CENTÚRIAS SOBRE A TEOLOGIA E A ECONOMIA DA ENCARNAÇÃO
DO VERBO DE DEUS
PRIMEIRA CENTÚRIA
1.
Existe um único Deus, sem começo, incompreensível, que guarda em si
absolutamente todo o poder de ser, e que exclui totalmente tudo o que se possa
pensar em relação ao quando e ao começo de seu ser. Pois ele é inacessível a
todos, e ele não se deu a conhecer a nenhum ser em uma aparência natural.
2.
Deus não é em si mesmo aquilo que podemos saber dele. Ele não possui nem
começo, nem meio, nem fim, nem absolutamente do que podemos contemplar
naturalmente nestas condições. Pois ele não possui limites, ele é imóvel e
infinito uma vez que está infinitamente além de toda essência[1],
de toda potência[2]
e de toda energia[3].
3.
Toda essência que traz em si mesma seu próprio limite está naturalmente na
origem dom movimento segundo sua potência. Ora, todo movimento natural que
conduz à energia, concebido com a essência, mas concebido antes da energia, é
um meio, pois está naturalmente dividido entre as duas (Essência e energia)
para ser o meio. E toda energia naturalmente cumprida por sua própria razão é o
fim do movimento da essência, movimento este que foi concebido antes dela.
4.
Deus não é essência, no sentido daquilo a que chamamos essência, absoluta ou
relativamente, ainda que ele seja também o começo. Ele também não é potência,
no sentido daquilo a que chamamos potência. Ele tampouco é energia, no sentido
daquilo a que chamamos energia, absoluta ou relativamente, mesmo que ele também
seja o fim do movimento da essência, movimento este conforme sua potência,
antes da energia. Mas ele é o criador da essência e uma entidade mais elevada
do que a essência. Ele é o criador da potência e uma fundação mais elevada do
que a potência. E ele é a atividade sem fim de toda energia, atividade que, em
uma palavra, é criadora de toda essência, de toda potência, de toda energia,
assim como de todo começo, todo meio e todo fim.
5.
O começo, o meio e o fim são os sinais distintivos daquilo que está repartido
no tempo. Podemos dizer – verdadeiramente – que eles são os signos distintivos
daquilo que o olhar abarca no século. Pois o tempo, que é a medida de todo
movimento, é determinado pelo número. E o século[4],
cujo atributo temporal é concebido com a existência, conhece a ruptura, pois
ele recebeu do ser o seu começo. Ora, se o tempo e o século não são estranhos
ao começo, quanto mais aquilo que está contido neles.
6.
Deus é, propriamente falando, sempre um e único conforme a natureza. Ele contém
em si tudo o que existe no sentido próprio, pois ele próprio é mais alto do que
o sentido próprio. Sendo assim, nada daquilo do qual se diz ser possui
absolutamente e em parte alguma um ser em sentido próprio. Portanto, é
impossível considerar que aquilo que é diferente dele segundo a essência esteja
com ele por toda eternidade: nem o século, nem o tempo, nem nada que esteja
neles. Pois aquilo que é no sentido próprio e aquilo que não é no sentido
próprio jamais se confundem.
7.
Nenhum começo, nenhum meio e nenhum fim exclui totalmente o atributo da
relação. Ora, Deus, que em tudo está num infinito infinitamente além de toda
relação, certamente não é nem começo, nem meio, nem fim, nem absolutamente nada
que possa ser considerado como atributo de relação.
8.
Todos os seres são ditos inteligíveis. Eles possuem em si princípios que
revelam os conhecimentos que temos deles. Ora, Deus não é chamado inteligível,
mas pelos inteligíveis nós simplesmente cremos que ele é. É por isso que nenhum
dos inteligíveis pode se comparar a ele por qualquer modo que seja.
9.
Os conhecimentos dos seres têm suas próprias razões, ligadas conjuntamente a
uma prova, por meio das quais eles se deixam definir naturalmente. Mas pelas
razões que estão nos seres podemos apenas crer que Deus é, ele que deu aos que
o veneram, mais fundamentais do que qualquer prova, a confissão e a fé de que
ele é soberanamente. Pois a fé é o verdadeiro conhecimento; ela traz consigo as
origens indemonstráveis. Com efeito, ela é o fundamento das coisas que
ultrapassam o intelecto e a razão[5].
10.
Deus, que faz por meio de sua energia sem dela participar, é começo, meio e fim
dos seres. Ele é também todos os demais nomes pelos quais o chamamos. Ele é
começo, por que é Criador; ele é meio, pois ele é Aquele que provê; e ele é
fim, porque ele encerra. De fato, se diz que tudo é dele, por ele e para ele[6].
11.
Não existe alma dotada de razão que, em sua essência, seja mais digna de honra
do que outra alma dotada de razão. Pois Deus, tendo em sua bondade criado todas
as almas à sua imagem, deu a elas o movimento que as conduz ao ser. Cada alma,
conforme sua resolução, ou bem escolhe a honra, ou bem, por suas obras, se
dirige voluntariamente para a desonra.
12.
Deus é o sol de justiça, como está escrito[7].
Ele faz brilhar os raios da bondade, simplesmente, para todos. Mas a alma,
conforme sua resolução, é naturalmente, ou bem cera – se ama a Deus – ou bem
argila, se ama a matéria. Portanto, da mesma forma como a argila, por sua
natureza, resseca ao sol, e a cera ao sol naturalmente amolece, também toda
alma que ama a matéria e o mundo, ao ser condenada por Deus e fazer por sua
resolução uma imagem de argila, endurece e se precipita como o Faraó para a
perdição[8].
Mas toda alma que ama a Deus amolece como a cera e, recebendo as imagens e as
marcas das coisas divinas, torna-se no Espírito uma morada de Deus[9].
13.
Aquele que, por pensamentos divinos, iluminou o intelecto, que, pelos hinos
divinos, acostumou sua razão a venerar sem descanso o Criador, e que, por meio
de imagens puras e sem mescla santificou os sentidos, este acrescentou à beleza
natural da imagem o bem espiritual da semelhança.
14.
Guardamos a alma de toda mancha por amor a Deus se nos esforçamos por pensar
somente em Deus e em suas virtudes, se fazemos da razão o justo intérprete que
as explica, e se ensinamos os sentidos a perceber com toda piedade o mundo
visível e todas as coisas nele, para que elas transmitam à alma a grandeza das
razões no coração das coisas.
15.
Deus, que nos livrou da amarga escravidão à qual nos tinham submetido os
demônios que nos tiranizavam, nos deu o jugo benfazejo da veneração divina: a
humildade. Por meio dela todas as potências diabólicas são domadas, e tudo é
bom e se conserva puro naqueles que a escolheram.
16.
Quem crê conhece o temor. Quem crê é humilde. Quem é humilde é manso, pois
recebeu o estado que detém os movimentos contra a natureza suscitados pelo
ardor e pelo desejo. Quem é manso observa os mandamentos. Quem observa os
mandamentos é purificado. Quem é purificado é iluminado. E quem é iluminado é
considerado digno de habitar com o Esposo, o Verbo, no tesouro dos mistérios.
17.
Assim como um cultivador que busca um terreno conveniente para transplantar
árvores rústicas e se depara com um tesouro inesperado, também todo asceta
humilde, simples, imberbe em sua alma isenta de qualquer pilosidade material,
interrogado pelo Pai, como aconteceu com o bem-aventurado Jacó a respeito do
modo como caçara – “Como você encontrou tão depressa, meu filho?” – responde:
“O Senhor Deus fez vir a caça ao meu encontro[10]”.
Com efeito, quando Deus nos concede as sábias contemplações de sua própria
sabedoria, sem que tenhamos que penar e quando menos o esperamos, consideremos
termos encontrado subitamente um tesouro espiritual. Pois o asceta experiente é
um cultivador espiritual que transplanta a percepção do sensível, como uma
árvore rústica, para o campo do inteligível, e encontra aí um tesouro[11]:
por intermédio da graça, a revelação da sabedoria que há nos seres.
18.
O conhecimento das contemplações divinas que cai subitamente sobre um asceta
sem que este esperasse, por humilde, destrói o pensamento daquele que,
penosamente e com esforço, as procura para ostentá-las e não as encontra. Então
surge no insensato o ciúme contra seu irmão, ideias de morte e amargura, porque
ele não pode inchar de orgulho com os louvores.
19.
Aqueles que buscam penosamente pelo conhecimento e não o encontram, fracassam,
seja por incredulidade, seja porque, por sua incapacidade, invejam os que
conhecem e se revoltam contra eles como outrora o povo contra Moisés. Destes, a
Lei dirá justamente que alguns transgrediram e subiram a montanha, e que o
Amorreu que nela habitava saiu e os matou[12].
É preciso, com efeito, que aqueles que, por ostentação, contradizem a virtude,
não apenas sejam desviados, porque falseiam a piedade, mas que sejam também
mortos pela consciência.
20.
Quem busca o conhecimento para ostentação e não o encontra, que não inveje seu
próximo nem se aflija. Ao contrário, prepare-se, aderindo a alguma ascese que
lhe esteja ao alcance, como foi ordenado. Apronte-se pela ação, colocando todos
os seus cuidados primeiramente em seu corpo, para preparar a alma para o
conhecimento.
21.
Aqueles que se dirigem diretamente ao seres com piedade e sem conceber nenhum
modo de ostentação, encontrarão, indo ao seu encontro, as contemplações
luminosas dos seres, estas contemplações que lhes permitirão conhecer a si
mesmos mais rigorosamente. É deles que diz a Lei: “Entrem e herdem as cidades
grandes e ricas que vocês não construíram, casas cheias de riquezas que vocês
não encheram, poços abertos que vocês não cavaram, vinhas e olivais que vocês
não plantaram[13]”.
Pois quem não vive para si mas para Deus[14],
locupleta-se com todos os carismas, estes carismas que não se dão a conhecer
enquanto as paixões impõem sua perturbação.
22.
A sensação pode se expressar de duas maneiras. Existe uma sensação passiva,
ligada ao hábito: quando dormimos, ela não percebe nada do que está diante de
nós e não serve para nada porque ela não está tensionada para a ação. E existe
uma sensação ativa, ligada à energia, pela qual percebemos as coisas sensíveis.
Da mesma maneira, o conhecimento é duplo. Um é conhecedor: ele nomeia por
costume as razões dos seres, mas não serve para nada por não estar tensionado
para a energia dos mandamentos. O outro é prático, ligado à energia: ela
considera como verdadeira esta compreensão dos seres pela experiência.
23.
Enquanto passa despercebido, o hipócrita se mantém calmo. Ele busca a glória
fingindo-se justo. Mas quando é pego na mentira, profere palavras venenosas.
Ele tenta assim encobrir sua própria feiura com injúrias dirigidas aos outros.
A palavra de Deus o comparou à prole da víbora, por sua perfídia, e o condenou
a produzir frutos dignos de arrependimento[15],
ou seja, a transformar em modos aparentes a disposição oculta em seu coração.
24.
Alguns dizem que é selvagem todo animal que vive nos ares, sobre a terra ou no
mar e que é considerado impuro pela Lei[16],
mesmo que por seu comportamento ele pareça domesticado. A palavra de Deus dá
assim a todo homem um nome de animal, que corresponde à própria paixão de cada
um.
25.
Quem simula amizade para prejudicar seus vizinhos é como um lobo que esconde
suas más intenções sob uma pele de cordeiro. Quando ele descobre neles uma
conduta ou palavra pura, maquinada ou dita com simplicidade segundo Cristo, ele
se apodera dela e a destrói. Espalhando difamações aos milhares, ele ataca as
palavras e as condutas dos irmãos, como um espião da liberdade que eles têm em
Cristo[17].
26.
Quem, por malícia, finge silêncio, estende uma armadilha ao seu próximo[18].
Se fracassa, retira-se, acrescentando o sofrimento à sua própria paixão. Mas o
que se cala para prestar um serviço faz crescer a amizade, e se vai alegremente
porque recebeu a iluminação que liberta das trevas.
27.
Quem, numa assembleia, interrompe bruscamente uma leitura, mostra que não
superou a vanglória; é um doente. Tomado pela vaidade, coloca inúmeras
proposições, como se fossem caminhos e atalhos, porque o que ele quer é quebrar
o encadeamento do que está sendo dito.
28.
O sábio ensina e é ensinado, ele quer aprender e ensinar apenas as coisas que
são úteis. Quem só é sábio em aparência, quando interroga ou é interrogado, só
coloca questões supérfluas.
29.
Um homem que partilha da graça dos bens de Deus está obrigado a transmiti-los
em abundância a outros. Pois foi dito: “Vocês receberam gratuitamente, deem
gratuitamente[19]”.
Quem esconde um dom acusa o Senhor de ser avaro[20].
Economiza a carne para recusar a virtude. E quem vende a verdade aos inimigos
será logo condenado por ter amado a vanglória, e se perderá, não suportando a
vergonha[21].
30.
Aqueles que temem o combate contra as paixões e têm medo das agressões dos
inimigos, devem se calar, ou seja, não tentar refutar os inimigos para
sustentar a virtude, mas, pela oração, remeter a Deus o cuidado de velar por
eles. É destes que foi dito no Êxodo: “O Senhor combaterá por vocês;
detenham-se[22]”.
E aqueles que, depois da desaparição de seus perseguidores, passam a buscar os
modos de virtude a fim de aprender com gratidão, só têm uma coisa a fazer:
manter aberto o ouvido do intelecto. É deles que foi dito: “Escute, Israel[23]”.
Enfim, ao que procura ardentemente o conhecimento para se purificar, a este
convém a segurança que é dada pela piedade. A ele será dito: “Porque você me
chama?[24]”
Assim, a quem o silêncio foi imposto pelo temor, convém fugir para Deus. Aquele
a quem foi prescrito escutar deve estar pronto a obedecer aos mandamentos.
Enfim, aquele que possui o conhecimento deve suplicar incessantemente, para
permanecer livre do mal e dar graças por ter parte no bem.
31.
Uma alma jamais consegue tender para o conhecimento de Deus se o próprio Deus,
descendo até ela, não a tocar e a levar consigo. Pois o intelecto humano não
pode se elevar até perceber uma iluminação divina se o próprio Deus não o puxar
para cima, na medida em que o intelecto humano consegue ser arrebatado, e não o
iluminar com os esplendores divinos.
32.
Aquele que imita os servidores do Senhor não recusa, por causa dos Fariseus,
caminhar no sábado pelos campos de trigo e colher as espigas[25].
Ao contrário, tornado impassível a partir do conhecimento prático, ele colhe as
razões das criaturas, nutrindo-se piedosamente da ciência divina dos seres.
33.
Aquele que é simplesmente fiel e segue o Evangelho, é capaz, pela ação, de
mover a montanha de sua malícia[26].
Ele afasta de si seu primitivo pendor para a errância das coisas submetidas à
sensação. Aquele que pode ser discípulo e que recebe das mãos do Verbo migalhas
do pão do conhecimento alimenta milhares de homens[27]:
pela ação ele mostra o poder multiplicado do Verbo. Mas quem é capaz de se
tornar apóstolo, cura as doenças e enfermidades e expulsa os demônios[28],
isto é, põe em fuga a energia das paixões e cura os doentes, por intermédio da
esperança, devolvendo ao estado de piedade os que dela estavam privados, e
conforta pelas palavras do Juízo os que esmoreciam no desleixo. Pois, exortado
a caminhar sobre serpentes e escorpiões[29],
ele abole o começo e o fim do pecado.
34.
O apóstolo e o discípulo são fiéis em todos os casos. O discípulo nem sempre é
apóstolo, mas é sempre fiel. Aquele que é apenas fiel não é nem discípulo nem
apóstolo. Entretanto, por sua conduta e sua contemplação, ele pode chegar à
ordem e à dignidade do segundo, e este pode alcançar a ordem e a dignidade do
primeiro.
35.
Aquilo que foi criado no tempo e conforme o tempo está submetido a um fim e
colocará um termo ao seu crescimento segundo a natureza. Mas aquilo que é feito
pela ciência de Deus conforme a virtude, uma vez chegado ao fim retorna ao
crescimento. O fim das primeiras coisas é o começo de outras. Pois quem, pelas
virtudes, segundo a ação, inverteu em si próprio o fundamento das coisas
corruptíveis, abre o caminho para outras configurações mais divinas. Deus
jamais cessa de fazer o bem, o qual não tem início. Da mesma forma, com efeito,
como a qualidade da luz é iluminar, também é próprio de Deus fazer o bem. É por
isso que na Lei, que expõe o curso das coisas tais como elas nascem e morrem
segundo o tempo, o sábado é honrado com o repouso, mas no Evangelho, que ensina
o estado das coisas inteligíveis, este mesmo sábado é iluminado pela bem-aventurança
das boas obras, ainda que isto irritasse aqueles que não sabiam que o sábado
foi feito para o homem e não o homem para o sábado, e que o Filho do homem é
Senhor inclusive do sábado[30].
36.
Existe na Lei dos Profetas um sábado[31],
sábados[32]
e sábados de sábados[33].
Do mesmo modo, há uma circuncisão e uma circuncisão da circuncisão[34],
uma colheita[35] e
uma colheita da colheita, conforme foi dito: “Quando vocês colherem sua
colheita[36]”.
O primeiro termo significa a completude da filosofia prática, física e teológica.
O segundo significa a libertação do devir e das razões do devir. O terceiro
significa a obtenção e o pleno proveito das razões mais espirituais dos
sentidos e do intelecto. Existem assim três termos para cada uma das coisas que
mencionamos, para que aquele que possui o conhecimento saiba por que razão
Moisés celebrou o sábado morrendo fora da terra santa[37],
por que razão José circuncidou os filhos de Israel depois da passagem do Jordão[38]
e por que razão aqueles que herdam a boa terra levam a Deus, em grande
quantidade, a oferenda da dupla colheita[39].
37.
O sábado é a impassibilidade da alma dotada de razão que, pelo conhecimento
prático, apaga totalmente os estigmas do pecado.
38.
Os sábados são a liberdade da alma dotada de razão, que, pela contemplação
natural do espírito, está separada desta energia que, conforme a natureza, atua
sobre os sentidos.
39.
Os sábados dos sábados são a calma espiritual da alma dotada de razão, que
despojou o intelecto de todas estas razões mais divinas que estão nos seres. No
êxtase amoroso ela se revestiu somente de Deus, e pela teologia mística tornou
o intelecto inteiramente imóvel diante de Deus.
40.
A circuncisão é aquilo que, referente ao devir, afasta da alma o estado
passional.
41.
A circuncisão da circuncisão é a rejeição que, referente ao devir, elimina
totalmente até os movimentos naturais da alma.
42.
A colheita da alma dotada de razão é a arte de recolher e reconhecer as razões
mais espirituais dos seres, segundo a virtude e segundo a natureza.
43.
A colheita da colheita é – inacessível antes da contemplação mística das coisas
inteligíveis – a compreensão de Deus que se organiza de forma incognoscível
para o intelecto. É desta compreensão que testemunha, como convém, aquele que
honra o Criador a partir das criaturas visíveis e invisíveis.
44.
Existe ainda outra colheita ainda mais espiritual. É aquela que é chamada
colheita de Deus. Existe também outra circuncisão mais secreta. E existe outro
sábado mais oculto, no qual Deus, celebrando o sábado, repousa de suas obras.
Tudo isso foi dito: “A colheita é grande, mas poucos são os trabalhadores[40]”.
E: “A circuncisão do coração no espírito[41]”.
E: “Deus bendisse o sétimo dia e o santificou. Pois ele repousou de todas as
coisas que havia feito[42].”
45.
A colheita de Deus está em todo lugar aonde repousam e permanecem aqueles que
são dignos de estar nele no final dos séculos.
46.
A circuncisão do coração no espírito é a eliminação total das energias naturais
dos sentidos e do intelecto referente às coisas sensíveis e inteligíveis, pela
chegada do Espírito que transfigura imediata e totalmente o corpo e a alma, em
vista daquilo que é mais divino.
47.
A celebração do sábado de Deus é a total finalização dos seres nele. Ele fará
então com que a energia mais divina inefavelmente cumprida repouse da energia
natural que ele desdobrou no seio das criaturas. Pois pode ser que Deus repouse
da energia natural que se encontra em cada ser (esta energia pela qual cada ser
se move naturalmente), no momento em que cada um, depois de haver recebido
segundo sua medida a energia divina, determinar ele próprio em relação a Deus
sua própria energia segundo a natureza.
48.
Os monges zelosos devem procurar quais são as obras cuja gênese se pode pensar
ter sido iniciada por Deus, e quais são aquelas que, ao contrário, ele não
iniciou. Pois se ele repousou de todas as obras que ele começou por criar, está
claro que ele não repousou daquelas que ele não começou. As obras de Deus que
começaram a ser no tempo não são senão todos os seres que participam, tais como
as diferentes espécies de seres. Pois nessas obras o não-ser é mais antigo do
que o ser. Houve um tempo em que os seres participantes não existiam. E as
obras de Deus que sem dúvida não começaram com o tempo são os seres
“participados”, dos quais, pela graça, os seres participantes têm participação:
por exemplo, a bondade e tudo o que está contido no termo e simplesmente toda
vida, imortalidade, simplicidade, imutabilidade, infinitude, e aquilo que é
essencialmente contemplado em torno dele. Estas também são obras de Deus, e
elas não começaram com o tempo. Pois aquilo que não existia não é mais antigo
do que a virtude, nem do que as coisas que mencionamos, mesmo se aquilo que
participa dessas coisas tenha começado a ser com o tempo. Pois as virtudes
nunca começaram: o tempo não é mais antigo do que elas, uma vez que Deus e
somente Deus engendra eternamente o ser.
49.
Deus se ergue infinitamente ao infinito acima dos seres participantes e
participados. Pois tudo o que significa razão de ser é obra de Deus, ainda que
determinada coisa segundo a gênese tenha começado a ser com o tempo, e se
determinada outra coisa segundo a graça esteja infundida nas criaturas, como
uma potência inata que proclama fortemente que Deus está em todos.
50.Tudo
o que é imortal e a própria imortalidade, tudo o que é vivo e a própria vida,
tudo o que é santo e a própria santidade, tudo o que é virtuoso e a própria
virtude, tudo o que é bom e a própria bondade, tudo o que é e a própria
ipseidade, são evidentemente obras de Deus. Mas algumas começaram a ser com o
tempo. Houve um tempo em que não existiam nem virtude, nem bondade, nem
santidade, nem imortalidade. E é por participarem daquilo que não começou com o
tempo que as coisas que começaram com o tempo são o que são e têm os nomes que
têm. Pois Deus é o Criador de toda vida, de toda imortalidade, de toda
santidade, de toda virtude. Ele se ergue acima da essência de tudo o que
pensamos e nomeamos.
51.
Segundo a Escritura, o sexto dia introduziu a finalização dos seres submetidos
à natureza. No sétimo dia termina o movimento da temporalidade. E o oitavo dia
significa o modo do estado mais elevado do que a natureza e o tempo.
