Cf. Êxodo 3: 2.
[42] Cf. Hebreus 10: 31.
[43] Cf. Mateus 22: 12.
[44] Cf. I Coríntios 15: 50.
[45] Cf. Salmo 35 (36): 2.
[46] Cf. Números 16: 31-33.
[47] 3: 25.
[48] Cf. Lucas 7: 47.
[49] Cf. Hebreus 11: 40.
[50] Cf. Salmo 11 (12): 9.
[51] Cf. Gênesis 3: 15.
[52] Cf. II Coríntios 1: 8.
[53] Cf. I Reis 17: 1.
[54] Cf. I Reis 18: 36-38.
[55] Cf. Êxodo 14: 21.
[56] Cf. Êxodo 17: 11-13.
[57] Cf. Jonas 2: 2-11.
[58] João Damasceno, Da fé ortodoxa IV, 13.
[59] Cf. II Coríntios 5: 5.
[60] Cf. Lucas 17: 21.

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