52.
Quem passa o sexto dia apenas conforme a Lei, fugindo da potência ativa das
paixões que afligem a alma, atravessa sem temor o mar e se encaminha para o
deserto[43].
Este celebra o sábado pela simples detenção das paixões. Mas quem atravessa o
Jordão e se desembaraçou deste estado no qual nada se faz além de deter as
paixões entra na herança das virtudes[44].
53.
Quem passa o sexto dia como manda o Evangelho, depois de haver inicialmente
destruído os primeiros movimentos do pecado, chega, por meio das virtudes, ao
estado de impassibilidade desprovido de qualquer malícia. Em seu intelecto ele
celebra o sábado que detém esta pura imaginação das paixões. Mas quem
atravessou o Jordão penetra no país do conhecimento, aonde o intelecto, por
tanto tempo secretamente edificado pela paz, se torna a morada de Deus no
Espírito[45].
54.
Quem cumpriu divinamente em si mesmo o sétimo dia pelas obras e os pensamentos
necessários, e que, com Deus, executou com sucesso suas próprias obras,
ultrapassou pela compreensão toda hipóstase daquilo que está submetido à
natureza e ao tempo e penetrou na contemplação mística dos séculos e das coisas
eternas: este celebra o sábado no “desconhecimento”, em seu intelecto, pelo
total abandono e a total superação dos seres. Mas quem foi considerado digno do
oitavo dia ressuscitou dos mortos, vale dizer, de todo o sensível e de todo o
inteligível, de todas as palavras e de todos os pensamentos que seguem a Deus.
Este vive a vida bem-aventurada de Deus, a única que pode ser chamada de vida e
que é vida verdadeiramente. Assim, pela deificação, ele próprio se torna Deus.
55.
O sexto dia é o cumprimento total das energias naturais dos ativos que praticam
a virtude. O sétimo dia é o término e o
repouso dos pensamentos naturais dos contemplativos que recebem o conhecimento
inefável. O oitavo dia é a mudança da ordem, que faz passar à deificação aqueles
que dela são dignos. Mostrando sem dúvida estes sétimo e oitavo dias mais
misticamente do que nunca, o Senhor chamou de dia e hora do cumprimento[46],
uma vez que tal dia finaliza completamente os mistérios e as razões de todas as
coisas. Não é possível às potências celestes e terrestres conhecer este dia
antes de tê-los experimentado. Isto só é possível à Divindade bem-aventurada
que fez estas coisas[47].
56.
O sexto dia significa a razão de ser dos seres. O sétimo dia designa o modo do
bem estar dos seres. O oitavo dia anuncia o mistério inefável do bem estar
eterno dos seres.
57.
Sabendo que o sexto dia é o símbolo da energia ativa, quitemos neste dia toda a
dívida das obras da virtude, para que também de nós seja dito: “E Deus viu tudo
o que havia feito, e viu que era muito bom[48]”.
58.
Aquele que por intermédio do corpo coloca todo seu cuidado na diversidade bem
ordenada das virtudes quita a dívida da bela obra louvada por Deus.
59.
Quem finalizou completamente a preparação das obras da justiça alcança o
repouso da contemplação gnóstica, pela qual, abraçando divinamente as razões
dos seres, repousa do movimento do intelecto que envolve esta contemplação.
60.
Quem participou do repouso do sétimo dia que Deus dispôs para nós participará
igualmente de sua energia do oitavo dia na deificação que ele nos oferece, vale
dizer, no repouso místico por meio do qual ele próprio deixou no túmulo o
lençol posto e o sudário da cabeça[49].
Aqueles que os veem, como Pedro e João, creem que o Senhor ressuscitou.
61.
O túmulo do Senhor é tanto este mundo quanto o coração de cada um dos fiéis. O
lençol são as razões das coisas sensíveis e, com elas, os modos da virtude. O
sudário é o conhecimento simples e invariável das coisas inteligíveis, e com
ele, a teologia possível. É por intermédio dessas coisas que o Verbo dá a
conhecer inicialmente, pois, sem elas, sua compreensão, que as ultrapassa, nos
é totalmente inacessível.
62.
Aqueles que sepultaram honrosamente o Senhor vê-lo-ão ressuscitar em glória,
ele que permanece invisível para todos os que não o fizeram. Pois seus
adversários já não o podem alcançar, uma vez que ele não tem mais o invólucro
das coisas exteriores, pelo qual ele parecia estar entregue nas mãos dos que o
perseguiam e pelo qual ele suportou sofrer para a salvação de todos.
63.
Aquele que sepultou o Senhor honrosamente é venerado pelos que amam a Deus.
Pois ele o livrou convenientemente da exposição e do opróbrio, ele não deixou
aos infiéis sua crucificação sobre o lenho como um objeto de blasfêmia. Os que
selaram o túmulo e lá colocaram soldados[50]
fizeram com isto uma coisa odiosa. Eles caluniaram o Verbo ressuscitado,
dizendo que ele havia sido roubado[51].
Assim como eles usaram com dinheiro o falso discípulo para que ele traísse
(falo do modo ostensivo da virtude), também assim eles obrigaram os soldados
para que caluniassem o Salvador ressuscitado. Quem possui o conhecimento sabem
que o que eles disseram era aparente. Este não ignora como e de que maneira ele
foi crucificado, sepultado e como ressuscitou no Senhor. Ele fez morrer os
pensamentos passionais depositados no coração pelos demônios. Diante das
tentações ele divide, como as vestimentas, os modos da beleza moral. E ele
destrói, como os selos, as imagens dos pecados de presunção colocados sobre a alma[52].
64.
Todo homem que ama o dinheiro e contraria a virtude por precaução, ao se ver
procurando a matéria de sua cobiça, renega o modo pelo qual ele antes se
acreditava discípulo de Cristo.
65.
Quando vemos certos orgulhosos não suportar que os melhores sejam elogiados, e
fazer intrigas para não pregar a verdade anunciada, afastando-a por meio de mil
tentações e calúnias sacrílegas, penso que o Senhor está sendo novamente
crucificado por eles, sepultado e guardado por soldados e selos. Mas o Verbo os
desorienta e ressuscita. Ele brilha antes mesmo de ser combatido. Do mesmo modo
ele foi morto entre sofrimentos para atingir a impassibilidade. Pois ele é mais
forte do que todos, ele que é, e que é chamado, a verdade.
66.
O mistério da encarnação do Verbo em um corpo traz em si o poder de todos os
enigmas e de todas as imagens da Escritura, e a ciência das criaturas visíveis.
Quem conheceu o mistério da cruz e do sepultamento, conheceu as razões das
imagens e das criaturas. Mas quem foi iniciado na potência inefável da
ressurreição conheceu o objetivo pelo qual, no início, Deus constituiu todas as
coisas.
67.
Todas as coisas visíveis necessitam da cruz: do estado daquilo que nelas
desenvolve a relação sensível. E todas as coisas inteligíveis têm necessidade do
sepultamento: da imobilidade total daquilo que nelas age pelo intelecto. De
fato, quando a energia e o movimento naturais ao redor de tudo foram suspensos
junto com a relação, o Verbo, único existente por si próprio, apareceu
novamente, como ressuscitado dentre os mortos: ele próprio delimitou tudo o que
vinha dele, uma vez que absolutamente ninguém está unido a ele por uma relação
natural. Pois é pela graça, e não pela relação, que ele é a salvação dos que
são salvos[53].
68.
Os séculos, os tempos e os lugares pertencem às coisas que estão em relação com
outra. Sem eles, não existe nada daquilo que se concebe com eles. Mas Deus não
pertence à categoria das coisas que estão em relação com outra. Pois nele nada
há que se conceba com ele. Portanto, se a herança dos que são dignos é o
próprio Deus, quem é digno desta graça é mais alto do que os séculos, os tempos
e os lugares. Seu lugar será o próprio Deus, conforme foi escrito: “Seja para
mim um Deus que me protege, e um lugar fortificado para me salvar[54]”.
69.
O fim não tem absolutamente nada que se pareça com o meio. Pois ele não tem fim. Mas o meio é tudo o que existe entre
o começo e o fim. Portanto, sem todos os séculos, todos os tempos e todos os
lugares acompanham tudo o que se concebe com eles, eles estão depois de Deus,
que está no começo mas que não tem começo. E como eles existem antes do fim,
eles não diferem do meio. Deus é o fim para os salvos. E nada do que está no
meio será contemplado entre os que serão salvos no fim último.
70.
O mundo inteiro está limitado por suas próprias razões. Ele se chama o lugar e
o século dos que habitam nele. Por natureza, ele tem como modos de contemplação
as razões ligadas a ele e que são capazes de criar neles uma compreensão
parcial da sabedoria de Deus que está acima de tudo. Na medida em que as razões
se servem dos modos para permitir a compreensão, elas não podem estar fora do
meio, e só permitem uma compreensão parcial. Mas desde que diante da aparição
do perfeito o parcial é abolido, todos os espelhos e todos os enigmas passam:
como a verdade se manifesta face a face, o salvo que atingiu a perfeição divina
estará acima de todos os mundos, de todos os séculos, de todos os lugares, nos
quais até então ele estivera em pé como uma criança.
71.
Pilatos é a imagem da lei natural, e a multidão dos Judeus é a imagem da lei
escrita. Portanto, aquele que, pela fé, não se eleva acima das duas leis, não
pode receber a verdade que está acima da natureza e da razão. Mas de alguma
maneira ele crucifica o Verbo, seja porque, como Judeu, ele considera que o
Evangelho é um escândalo, seja porque, como Grego, ele considera que o
Evangelho é uma tolice[55].
72.
Quando você vê Herodes e Pilatos tomarem-se de amizade um pelo outro durante a
prisão de Jesus[56],
pense na conjunção do demônio da prostituição com o da vanglória, que se põem
de acordo para destruir a razão da virtude e do conhecimento. O demônio da
vanglória, imitando o conhecimento espiritual, envia para o demônio da
prostituição. Este, simulando hipocritamente a pureza, envia ao demônio da
vanglória. Diz-se que Herodes enviou Jesus a Pilatos depois de tê-lo vestido
com vestes esplêndidas[57].
73.
É benéfico para o intelecto não consentir com a carne nem se ligar às paixões.
Pois foi dito que não se colhem figos sobre cactos, ou seja, a virtude sobre as
paixões; nem uvas em espinheiros[58],
ou seja, o conhecimento que se regozija sobre a carne.
74.
O asceta experimentado pela paciência nas tentações e que alcançou a perfeição
aplicando-se às mais altas contemplações, torna-se digno da consolação divina.
Pois o Senhor, disse Moisés, nos veio no Sinai, ou seja, nas tentações; ele nos
apareceu em Seir, ou seja, nas penas corporais; e ele resplandeceu na montanha
de Faran com as miríades de Cades[59],
ou seja, na montanha da fé, com as miríades dos santos conhecimentos.
75.
Herodes tem como razão o cuidado com a carne. Pilatos, os sentidos. César, as
coisas sensíveis. Os judeus, os pensamentos psíquicos. Portanto, quando, por
ignorância, a alma se abandona às coisas sensíveis, ela entrega o Verbo aos
sentidos para fazê-lo morrer, pois então, com esta proclamação, ela faz
prevalecer para si mesma o reino das coisas corruptíveis. Com efeito, os judeus
disseram: “Não temos outro rei senão César[60]”.
76.
Herodes ocupa o lugar da energia das paixões. Pilatos, o lugar do estado
falsificado por elas. César, o lugar da potência tenebrosa que domina o mundo.
Os judeus, o lugar da alma. Assim, quando a alma se deixa levar pelas paixões,
ela entrega a virtude nas mãos do estado de malícia, renega claramente o Reino
de Deus e se dirige para a tirania corruptora do diabo.
77.
Submeter as paixões não é o suficiente para que a alma atinja a alegria
espiritual. Ela ainda precisa adquirir as virtudes cumprindo os mandamentos.
Pois foi dito: “Não se regozijem porque os demônios estão submetidos a vocês –
ou seja, a energia das paixões – mas porque seus nomes estão inscritos no céu[61]”,
transcritos pela graça da adoção através das virtudes, para o lugar onde reina
a impassibilidade.
78.
A riqueza das virtudes adquirida pela razão é absolutamente necessária àquele
que possui o conhecimento. De fato, foi dito: aquele que possui uma bolsa – ou
seja, o conhecimento espiritual – cuide dela. O mesmo deve fazer aquele que
possui um embornal, ou seja, a abundância das virtudes que, generosamente,
alimentam a alma. Mas aquele que não possui nem bolsa nem embornal, nem
conhecimento nem virtude, venda seu manto e adquira uma espada[62].
Pois foi dito: que de todo seu coração ele entregue sua carne às penas da
virtude e que, pela paz de Deus, ele conduza sabiamente o combate contra as
paixões e os demônios. Vale dizer, que ele alcance este estado que, pela
palavra de Deus, distingue o melhor do pior.
79.
O Senhor se deu a conhecer quando fez trinta anos[63].
Com este número, ele ensina secretamente aos que têm o dom da clarividência os
mistérios que lhe dizem respeito. Pois o número trinta, considerado e
transposto misticamente, representa o Senhor como Criador e a Providência dos
tempos, da natureza e dos seres inteligíveis que estão acima da natureza
visível. Ele é o Senhor do tempo pelo sete, pois o tempo é setenário. Ele é o
Senhor da natureza, pois a natureza é quíntupla, pois os sentidos estão
divididos em cinco. E ele é o Senhor dos seres inteligíveis pelo oito, pois a
gênese dos seres inteligíveis está acima do período medido pelo tempo. Ele é a
Providência pelo dez, pela santa década dos mandamentos que faz os homens
penetrarem no bem, e pela letra inicial[64]
que o Senhor deu misticamente a seu nome, quando se fez homem. Adicionando-se o
cinco, o sete, o oito e o dez, totalizamos o número trinta. Assim, aquele que
sabe seguir o Senhor como a seu mestre sobre o bom caminho, não ignorará a
razão pela qual ele se mostrou com trinta anos de idade para pregar o Evangelho
do Reino. A partir do momento em que ele criar com sua ação, de modo
irrepreensível, o mundo das virtudes como uma natureza visível, sem alterar o
período que, com um tempo, cumpriu-se em sua alma através dos contrários,
quando ele tiver colhido infalivelmente o conhecimento por meio da
contemplação, e que ele poderá levar providencialmente aos outros este estado,
então também ele, como se fosse a idade de seu corpo, terá trinta anos em
espírito, revelando, com seus próprios bens, a energia que ele transmite aos
outros.
80.
Quem se torna paralisado pelos prazeres do corpo não é capaz de se abrir para a
virtude e não se volta facilmente ao conhecimento. Assim sendo, não há ninguém
– ou seja, não existe pensamento sábio – capaz de atirá-lo à piscina quando as
águas se agitam, ou seja, de conduzi-lo para a virtude que recebe o
conhecimento e que cura toda enfermidade, se acaso o enfermo, retardado pela
negligência, é sempre precedido por algum outro que o impede de alcançar a
cura. É por isso que, passados trinta e oito anos, ele continua deitado doente[65].
Pois quem não contempla a criação visível para render glória a Deus, e que não
eleva piedosamente seu pensamento para a natureza inteligível, permanece com
justiça doente pelo número de anos que mencionamos. Com efeito, o número
trinta, tomado naturalmente, simboliza a natureza sensível, assim como,
considerado na prática, simboliza a virtude ativa. E o número oito,
compreendido misticamente, designa a natureza inteligível dos incorpóreos,
assim como, contemplado gnosticamente, designa a sapientíssima teologia. Aquele
cuja natureza inteligível e cuja teologia não se voltam para Deus permanece
paralisado, até que o Verbo venha lhe ensinar o caminho curto da cura, dizendo:
“Levante-se, tome seu leito e caminhe[66]”,
encorajando-o assim a retirar do intelecto o amor ao prazer que o paralisa, a
tomar seu corpo sobre as espáduas da virtude e a voltar para casa, ou seja,
para o céu. Pois mais vale que o pior seja carregado sobre as espáduas da ação
para atingir a virtude, do que o melhor seja carregado pelo pior para se
encaminhar, através da preguiça, para o amor ao prazer.
81.
Enquanto com toda pureza, pelo pensamento, não formos capazes de sair de nossa
essência e da essência de tudo o que está aquém de Deus, não teremos adquirido o
estado de imutabilidade dado pela virtude. Mas quando esta dignidade nos for
concedida pelo amor, então conheceremos o poder da promessa divina. É preciso
crer, de fato, que os que são dignos de se estabelecerem na imutabilidade
acham-se no lugar onde o intelecto, depois de ser levado adiante, enraíza seu
poder pelo amor. Pois quem não sai de si mesmo e de tudo o que pode ser pensado
de uma maneira ou de outra, e que não está fundamentado no silêncio que
ultrapassa o entendimento, não pode de modo algum libertar-se da constante
mudança.
82.
Todo pensamento significa de qualquer modo uma multitude, ou no mínimo uma
dualidade. Com efeito, trata-se de uma relação que se mantém no meio entre dois
extremos que ela reúne entre si: o que pensa e o que é pensado. E nem um nem
outro possui naturalmente a simplicidade. Com efeito, o que pensa é um sujeito,
que tem o poder de pensar inteiramente contido em si mesmo. O que é pensado
também é sujeito, ou está contido num sujeito: ele tem o poder de ser pensado
contido em si mesmo, ou antes, a essência de cujo poder ele era sujeito
anteriormente. Pois nenhum ser é inteiramente por si mesmo uma essência ou um
pensamento simples, a ponto de ser também uma mônada indivisível. Quanto a
Deus, se dissermos que ele é uma essência, ele não terá naturalmente o poder de
ser pensado compreendido em si mesmo, porque ele não é composto. Se dissermos
que ele é pensamento, ele não possui naturalmente essência que seja um sujeito
capaz de receber o pensamento. Mas Deus por si mesmo é em essência pensamento,
e inteiramente pensamento, e somente pensamento. E, segundo o pensamento, ele é
em si mesmo essência, e inteiramente essência, e inteiramente acima da
essência. É por isso que ele é uma mônada simples, sem divisão nem partes.
Portanto, aquele que, de um modo ou de outro, tem em si algum pensamento, ainda
não conseguir sair da dualidade. Mas quem se desembaraçou inteiramente de
qualquer pensamento alcança, de certa maneira, a mônada: ele despojou-se
eminentemente do poder de pensar.
83.
No múltiplo existe alteridade, dissemelhança e diferença. Mas em Deus, que é
propriamente um e único, não há senão identidade, simplicidade e semelhança.
Assim, não é prudente se dedicar às contemplações que levam a Deus, antes de
sair do múltiplo. É o que nos mostra Moisés, quando coloca fora do acampamento
a tenda dos pensamentos[67]
para se encontrar com Deus. É perigoso exprimir o inefável com palavras de
discurso, pois um discurso é uma dualidade, e até mais. É mais eficaz
contemplar aquilo que é, sem nada dizer, apenas com a alma, pois então estamos
dentro da mônada indivisível, e não na multiplicidade. Com efeito, o Sumo
Sacerdote, a quem estava prescrito penetrar uma vez ao ano no Santo dos Santos
por detrás do véu[68],
não ensina outra coisa: quem atravessou a antessala e os lugares santos, e que
penetrou no Santo dos Santos, ou seja, quem ultrapassou a natureza do sensível
e do inteligível, e que foi purificado de tudo o que é próprio do nascimento,
deve se abrir às aparições que revelam Deus com o intelecto nu e despojado.
84.
Quando fincou sua tenda fora do acampamento[69],
ou seja, quando fundou seu julgamento e seu pensamento fora do visível, o
grande Moisés começou a adorar a Deus e, nas trevas, no lugar onde o
conhecimento se vê desprovido de toda forma e de toda matéria, cumpriu as
celebrações mais sagradas.
85.
A treva é um estado sem forma, sem matéria, sem corpo. Este estado traz em si o
conhecimento exemplar dos seres. Quem nele penetra, como Moisés, compreende
naturalmente o imortal dentro de um corpo mortal. Depois de se haver neste
estado desenhado em si mesmo a beleza das virtudes divinas, como uma escritura
que perpetua a imagem bem copiada da beleza original, ele desceu para
oferecer-se em pessoa àqueles que desejavam imitar a virtude. E com isto ele
mostrou a bem-aventurança e a benevolência da graça que ele recebeu em
partilha.
86.
Aqueles que, sem nenhuma falta, procuram o amor à sabedoria segundo Deus,
encontram na ciência fornecida por esta sabedoria um ganho imenso: eles já não
modificam mais seu julgamento conforme as coisas, mas, com firme certeza,
empreendem resolutamente tudo o que está de acordo com a razão da virtude.
87.
Recebemos a primeira incorruptibilidade da carne ao sermos batizados em Cristo pelo Espírito. E recebemos a última
incorruptibilidade segundo Cristo mantendo sem mácula a primeira
incorruptibilidade, pela oferenda das boas obras e pela morte voluntária.
Segundo esta última, nenhum dos que a possuem devem temer a perda dos bens
adquiridos.
88.
Tendo desejado, por amor a nós, enviar do céu a todos os que estão sobre a
terra a graça da virtude divina, Deus preparou simbolicamente a tenda sagrada e
tudo o que está nela: esta tenda é a imagem, o símbolo e a imitação da
sabedoria.
89.
A graça do Novo Testamento está misteriosamente oculta no texto do Antigo. É
por isso que o Apóstolo disse que a Lei é espiritual[70].
Portanto, a Lei passa e envelhece pela letra, condenada à inação. Mas ela
rejuvenesce pelo Espírito, sempre ativa. Pois a graça jamais pode envelhecer.
90.
A Lei simboliza a sombra do Evangelho. E o Evangelho é a imagem dos bens que
virão. Pois a primeira impede a ação do mal; e o segundo suscita as ações do
bem.
91.
Dizemos que toda a Sagrada Escritura é dividida em carne e Espírito, como se
ela fosse um homem espiritual. Quem diz que o texto da Escritura é carne, e que
sua inteligência é Espírito, ou alma, não faltará com a verdade. E é sábio
quem, depois de haver abandonado o corruptível, se dedica inteiramente ao
incorruptível.
92.
A Lei é a carne do homem espiritual simbolizado pela Sagrada Escritura. Os
Profetas são os sentidos. E o Evangelho é a alma dotada de inteligência, que
age pela carne da Lei e pelos sentidos dos Profetas, manifestando sua própria
potência por suas energias.
93.
A Lei simboliza a sombra[71],
e os Profetas são a imagem dos bens divinos e espirituais trazidos pelo
Evangelho. Mas é o Evangelho que nos mostra a própria verdade, presente nas
coisas, anteriormente recoberta pela sombra da Lei e prefigurada pelos
Profetas.
94.
Quem cumpre a Lei com sua vida e sua conduta não faz mais do que impedir que o
mal chegue a termo, sacrificando a Deus a energia das razões irracionais. A
este basta dirigir-se assim para a salvação, por meio da infância espiritual
que mele reside.
95.
Aquele que, pelas palavras proféticas, é instruído a rejeitar a energia das
paixões, afasta igualmente de si os assentimentos que se formam na alma. Assim,
resolvido a abster-se do mal nas coisas menores, ou seja, na carne, não esquece
de agir fortemente sobre o mal nas coisas maiores, vale dizer, na alma.
96.
Aquele que realmente abraçou a vida evangélica afastou de si mesmo o começo e o
fim do mal. Ele busca toda a virtude nas obras e nas palavras. Ele celebra o
sacrifício do louvor e da confissão[72].
Ele se separou da perturbação causada pela energia das paixões. Ele se libertou
do combate do intelecto contra elas. Ele não traz em si senão a esperança dos
bens futuros, que alimenta a alma com um prazer do qual ela jamais se sacia.
97.
Aos que se aplicam com o máximo fervor às divinas Escrituras, a palavra do
Senhor aparece sob duas formas: uma, comum e pública, que todos podem ver, e da
qual foi dito: “Nós o vimos, e ele não possuía nem aparência nem beleza[73]”;
a outra, secreta e acessível a poucos, aos que já se tornaram como os santos
apóstolos Pedro e João, diante de quem o Senhor se transfigurou numa glória
mais forte do que os sentidos[74],
na qual ele é belo diante dos filhos dos homens[75].
A primeira destas duas formas é adaptada aos noviços e a segunda corresponde aos
que tornaram perfeitos no conhecimento, na medida em que isto é possível. Uma é
a imagem da primeira vinda do Senhor. É a ela que se dever reportar oque diz o
Evangelho: ela purifica os ativos por meio do sofrimento. A outra é uma
prefiguração da segunda e gloriosa vinda. É nela que se compreende o Espírito:
ela transfigura os gnósticos pela sabedoria, em vista da deificação. Pela
transfiguração do Verbo neles, com o rosto descoberto, eles contemplam como num
espelho a glória do Senhor[76].
98.
Aquele que, por virtude, suporta firmemente as infelicidades, tem operando em
si a primeira vinda do Verbo, que o purifica de toda mancha. Mas o que, pela
contemplação, transportou seu intelecto ao estado dos anjos, tem a potência da
segunda vinda, que nele cumpre a impassibilidade e a incorruptibilidade.
99.
Os sentidos acompanham o monge ativo que, com suas penas, conduz-se com sucesso
às virtudes. Mas o desaparecimento dos sentidos acompanha o monge gnóstico que
separou o intelecto da carne e do mundo para levá-lo a Deus. O primeiro, que,
pela ação, se esforça por libertar a alma do laço que a prende naturalmente à
carne, tem sua faculdade de conhecimento constantemente debruçada sobre as
penas. O outro, que, pela contemplação, livrou-se das amarras que o prendiam,
não é mais retido por nada. Ele já está purificado de toda paixão e domina
naturalmente todas as que o querem capturar.
100.
O maná que foi dado a Israel no deserto[77]
é a palavra de Deus que sacia com todo prazer espiritual os que dela se
alimentam. E a palavra se transforma em todos os alimentos segundo os
diferentes desejos de cada um dos que a recebem, pois ela tem as qualidades de
todos os alimentos espirituais. É por isso que, para os que nasceram pelo
Espírito do alto e de uma semente incorruptível, ela é o leite da razão[78]
em estado puro. Para os que são fracos, ela é uma erva[79]
que conforta a potência moribunda da alma. Enfim, para os que, por hábito, têm
os sentidos da alma treinados em discernir o bem e o mal, ela fornece um
alimento sólido[80].
A palavra de Deus possui ainda outras potências infinitas, que não cabem aqui
em baixo. Quando um homem morre e se torna digno de ser estabelecido[81]
sobre muitas ou sobre todas as potências da palavra, ele a todas receberá, ou a
muitas dentre elas, porque aqui em baixo em algumas coisas. Pois tudo aquilo
que existe de mais elevado nos carismas dados aqui em baixo é pouco e modesto
em comparação com os bens futuros.
SEGUNDA CENTÚRIA
1.
Existe um único Deus, pois só existe uma Divindade: sem começo, simples, mais
elevado do que a essência, sem partes nem divisão. A Divindade é Unidade a
Trindade. A mesma Divindade é inteiramente Unidade, e a mesma Divindade é
inteiramente Trindade. A mesma Divindade é inteiramente Unidade por sua
essência, e a mesma Divindade é inteiramente Trindade por suas hipóstases. Pois
a Divindade é Pai, Filho e Espírito Santo. E a Divindade está no Pai, no Filho
e no Espírito Santo. A mesma Divindade está inteiramente no Pai inteiro, e o
Pai inteiro está inteiramente na mesma Divindade inteira. A mesma Divindade
está inteiramente no Filho inteiro, e o Filho inteiro está inteiramente na
mesma Divindade inteira. A mesma Divindade está inteiramente no Espírito Santo
inteiro, e o Espírito Santo inteiro está inteiramente na mesma Divindade inteira.
Pois a Divindade não está em parte no Pai, nem o Pai é Deus em parte. E a
Divindade não está em parte no Filho, nem o Filho é Deus em parte. E a
Divindade tampouco está em parte no Espírito Santo, nem o Espírito Santo é Deus
em parte. A Divindade não é divisível, e o Pai, o Filho e o Espírito Santo não
são um Deus imperfeito. Mas a mesma Divindade perfeita está inteira
perfeitamente no Pai perfeito, e a mesma Divindade perfeita está inteira
perfeitamente no Filho perfeito, e a mesma Divindade perfeita está inteira
perfeitamente no Espírito Santo perfeito. O Pai está inteiramente e
perfeitamente no Filho inteiro e no Espírito inteiro. O Filho está inteiramente
e perfeitamente no Pai inteiro e no Espírito inteiro. O Espírito está
inteiramente e perfeitamente no Pai inteiro e no Filho inteiro. É por isso que
o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus. Pois existe uma única e mesma
essência, uma única e mesma potência, uma única e mesma energia do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, sendo que nenhum é, nem pode ser pensado, sem os
outros.
2.
Todo pensamento é próprio do que pensa e do que é pensado. Ora, Deus não
pertence nem ao que pensa, nem ao que é pensado: ele está acima. Pois, por
definição, o que pensa necessita da relação com o que é pensado, ou, através da
relação, o que é pensado depende naturalmente do que pensa. Resta compreender
que Deus nem pensa nem é pensado, mas está acima do que pensa e do que é
pensado. Pensar e ser pensado é próprio das criaturas que vêm depois dele.
3.
Todo pensamento, do mesmo modo como possui, como qualidade, seu lugar em uma
essência, também possui seu movimento em torno de uma essência criada. Aquilo
que é por si mesmo totalmente livre e simples não pode receber tal pensamento,
pois este não é livre e simples. Ora, Deus, que em ambos é totalmente simples –
essência independente do sujeito, e pensamento tendo de uma vez por todas um
objeto – não pertence ao que é pensado, uma vez que ele está evidentemente
acima da essência e do pensamento.
4.
Assim como o lugar central, de onde partem as linhas retas, é considerado
completamente indivisível, também aquele que foi considerado digno de estar em
Deus verá todas as razões das criaturas preexistir nele segundo um conhecimento
simples e indivisível.
5.
Sendo o pensamento formado por aquilo que é pensado, um único pensamento é
feito de numerosos pensamentos: ele é a imagem de todas as formas daquilo que é
pensado. Quando, depois de haver atravessado a multitude de coisas sensíveis e
inteligíveis que o compõem, ele se separa inteiramente de toda forma, então a
razão que ultrapassa o entendimento se une a ele estreitamente, desviando-o
daquilo que aliena a reflexão pelas formas. Aquele que experimentou isto
descansa de suas obras, como Deus descansou das suas[82].
6.
Quem alcançou a perfeição possível aos homens aqui em baixo, carrega, por Deus,
os frutos do amor, da alegria, da paz, da paciência[83],
e, visando o século futuro, também os frutos da incorruptibilidade, da
eternidade[84] e
de tudo o que lhes assemelha. Os primeiros frutos só chegam a quem obteve a
perfeição da prática, e os segundos a quem saiu do criado pelo verdadeiro
conhecimento.
7.
Assim como a obra típica da desobediência é o pecado, a obra própria da
obediência é a virtude. E assim como a transgressão dos mandamentos e a
separação d'Aquele que ordenou são seguidas pela desobediência, também a
obediência aos mandamentos e a união com Aquele que ordenou produzem a
obediência. Vale dizer que quem observa um mandamento por obediência cumpre com
toda a justiça e não se separa daquilo que o une por amor Àquele que ordenou.
8.
Quem se concentra separando-se da transgressão, recusa em primeiro lugar as
paixões, depois os pensamentos passionais, depois a natureza e as razões da
natureza, depois os pensamentos e os conhecimentos dos pensamentos. Por fim,
escapando da diversidade das razões da providência, chega por meio do
“desconhecimento” a esta razão da unidade. Nesta razão, depois de haver
contemplado sua simples imutabilidade, o intelecto se regozija, cheio de inexprimível
alegria, porque recebeu a paz de Deus que ultrapassa toda inteligência[85],
e que guarda continuamente de toda falta quem é considerado digno dela.
9.
O temor da geena predispõe os noviços a fugir do mal. O desejo da recompensa
dos bens dá aos que progridem o ardor em trabalhar as virtudes. Mas o mistério
do amor eleva-se acima de todas as criaturas: ele torna o intelecto cego a tudo
o que vem depois de Deus. Com efeito, o Senhor concede a sabedoria àqueles que
se tornaram cegos para todas as coisas que vêm depois de Deus, mostrando-lhes o
que é m ais divino.
10.
A palavra de Deus, semelhante a um grão de cevada, parece bem pequena antes de
ser cultivada. Mas quando é cultivada corretamente, ela se mostra tão grande
que as razões nobres das criaturas sensíveis e inteligíveis repousam sobre ela.
Pois ele abarca todas as razões de todos os seres, mas a ele próprio nenhum ser
é capaz de conter. É por isso que quem tem a fé como um grão de cevada pode,
pela palavra, mover uma montanha, como disse o Senhor[86],
ou seja, expulsar o poder que o diabo tem sobre nós e mudar de fundamento.
11.
O Senhor é um grão de cevada, semeado em espírito pela fé no coração dos que o
recebem. Quem, graças às virtudes, o cultiva cuidadosamente, move a montanha
dos cuidados terrestres. E depois de haver afastado de si mesmo o hábito do
mal, tão difícil de dobrar, deixa repousar em si as palavras dos mandamentos e
os modos de existência ou as potências divinas, como pássaros do céu.
12.
Quando erguemos verticalmente o edifício dos bens, colocamos sobre o Senhor,
como se fosse sobre uma fundação de fé, o ouro, a prata, as pedras preciosas[87]:
vale dizer, uma teologia pura e inalterada, uma vida transparente e clara,
pensamentos divinos e reflexões luminosas. Mas não colocamos nem madeira, nem
ervas, nem sapé, ou seja, nem a idolatria, esta demência que cerca o sensível,
nem a vida desprovida de razão, nem os pensamentos passionais privados do
conhecimento da sabedoria, como espinhos.
13.
Aquele que busca o conhecimento deve fazer repousar os fundamentos imóveis de
sua alma junto ao Senhor, conforme disse Deus a Moisés: “Venha para perto de
mim[88]”.
Mas é preciso saber que entre os que se mantêm próximos ao Senhor existe uma
diferença, se acaso os que amam aprender não leiam superficialmente o seguinte:
“Alguns dos que estão aqui não experimentarão a morte até que tenham visto o
Reino de Deus vir em seu poder[89]”.
Pois o Senhor não aparece sempre em sua glória àqueles que estão próximos a
ele. Aos noviços, ele vem em auxílio sob a forma do servidor[90].
Aos que podem segui-lo quando ele sobe a alta montanha de sua transfiguração,
ele aparece sob a forma de Deus[91],
na qual ele existia antes que o mundo fosse[92].
Assim, é possível que o Senhor não pareça o mesmo, nem que apareça da mesma
maneira a todos os que se acham próximos a ele. Mas a alguns ele aparece de um
jeito, a outros de outro, na medida da fé de cada um.
14.
Quando o Verbo de Deus se faz claro e luminoso em nós e sua face resplandece
como o sol, suas vestimentas parecem também brilhantes[93]:
vale dizer, as palavras da Santa Escritura dos Evangelhos, límpidas e claras,
sem nada escondido. Mas Moisés e Elias estão igualmente presentes com ele: ou
seja, as palavras espirituais da Lei e dos Profetas.
15.
Assim como o Filho do homem vem com seus anjos na glória do Pai[94],
conforme está escrito, também a cada progresso da virtude se transfigura o
Verbo de Deus vindo com seus anjos na glória do Pai para os que são dignos.
Pois as palavras mais espirituais que estão na Lei e nos Profetas, e que Moisés
e Elias representam ao aparecer com o Senhor durante a transfiguração de Deus[95],
perpetuam a analogia da glória que está nelas: elas revelam àqueles que delas
são dignos a potência que, até então, se retirava.
16.
Aquele que de algum modo foi iniciado na palavra relativa à unidade, também
conheceu as palavras correspondentes relativas à providência e ao julgamento. É
por isso que, segundo são Pedro, é bom que se ergam três tendas[96]
para aqueles que o viram [durante a transfiguração], ou seja, três estados de
salvação, a saber: o estado de virtude, o estado de conhecimento e o estado de
teologia. O primeiro exige a coragem e a castidade na ação, cuja imagem é o
bem-aventurado Elias. O segundo pede a justiça da contemplação natural, que o
grande Moisés representa. E o terceiro pede a pura perfeição da sabedoria, que
foi revelada pelo Senhor. E estes estados foram chamados de tendas, porque as
partes que serão concedidas aos que delas forem dignos, no século futuro, serão
outras, melhores e mais luminosas do que estas.
17.
É dito que o monge ativo reside na carne. Pois, por meio das virtudes, ele
afasta da alma a relação com a carne e se despoja dos enganos das coisas
materiais. Mas também é dito que o monge gnóstico reside na própria virtude,
pois ele ainda contempla a verdade em espelhos e enigmas[97]:
ele ainda não viu como são as formas mais fundamentais dos bens, desfrutando do
conhecimento face a face. Por não ver, de fato, senão a imagem dos bens, como
que em vista do século futuro, todo santo caminha proclamando: “Eu sou um
estrangeiro, um viajante, como todos os meus pais[98]”.
18.
Quem ora não deve jamais deter a alta elevação que conduz a Deus. Pois assim
como se deve subir seguindo a elevação de potência em potência[99]
no progresso ativo das virtudes, para, a seguir, seguir a ascensão dos
conhecimentos espirituais da contemplação de glória em glória[100],
e finalmente seguir a passagem da palavra da Santa Escritura ao Espírito,
também os que alcançam o lugar das orações devem agir assim: elevar o intelecto
para longe das coisas humanas e colocar sobre as coisas mais divinas o
sentimento da alma, a fim de que o intelecto possa seguir a Jesus o Filho de
Deus, que atravessou os céus[101],
que está em toda parte, que a tudo percorre por nós em sua economia, para que
nós mesmos, seguindo-o, atravessemos tudo o que está antes dele e cheguemos até
perto dele, considerando-o não na dimensão menor de sua descida até nós em sua
economia, mas na grandeza de sua natureza sem limite.
19.
Devemos nos deter e buscar a Deus como nos foi ordenado. Pois, ainda que o
busquemos por toda a nossa vida presente, não conseguiremos atingir o fundo da
profundidade de Deus. Mesmo assim, se chegarmos a descobrir um pouco desta
profundidade, poderemos contemplar o que é mais santo do que o santo e mais
espiritual do que o espiritual. É o mostra a figura do Grão Sacerdote, quando
vai do lugar santo, mais santo do que o vestíbulo, ao Santo dos Santos, mais
santo do que o lugar santo[102].
20.
Nenhuma sentença de Deus é dita em muitas palavras, nenhuma é falatório. Mas
uma mesma sentença é feita de diferentes contemplações, das quais cada uma é
uma parte da sentença. Assim, aquele que fala a verdade – na medida em que é
possível falar a verdade sem nada omitir daquilo que está em causa – emite uma
única e mesma sentença de Deus.
21.
Em Cristo, verdadeiro Deus e Verbo do Pai, toda plenitude da Divindade reside
realmente em um corpo[103].
Mas em nós, a plenitude da Divindade reside por graça, quando recolhemos em nós
mesmos toda virtude e toda sabedoria, e na medida em que estas não estão de
modo algum afastando-se da verdadeira imitação do modelo, tanto quanto isto é
possível ao homem. A partir do momento em que o Verbo nos adota, é natural, com
efeito, que em nós resida também a plenitude da Divindade, que é feita das
contemplações espirituais.
22.
Assim como nossa própria palavra, que, por natureza, provém de nosso intelecto,
é um Anjo dos movimentos secretos deste intelecto, também o Verbo de Deus, que
realmente conhece o Pai como a palavra conhece a inteligência que a engendrou
(sendo que nenhum dos que foram engendrados podem ir ao Pai sem ele), revela o
Pai que ele conheceu, pois ele é Verbo por natureza. É assim que ele é chamado
de Anjo do grande Conselho[104].
23.
O grande Conselho de Deus Pai é o mistério da economia, guardado pelo segredo
do silêncio e desconhecido: este mistério que o Filho único, tornado Anjo do
grande Conselho eterno de Deus Pai, revelou cumprindo-o pela encarnação. Quem
conheceu a palavra do mistério torna-se Anjo do grande Conselho de Deus,
elevado ao mais alto ponto através de tudo, de maneira incompreensível, pela
obra da palavra, até atingir Aquele que está neste ponto e que desceu até ele.
24.
Se o Verbo de Deus em sua economia desceu por nós até as regiões mais baixas da
terra, e se ele subiu mais alto do que os céus[105],
ele que é totalmente imóvel por natureza, cumprindo previamente o devir em si
mesmo, em sua humanidade, segundo a economia, então que aquele que deseja o
amor pelo conhecimento pense em se regozijar no mistério: qual é o fim
prometido aos que amam ao Senhor.
25.
Se Deus, Verbo de Deus Pai, tornou-se Filho do homem e homem para tornar deuses
e filhos de Deus os homens, acreditemos que estaremos lá aonde agora está o
próprio Cristo, cabeça do corpo inteiro[106],
tornado para nós precursor de nossa natureza diante do Pai. Pois Deus estará na
assembleia dos deuses[107],
na assembleia dos que foram salvos. Ele estará no meio deles e distribuirá as
recompensas da beatitude entre eles. Nenhum espaço o separará dos que são
dignos.
26.
Aquele que ainda está cheio dos desejos passionais da carne habita na terra dos
Caldeus, pois adora e fabrica ídolos. Mas quando, depois de haver discernido um
pouco das coisas, ele toma consciência dos modos convenientes da natureza,
deixa a terra dos Caldeus e vai a Haram na Mesopotâmia[108],
ou seja, alcança o estado intermediário entre a virtude e o vício, pois é isto
que designa Haram. Enfim, se ele ultrapassa o conhecimento medíocre e comum do
bem, conhecimento este dado pelos sentidos, ele se apressa em direção à boa
terra, vale dizer, para o estado livre de todo vício e de toda ignorância, que
o Deus que não mente mostra e promete dar em recompensa da virtude àqueles que
o amam.
27.
Se o Verbo de Deus foi crucificado por nós em virtude da fraqueza e se ele
ressuscitou em virtude do poder de Deus, está aí, com toda evidência, aquilo
que ele faz sempre por nós e prova tornando-se tudo para nos salvar a todos. É
assim com toda justiça que o Apóstolo divino, diante dos fracos Coríntios,
explicou que ele nada sabia, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado[109].
Mas aos Efésios, que eram perfeitos, ele escreveu: “Deus nos ressuscitou junto
e nos estabeleceu juntos nos lugares celestes de Cristo[110]”.
Deste modo ele afirmou que o Verbo de Deus chega a nós conforme o grau de
conhecimento que corresponde a cada um. Assim é que ele foi crucificado por
aqueles cuja vida ativa conduziu à piedade. Pelo temor a Deus ele reduziu ao
silêncio suas atividades passionais. Mas ele ressuscitou e subiu aos céus por
aqueles que foram inteiramente despojados do homem velho, corrompido pelas
concupiscências do erro[111],
pelo que se revestiram inteiramente do homem novo, criado pelo Espírito à
imagem de Deus[112],
e finalmente pelos que foram ao Pai da graça que reside neles, acima de toda
autoridade, de todo poder, de toda potência, de toda dominação e de todo nome
dado neste século ou no século futuro[113].
Pois tudo o que antes de Deus – as coisas, os nomes e as honras – será
submetido àquele que nascerá em Deus pela graça.
28.
Assim como antes de sua manifestação visível na carne o Verbo de Deus residiu
em espírito dos Patriarcas e nos Profetas, prefigurando assim os mistérios de
sua manifestação, também antes de se manifestar no meio de nós, ele não apenas
assiste aos que são ainda crianças, nutrindo-os espiritualmente e fazendo-os
crescer até o formato da perfeição de Deus, como ainda assiste aos perfeitos,
apresentando-lhes secretamente, como em imagem, os sinais de sua manifestação
futura.
29.
Assim como as palavras da Lei e dos Profetas, que foram os precursores da
manifestação de Cristo na carne, dirigiram as almas para Cristo[114],
também o Verbo de Deus encarnado, quando foi glorificado, tornou-se ele mesmo o
precursor de sua manifestação espiritual, instruindo as almas, por suas próprias
palavras, para que recebam sua divina manifestação visível, que ele cumpre
sempre que, pela virtude, faz passar da carne ao Espírito aqueles que são
dignos. Isto ele fará igualmente no fim do século, revelando claramente a todos
o que está oculto agora.
30.
Na medida em que eu sou imperfeito e desordenado, que eu não obedeço a Deus
pela prática dos mandamentos e não trago no coração a perfeição do conhecimento[115],
também Cristo é visto em mim como imperfeito e desordenado em minha natureza.
Eu o diminuo e o mutilo, uma vez que não partilho com ele de um mesmo
crescimento segundo o Espírito, por não ser senão parcialmente corpo e membros
de Cristo[116].
31.
O sol se levanta e o sol se deita, diz a Escritura[117].
O mesmo acontece com o Verbo: nós o consideramos seja em cima, seja embaixo, ou
seja, conforme a dignidade, a razão ou a maneira daqueles que alcançam a
virtude e giram ao redor do conhecimento divino. Mas feliz é aquele que, como
Josué[118],
mantém em si, sem que se deite, o sol de justiça, durante toda a medida do dia
da vida presente, sem ser limitado pelo crepúsculo do vício e da ignorância, a
fim de poder legitimamente expulsar os demônios malignos que se levantam contra
ele.
32.
Erguendo-se em nós pela ação e a contemplação, o Verbo de Deus nos atrai para
si[119],
sacrificando pela virtude nossos pensamentos e nossas palavras relativas à
carne, à alma, à natureza dos seres, aos próprios membros do corpo e aos
sentidos, e colocando o conhecimento sob seu jugo. Portanto, aquele que vê as
coisas divinas, que suba fervorosamente em busca do Verbo, até chegar ao lugar
onde ele está. Pois é para lá que ele atrai, como diz o Eclesiastes[120].
Ele atrai para seu lugar, é evidente, os que o seguem como o Sumo Sacerdote que
se introduz no Santo dos Santos, aonde ele penetrou por nós, como precursor de
nossa natureza[121].
33.
Aquele que, em sua piedade, busca o amor à sabedoria e se prepara para combater
as potências invisíveis, deve rezar para que permaneça nele o discernimento
natural que traz uma luz à sua altura, e para que permaneça nele a graça
iluminadora do Espírito. Pois o discernimento conduz, pela ação, a carne até a
virtude. Mas a graça ilumina o intelecto permitindo-lhe preferir a tudo a vida
com sabedoria, por meio da qual ele derruba as fortalezas do mal e tudo o que
subleva contra o conhecimento de Deus[122].
E Josué o mostra, quando pede que o sol se detenha sobre Gabaon[123],
ou seja, que permaneça nele, sem se deitar, a luz do conhecimento de Deus sobre
a montanha da contemplação do intelecto; e quando ele pede que a lua se detenha
sobre o vale de Aialon, ou seja, que o discernimento natural, tornado imutável
pela virtude, se coloque sobre a fraqueza da carne.
34.
Gabaon é a inteligência elevada. O vale de Aialon é a carne humilhada pela
morte. O sol é o Verbo que ilumina o intelecto, fornecendo-lhe a potência das
contemplações e livrando-o de toda ignorância. A lua é a lei natural que obriga
a carne a se submeter legitimamente ao Espírito, a fim de receber o jugo dos
mandamentos. Por ser mutável, a lua é um símbolo da natureza. Mas nos santos
ela não muda mais, graças ao estado imutável da virtude.
35.
Os que procuram o Senhor não devem fazê-lo fora de si mesmos, mas dentro de si
mesmos, pela fé com que trabalham. Pois foi dito: “A palavra está perto de
você, em sua boca e em seu coração[124]”,
ou seja, a palavra da fé, como o próprio Cristo: a palavra daquele a quem
buscamos.
36.
Ao considerarmos a grandeza da infinitude divina, não desesperemos do amor de
Deus pelo homem pensando que, devido a esta grandeza, ele não chegará até nós.
E quando refletirmos sobre a profundidade infinita da queda a que nos levou o
pecado, não ponhamos em dúvida a ressurreição da virtude que está morta em nós.
Pois ambas as coisas são possíveis a Deus: descer e iluminar nosso intelecto pelo
conhecimento, para depois ressuscitar a virtude em nós e nos elevar junto
consigo pelas obras da justiça. Pois foi dito: “Não diga em seu coração: quem
subirá aos céus? Isto é: para fazer Cristo descer. Ou: quem descerá ao abismo?
Isto é: para fazer Cristo subir de entre os mortos[125]”.
Segundo uma outra acepção, o abismo também pode ser tudo o que está antes de
Deus, tudo aquilo em que, por sua providência, o Verbo de Deus se fez inteiro
por nós, como a vida que veio residir no meio daqueles que estavam mortos. Pois
tudo o que vive por uma participação na vida, está morto. Como céu, o Apóstolo
entende o segredo natural de Deus, segundo o qual ele é incompreensível a
todos. Mas se entendermos também que o céu é a palavra da teologia e que o
abismo é o mistério da economia, em minha opinião não estaremos desprovidos de
razão. Pois ambos são dificilmente acessíveis aos que buscam encontrá-los
apoiando-se em demonstrações. Ao contrário, aquilo que sondamos aqui é
totalmente inacessível sem a fé.
37.
No monge ativo, o Verbo, alimentado pelos modos das virtudes, torna-se carne[126].
No contemplativo, refinado pelos pensamentos espirituais, ele se torna aquilo
que no começo era Deus o Verbo junto ao Pai[127].
38.
Aquele que, por exemplos e palavras sólidas, cumpre o ensinamento moral do
Verbo na medida em que os que o escutam são capazes de receber, faz do Verbo
carne. Mas aquele que, pelas altas contemplações, expõe a teologia mística, faz
Verbo o Espírito.
39.
Quem busca a Deus pela afirmação, a partir daquilo que se coloca, faz do Verbo
carne: ele não conhecerá a Deus como Criador senão nas coisas visíveis e
palpáveis, Mas quem procura a Deus pela negação, a partir daquilo que rejeita,
torna o Verbo Espírito, tal como era Deus no começo: por não partir de algo
conhecido, ele conhece como se deve Aquele que é mais do que desconhecido.
40.
Quem aprendeu com os Patriarcas a cavar pela ação e a contemplação o poço das
virtudes e do conhecimento[128]
que estão em si, encontrará lá dentro a Cristo, a fonte da vida, à qual a
Sabedoria nos ordena beber quando diz: “Beba a água dos seus vasos e da fonte
dos seus poços[129]”.
Se fizermos isto, encontraremos dentro de nos seus verdadeiros tesouros.
41.
Aqueles que vivem apenas para os sentidos, como animais, fazem do Verbo carne
fora de toda certeza. Para servir às suas paixões, eles abusam das criaturas de
Deus e não consideram que a palavra de sabedoria foi manifestada a todos para
que Deus seja conhecido e glorificado a partir de suas criaturas, e para que
eles compreendam de onde, porque, no que e aonde vieram para se deixar conduzir
pelo visível. Mas, atravessando este século nas trevas, eles tateiam com as
duas mãos por causa da sua total ignorância de Deus.
42.
Aqueles que se acomodam junto a uma única sentença da santa Escritura e que,
pelo culto corporal da lei, entravam a dignidade da alma, fazem por si sós
carne do Verbo, de maneira censurável, pensando agradar a Deus com o sacrifício
de animais sem razão. Eles estão demasiadamente ocupados com seus corpos
submetendo-os a purificações exteriores. Mas eles negligenciaram a beleza de
suas almas marcadas pelo peso das paixões, estas almas pelas quais foi
suscitada toda a potência do visível e pelas quais foram dadas todas as
sentenças e todas as leis divinas.
43.
O Senhor será causa da queda e da ressurreição de muitos em Israel, diz o santo
Evangelho[130].
Consideremos então que ele será causa de queda para aqueles que, apenas em
função dos seus sentidos, contemplam a criação visível e seguem não mais do que
a letra da santa Escritura, porque em seu devaneio não conseguem caminhar em
direção ao Espírito novo da graça; e ele será causa de ressurreição dos que,
espiritualmente, contemplam as criaturas de Deus, escutam suas palavras e,
pelos meios convenientes, velam pela imagem divina da alma.
44.
Que o Senhor seja causa da queda e da ressurreição de muitos em Israel
significa, num sentido unicamente louvável: pela queda das paixões e dos
pensamentos maus em cada um dos que creem, e pela ressurreição das virtudes e
de todo pensamento agradável a Deus.
45.
Quem acha que o Senhor é apenas o Criador dos seres que existem no devir e na
corrupção não o conhece, vendo nele o jardineiro, como Maria Madalena. É por
isso que, para seu bem, o Mestre evita o contato com tal homem. Ele lhe diz:
“Não me toque”, pois ele ainda não é capaz de segui-lo até o Pai[131].
Ele sabe que quem chega a ele presumindo-o menor do que ele é faz mal a si
próprio.
46.
Aqueles que chegaram da Galileia e que, por medo dos judeus, fecharam as portas
e se reuniram no andar superior[132],
colocaram-se, por medo dos espíritos do mal, ao abrigo nas alturas das
contemplações divinas e fecharam seus sentidos como se fecham as portas, e
receberam Deus o Verbo de Deus, que chegou a eles sem que eles saibam como, que
lhes aparece fora da percepção dos sentidos, que lhes concede a impassibilidade
pela paz, que pelo sopro partilha com eles o Espírito Santo, que lhes concede o
poder de expulsar os maus espíritos e lhes mostra os símbolos de seus
mistérios.
47.
Para os que buscam conhecer na carne o Verbo de Deus, o Senhor não sobe para o
Pai. Mas para aqueles que procuram pelas altas contemplações no Espírito, ele
sobe para o Pai. Assim, não mantenhamos continuamente em baixo Aquele que, para
nós, veio até aqui, em seu amor pelo homem, mas acompanhemo-lo até o alto,
subindo com ele até o Pai, deixando a terra e as coisas da terra, a fim de que
ele não diga, também a nós, aquilo que ele disse aos judeus que não se deixaram
conduzir: “Aonde eu vou, vocês não podem ir[133]”.
Pois sem o Verbo, é impossível chegar ao Pai do Verbo.
48.
A terra dos Caldeus é a vida passional, na qual são fabricados e adorados os
ídolos do pecado. A Mesopotâmia – o país entre dois rios – é o modo que se
mantém em meio aos dois contrários. A terra prometida é o estado cheio de todo
o bem. Como é possível que, conforme o antigo Israel, alguém negligencie esta
condição e seja novamente atraído pela escravidão das paixões, privado da
liberdade que lhe foi concedida?
49.
Devemos notar que nenhum dos santos desceu de vontade própria à Babilônia. Pois
não é permitido – e não por causa de uma inteligência racional – que os que
amam a Deus escolham o pior em detrimento do bem. Mas se alguns deles foram
forçados a descer para junto do povo[134],
consideramos que ao fazer isto, não fundamentalmente mas acidentalmente, por
causa da salvação daqueles que precisam ser conduzidos, eles deixaram a razão
mais elevada do conhecimento e seguiram o ensinamento relativo às paixões,
segundo o qual o próprio Apóstolo considerava ser mais útil permanecer na
carne, ou seja, no ensino ético dado aos discípulos, embora ele desejasse
terminar com este ensino ético para estar junto a Deus[135],
pela simples contemplação do intelecto, além do mundo.
50.
Assim como o bem-aventurado Davi aliviava com sua harpa a Saul que estava
atormentado pelos maus espíritos[136],
também toda palavra espiritual, cheia da doçura que lhes dá a contemplação
gnóstica, alivia o intelecto agredido, libertando-o a má consciência que o
atormenta.
51.
Aquele cuja palavra cheia de conhecimento brilha tanto quanto a claridade de
sua vida em Deus é ruivo e possui belos olhos, como Davi[137].
É desta claridade e deste conhecimento que nascem a ação e a contemplação. Uma
é iluminada pelos modos das virtudes, outra é iluminada pelos pensamentos
divinos.
52.
O reino de Saul é a imagem do culto corporal da Lei, que o Senhor aboliu uma
vez que este culto não levava ninguém à perfeição De fato, foi dito que a Lei
não conduzia ninguém à perfeição[138].
Mas o reino do grande Davi prefigura o culto evangélico, porque ele encerra em
si perfeitamente as vontades do coração de Deus.
53.
Saul representa a lei natural que, de início, recebeu do Senhor o domínio da
natureza. Uma vez que ele transgrediu o mandamento pela desobediência, poupando
Agag, rei de Amalek[139]
– ou seja, o corpo – e se deixando levar pelas paixões, ele foi expulso do
reino para que Davi se encarregasse de Israel. Davi representa a lei do
Espírito, que engendra a paz, que constrói para Deus em plena luz o templo da
contemplação.
54.
O nome de Samuel significa obediência a Deus. Portanto, enquanto a palavra
obediente foi pregada entre nós, ainda que Saul poupe Agag, ou seja, os
cuidados terrestres, esta palavra – o sacerdote – o matará com seu ardor
ciumento[140]:
ela bate e confunde o intelecto pecador, quando ele transgrede os julgamentos
divinos.
55.
Quando o intelecto, opondo-se em seu orgulho à palavra que o treinou e o untou
para a luta contra as paixões, cessa de interrogar numa busca conveniente
aquele que poderia lhe dizer o que fazer e o que evitar, em sua ignorância ele
tomba inteiramente na mão das paixões. Por intermédio destas, em parte separado
de Deus, ele avança em meio a dificuldades involuntárias, divinizando o ventre
sob a ação dos demônios e pretendendo nele encontrar o consolo das coisas que o
angustiam. Convença-se pelo exemplo de Saul, quando este se recusou a receber a
Samuel para que este o aconselhasse em tudo, destruindo a si mesmo votando-se à
idolatria e interrogando a necromancia ventríloqua, como se esta fosse um deus[141].
56.
Quem, em suas orações, pede para receber o “pão que vem[142]”,
não recebe este pão inteiramente, tal como ele é, mas apenas como ele próprio é
capaz de concebê-lo. Pois, em seu amor pelo homem, o pão da vida[143]
se dá a todos os que o pedem. Porém ele não se dá da mesma maneira a todos, mas
primeiro aos que fizeram grandes obras de justiça, e menos aos que fizeram
menos. Ele se dá a cada um conforme aquilo que o estado de seu intelecto é
capaz de conceber.
57.
O Senhor tanto parte para longe como permanece por perto. Quando o contemplamos
face a face, ele permanece próximo; quando o contemplamos num espelho e através
de enigmas[144],
ele parte para longe.
58.
No monge ativo, o Senhor reside pelas virtudes. Mas ele abandona aquele que em
nada cumpre com a virtude. Da mesma forma, no contemplativo, ele reside pelo
verdadeiro conhecimento dos seres. Mas ele o abandona se este se desviar dele
em alguma coisa.
59.
Quem passa do estado ativo para o estado gnóstico despede-se da carne, como que
arrastado para as nuvens pelos pensamentos mais elevados, para o espaço diáfano
da contemplação mística, aonde ele sempre poderá estar com o Senhor[145].
Mas abandona o Senhor quem não é capaz, com um intelecto puro e sem a energia
dos sentidos, contemplar na medida do possível os pensamentos de Deus, e que
não abraça a razão simples, sem enigmas, relativa ao Senhor.
60.
O Verbo de Deus é chamado de carne[146],
não apenas porque ele se encarnou, mas também porque, tendo sido concebido
desde o começo simplesmente como Deus o Verbo junto a Deus Pai[147],
e trazendo em si os signos claros e nus da verdade relativa às coisas, ele não
carrega consigo nem parábolas, nem enigmas, nem histórias que tenham
necessidade de alegorias. Mas uma vez que ele veio para viver com os homens,
que não são capazes de alcançar com o intelecto nu o espiritual nu, falando das
coisas que lhes eram habituais, assumindo a variedade das histórias, dos
enigmas, das parábolas e das sentenças obscuras, ele se fez carne. Pois, em seu
primeiro movimento, nosso intelecto não se aplica a uma sentença nua, mas a uma
sentença encarnada, ou seja, feita de uma variedade de palavras: sentença
verdadeira por natureza, mas carne na aparência, de modo que a maioria crê não
ver mais do que a carne, mesmo que, em verdade, esteja ali uma sentença. A
inteligência da Escritura não é o que aparece para a maioria, mas outra, contra
as aparências. Pois, através de cada palavra escrita, é a sentença que se faz
carne.
61.
A instrução dos homens que buscam adquirir a piedade começa naturalmente pela
carne. Pois no primeiro movimento que nos leva a venerar a Deus, nós nos
confiamos à letra, não ao Espírito. Mas quando avançamos parcialmente no
Espírito e limamos a espessura das palavras em buscas mais e mais refinadas,
nos tornamos puros num Cristo puro (na medida em que isto é possível aos
homens) a ponto de podermos dizer com o Apóstolo: “Mesmo que tenhamos conhecido
a Cristo na carne, já não é assim que o conhecemos agora[148]”.
Vale dizer, que o conhecemos pelo simples movimento do intelecto em direção à
palavra, sem aquilo que a recobre, uma vez que, conhecendo o Verbo na carne,
progredimos no caminho da glória que ele possui de seu Pai, como Filho único[149].
62.
Quem viveu a vida em Cristo, ultrapassou a justiça da Lei e da natureza. É o
que nos mostra o Apóstolo divino quando
diz: “Em Jesus Cristo não há circuncisão nem incircuncisão[150]”.
Por circuncisão ele entende a justiça da Lei; por incircuncisão, ele alude à
igualdade que visa a lei natural.
63.
Alguns nascem de novo pela água e pelo Espírito[151];
outros recebem o batismo no Espírito Santo e no fogo[152].
Eu considero que estas quatro coisas – a água e o Espírito, o Espírito Santo e
o fogo – são o único e mesmo Espírito de Deus. Para uns o Espírito Santo é
água, pois ele lava as manchas exteriores do corpo; para outros ele é Espírito,
pois coloca em ação os bens da virtude. Para outros ainda ele é fogo, pois
purifica as marcas interiores profundas da alma. Para outros, enfim, conforme o
grande Daniel, ele é Espírito Santo, pois dispensa a sabedoria e o conhecimento[153].
Com efeito, é devido à diferença das atividades conforme às condições que o
único e mesmo Espírito recebe diferentes nomes.
64.
A Lei prescreveu o sábado para que repousem o animal de carga e o servidor[154].
Estes dois nomes, por enigmas, designam o corpo. Pois o corpo é um animal
submetido ao intelecto ativo, e que os modos das virtudes votadas à ação
obrigam pela força a carregar fardos. E ele é o servidor do contemplativo, pois
daí em diante ele está submetido à razão pela contemplação e está, pela razão,
a serviço das ordens gnósticas do intelecto. Nos dois – na besta de carga e no
servidor – é sábado para os que colocam mãos à obra no cumprimento dos bens
conformes à ação e à contemplação, e este sábado concede a cada um o repouso
que lhe convém.
65.
Quem conduz bem a virtude, com o conhecimento apropriado, faz do corpo uma
besta de carga: pela razão, ele engaja-se a agir como se deve. E ele torna
servidor o modo de agir que leva à virtude, ou seja, este modo pelo qual a
virtude se forma naturalmente e que recebe sua paga, como se fosse em dinheiro,
em pensamentos que discernem. Enfim, o sábado é a condição impassível e
apaziguada da alma e do corpo suscitada pela virtude, ou seja, o estado
imutável.
66.
Para aqueles que ainda estão às voltas com os cuidados para com as formas
corporais da virtude, a palavra de Deus se torna a palha e o feno que alimentam
a parte passional da alma a serviço das virtudes. Mas para os que chegaram a
contemplar a verdadeira inteligência do divino, ela é como o pão que alimenta a
parte espiritual da alma em vista da perfeição semelhante a Deus. É por isso
que encontramos os Patriarcas provisionando pão para si mesmos e forração para
suas mulas[155].
E no livro dos Juízes, o levita diz ao ancião que o acolheu em Gabaon: “Temos
pão para nós e palha para nossas mulas. Seus servidores não deixaram faltar
nada[156]”.
67.
A palavra de Deus é chamada – e é – orvalho[157],
água, fonte[158]
e rio[159],
como está escrito. Ela é e se torna estas coisas, conforme o poder que ela dá
aos que a recebem. Para uns, ela é orvalho, pois ela extingue a inflamação e a
energia das paixões que, desde fora, cercam o corpo. Para outros, que estão
profundamente queimados pelo veneno da malícia, ela é água, não apenas porque a
destrói com sua aversão pelo inimigo, mas também porque transmite um poder
vital em vista do bem estar. Para aqueles nos quais jorra inesgotavelmente o
estado de contemplação, ela é uma fonte, porque distribui a sabedoria. Para os
que espalham como ondas o ensinamento piedoso, reto e salutar, ela é um rio,
pois ela provê com abundância os homens, os animais, as feras e as plantas, a
fim de que os homens sejam deificados, elevados pelo sentido do que é dito; que
aqueles que se tornaram como animais sob o efeito das paixões, humanizados pelo
cumprimento rigoroso dos modos da virtude, redescubram a arte natural de falar;
que os que se tornaram como feras sob o efeito dos maus hábitos e das
malfeitorias, domados pela exortação amável e suave, retornem à doçura da
natureza; e que os que são insensíveis como as plantas, refinados pela leitura
em profundidade da palavra tomem conhecimento de sua qualidade, esta qualidade
que as nutre, a fim de alcançar a fertilidade e a potência.
68.
O Verbo de Deus é o caminho[160]
para aqueles que, levando a vida ativa, correm bem e virtuosamente sobre a
estrada da virtude, que não se desviam nem para a direita pela vanglória, nem
para a esquerda para as paixões, mas que, seguindo a Deus, dirigem retamente
seus passos. Diz-se que Asa, rei de Judá, que não havia observado este
mandamento, sofreu dos pés em sua velhice[161],
pois havia se esgotado percorrendo o caminho da vida em Deus.
69.
O Verbo de Deus é chamado de porta[162],
pois ele conduz ao conhecimento aqueles que bem percorreram todo o caminho das
virtudes engajando-se na via irretocável pela ação, e também porque ele mostra
como uma luz os tesouros resplendentes da sabedoria. Pois e mesmo Verbo é
caminho, porta, chave e Reino. Ele é caminho, porque guia; ele é chave, porque
abre, e ele se abre aos que são dignos do divino; ele é porta, porque deixa
entrar; e ele é Reino, porque é herdeiro, e está em todos por participação.
70.
O Senhor é chamado de luz, vida, ressurreição e verdade[163].
Ele é luz, porque é o esplendor das almas, dissipa as trevas da ignorância,
esclarece o intelecto para que ele compreenda as coisas ocultas e revela os
mistérios somente visíveis aos puros. Ele é a vida, pois ele dá o movimento que
convém às almas, quando estas amam o Senhor nas coisas divinas. Ele é a
ressurreição, pois afasta do pendor morto pelas coisas materiais o intelecto
purificado de toda corrupção e de toda mortalidade. E ele é verdade, pois
concede aos que são dignos o conhecimento do estado imutável dos bens.
71.
Deus Verbo de Deus Pai existe misticamente em cada um de seus próprios mandamentos.
Deus Pai é inteiramente inseparável: ele está naturalmente inteiro em seu
Verbo. Portanto, quem recebe o mandamento divino e o cumpre, recebe o Verbo de
Deus presente no mandamento. E quem, pelos mandamentos, recebe o Verbo, através
dele recebe o Espírito que está naturalmente nele. Pois foi dito: “Amém, eu
lhes digo, aquele que recebe a quem eu enviei recebe a mim, e aquele que me
recebe, recebe Aquele que me enviou[164]”.
Portanto, aquele que recebeu e cumpriu com um mandamento, recebeu e traz em si
misticamente a Santa Trindade.
72.
Quem não venera a Deus apenas em palavras, mas em nome da virtude suporta por
Deus os sofrimentos e as penas, glorifica a Deus em si mesmo. m toca, ele é
glorificado pelo Deus da glória que está nele, e obtém por participação a graça
da impassibilidade, como recompensa da virtude. Pois quem quer que glorifique a
Deus em si mesmo pelos sofrimentos suportados pela virtude, depois de ter
levado a vida ativa, será glorificado em Deus pela impassibilidade dos
esplendores divinos na contemplação. De fato, quando chegou à Paixão, o Senhor
disse: “Agora, o Filho do homem foi glorificado, e Deus foi glorificado nele.
Deus o glorificará nele, e logo ele o glorificará[165]”.
Assim, fica claro que os carismas divinos seguem-se aos sofrimentos que
suportamos pelas virtudes.
73.
Na medida em que vemos no texto da sagrada Escritura, de diversas maneiras e
através de diferentes enigmas, o Verbo de Deus encarnado, ainda não
contemplamos em espírito o Pai incorpóreo, simples, uno e único, tal como ele
está no Filho incorpóreo, simples, uno e único, como diz o Evangelho: “Quem viu
a mim, viu ao Pai” e “Eu estou no Pai e o Pai está em mim[166]”.
É preciso muita ciência para, fugindo dos véus que rodeiam a trama das
palavras, contemplar com o intelecto nu o Verbo puro, tal como ele está em si
mesmo, mostrando em si o Pai tão claramente como aos homens é possível
compreende-lo. É por isso que é necessário que quem busca a Deus piedosamente
não seja dominado por nenhuma palavra, a fim de, mesmo involuntariamente, não
tomar Deus pelas coisas que o cercam, ou seja, afeiçoando-se perigosamente às
palavras da Escritura em lugar do Verbo. É que o Verbo, então, escapa ao
intelecto, que acredita agarrá-lo pela vestimenta, a ele que é incorpóreo, como
o Egípcio que agarrou, não José, mas suas roupas[167],
e como os homens antigos que, detendo-se diante da única beleza que viam,
adoravam a criação em lugar do Criador[168].
74.
Quando despojadas da composição de palavras que são corporalmente modeladas
sobre si, as sentenças da sagrada Escritura, segundo os mais elevados
pensamentos, é como o sussurro de uma brisa leve que se revela ao intelecto
mais clarividente. Por estar inteiramente desembaraçado das energias da
natureza, este pode perceber a simplicidade única de certo modo indicada pela
sentença, tal como o grande Elias que, na caverna de Horeb, foi considerado
digno desta visão[169].
Horeb quer dizer “terra em repouso”: trata-se do estado virtuoso no Espírito
novo da graça. A caverna é o lugar escondido da sabedoria segundo o intelecto,
sabedoria na qual aquele que a recebe sentirá misticamente o conhecimento que
ultrapassa os sentidos, este conhecimento do qual se diz que nele se encontra a
Deus. Assim quem quer que busque verdadeiramente a Deus, como o grande Elias,
não apenas chegará a Horeb, ou seja, atingirá o estado virtuoso como um monge
ativo, como também encontrar-se-á na caverna que está sobre Horeb[170],
ou seja, será como o contemplativo no lugar oculto da sabedoria, que só se
encontra no estado virtuoso.
75.
Quando o intelecto se desembaraçou das numerosas opiniões que lhe foram
impostas a respeito dos seres, então a palavra da verdade lhe surge clara,
dando-lhe os fundamentos do verdadeiro conhecimento e expulsando os antigos
preconceitos que o recobriam como escamas impedindo a visão, tal como aconteceu
com o grande e glorioso apóstolo Paulo[171].
Pois as escamas na verdade são colocadas sobre a clarividência da alma e
impedem sua passagem para a palavra pura da verdade: elas representam os
pré-julgamentos relativos à simples letra da Escritura, e as percepções do
visível misturadas à paixão dos sentidos.
76.
O divino apóstolo Paulo diz que só conhecemos o Verbo em parte[172].
Mas o grande evangelista João afirma que viu sua glória: pois “nós vimos sua
glória, disse ele, a glória que ele partilha com o Pai como Filho único, cheio
de graça e de verdade[173]”.
Mas são Paulo diz que jamais conheceu o Verbo de Deus senão em parte. O Verbo,
de certo modo, não é conhecido a não ser a partir das energias. Pois o
conhecimento do Verbo segundo a essência e a hipóstase é inacessível tanto aos
anjos como aos homens, e ninguém o possui. Mas são João, iniciado na palavra
perfeita da encarnação do Verbo entre os homens, diz que ele contemplou a
glória na carne da palavra, ou seja, no Verbo, e portanto viu o objetivo pelo
qual Deus se fez homem, cheio de graça e de verdade. Pois o Filho único não foi
cheio de graça por ser Deus em essência e consubstancial a Deus Pai. Mas por
ter tomado a natureza do homem pela economia ele se fez consubstancial a nós, e
por isso foi cheio de graça por nós que precisamos da graça, e que a recebemos
de sua plenitude continuamente e proporcionalmente à medida de nosso progresso.
Assim, aquele que guardar inviolável em si mesmo a palavra perfeita portará,
cheio de graça e de verdade, a glória de Deus o Verbo que se encarnou por nós,
e que glorificou e santificou a si mesmo em nossa natureza, quando de sua
vinda. Com efeito, foi dito: “Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a
ele[174]”.
77.
Na medida em que a alma passa de potência em potência e de glória em glória[175],
ou seja, na medida em que ela progride mais e mais de virtude em virtude,
elevando-se sempre de conhecimento em conhecimento, ela não deixa de ser
estrangeira, conforme foi dito: “Minha alma viveu muito no estrangeiro[176]”.
Com efeito, é grande a distância e grande o número de conhecimentos pelos quais
é preciso passar até alcançar o lugar da moradia maravilhosa, a casa de Deus,
dentre os cantos de júbilo e de louvor e os ecos da festa[177],
acrescentando sempre um canto espiritual aos cantos espirituais, na medida do
progresso das contemplações divinas, regozijando-se em seu intelecto com o que
ele contempla, ou seja, vivendo na alegria e na gratidão que lhe corresponde.
Estas festas são celebradas por todos aqueles que receberam o Espírito da graça
em seus corações, clamando: “Abba, Pai![178]”.
78.
O lugar da moradia maravilhosa é o estado impassível e íntegro das virtudes, no
qual aquele que se ornou palavra de Deus ornamenta a alma, como uma tenda, com
as diferentes belezas das virtudes. A casa de Deus é o conhecimento formado
pelas numerosas e diferentes contemplações, a partir das quais Deus, vindo
habitar na alma, enche o cálice da sabedoria. O canto de júbilo é o salto que a
alma dá diante da riqueza das virtudes. O canto de louvor é a ação de graças à
glória do festim da sabedoria. E o eco é a contínua glorificação mística da
mistura de ambos, ou seja, do júbilo com o louvor[179].
79.
Quem lutou nobremente contra as paixões do corpo, que combateu como convém os
espíritos impuros e que expulsou do país de sua alma seus pensamentos, deve
rezar para que lhe seja concedido um coração puro e que em seu corpo seja
restaurado um espírito firme[180],
ou seja, para que ele seja perfeitamente despojado dos falsos pensamentos, que
se encha de pensamentos divinos pela graça, a fim de se tornar um mundo
espiritual de Deus, luminoso e grande, nascido das contemplações éticas,
físicas e teológicas.
80.
Quem purificou seu coração não apenas conhecerá as razões daquilo que aconteceu
depois de Deus, mas também, de certa maneira, verá o próprio Deus depois da
passagem de todas as coisas: aquilo que é o fim último dos bens. Vindo a um tal
coração, Deus o tornará digno de gravar pelo Espírito as mesmas letras que
foram gravadas sobre as tábuas de Moisés[181],
na medida em que este coração estiver dilatado pela ação e pela contemplação,
conforme o mandamento que ordena misticamente: “Crescei![182]”.
81.
Um coração que pode ser chamado de puro é o que não apresenta de nenhum modo
nenhum movimento em direção a seja lá o que for. Penetrando nele, como sobre uma
folha que a extrema simplicidade tornou completamente lisa, Deus escreve suas
próprias leis.
82.
Um coração é puro quando remete a Deus sua memória totalmente despojada de
qualquer forma ou imagem, pronta para ser marcada apenas com os sinais com que
Deus se faz naturalmente visível.
83.
O Intelecto de Cristo que os santos recebem – conforme o que foi dito: “Temos o
intelecto de Cristo[183]”
– não é dado quando a potência espiritual nos falta, nem para completar nosso
próprio intelecto, nem para passar com a essência e a hipóstase para outro
intelecto, mas para iluminar a potência de nosso intelecto com sua própria
qualidade, e para levá-la até ele a fim de que o nosso adquira a mesma energia.
Está aí, com efeito, posso dizê-lo, o que significa ter o intelecto de Cristo,
intelecto que compreende segundo ele e que o compreende em tudo.
84.
Somos chamados de corpo de Cristo, conforme o que foi dito: “Somos o corpo de
Cristo e cada qual é um de seus membros[184]”.
Não é privando-nos de nossos corpos que nos tornamos este corpo. Também não é
porque ele se transporta a nós em sua hipóstase, ou porque ele se divida em
seus membros. Nós nos tornamos este corpo em nos desembaraçando da corrupção do
pecado pela semelhança com a carne do Senhor. Pois assim como Cristo estava
livre do pecado, pela carne e pela alma, segundo a natureza e na medida em que
podemos considerar que ele é homem, também nós, que cremos nele, podemos ficar
sem pecado.
85.
Existem na Escritura séculos temporais. E existem séculos que contêm o
cumprimento de outros séculos, conforme foi dito: “Agora, de uma vez por todas,
até o final dos tempos[185],
etc.” Existem ainda outros séculos que estão livres de qualquer natureza
temporal após este século presente que vai até o fim dos séculos, conforme foi
dito: “A fim de mostrar nos séculos futuros a extraordinária riqueza[186]”,
etc. Encontramos na Escritura uma multitude de séculos passados, presentes e
futuros. Alguns são séculos dos séculos[187],
século do século[188],
anos eternos[189],
gerações futuras[190].
E para não alongar o discurso e sair do objeto dizendo o que a palavra de Deus
entende como séculos temporais, o que ele entende como anos eternos e como
gerações futuras, e o que ele chama simplesmente de século, e quais são os
séculos dos séculos, e o que é chamado simplesmente século do século, deixando
o cuidado de examinar o que concerne a estas coisas aos que amam aprender,
voltemos ao objetivo que tínhamos em vista quando começamos a falar.
86.
Sabemos pela Escritura que existe alguma coisa mais elevada do que o século. A
Escritura sinalizou que esta coisa existe, mas ela não deu nome a esta coisa,
conforme está escrito: “O Senhor reinará no século e sobre o século[191]”.
Existe, portanto, alguma coisa que é mais elevada do que os séculos, que é o
puro Reino de Deus. Pois não se pode dizer que o Reino de Deus começou, ou que
ele se manifestou nos séculos ou no tempo. Nós cremos que o Reino de Deus é a
herança, a moradia, o lugar dos que se salvam, como foi transmitido pela
verdadeira palavra, tal como o fim daqueles que por seu movimento foram
transportados ao fim último daquilo que desejavam: quando o atingiram, eles
receberam o repouso, a detenção de todo e qualquer movimento, uma vez que para
eles já não havia nenhum tempo, nenhum século a percorrer. Assim, depois de
todas as coisas eles chegaram a Deus, que está antes de todos os séculos e a
quem a natureza dos séculos é incapaz de atingir.
87.
Enquanto estamos nesta vida, mesmo que pela ação e pela contemplação exista um
fim do estado daqui de baixo, temos um conhecimento parcial, a profecia, as
garantias do Espírito Santo[192],
mas não temos a plenitude em si. Chegaremos aí um dia, depois da consumação dos
séculos, no fim perfeito face a face[193],
que mostra aos que são dignos esta verdade que se mantém por si mesma, de sorte
que não teremos mais uma parte da plenitude, mas, por participação, a plenitude
da graça por inteiro. Pois todos os salvos, diz o Apóstolo divino, alcançam o
estado do homem perfeito, à medida da plenitude de Cristo[194],
em que estão escondidos os tesouros da sabedoria e do conhecimento[195],
por intermédio dos quais, no momento de sua manifestação, desaparecerá tudo o
que é parcial[196].
88.
Alguns tentam saber qual será o estado daqueles que são dignos da perfeição no
Reino de Deus. Qual dos dois prevalecerá? Haverá progressão e mudança, ou
identidade imóvel? O que serão os corpos e as almas? Que devemos pensar disto?
Responderemos a isso com uma dupla conjectura, dizendo que o alimento, na vida
corporal, tem uma dupla razão de ser: uma é o crescimento, outra é a
conservação dos que se alimentam. Pois até que alcancemos a perfeição do
desenvolvimento corporal, nos alimentamos para crescer. Mas quando o corpo
atingiu seu pleno desenvolvimento em tamanho, ele já não se alimenta para
crescer, mas para se conservar. Da mesma forma, na alma, a razão da alimentação
é dupla. Pois a alma se alimenta para progredir nas virtudes e nas
contemplações, até que tenha ultrapassado a todos os seres e atinja, na força da
idade, a medida da plenitude de Cristo[197].
Aí chegando, ela cessa toda progressão no crescimento e no desenvolvimento
através de meios: ela passa a se alimentar diretamente daquilo que ultrapassa o
entendimento. É por isso que esta espécie de alimento incorruptível, mais
elevado do que o crescimento, conserva a perfeição divina que foi dada à alma e
manifesta seus infinitos esplendores. Pois, ao tomar tal alimento, a alma
recebe o bem estar eterno, sempre igual, e se torna Deus pela participação na
graça divina. Ela mesma acabou com todos os assuntos do intelecto e dos
sentidos, deteve em si as energias naturais do corpo, agora deificado nela
participando de sua deificação no modo que lhe corresponde. Assim Deus aparece
através da alma e do corpo quando, neles, pela superabundância da glória, são
transportadas as marcas naturais.
89.
Alguns dos que amam aprender buscam saber qual será a diferença entre as
moradias eternas e as promessas. Qual das duas prevalecerá? O próprio lugar? Ou
os sentidos da qualidade e da quantidade próprios a cada moradia espiritual?
Para uns, parece ser a primeira, a outros a segunda. Optará por esta aquele que
sabe o que significa: “O Reino de Deus está em vocês[198]”
e “A casa de meu Pai tem muitas moradas[199]”.
90.
Alguns procuram saber a diferença que existe entre o Reino de Deus e o Reino
dos céus. Eles se diferenciam pela realidade ou pelo sentido? Por qual dos
dois? Devemos dizer-lhes que eles se diferenciam não pela realidade, mas pelo
sentido. Pois o Reino dos céus é a compreensão do puro conhecimento dos seres
segundo suas próprias razões, conhecimento que já estava em Deus antes dos
séculos. E o Reino de Deus é a transmissão pela graça dos bens naturalmente
ligados a Deus. Um está relacionado com o fim dos seres. O outro, pelo sentido,
está além do fim dos seres.
91.
“O Reino dos céus está próximo[200]”
não se relaciona, penso eu, com um encerramento dos tempos. Pois o Reino não
virá de maneira que o possamos observar, e não poderemos dizer: “Ele está aqui,
ele está lá[201]”,
mas ele está ligado à relação que têm com ele os que dele são dignos, por seu
estado. De fato, foi dito: “O Reino de Deus está em vocês[202]”.
92.
O Reino de Deus Pai está potencialmente em todos os que creem. Mas ele age nos
que, por seu estado, depositaram totalmente toda a vida da alma e do corpo
segundo a natureza, adquiriram a vida única no Espírito e podem dizer: “Já não
sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim[203]”.
93.
Alguns dizem que o Reino dos céus é a vida que no céu vivem aqueles que são
dignos. Outros dizem que ela é a condição dos que foram salvos, semelhante à
dos anjos. Para outros enfim ela é esta forma de beleza divina que têm os que
trazem a imagem do celeste[204].
Parece-me que as três opiniões concordam com a verdade sobre este ponto. Pois a
graça futura é dada a todos, na medida da justiça que existe em cada um, em
qualidade e quantidade.
94.
Na medida em que conduzimos corajosamente os combates divinos segundo a
filosofia prática, trazemos em nós o Verbo que, pelos mandamentos, saiu do Pai
para vir ao mundo. Mas quando nos afastamos das lutas da ascese contra as
paixões, vencedores das paixões e dos demônios, alcançamos a filosofia gnóstica
pela contemplação, permitimos que o Verbo deixe misticamente o mundo e retorne
ao Pai. É por isso que o Senhor disse aos discípulos: “Vocês me amaram e
acreditaram que eu saí do Pai. Eu saí do Pai e vim ao mundo; agora, novamente eu
deixo o mundo para ir ao Pai[205]”.
Podemos dizer que ele chama de “mundo” o trabalho que temos em praticar a
virtude, e que ele chama de “Pai” o estado do intelecto mais elevado do que o
mundo e livre de qualquer pensamento material, este estado segundo o qual o
Verbo de Deus vem a nós, detendo o combate contra as paixões e os demônios.
95.
Aquele que, pela ação, matou seus membros que estão sobre a terra e venceu[206],
pela palavra dos mandamentos, o mundo das paixões que existia em si, já não
terá mais nenhuma aflição. A partir daí ele terá deixado o mundo e entrado em
Cristo, que venceu o mundo das paixões e que dá toda a paz. Pois quem não
abandona seu pendor pelas coisas materiais estará sempre aflito: ele muda de
sentimento ao mesmo tempo em que as coisas mudam segundo a natureza. Mas quem
entrou em Cristo já não sentirá nenhuma mudança material qualquer que seja. É
por isso que o Senhor disse: “Eu lhes disse estas coisas para que vocês tenham
paz em mim. Vocês serão afligidos pelo mundo, mas tenham coragem. Eu venci o
mundo[207]”.
Vale dizer: em mim, o Verbo da virtude, vocês têm a paz, estão livres do
turbilhão e da perturbação das paixões e das coisas materiais. Mas no mundo, ou
seja, em seu pendor pelas coisas materiais, vocês serão afligidos por vê-las
mudar umas depois das outras. Pois ambos são afligidos: o que trabalha pela
virtude, por causa das penas a que está ligado, e o que ama o mundo, por causa
da perda das coisas materiais. Mas a aflição do primeiro é salutar, e a do
segundo é corruptora e funesta. Mas o Senhor é reconforto para os dois. Ele
conforta a um si mesmo, durante a
contemplação, pela impassibilidade. E ao outro ele liberta, pelo
arrependimento, do pendor passional que o leva às coisas que se corrompem.
96.
O libelo de acusação contra o Senhor nos ensina claramente que o crucificado
era Rei e Senhor da filosofia prática, da natural e da teológica. Diz-se que a
inscrição estava em latim, grego e hebraico[208].
Eu entendo pelo latim a filosofia prática, pois o Império romano foi definido
por Daniel como o reino mais forte de todos os que existiram sobre a terra[209],
e a força é característica da filosofia prática. Entendo pelo grego a
contemplação natural, pois o povo grego se ocupou da filosofia natural mais dos
que os outros homens. Enfim, eu entendo pelo hebraico a iniciação gnóstica,
pois este povo foi claramente consagrado a Deus desde a origem dos Patriarcas.
97.
Devemos não apenas eliminar as paixões corporais, como também destruir os
pensamentos passionais da alma, conforme disse um santo: “De manhã eu eliminei
todos os pecadores da terra, para extirpar da cidade do Senhor todos os que
cometem injustiça[210]”:
vale dizer, as paixões do corpo e os pensamentos iníquos da alma.
98.
Quem, por um pensamento piedoso e reto, guardou o caminho da virtude de todo o
mal, sem se desviar para a direita nem para a esquerda, verá em si a chegada do
Senhor, pela impassibilidade. Pois eu cantarei e compreenderei quando você vier
a mim[211]
por um caminho irretocável. O Salmo significa, com efeito, a ação virtuosa. A
compreensão significa a ciência gnóstica da virtude, pelo qual sentimos a
chegada divina. E aquele que, pela vigília das virtudes, recebe seu Senhor,
pode ser considerado fiel e bom.
99.
Quem começa a marchar sobre o caminho da piedade não deve ser levado à prática
dos mandamentos apenas pela bondade, mas acima de tudo deve combater
lembrando-se dos mandamentos e cortando. Ele pode avançar, com a condição de
não apenas amar o divino com todo seu desejo, mas de afastar-se do mal pelo
temor. “Eu cantarei sua compaixão e seu juízo, Senhor[212]”,
a fim de cantar a Deus nas delícias do desejo, e de ter força para cantar,
firmado no temor.
100.
Quem, pela virtude e o conhecimento, entregou o corpo à alma, torna-se uma
cítara, um templo, um pátio de Deus. Uma cítara, pois guardou a harmonia das
virtudes. Um pátio, pois, pelas contemplações divinas, recebeu a inspiração do
Espírito. E um templo, pois, devido à pureza do intelecto, tornou-se uma
moradia do Verbo.
TERCEIRA CENTÚRIA
CAPÍTULOS SOBRE A TEOLOGIA, A ECONOMIA, A VIRTUDE E O
VÍCIO
1.
Uno é o bem que, acima de tudo, não tem começo e é mais do que a essência: a
Santa Unidade em três hipóstases, Pai, Filho e Espírito Santo. União infinita
de três infinitos, mantendo totalmente inacessível ao seres a razão de ser:
como ele é, o que ele é e quem ele é. Pois esta razão escapa à compreensão dos
que pensam: ela não sai absolutamente da interioridade oculta segundo a
natureza, e ela ultrapassa infinitamente todo conhecimento de todos os
conhecimentos.
2.
O bem em sentido próprio, em sua essência, é aquilo que não tem começo, nem
fim, nem causa de ser, nem tampouco, no ser, qualquer movimento em direção a
uma causa. O que não for assim não será em sentido próprio, pois terá um começo
e um fim, uma causa de ser, e, no ser, um movimento em direção a uma causa.
Aquilo que não é em sentido próprio, ainda que seja chamado de ser, é e será
chamado de ser por participação, pela vontade d'Aquele que é em sentido
próprio.
3.
Se alguma razão dirige o devir dos seres, ela não foi, não é, nem será uma
razão amis elevada do que o Verbo. O Verbo não é nem sem inteligência nem sem
vida, mas é inteligente e vivo, pois ele traz em si o Pai que é o Intelecto
gerador, e traz em si a vida cuja existência está realmente ligada ao Espírito
Santo.
4.
Existe um só Deus, Pai que engendra seu Filho, e que é a fonte do Espírito
Santo, Unidade sem confusão e Trindade sem divisão, Intelecto que não tem
começo, Pai único que engendra realmente o Verbo único que não tem começo, e
fonte da única vida eterna, ou seja, o Espírito Santo.
5.
Existe um único Deus, pois ele é a única Divindade: a Unidade que não tem
começo, que é simples, mais do que essência, sem partes nem divisão. A mesma é
Unidade e Trindade, etc.
6.
Se toda participação dos que participam é pré-concebida, a causa dos seres que,
por sua natureza, existe e é concebida antes dos seres, ultrapassa
evidentemente e de todas as maneiras todos os seres, de forma clara e
incomparável. Não porque ela seja a essência das criaturas, pois então o divino
se revelaria composto, uma vez que ele precisaria da realidade dos seres para
completar sua própria existência, mas porque ela é a supra-essência da
essência. Se, com efeito, as artes imaginam as formas que constroem e se a
natureza em seu conjunto inventou as espécies que ela suscita, quanto mais Deus
que criou do nada as essências dos seres, ele que é mais do que essência e que,
antes de tudo, está infinitamente além daquilo que o poderia estabelecer na
supra-essência, ele que uniu as ciências e as artes para que estas inventem as
formas, que deu à natureza a energia que lhe permite suscitar as espécies, e
que fundou tal como é este ser das essências.
7.
Aquele de cuja essência os seres não participam, mas que, de outra maneira,
quer que os que podem dele participem, não sai absolutamente do segredo da
essência. Assim como o mundo segundo o qual ele deseja ser partilhado e que ele
sabe que permanece continuamente invisível a todos, também ele quer fundar o
que participa, segundo uma razão que só ele conhece, no superabundante poder de
sua bondade. Aquilo que foi feito pela vontade do Criador não pode ser eterno
com Aquele que o quis.
8.
O Verbo de Deus, nascido de uma vez por todas na carne, deseja sempre, por amor
ao homem, nascer no Espírito naqueles que o desejam. Ele se torna criança,
formando a si próprio neles pelas virtudes, revelando-se na medida em que ele
sabe que o carrega aquele que o recebe, não diminuindo por ciúme a revelação de
sua própria grandeza, mas medindo a potência dos que o querem ver. Assim, ao
mesmo tempo em que ele se manifesta sempre aos modos daqueles que dele
participam, o Verbo de Deus, em sua transcendência, permanece sempre invisível
a todos. É por isso que, depois de haver examinado com sabedoria o poder do
mistério, o divino Apóstolo disse: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre[213]”.
Ele sabia que o mistério é sempre novo e que jamais envelhece na compreensão do
intelecto.
9.
O Cristo Deus nasceu, tornou-se homem assumindo a carne que tem uma alma
espiritual, ele que havia dado aos seres nascer do nada, e que a Virgem
concebeu sobrenaturalmente[214]
sem perder nenhuma marca de sua virgindade. Pois assim como ele se tornou homem
sem mudar a natureza e sem alterar a potência, também ele fez Mãe e manteve
Virgem aquela que o concebeu. Ele explica o milagre com outro milagre, ao mesmo
tempo em que esconde um com o outro. Pois em si mesmo Deus é sempre mistério em
sua essência; ele não sai do segredo natural senão para torná-lo ainda mais
secreto pela manifestação, e não fez da Virgem uma Mãe que concebe senão para
gerar pela gestação os laços da virgindade impossíveis de romper.
10.
As naturezas foram renovadas e Deus tornou-se homem. Não foi apenas a natureza
divina, constante e imóvel, que se pôs em movimento em direção à natureza móvel
e inconstante a fim de que ela cessasse de ser levada. E não foi apenas a
natureza humana que, sem semente, mais elevada do que a natureza, cultivou uma
carne levada a seu termo pela razão divina, a fim de deixar de ser levada. Mas
foi também a estrela que em pleno dia apareceu no Oriente e conduziu os Magos[215]
ao local da encarnação do Verbo, a fim de dar significado à palavra que estava
na Lei e nos Profetas, misticamente mais forte do que os sentidos, conduzindo
as nações à imensa luz do conhecimento. Pois a palavra da Lei e dos Profetas
tinha claramente em vista o conhecimento do Verbo encarnado, assim como a
estrela, considerada com piedade, conduziu aqueles que, por desígnio de Deus,
foram chamados pela graça.
11.
Uma vez que eu, homem, transgredi voluntariamente o mandamento divino, e uma
vez que o diabo, depois de haver-me seduzido, arrastou a firmeza de minha
natureza para longe da esperança na divindade[216],
para um prazer do qual ele se orgulharia – por colocar aí o fundamento da morte
e por fazer suas delícias da corrupção da natureza – Deus tornou-se homem
perfeito, sem nada omitir da natureza, salvo o pecado[217],
pois este não pertence à natureza. Assim, depois de tê-lo atraído colocando a
carne diante de si, ele atraiu o dragão insaciável que abriu sua bocarra para
engolir esta carne, que o iria em seguida destruir pelo poder da divindade
presente nela, ao mesmo tempo tornando-se remédio para a natureza dos homens,
repondo a graça original pela mesma potência que foi colocada nela. Pois, assim
como o diabo corrompeu a natureza quando esta provou do veneno da malícia
presente na árvore do conhecimento, também ele se autodestruiu pelo poder da
divindade presente na carne do Mestre.
12.
O grande mistério da encarnação de Deus no homem permanece sempre um mistério,
não apenas porque, revelado na medida em que o podem ver aqueles que foram salvos
por ele, o que não foi visto é ainda maior do que o que foi revelado, mas
porque até mesmo o que foi revelado permanece ainda totalmente oculto e não
pode ser conhecido tal como é. Que isto que dizemos não pareça paradoxal! Com
efeito, Deus, que é mais do que essência e que está acima de toda
supra-essência, quando quis vir numa essência, existiu nela ao mesmo tempo em
que permanecia acima dela. É por isso que ele permanece sempre acima do homem
mesmo quando, em seu amor pelo homem, ele se tornou verdadeiramente homem a
partir da essência dos homens, mas sem que fosse revelado o modo pelo qual ele
se tornou homem, pois foi acima do homem que ele se tornou homem.
13.
Consideremos com fé o mistério da encarnação de Deus no homem, e, acima de toda
pesquisa, glorifiquemos apenas Aquele que por bem quis se tornar isto por nós.
Quem, com efeito, baseado no poder de uma demonstração lógica, pode dizer como
se fez a concepção do Verbo de Deus? Como pode uma carne se formar sem semente?
Como nasceu ela sem corrupção? Como pode uma mãe permanecer virgem depois de
engravidar? Como pode Aquele que está acima de tudo crescer em idade[218]?
Como pode ser batizado Aquele que era puro[219]?
Como alimentava os outros Aquele que tinha fome[220]?
Como dispunha de força Aquele que estava fatigado? Como dava remédios Aquele
que sofria? Como suscitava a vida Aquele que morria? E, para falarmos do começo
e do fim, como Deus se tornou homem? E o que é ainda mais misterioso, como ele
pode estar essencialmente na carne, em sua hipóstase, o Verbo, que, em sua
essência, estava inteiro hipostaticamente no Pai? Como o mesmo pode ser
inteiramente Deus em sua natureza, tendo se tornado inteiramente homem em sua
natureza, sem recusar nenhuma das naturezas, nem a divina, segundo a qual ele é
Deus, nem a nossa, segundo a qual ele se tornou homem? Apenas a fé, que é o
fundamento das coisas que ultrapassam o intelecto e a razão[221],
pode abarcar tais mistérios.
14.
Adão, com sua desobediência, ensinou que a gênese da natureza vem do prazer:
mas, banindo a este da natureza, o Senhor não aceitou a concepção que vem da
semente. A mulher, pela transgressão do mandamento, mostrou que a gênese da
natureza começava na dor: mas, separando a esta da natureza, ao nascer, o
Senhor não permitiu que aquele que o gerou sofresse a corrupção, a fim de
retirar da natureza ao mesmo tempo o prazer voluntário e a dor involuntária
sofrida por causa do prazer. Assim ele se tornou destruidor daquilo de que não
era criador, e ensinou misticamente como começar resolutamente uma outra vida,
que de início pode estar ligada ainda à dor e às penas, mas que em todo caso
termina num prazer divino e num regozijo infinito. É por isso que Aquele que
criou o homem tornou-se homem e nasceu como homem para salvar o homem, e fez-se
paixão, para curar nossas Paixões com sua Paixão. Apagando deste modo, de nossa
carne, nossas paixões, além de toda medida, ele renovou nossas faculdades no
Espírito por seu amor pelo homem.
15.
Quem, por amor a Deus, venceu o pendor da alma pelo corpo, não tem mais limites,
ainda que permaneça num corpo. Pois Deus, que atrai o ímpeto daquele que
deseja, é incomparavelmente mais elevado do que tudo e não permite que aquele
que deseja aplique seu ímpeto a qualquer coisa que esteja abaixo de Deus.
Assim, desejemos a Deus como todo nosso poder e impeçamos as coisas do corpo de
dominar nossa resolução. Por nosso estado, estejamos acima dos seres sensíveis
e inteligíveis. Assim, os limites naturais não nos prejudicarão em
absolutamente nada em nossa resolução de estarmos com Deus que, por sua
natureza, é infinito.
16.
A vida dura que os santos levam é um combate entre o ciúme e a virtude. O
ciúme, para que este o arraste em seu amor pela disputa. A virtude para que, a
tudo suportando, ela permaneça invencível. Um que conduz o combate do mal, para
abrir para si um caminho para o castigo daqueles que progridem. A outra, para
reter os bons, mesmo quando estes estão em meio aos sofrimentos.
17.
Lutar durante as penas é o combate da virtude, e o prêmio da vitória dos que
têm paciência é a impassibilidade da alma, na qual esta, unida a Deus pelo
amor, se torna disposta para separar-se do corpo e do mundo. Pois tratar o
corpo com dureza fortifica a alma dos que são pacientes.
18.
Enganados de início pela ilusão do prazer, nós preferimos a morte à vida
verdadeira. Assim é que experimentamos com gratidão as penas do corpo que
destroem o prazer. Assim, à morte do prazer, fazendo desaparecer consigo a
morte que havia suscitado, recebemos em troca, voltando para nós, a vida que
havia sido vendida ao prazer resgatada pelos pequenos sofrimentos da carne.
19.
Se, quando a carne é bem tratada, a força do pecado cresce, é claro que a força
da virtude se eleva naturalmente e com todo direito quando a carne é
maltratada. Portanto, suportemos nobremente a aflição da carne, que lava as
manchas da alma e suscita a glória por vir. Pois os sofrimentos do tempo
presente nada são comparados com a glória futura que irá se revelar em nós[222].
20.
Nem os médicos que cuidam do corpo ministram a todos o mesmo remédio, nem Deus
que cura as doenças da alma apresenta um mesmo tratamento que convenha a todos.
Mas ao atribuir a cada alma aquilo que lhe é necessário, ele promove as curas.
Rendamos-lhe graças, nós que somos assim curados, mesmo se o que nos acontecer
for uma provação, pois o fim é bem-aventurado.
21.
Nada revela tanto o estado do homem como as revoltas de uma carne duramente
conduzida. Se a alma cede, parecerá que ela ama a carne mais do que a Deus. Se
ela permanecer inquebrantável ante seus apelos, ela demonstrará honrar a
virtude mais do que a carne. Pela virtude, ela receberá em si a moradia de Deus
que por ela suportou os sofrimentos em nossa natureza, e que anunciou outrora
aos discípulos: “Tenham coragem, eu venci o mundo[223]”.
22.
Se todos os santos foram castigados, também nós rendamos graças por sermos
castigados com eles, a fim de sermos julgados dignos de tomar parte em sua
glória, pois “o Senhor castiga a quem ele ama, e fustiga todo filho a quem
acolhe[224]”.
23.
Depois de recebido a costela que lhe proporcionou o prazer, Adão fez sair do
Paraíso a natureza humana[225].
Mas pelo sofrimento, com o flanco aberto pela lança, o Senhor fez entrar o
ladrão no Paraíso[226].
Portanto, amemos o sofrimento da carne, e odiemos o prazer. Pois o primeiro faz
entrar e restabelece nos bens, enquanto o outro faz sair e separa dos bens.
24.
Se Deus se tornou homem e sofreu na carne, quem não se regozijaria de dividir
com Deus seu sofrimento? Sofrer com ele abre o Reino. Pois é verdade o que foi
dito: “Se sofrermos com ele, também seremos glorificados com ele[227]”.
25.
Se devemos sofrer de qualquer modo por causa do prazer que o ancestral misturou
à natureza, suportemos nobremente os sofrimentos passageiros, que amolecem em
nós o aguilhão do prazer e nos livram dos castigos eternos aos quais este nos
condena.
26.
O amor é o fim de todos os bens, pois ele é o mais extremos dos bens que levam
a Deus, e a causa de todo bem, conduzindo, dirigindo , reunindo os que caminham
nele, ele que é fiel e não engana jamais[228].
Pois a fé é o fundamento do que vem antes dela, ou seja, da esperança e do
amor: ela toma sobre si com toda certeza o que é verdadeiro. A esperança é a
força dos extremos, ou seja, do amor e da fé: ela revela por si mesma o que é
fiel e o que é amoroso num e noutro, e para chegar a isto, ela ensina a correr
por si própria. Quanto ao amor, ele é o cumprimento da fé e da esperança, a
última virtude que desejamos: ele abraça inteiro a tudo, proporciona às duas
virtudes a detenção do movimento, que leva a crer que ele é e a esperar que ele
será, fazendo por si só gozar do presente.
27.
A mais perfeita obra do amor e o cumprimento de sua energia por uma troca que
mantém aquilo que ele uniu, consiste em adaptar uns aos outros os caracteres
próprios e por em movimento as vocações: Deus criou o homem, e o homem se torna
e mostra Deus, para que se cumpram o desígnio e o movimento únicos e
semelhantes dos dois segundo a vontade divina.
28.
Se somos de todo modo à imagem de Deus[229],
devemos pertencer a nós mesmos e a Deus, ou melhor, devemos pertencer
inteiramente a Deus único e inteiro, não trazendo conosco nada de terrestre, a
fim de nos aproximarmos de Deus e nos tornarmos deuses, recebendo de Deus o
sermos deuses. É assim que são honrados os dons divinos e que é acolhida com
amor a chegada da paz de Deus.
29.
O amor é um grande bem, o primeiro dos bens, um bem extraordinário, pois ele
une por si mesmo, naquele que o possui, Deus e os homens, e prepara o caminho
sobre o qual o Criador dos homens se manifestou como homem, para que no bem,
tanto quanto é possível ao homem, o deificado se assemelhe a Deus. Penso que
por em movimento esta semelhança é o mesmo que amar ao Senhor Deus de todo
coração, com toda a alma, toda a força, e ao próximo como a si mesmo[230].
30.
É preciso saber como, com suas mentiras, por meio do egoísmo, com maledicência
e hipocrisia, depois de nos ter enganado colocando em nós o prazer, o diabo
resolutamente nos separou de Deus e separou-nos uns dos outros: ele entortou o
que era direito e desta forma dividiu a natureza, e a picotou em numerosas
opiniões e imaginações.
31.
Existem três enormes coisas que são a fonte do mal e que, em uma palavra,
engendram toda malícia: falo da ignorância, do egoísmo e da tirania. Estas três
coisas dependem umas das outras e criam umas às outras. Com efeito, o egoísmo
vem da ignorância de Deus, e a tirania em relação ao próximo vem do egoísmo.
Nenhuma palavra contradirá: é pelo mau uso das potências próprias da razão, do
desejo e do ardor, que o maligno fundou estas coisas em nós.
32.
Pela razão, em ugar da ignorância, devemos nos por em busca apenas de Deus pela
via do conhecimento. Pelo desejo que purifica a paixão do egoísmo, devemos nos
transportar com todo nosso amor apenas para Deus. Pelo ardor desembaraçado da
tirania, devemos nos esforçar para encontrarmos apenas a Deus. E devemos
suscitar o amor divino e bem-aventurado que provém destas faculdades e graças
ao qual elas existem, este amor que une a Deus e deifica aquele que ama a Deus.
33.
Quando desenraizamos o egoísmo que, como eu disse, é a fonte e a mãe dos males,
tudo o que vem dele, tudo o que vem depois dele é arrancado junto. Pois quando
o egoísmo não existe, é impossível que haja o menor traço ou a menor espécie de
malícia.
34.
Devemos nos ligar a nós mesmos e uns aos outros na mesma medida em que Cristo,
tomando a dianteira, nos mostrou por si mesmo, suportando sofrer por nós.
35.
Pelo amor todos os santos se opuseram ao pecado, não fazendo caso algum da vida
presente. Eles sofreram a morte de muitas maneiras, a fim de deixar o mundo, de
se unirem a si mesmos e a Deus e de tapar em si as brechas da natureza. Esta é
a verdadeira e irretocável sabedoria divina dos fiéis, esta sabedoria da qual a
bondade e a verdade são o fim, se as marcas da caridade são a bondade do amor
pelo homem e a verdade do amor a Deus na fé. Pois a sabedoria une os homens a
Deus e os homens entre si. É por isso que ela traz consigo, sem falha, a
permanência dos bens.
36.
O verdadeiro estado de benevolência voluntária para com o próximo é a energia e
a prova do perfeito amor de Deus. Pois quem não ama a seu irmão a quem vê, diz
o divino João, não pode amar a Deus a quem não vê[231].
37.
O amor é o caminho da verdade. Ao dar este nome a si mesmo[232],
o Verbo de Deus encaminha a Deus Pai, purificados de toda espécie de manchas,
aqueles que andam no caminho da verdade.
38.
Tal é a porta[233]
pela qual nos tornamos aquele que entra no Santo dos Santos e nos pomos a
contemplar a beleza inacessível da Santa e Real Trindade.
39.
É verdadeiramente terrível e além de toda condenação fazer morrer
voluntariamente, por amor às coisas corrompíveis, a vida que recebemos de Deus
pelo dom do Espírito Santo. Este é um temor conhecido daqueles que se aplicaram
em preferir a verdade ao egoísmo.
40.
Estejamos em paz quando se deve e, depois de rejeitarmos o amor que devíamos ao
mundo e àquele que detém o mundo no mal, detenhamos, ainda que tardiamente, o
combate que, por causa das paixões, mantemos contra Deus. E depois de termos
concluído com ele a indissolúvel aliança pela paz, cessemos de lhe ser hostis,
destruindo o corpo do pecado[234].
41.
Nos é impossível unirmo-nos no amor a Deus enquanto, pelas paixões, nos
revoltamos contra ele e suportamos pagar o tributo da malícia ao diabo, o
tirano enganador e assassino das almas, a menos que sejamos primeiro combatidos
pelo maligno. Até então, na medida em que queremos ser escravos das paixões da
desonra, nos fazemos de inimigos de Deus e o combatemos, mesmo que nos
atribuamos o nome de fiéis. De nada nos serve confiarmo-nos à paz do mundo,
quando a alma está mal disposta, revoltando-se contra seu Criador e não
suportando ser submetida a seu Reino. Pois ela permanece ainda tributária de
mil mestres cruéis, que a empurram para o mal e a levam, enganando-a, a
escolher o caminho que leva à perdição[235],
mais do que à vida que pode salvar.
42.
Deus nos criou para que nos comuniquemos com a natureza divina[236],
para que tenhamos parte em sua eternidade e para que pareçamos semelhantes a
ele na[237]
deificação que vem da graça, pela qual toda constituição dos seres é também
permanência, e toda criação do que não existe é também devir.
43.
Se desejamos ser chamados e sermos filhos de Deus, esforcemo-nos para não trair
o Verbo pelas paixões, como fez Judas[238],
e para não negá-lo, como fez Pedro[239].
Pois deixar de fazer o bem por medo é uma negação do Verbo. E o pecado cometido
em ato e a impulsão pelo pecado são uma traição.
44.
A alegria é o fim de toda aflição. O repouso é o fim das penas. A glória é o
fim da desonra. Em uma palavra, ir com Deus, estar continuamente com ele,
desfrutar do repouso eterno que não acaba, é o fim de todos os sofrimentos que
suportamos pela virtude.
45.
Desejando nos unir a todos na natureza e no conhecimento, e empurrando para
isto toda a raça humana, em sua bondade Deus nos traçou os mandamentos
salutares que amam o homem. Ele assim simplesmente nos deu por lei termos
piedade e sermos tratados com piedade.
46.
O egoísmo e a inteligência dos homens, pela rejeição ou a mentira mútuos, bem
como pela rejeição ou a fraude da Lei, dividiram a natureza única em numerosas
partes. Depois de haver introduzido a insensibilidade, que agora domina a
natureza, a disseminaram, e armaram com uma razão especiosa esta natureza tal
como ela é. É por isso que qualquer um que, por um pensamento sábio e pela
nobreza de sentimentos, tenha dissipado esta anomalia da natureza, sente
piedade de si mesmo diante dos outros: ele suscitou a resolução conforme a
natureza, encaminhou-se resolutamente para Deus seguindo a natureza, e mostrou
em si de que maneira a razão da imagem se exprime e como Deus, depois de haver
criado no início nossa natureza semelhante a ele próprio, como uma clara
representação de sua própria bondade, a estabeleceu nela, em tudo a mesma,
pacífica, calma, apaziguada, colada a Deus e a ela por amor, conforme nos
liguemos a Deus pelo desejo, e uns aos outros pela compaixão.
47.
Deus que ama os homens se tornou homem a fim de reunir em si próprio a natureza
dos homens, e para que esta cessasse de se maltratar, sublevada e dividida
sobretudo contra si mesma, e sem a menor constância, devido ao movimento
versátil da vontade de cada um.
48.
Nada do que vem depois de Deus é mais precioso, ou melhor, nada é mais amado
por Deus do que o amor perfeito, naqueles que possuem a inteligência. Pois este
amor reúne em um aqueles que estavam divididos e ele pode suscitar em muitos,
ou em todos, em sua resolução, uma mesma identidade pacífica. Pois ele pode
mostrar a única resolução própria ao amor daqueles que assim buscam.
49.
Se, por natureza, o bem unifica e reúne aquilo que estava dividido, é evidente
que o mal divide e destrói aquilo que estava unido. Por natureza, como efeito,
o mal é disperso e volátil, toma muitas formas e divide.
50.
O verdadeiro amor a Deus com conhecimento de causa e a recusa total da afeição
da alma pelo corpo e por este mundo são a libertação de todos os males e o
caminho mais curto para a salvação, pelo qual, rejeitando a concupiscência do
prazer e o medo da dor, somos libertos do egoísmo mau, elevados que seremos ao
conhecimento do Criador. E, substituindo o egoísmo mau pelo bom e espiritual
amor a nós mesmos desembaraçado de toda afeição corporal, não cessaremos de
adorar a Deus pela beleza de tal amor, e buscaremos sempre junto a Deus o
recolhimento da alma. Esta é, com efeito, a verdadeira adoração que agrada
realmente a Deus: Cuidar rigorosamente da alma por meio das virtudes.
51.
Quem não cobiça o prazer corporal e que não teme absolutamente a dor se torna impassível. Pois, ao mesmo tempo em
que estes e junto com o egoísmo que os engendrou, ele destruiu todas as paixões
suscitadas por sua causa e provenientes deles, incluindo a ignorância, esta
causa primeira dos males. Assim ele se liga inteiramente à beleza que, por
natureza, é estável, constante, sempre a mesma: com ela ele permanece
totalmente imóvel, com o rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória
do Senhor[240],
pois, no esplendor luminoso que existe em si, ele contempla a glória divina e
inacessível.
52.
Devemos na medida do possível recusar o prazer e a dor da vida presente e nos
separarmos de todo pensamento de paixão e de toda malfeitoria demoníaca. Pois é
por causa dos prazeres que amamos as paixões e é por causa da dor que fugimos
das virtudes.
53.
Uma vez que todo vício é destruído naturalmente do mesmo modo como foi
suscitado, o homem, constatando por esta experiência que a dor sucede de um
modo ou de outro ao prazer, atirou-se por completo ao prazer e fugiu totalmente
da dor. Ele combateu pelo primeiro com toda sua força e lutou contra o outro com
todo seu ardor. Por meio deste artifício, ele pensou – embora fosse impossível
– em separá-los um do outro e unir seu egoísmo apenas ao prazer separando-o
totalmente da dor. Mas, sob o efeito da paixão, ignorou que é naturalmente
impossível que o prazer subsista para sempre sem que jamais surja a dor. Pois a
pena que engendra a dor está naturalmente mesclada ao prazer, mesmo que aqueles
que o experimentam pareçam esquecer-se disto, pois, sob o efeito da paixão, se
deixam levar pelo prazer. Com efeito, é o que o conduz que se manifesta
naturalmente, recobrindo a sensação daquilo que substitui. Portanto, nos
arrogando o prazer para satisfazer nosso egoísmo esforçando-nos por nos
separarmos da dor pela mesma razão, fomentamos a indizível gênese das paixões corruptoras.
54.
Quando nos ligamos a Deus, ignoramos a sensação de prazer e de dor, pois
somente ele é digno de amor, e desejável; para dizê-lo melhor, quando a ele
unimos o intelecto liberado da relação corporal.
55.
Assim como não podemos adorar a Deus com toda pureza se não purificarmos
totalmente a alma, também não podemos adorar a criação se não moderarmos o
corpo. Cumprindo no corpo a adoração corruptora, e com isto se tornando
egoísta, o homem suscita continuamente o prazer e a dor: ele continua se alimentando
da árvore da desobediência – a árvore do conhecimento do bem e do mal[241].
Assim, em seus sentidos desordenados, ele tem a experiência do conhecimento.
Assim, se dissermos que a criação visível é a árvore do conhecimento do bem e
do mal, não estaremos longe da verdade, porque participamos naturalmente
daquilo que suscita o prazer e a dor.
56.
Onde não impera a razão, os sentidos predominam naturalmente. É a partir desta
predominância que petrificou-se, de certo modo, a potência do pecado que, pelo prazer,
realmente leva a alma à miséria da carne tão próxima. Assim, o pela vida
segundo a natureza, tomando-se de cuidados pela carne com paixão e prazer, como
se isto fosse a obra natural da alma, a convence a suscitar o vício onde este
não existia.
57.
O esquecimento dos bens da natureza é o vicio da alma dotada de inteligência.
Este esquecimento provém do estado passional da carne e do mundo. A razão
dirigida conforme a ciência espiritual suprime este estado: ela sonda a
natureza do mundo e da carne e empurra a alma para o país que lhe é próximo, o
país das coisas inteligíveis, aonde a lei não permite que chegue o pecado, pois
este não é como uma ponte que permite a passagem dos sentidos para o intelecto:
esta ponte, daí em diante, no que se refere à alma em seu estado, é destruída e
rejeitada nas visões sensíveis que o intelecto já não sente, depois de haver
ultrapassado o estado e a natureza.
58.
Assim como a razão que domina as paixões faz dos sentidos órgãos da virtude,
também as paixões, quando dominam a razão, moldam os sentidos em vista do
pecado. É preciso considerar e estudar com sobriedade e vigilância como a alma
fará o bom retorno de modo conveniente, servindo-se das coisas que antes a
levaram ao erro para alcançar a gênese e a realidade das virtudes.
59.
O santo Evangelho ensina a recusa da vida carnal e a confissão da vida
espiritual. Falo aqui dos que morreram segundo o homem, vale dizer, segundo a
vida humana na carne ligada ao século, mas que viveram segundo Deus[242]
pelo Espírito único, seguindo o Apóstolo divino e os que o rodeavam, que já não
viviam uma vida que lhes era própria, mas carregavam o Cristo vivo em suas
almas[243].
Assim, os que morreram por Deus neste século foram julgados por sua própria
carne: eles sofreram muitas aflições, tormentos e angústias, e suportaram com
alegria as perseguições e toda espécie de provações.
60.
Toda paixão nasce de alguma forma de união entre uma coisa sensível, os
sentidos e uma potência natural, por exemplo, de um ardor ou eventual desejo
daquele que se desnaturou. Assim, se depois de perceber em sua união o fim
recíproco de sensível, do desejo e da potência natural contida neles, o
intelecto, discernindo à parte cada um dos três (o sensível, o sentido e a
potência natural), consegue retornar à razão que lhe é própria por natureza e
contemplar em si mesmo o sensível fora da relação que o sentido tem para com
ele, e o sentido independentemente daquilo que o une ao sensível, e o desejo,
por exemplo (ou outra das potências naturais) fora de qualquer pendor passional
pelos sentidos e pelo sensível, assim como o movimento próprio da paixão
prepara a chegada da contemplação, ele dissipa e transforma em poeira, como o
bezerro de ouro de Israel[244],
qualquer paixão que se formaria e espalha esta poeira sobre a água do
conhecimento, destruindo por completo esta pura imaginação das paixões, por
restabelecer em si mesmas as coisas que, segundo a natureza, constituíam a
paixão.
61.
A vida manchada pelas numerosas faltas das paixões suscitadas pela carne é como
uma túnica com nódoas. Como veríamos numa vestimenta, é, com efeito, por sua
maneira de viver que transparece aquilo que é um homem: justo ou injusto. Um,
que veste uma túnica pura, vive na virtude. Outro tem sua vida manchada por más
obras. Ou antes, é o estado e a disposição da consciência, que moldam a alma
pela lembrança dos maus movimentos e das más ações da carne, que são a túnica
machada pela carne[245].
Vendo continuamente ao seu redor, como uma túnica, este estado e esta
disposição, a alma se enche do mau odor das paixões. De fato, do mesmo modo
pelo qual, por meio das virtudes tecidas conforme razão a alma recebe do Espírito uma túnica de
incorruptibilidade e se torna bela e gloriosa depois de tê-la vestido, também
recebe uma túnica impura e manchada que, por si só, a faz reconhecer e lhe dá
uma outra forma e uma outra imagem do que a forma e a imagem divinas.
62.
A encarnação de Deus no homem, que faz do homem um deus na mesma medida em que
Deus se tornou homem, esta encarnação é um a firme razão para confiarmos na
esperança da deificação da natureza humana. Pois é claro que Aquele que, sem
pecado[246],
se tornou homem, deificará a natureza sem nada alterar na divindade, e a
elevará através de si mesmo tanto quanto se abaixou através do homem. É isto
que o grande Apóstolo ensina, quando diz que será mostrada nos séculos futuros
a superabundante riqueza da bondade de Deus por nós[247].
63.
Dominando o ardor e o desejo a razão suscita as virtudes. Aplicando-se às
razões das criaturas, o intelecto reúne em si o conhecimento infalível.
Portanto, quando a razão, depois de haver repelido os adversários, encontra o
que é amável segundo a natureza, e igualmente o intelecto, depois de haver
atravessado as coisas conhecidas, recebe a causa que é mais elevada do que a
essência, do que o conhecimento e do que os seres, chega então a experiência da
deificação pela graça, experiência que transporta a razão para fora do
discernimento natural, aonde não há nada a discernir, e que permite ao
intelecto repousar da compreensão segundo a natureza, aonde nada há para
conhecer, enfim, que deifica pela identidade das atitudes aquele que é considerado digno da união
divina.
64.
O sofrimento purifica a alma manchada pela ferrugem do prazer e a separa da
relação com as coisas materiais, quando a alma aprende a partir daí o mal que
lhe fez o amor por estas coisas. É por esta razão que Deus, em seu justo juízo,
permite que o diabo oprima os homens com tormentos.
65.
O prazer e a dor, a concupiscência e o medo, e as coisas que se lhes seguem, não
foram criados primitivamente com a natureza dos homens. Pois eles contribuiriam
para definir a natureza. Eu digo – e o aprendi do grande Gregório de Nysse[248]
– que foi devido à queda para fora da perfeição que estas coisas começaram, e
que elas nasceram na porção da natureza menos favorecida pela razão. Foi por
ela que, em lugar de carregar a imagem bem-aventurada e divina, desde o momento
da transgressão o homem começou a se assemelhar clara e visivelmente aos
animais sem razão. A partir do momento em que a dignidade da razão foi coberta
por um véu, entranhada pelas marcas da irracionalidade, tornou-se necessário
castigar a natureza dos homens para que ela sabiamente tomasse consciência do
gênio da razão de Deus que dirige o homem.
66.
Nos homens fervorosos, mesmo as paixões se tornam boas quando, separando-os das
coisas corporais, as tomamos para adquirir as coisas do céu. Isto acontece
quando transformamos a concupiscência em movimento tendendo ao desejo
espiritual das coisas de Deus, quando fazemos do prazer o santo desfrutar da
atividade dos carismas divinos do intelecto, quando fazemos do medo o cuidado
de nos preservarmos do castigo futuro das nossas faltas e quando fazemos da dor
o arrependimento que nos corrige do mal presente. Em uma palavra, como o fazem
os médicos mais sábios que, utilizando o corpo de uma víbora selvagem e
venenosa, curam a ferida real ou imaginada, nós nos servimos dessas paixões
para suprimir o mal presente ou esperado, e para adquirir e guardar a virtude e
o conhecimento.
67.
A lei da primeira Aliança purifica a natureza de toda mancha por meio da
filosofia prática. Mas a lei da nova Aliança, pela mistagogia[249]
da contemplação, eleva a consciência à ordem do conhecimento, fazendo-a passar
das coisas do corpo às visões que aproximam das coisas espirituais.
68.
Os que debutam e chegam às portas da moradia divina das virtudes são chamados
pela Escritura “aqueles que temem a Deus”. Os que adquirem o estado que convém
às palavras e aos modos da virtude ela denomina “aqueles que progridem”. Enfim,
ela chama de “perfeitos” os que, pela virtude, atingiram pelo conhecimento o
cume da verdade revelada pelas virtudes. Portanto, quem se desviou da maneira
como vivia antes em meio às paixões, e que, pelo temor, abriu para as coisas de
Deus todas as disposições de sua alma, não deixará de receber nenhum bem dos
que cabem aos que começam, mesmo que ainda não tenha adquirido o estado de
virtude e que não participe ainda da sabedoria que é mencionada entre os
perfeitos[250].
Aquele que progride não deixará de receber nenhum dos bens correspondentes ao
seu grau, mesmo que não tenha adquirido, como os perfeitos, o conhecimento
iminente das coisas de Deus. Pois os perfeitos serão daí em diante considerados
dignos da teologia contemplativa. Eles purificaram o intelecto de toda
imaginação material, fizeram dele uma imagem que traz em si sem falha a inteira
imitação da beleza divina, e parecem abarcar em si próprios o amor de Deus.
69.
O temor é duplo. Existe o temor puro, e
existe um temor que não é puro. O temor que se fundamenta por excelência no
castigo das faltas e que tem como causa de sua própria gênese o pecado não é
puro nem é durável, pois, com o arrependimento, ele desaparece junto com o
pecado. Quanto ao temor puro, ele é formado independentemente da aflição das
faltas, e este não passa jamais. É por isso que, ultrapassando a criação, ele
de certa forma está ligado essencialmente a Deus, tornando manifesta sua
natureza venerável, sua eminência acima de todo reino e de todo poder.
70.
Quem não teme a Deus porque ele é juiz, mas que o reverencia por causa da
altíssima eminência de sua potência infinita, a este não falta nada, pois ele é
perfeito no amor por amar a Deus com respeito e veneração convenientes. Este
homem possui o amor que permanece pelos séculos dos séculos[251]
e a ele nada faltará.
71.
É por intermédio dos seres que conhecemos Aquele que é a causa dos seres. É
pela diferença entre os seres que somos instruídos na sabedoria inerente à
hipóstase do ser. E é pelo movimento natural dos seres que aprendemos a vida
inerente à hipóstase do ser, a potência que vivifica os seres: o Espírito
Santo.
72.
O Espírito Santo não está ausente em nenhum dos seres, singularmente nos que
tem algo partilhado com a razão. Pois ele compreende em si mesmo todo o
conhecimento. Uma vez que o Espírito Santo também é Deus, contendo sempre
providencialmente e suscitando segundo a natureza a razão em cada um, ele
permite por meio desta, àqueles que conseguem, perceber os feitos contra a
natureza, e ceder facilmente em sua vontade para acolher os pensamentos retos
suscitados pela natureza É por isso que, mesmo dentre os homens mais bárbaros e
mais nômades, encontramos muitos que partilham do belo e do bom e que anulam em si as leis selvagens que
carregavam desde a origem.
73.
O Espírito Santo está simplesmente em todos, na medida em que ele abarca todos
os seres e coloca em movimento as sementes naturais. Ele está singularmente em
todos aqueles que estão sob a Lei, uma vez que ele denuncia a transgressão dos
mandamentos e esclarece a promessa anunciada em nome de Cristo. E ele está em todos os que vivem segundo
Cristo, ademais das razões precedentes, por permitir a adoção. Mas, na medida
em que ele suscita a sabedoria, ele não está pura e simplesmente naquilo que
foi anunciado: ele está apenas nos que compreendem e que, levando a vida
divina, se tornam eles mesmos dignos da habitação deificante, Pois quem quer
que não faça a vontade de Deus, por fiel que seja, tem o coração ignorante,
como um lugar que forja maus pensamentos, e o corpo cheio de dívidas pelos
pecados cometidos, pois é mantido continuamente na sujeira das paixões.
74.
Deus, que deseja a salvação de todos os homens e que tem fome de sua
deificação, seca sua presunção, como fez à figueira estéril[252],
a fim de que aqueles que preferem ser justos mais do que parecer justos,
despojados da túnica da ostentação moral hipócrita e buscando sem recorrer à
fraude a existência virtuosa como manda a palavra divina, passem sua vida na
piedade, revelando a Deus a disposição de sua alma mais do que aos homens a
aparência exterior de sua conduta.
75.
Uma coisa é razão de fazer, outra a razão de sentir. A razão de fazer é o poder
natural que coloca em movimento as virtudes. A razão de sentir é, ou bem a
graça das coisas mais elevadas do que a natureza, ou bem o acidente que permite
as coisas contra a natureza. Com efeito, na medida em que não temos o poder
natural d'Aquele que é mais do que o ser, temos por natureza o poder do
não-ser. Experimentamos então pela graça a deificação, pois ela é mais elevada
do que a natureza, mas não a criamos, pois, por natureza, não possuímos um
poder capaz de receber a deificação. Experimentamos igualmente o mal, em
pensamento, por acidente, na medida em que ele é contra a natureza, pois não temos
o poder natural que nos permite praticar o mal. Assim, aqui em baixo praticamos
as virtudes que estão em nós por natureza, pois temos em nós o poder natural
que nos permite praticá-las. E experimentamos a deificação como aquilo que deve
ser, uma vez que recebemos gratuitamente a graça que nos permite
experimentá-la.
76.
Praticamos por nós mesmos, na medida em que o temos em nós por natureza, agindo
em nos, o poder da razão, que coloca em movimento as virtudes, bem como o poder
irresistivelmente espiritual que recebe todo o conhecimento, que ultrapassa
toda a natureza daquilo que é e daquilo que é conhecido, e que suscita todos os
séculos atrás de si. E experimentamos quando, ultrapassando perfeitamente as
razões daquilo que provém dos seres, chegamos à causa dos seres no
“desconhecimento” e deixamos repousar nossas próprias potências com aquilo que
passa por natureza, tornados algo que não é uma ação do poder segundo a
natureza, porque esta não possui o poder capaz de compreender Aquele que é mais
elevado do que ela. Pois nada do que existe segundo a natureza pode criar a
deificação, por ser incapaz de compreender a Deus. É naturalmente próprio da
graça divina, e dela apenas, conceder aos seres a deificação correspondente
àquilo que eles são. Pois ela ilumina a natureza com a luz que é mais elevada
do que a natureza, e a coloca sob sua própria condição, na superabundância da
glória.
77.
Depois desta vida, deixamos de praticar as virtudes, mas não deixamos de
experimentar a deificação que, pela graça, é mais elevada do que elas. Pois
aquilo que experimentamos acima da natureza é sem limites, porque age. Mas o
que é contra a natureza não existe e não pode agir.
78.
As imagens dos bens divinos são os modos da virtude e as razões dos seres. É
por meio delas que o homem se torna continuamente Deus. No seu corpo, estão os
modos das virtudes. E em sua alma, as razões espirituais do conhecimento, por
meio das quais Deus deifica os que são dignos, gravando neles o sinal inerente
à hipóstase da virtude e lhes concedendo a existência essencial de um
conhecimento que não varia jamais.
79.
O intelecto fiel e ativo, como são Pedro aprisionado por Herodes, a lei
epidérmica (pois Herodes quer dizer epiderme, ou seja, os cuidados da carne), é
encerrado sob a supervisão de duas sentinelas de guarda e atrás de um portão de
ferro, vale dizer, ele é combatido pela energia das paixões ou pelo
consentimento do pensamento submetido às paixões. Ora, sob o efeito da palavra
da filosofia prática, como pela intervenção de um anjo, ele supera as duas
sentinelas de guarda, ou seja, as prisões, e chega ao portão de ferro que dá
para a cidade, ou seja, a relação forte, dura, difícil de vencer, que os
sentidos têm para com as coisas sensíveis. Abrindo esta porta, a palavra da
contemplação natural envia, por seu próprio movimento, na direção das coisas
inteligíveis que lhe estão próximas, o intelecto agora livre e sem medo, para
longe da fúria de Herodes[253].
80.
O diabo é ao mesmo tempo o inimigo de Deus e o vingador de Deus[254]. Ele é o inimigo quando, em sua inveja de
Deus, o miserável faz cara de quem tem amor pelos homens, persuadindo nosso
desejo, pelos modos das paixões voluntárias e por intermédio do prazer,
preferir as coisas que passam aos bens eternos: desviando por meio destas
coisas o impulso da alma, ele nos afasta inteiramente do amor divino e faz de
nós inimigos voluntários do Criador. E ele é vingador quando, deixando a
descoberto a inveja que tem de nós, reclama o castigo que nos aguarda, desde
que, por causa do pecado, estamos agora em seu poder. Pois não há nada de que o
diabo goste tanto quanto ver um homem castigado. Uma vez que ele recebe esta
permissão, projetando ataques sucessivos de paixões involuntárias, ele se porta
insaciavelmente como um furacão contra aqueles que ele recebeu para exercer seu
poder com a permissão de Deus; não que ele queira cumprir a ordem divina, mas
ele deseja saciar sua própria paixão, que o leva a nos odiar, a fim de que, sob
o peso dos dissabores que a afligem, a alma, dobrada sobre si mesma por causa
de seu relaxamento, se separe do poder da esperança divina, fazendo da irrupção
dos eventos dolorosos uma causa de ateísmo, ao invés de uma advertência.
81.
Quando aqueles que participam do estado ativo e da ciência contemplativa vão
buscar a glória diante dos homens, disfarçando com a aparente prática das
virtudes e apenas repetindo as palavras da sabedoria e do conhecimento, eles
mostram aos outros, nesta sabedoria e neste conhecimento, as fumaças do
orgulho, sem as obras da justiça, e são atirados justamente às penas merecidas,
a fim de aprenderem pela provação a humildade que, em sua vã presunção,
ignoraram.
82.
Cada demônio, conforme aquilo de que é capaz por si mesmo, contribui para tal
ou qual ataque das tentações. Cada qual, com efeito, suscita um vício
diferente. E cada qual é mais impuro que o outro e mais hábil em seu gênero de
vício.
83.
Sem a permissão divina, esses demônios não conseguem prestar nenhum serviço ao
diabo. Pois o próprio Deus, com a presciência necessária e em seu amor pelo
homem e sua bondade, sabe como permitir ao diabo fazer seus servidores
administrarem diversos castigos, o que é claramente mostrado no livro de Jó,
quando se diz que o diabo não podia absolutamente se aproximar de Jó sem a
vontade de Deus[255].
84.
A fé manifesta e ativa é a fé inerente à hipóstase, segundo a qual o Verbo de
Deus se revela aos ativos tomando o corpo dos mandamentos. E é por estes
mandamentos que em sua pessoa de Verbo ele conduz os que agem ao Pai no qual
ele está por natureza.
85.
O mistério do Novo Testamento anuncia a mudança de vida, o culto angélico, a
hostilidade voluntária da alma para com o corpo e a gênese da transformação
divina em espírito. A palavra de Deus chama de circuncisão espiritual[256]
a ruptura da relação passional da alma com o corpo.
86. Deus, que é bom e quer nos arrancar a semente
do mal, ou seja, o prazer que despoja o intelecto do amor divino, permite ao
diabo nos infligir penas e castigos: da
mesma maneira, ele elimina pelas penas da alma o veneno do prazer passado. Ele
deseja colocar em nós a aversão e o desgosto perfeito pelas coisas presentes,
que apenas incham os sentidos e não tem por ganho senão o castigo, e quer fazer
do poder que tem o diabo de castigar e odiar o homem a causa acidental que
conduz à virtude aos que dela escaparam voluntariamente.
87.
É conveniente e justo que sejam castigados pelo diabo aqueles que receberam com
prazer seus maus conselhos, que os levaram aos pecados voluntários. Com efeito,
por meio das paixões voluntárias o diabo semeia o prazer, e por meio das
paixões indesejadas ele conduz à dor.
88.
É por isso que o intelecto voltado para a contemplação e o conhecimento
precisa, para ser castigado, ser entregue muitas vezes ao diabo que lhe inflija
justamente penas e infelicidades, a fim de que ele aprenda a amar a sabedoria,
sofrendo para aguentar e suportar as penas, mais do que se agarrar vã e
orgulhosamente ao que não existe.
89.
Aquele que sofre por haver transgredido um mandamento de Deus, se reconhecer a
palavra de providência divina que o cura, receberá com alegria e gratidão a
infelicidade e corrigirá a falta por cuja causa foi castigado. Mas quem
permanece insensível a este tratamento será com justeza afastado da graça que
lhe havia sido dada e, deixado livre para passar ao ato, será entregue à
confusão das paixões cujo desejo acalentava do fundo de si mesmo.
90.
Qualquer um que, tomando consciência das faltas que cometeu, suporte
voluntariamente e com a conveniente gratidão enfrentar os penosos assaltos das
tentações involuntárias, não será banido do estado virtuoso e da graça, por ter
se colocado sob o jugo do rei da
Babilônia[257]
e, como quem quita uma dívida, aceitado os tormentos que lhe são infligidos.
Mas ao permanecer em tais aflições, ele cede ao rei da Babilônia as penas violentas
que a natureza ressente e o consentimento de seu pensamento a estas penas, pois
ele as deve por causa de suas faltas passadas, e ele oferece a Deus, como um
culto verdadeiro, vale dizer, por uma humilde disposição, o endireitamento das
negligências.
91.
Aquele que não aceita com gratidão a infelicidade que, por meio das tentações
involuntárias e com a permissão de Deus, lhe são infligidas para que ele se
corrija, que não se distancia, arrependendo-se, da presunção de ser justo, que
recusa aquilo que Deus prescreve com seus julgamentos justos e que não aceita
se colocar por si próprio sob o jugo do rei da Babilônia, segundo a ordem
divina, este homem será atirado ao cativeiro, às cadeias, às correntes, à
chibata, ao glaivo e será expulso de sua terra. Pois são estas coisas, e outras
mais, que sofre quem é expulso do estado de virtude e de conhecimento, como se
fosse de sua própria terra, por não querer, por orgulho e vã presunção,
quitando o julgamento que sofreu por suas faltas, aceitar as aflições, os
constrangimentos e as angústias, segundo o Apóstolo divino[258].
Pois o grande Apóstolo sabia que a humildade fundada nas penas que afligem o
corpo guarda os tesouros divinos da alma. É por isso que ele perseverava na
paciência perante si mesmo e perante aqueles para quem ele era modelo de
virtude e de fé, a fim de que, mesmo que eles fossem afligidos por serem
culpados, como o Coríntio castigado[259],
eles tivessem para se consolar e para imitar na paciência Aquele que sofreu sem
ser culpado.
92.
Quem não se detém nas formas das coisas visíveis para satisfazer os sentidos,
mas que busca em seu intelecto suas razões como imagens das coisas
inteligíveis, ou que contempla as razões das criaturas sensíveis, aprende que
nada é impuro dentre as coisas visíveis. Pois tudo foi criado bom[260]
por natureza.
93.
Quem não se deixa transformar pelo movimento das coisas sensíveis segue a
prática inalterada das virtudes. Quem não deixa moldar seu intelecto pelas suas
formas recebe em retorno a verdadeira glória dos seres. E aquele que, pelo
pensamento, ultrapassou até a essência dos seres, como um excelente teólogo,
deixa-se dirigir pelo “desconhecimento”, depois desta, até a unidade.
94.
Todo intelecto contemplativo que, portanto a espada do Espírito, ou seja, a
palavra de Deus[261],
faz perecer em si mesmo o movimento da criação aparente, conduz bem a virtude.
Afastando de si a imaginação das formas sensíveis, encontra a verdade que está
nas razões dos seres, esta verdade que suscita a contemplação natural. E,
elevando-se acima da essência dos seres, ele recebe a iluminação da Unidade
divina que não tem começo, esta iluminação que é suscitada pelo mistério da
verdadeira teologia.
95.
Deus aparece a cada um conforme o pensamento que cada qual tem de Deus no fundo
de si mesmo. Aos que, em sua impulsão, ultrapassaram a mistura material e
possuem as potências da alma que têm todas o mesmo sentido e o mesmo movimento
perpétuo ao redor de Deus, ele aparece como Unidade e Trindade, a fim de
mostrar sua própria existência e ensinar misticamente o modo desta existência.
Aos outros, cujo impulso não vai além de girar ao redor da mistura material e
cujas potências da alma permanecem sem laço entre si, ele aparece não como é,
mas como eles são, mostrando com isto que eles estão presos pelas duas mãos da
díade material, segundo a qual o mundo corpóreo foi criado de matéria e forma.
96.
O Apóstolo divino diz que as diversas energias do Espírito Santo são carismas
diferentes manifestamente submetidos à ação de único e mesmo Espírito[262].
Portanto, se a manifestação do Espírito é concedida[263]
na medida da fé de cada um na participação ao carisma, isto quer dizer que cada
fiel, proporcionalmente à fé e à disposição de sua alma, recebe na sua medida a
energia do Espírito, que lhe concede a faculdade, de acordo com a própria
energia, de cumprir tal ou tal mandamento.
97.
Assim como um recebe uma palavra de sabedoria, outro uma palavra de
conhecimento, outro uma palavra de fé, outro algum dos demais carismas do
Espírito enumerados pelo grande Apóstolo[264],
também cada um recebe pelo Espírito, proporcionalmente à fé, o carisma do amor
perfeito e direto de Deus, para além de toda matéria; outro, pelo mesmo
Espírito, recebe o carisma do amor perfeito pelo próximo, e outro ainda,
segundo o mesmo Espírito, recebe algum outro carisma, cada qual, como eu disse,
pondo a trabalhar em si seu próprio carisma. Pois ele disse que toda faculdade
de cumprir um mandamento é um carisma de Deus.
98.
O batismo do Senhor é a morte total de nossa vontade, sua morte para o mundo
sensível. E a taça[265]
é a renúncia a esta vida, nossa vida presente, pela verdade.
99.
O batismo do Senhor é a imagem das penas voluntárias que suportamos
deliberadamente pela virtude. É por meio delas que, rejeitando as manchas da
consciência, aceitamos a morte voluntária do desejo das coisas visíveis. Quanto
à taça, ela é a imagem das tentações involuntárias que se levantam contra nós
por acidente quando resolvemos combater pela verdade. É por intermédio destas
tentações que, escolhendo o desejo divino da própria natureza, ultrapassamos
voluntariamente a morte acidental da natureza.
100.
O batismo difere da taça no seguinte: o batismo faz morrer, pela virtude, o
desejo que nos leva aos prazeres da vida; a taça dá aos homens piedosos a
capacidade de preferir a verdade à própria natureza.
QUARTA CENTÚRIA
1.
Cristo tomou a taça antes do batismo[266],
pois a virtude está para a verdade, e não a verdade para a virtude. É por isso
que quem pratica a virtude pela verdade não é ferido pelas flechas da
vanglória. Mas quem se aplica à verdade por causa da virtude tem em casa a
presunção da vanglória.
2.
Ele disse que o conhecimento divino é a verdade e que os combates que enfrentam
os que buscam a verdade são as virtudes. Portanto, aquele que, por causa do
conhecimento, suporta as penas da virtude não cai na vanglória: ele sabe que as
penas não podem, por natureza, captar a verdade, pois, por natureza, o que é
primeiro não pode estar compreendido no que é segundo. Mas quem se aplica ao
conhecimento a fim de poder conduzir os combates pela virtude, de alguma
maneira acaba caindo na vanglória porque imagina receber a coroa antes do suor:
ele não sabe que as penas existem para as coroas, e não as coroas para as
penas. Pois toda via cessa, por natureza, de ser empreendida, a partir do
momento em que aquilo pelo que ela existe está cumprido, ou parece estar
cumprido.
3.
Aquele que se aplica apenas ao conhecimento – ou seja, à razão pura – ou apenas
à imagem da virtude – ou seja, a moral pura – é como um Judeu: inflado de
orgulho pelas imagens da verdade.
4.
Quem não vê por meio dos sentidos todo o culto aparente da Lei, mas que, por
aproximações do intelecto, estudou profundamente cada um dos símbolos visíveis,
e que aprendeu a razão divina oculta em cada um, encontra a Deus na Lei
procurando bem, tateando, pelo poder do intelecto, na matéria dos preceitos
jurídicos, como num pântano, se topar, escondida no meio da carne da Lei, com a
pérola[267],
a razão que escapa totalmente aos sentidos.
5.
Quem não limita apenas aos sentidos a natureza das coisas visíveis, mas
sabiamente procura conhecer pelo intelecto a razão que existe em cada criatura,
encontra a Deus aprendendo, na magnificência criada dos seres, a causa destes
seres.
6.
Portanto, uma vez que o discernimento é característico do homem que busca
tateando, quem se aproxima com conhecimento de causa dos símbolos da Lei e que
contempla com ciência a natureza visível dos seres, quem discerne a Escritura,
a criação e a si próprio (a Escritura, distinguindo a letra do espírito; a criação,
distinguindo a razão da aparência; a si mesmo, distinguindo o intelecto dos
sentidos), quem captou o espírito da Escritura, a razão da criação e o
intelecto de si próprio, que os uniu indissoluvelmente entre si, este encontrou
a Deus. Pois, como se deve e tanto quanto é possível, ele conheceu a Deus que
está em seu intelecto pelo Verbo e o Espírito, por estar liberto de tudo o que
distrai e arrasta em inumeráveis opiniões, vale dizer, liberto da letra, da
aparência e dos sentidos, nos quais reside a pluralidade diversa e contrária à
unidade. Mas se alguém mistura tudo, enlaçando-os mutuamente, a letra da Lei, a
aparência das coisas visíveis e seus próprios sentidos, este é cego, pois tem a
vista curta[268],
e é doente por ignorar a causa dos seres.
7.
O divino e grande Apóstolo, ao definir a fé, disse: “A fé é o fundamento
daquilo que se espera, a prova das coisas que não vemos[269]”.
Mas se alguém a definisse como sendo um bem interior ou como o verdadeiro
conhecimento no sentido dos bens ocultos, não estaria longe da verdade.
8.
A fé é a potência que permute alcançar a união, ou é a posse efetiva desta
união sobrenatural, direta, perfeita, entre aquele que crê e Deus, no qual ele
crê.
9.
Assim, uma vez que o homem é feito de alma e corpo, ele oscila entre duas leis,
ou seja, a lei da carne e a lei do Espírito[270].
A lei da carne tem sua energia nos sentidos, e a lei do Espírito tem sua
energia no intelecto. A lei da carne, colocada em movimento pelos sentidos,
religa naturalmente à matéria; e a lei do Espírito, colocada em movimento pelo
intelecto, une naturalmente a Deus. Aquele que não se dividiu em seu coração,
vale dizer, que não dividiu seu intelecto, que não cortou ao meio a união
direta que, pela fé, o religava a Deus, com todo direito ordenará à montanha
que se mova, e ela se moverá. Pois ele é impassível[271],
ou antes, pela fé, ele se tornou daí em diante Deus por esta união. Ele assim
demonstra e mostra o significado do cuidado com a lei da carne, esta lei
verdadeiramente pesada e difícil de deslocar, e até mesmo imóvel e inamovível
por uma potência natural.
10.
O poder da irracionalidade está de tal modo enraizado pelos sentidos na
natureza dos homens, que a maior parte deles pensa assim: os homens não possuem
de seu senão a carne, a potência que carrega os sentidos e permite usufruir da
vida presente.
11.
É dito que tudo é possível àquele que crê e não duvida[272],
ou seja, àquele que, para religar a alma ao corpo nos sentidos, não divide a
união com Deus, que lhe foi dada ao intelecto pela fé. Pois o que v em do mundo
e da carne aliena o intelecto. Mas o que foi elevado à perfeição pelas obras
retas se aparenta a Deus. É isto que deve ser subentendido nas palavras: “Tudo
é possível àquele que crê”.
12.
A fé é um conhecimento indemonstrável. Mas se ela é um conhecimento
indemonstrável, é porque é uma relação mais elevada do que a natureza: por
intermédio dela, no “desconhecimento” e sem que possamos demonstrar o que quer
que seja, unimo-nos a Deus pela união que ultrapassa o entendimento.
13.
O intelecto que recebeu o dom de estar unido a Deus diretamente, coloca em
movimento o poder de compreender e de ser compreendido totalmente. Porém,
quando ele relaxa este poder depois de haver concebido qualquer coisa que vem
depois de Deus, ele se divide, por ter rompido a união que ultrapassa o
entendimento, segundo a qual, na mesma medida em que ele se liga a Deus acima
da natureza e se torna Deus por participação, ele desloca e substitui a lei de
sua própria natureza, com se ela fosse uma montanha imóvel.
14.
Aquele que se engaja no caminho da piedade, instruindo-se com as obras da
justiça, não faz outra coisa do que cumprir a ação com toda obediência e com
fé: ele se alimenta das aparências como se fossem a carne das virtudes, ou
seja, ele se nutre da pedagogia ética. Mas as palavras dos mandamentos, nas
quais se encontra o conhecimento dos perfeitos, ele as remete a Deus pela fé,
incapaz que é até o momento de se estender sobre todo o comprimento da fé [do
conhecimento].
15.
O perfeito que não apenas conheceu e ultrapassou a ordem dos que estão
engajados, mas ainda a ordem dos que progridem, não ignora as palavras que o
levaram a cumprir os mandamentos, mas, depois de tê-los bebido primeiro em
espírito, ele come por intermédio das obras toda a carne das virtudes, elevando
na direção do conhecimento pelo intelecto aquilo que foi percebido pelos
sentidos.
16.
O Senhor que disse: “Busquem primeiro o Reino de Deus e sua justiça[273]”,
ou seja, antes de tudo o conhecimento da verdade, e a partir daí o cumprimento
dos deveres, mostrou claramente que os crentes devem procurar apenas o
conhecimento divino e a virtude que, pelas obras, ornam este conhecimento.
17.
Porque são muitas as coisas que buscam os crentes em vista do conhecimento de
Deus e da virtude – a libertação das paixões, a paciência nas tentações, as
razões das virtudes, as maneiras de agir, o abandono da tendência da alma pela
carne, o banimento de toda relação dos sentidos com as coisas sensíveis, a
anacorese total do intelecto para longe de todas as criaturas – e porque, numa
palavra, existem milhares de coisas que nos permitem nos abster do mal e da
ignorância e alcançar com sucesso o conhecimento e a virtude , é com todo
direito que o Senhor disse: “Tudo o que vocês pedirem com fé, receberão[274]”,
afirmando que os homens piedosos devem buscar e pedir com ciência e fé tudo o
que tende simplesmente ao conhecimento de Deus e à virtude, e somente isto.
Pois são estas as coisas que importam, e o Senhor as concede de alguma forma
àqueles que as pedem.
18.
Portanto, aquele que, apenas pela fé, ou seja, pela união direta com Deus,
procura todas as coisas que levam à união, as receberá de um modo ou de outro.
Mas quem as procura por outros motivos, mesmo que procure outras coisas, ou as
coisas a que nos referimos, este não as receberá. Porque ele não crê. Uma vez
que não existe fé, e com sua própria glória que ele se ocupa nas coisas
divinas.
19.
Aquele que, por sua resolução, é puro da corrupção do pecado, corrompe a
corrupção daquilo que se corrompe naturalmente. Pois a incorruptibilidade da
intenção mantém naturalmente incorruptível a corrupção da natureza, não
permitindo que, pela graça do Espírito que está nela e conforme a providência,
que ela seja alterada pelas qualidades contrárias.
20.
Uma vez que não existe uma única e mesma razão da natureza e da graça, de nada
serve se perguntar como alguns santos tanto vencem as paixões como sucumbem às
paixões. Sabemos, com efeito, que o milagre é da ordem da graça, e a paixão da
ordem da natureza.
21.
Aquele que, pela imitação, mantém a memória da vida que levavam os santos, se
separa da morte que as paixões trazem consigo e recebe a vida das virtudes.
22.
Conforme seu desejo, ele que ordenou a vida de cada um antes dos séculos, Deus
encaminha cada qual, seja ele justo ou injusto ao fim da vida, para o fim que
lhe cabe.
23.
A escura tempestade que assaltou o bem-aventurado Paulo significa para mim o
fardo das tentações involuntárias. A ilha simboliza o estado firme e
inquebrantável da esperança divina. O fogo significa o estado de conhecimento.
A braçada de lenha seca significa a natureza das coisas visíveis, que Paulo
ajuntou com a mão, ou seja, a faculdade que o intelecto tem de tocar pela
contemplação, e, com os pensamentos engendrados por tal potência, nutrir o
estado de conhecimento, que alivia a tristeza infligida à reflexão pela
tempestade das provações. A víbora significa o poder do mal, mortal,
secretamente escondido na natureza das coisas sensíveis, que mordeu a mão (ou
seja, a energia da contemplação do intelecto, que lhe permite tocar), mas não
fez mal ao intelecto clarividente. Pois este, com a luz do conhecimento, como
um fogo, destruiu esta potência mortal que, vinda da contemplação do sensível,
havia colado ao movimento ativo do intelecto[275].
24.
O Apóstolo era um odor que levava da vida à vida, pois, por seu próprio
exemplo, ele preparava os fiéis para se dirigirem na ação para o perfume das
virtudes, ou porque, com sua predicação, ele fazia passar da vida dos sentidos
para a vida em espírito aqueles a quem a palavra da graça persuadia. Mas ele
era um odor de morte que levava à morte para aqueles que iam da morte da
ignorância à morte da incredulidade: ele os fazia sentir a condenação que os
esperava. Ou melhor: ele era um odor que levava da vida à vida para aqueles que
se elevavam à contemplação a partir da ação. Mas ele era um odor de morte que
levava à morte para os que, depois de terem levado à morte seus membros que
estão sobre a terra[276]
por cessarem de combater o pecado, se dirigiam para a morte consentida que lhes
traziam os pensamentos e as imaginações passionais.
25.
Existem três potências da alma: a razão, o ardor e o desejo. Pela razão,
buscamos; pelo desejo, tendemos para o bem que procuramos; e pelo ardor,
lutamos por este bem. Assim, é por meio destas três virtudes que aqueles que
amam a Deus perseveram nas palavras divinas sobre a virtude e o conhecimento.
Buscando por meio de uma, desejando pela outra, lutando pela terceira, eles
recebem um alimento incorruptível que cumula o intelecto pelo conhecimento das
criaturas.
26.
O Verbo de Deus tornado homem voltou a encher de conhecimento a natureza do
conhecimento que havia sido dado, esta natureza que havia morrido. Depois de
haver colocado nela a força para que não mais se deixasse desviar, ele a
deificou não por natureza, mas por qualidade. Sem cessar ele a marcou com o
sinal de seu próprio Espírito, transformando-a para tonificá-la, como a água,
pela qualidade do vinho. Pois para isto foi que ele se tornou verdadeiramente
homem: para fazer de nós deuses, pela graça.
27.
Deus, que criou a natureza dos homens quando por sua vontade os trouxe à vida,
acrescentou-lhes o poder de cumprir os deveres. Digo o poder, que é o movimento
essencialmente semeado pela natureza para que as virtudes sejam postas em movimento,
e resolutamente manifestado na prática para que aquele que a possui possa agir.
28.
Temos a lei da natureza como critério natural, que nos ensina que antes de
alcançar a sabedoria que está em tudo, é preciso que a mistagogia do Criador do
universo nos dê o impulso.
29.
O poço de Jacó é a Escritura[277].
A água é o conhecimento que está contido na Escritura. A profundidade é o lugar
dos enigmas da Escritura, difíceis de sondar. O balde é a aprendizagem da
palavra divina pelas letras, aprendizado que ignorava o Senhor, a ele que é a
própria palavra e que não dá aos que creem um conhecimento vindo da
aprendizagem e do estudo, mas concede aos que são dignos uma sabedoria
inesgotável que vem da graça espiritual e que não cessa jamais. Pois o balde –
ou seja, o aprendizado – que não recebe senão uma parte ínfima do conhecimento,
não permite conter o todo, de modo algum. Mas o conhecimento pela graça possui,
sem estudo, toda a sabedoria acessível aos homens, que cresce de muitas
maneiras em função das necessidades.
30.
A árvore da vida e a árvore que não o é[278]
têm uma grande e inefável diferença, que é o fato de que uma é chamada de
árvore da vida e a outra é chamada, não de árvore da vida, mas árvore do
conhecimento do bem e do mal. Pois a árvore da vida suscita a vida, de um modo
ou de outro. E é evidente que a árvore que não é da vida suscita a morte. A
árvore que não suscita a vida, porque não foi chamada de árvore da vida, pode,
com efeito, claramente, suscitar a morte. Pois nada mais divide a vida opondo-se
a ela.
31.
A árvore da vida também tem, enquanto sabedoria, uma grande diferença em
relação à árvore do conhecimento do bem e do mal, que não é sabedoria nem é
chamado assim. Pois a característica da sabedoria é a inteligência e a razão. E
a característica do estado que se opõe à sabedoria é a irracionalidade e os
sentidos.
32.
Uma vez que o homem nasce composto de uma alma dotada de inteligência e de um
corpo dotado de sentidos, a inteligência da alma, na qual se encontra o uso da
sabedoria, é deliberadamente a árvore da vida. E os sentidos do corpo são a
árvore do conhecimento do bem e do mal, nos quais se encontra evidentemente o
movimento da irracionalidade, que o homem havia recebido a ordem divina de não
tocar para experimentar; mas ele não obedeceu a esta ordem.
33.
As duas árvores, segundo a Escritura, são marcadas pelos sinais do intelecto e
dos sentidos. Assim, o intelecto tem o poder de discernir o que é inteligível
do que é sensível, as coisas que passam das coisas eternas. Acima de tudo, por se
constituir no poder de discernimento da alma, ele a persuade a se ligar às
coisas eternas e a se elevar acima das outras.
Quanto aos sentidos, eles constituem o poder de discernir o prazer e a
dor do corpo. Acima de tudo, por serem uma potência dos corpos vivos e
sensíveis, eles os persuadem a abraçar o prazer e a rejeitar a dor.
34.
Ao se dedicar apenas ao discernimento do corpo que lhe permite sentir o prazer
e a dor, transgredindo o mandamento divino, o homem come da árvore do
conhecimento do bem e do mal, ou seja, da irracionalidade dos sentidos, pois
ele não possui senão o conhecimento típico da natureza dos corpos, pelo qual
ele abraça o prazer como sendo o bem e rejeita a dor como sendo o mal. Mas se
ele se devotar completamente apenas ao discernimento do intelecto que distingue
o que é passageiro do que é eterno, observando o mandamento divino, ele come da
árvore da vida[279],
vale dizer, da sabedoria que se forma no intelecto, por ter apenas o
discernimento próprio à natureza da alma, por meio do qual ele abraça como
sendo o bem a glória da que é eterno e rejeita como sendo o mal a corrupção
daquilo que é passageiro.
35.
O estado impassível que conduz ao Espírito é o bem para o intelecto. Mas a
relação passional que liga aos sentidos é o mal. O movimento passional do
prazer que transporta para o corpo é o bem para os sentidos. Mas o estado e que
priva os sentidos de prazer é para eles o mal.
36.
Aquele que convenceu sua consciência de que aquilo que ele faz de mal é o bem
por natureza, este, apoiando-se na vida ativa, colhe de modo condenável da
árvore da vida, considerando que o pior é imortal por natureza. É por isso que,
ao colocar naturalmente na consciência do homem a aversão ao mal Deus a separou
da vida, para que, ao se tornar voluntariamente mal e fazer o mal, este não
pudesse persuadir sua consciência de que o mal é bom por natureza.
37.
A vinha fornece o vinho; o vinho traz a embriaguez; a embriaguez, o êxtase. A
palavra bem-vinda – ou seja, a vinha – cultivada pelas virtudes, engendra assim
o conhecimento. E o conhecimento engendra o bem êxtase, que permite ao
intelecto deixar sua relação com os sentidos.
38.
Em sua maledicência, o maligno costume juntar aos seus pensamentos as
aparências e as formas das coisas sensíveis. Pois é por meio dos pensamentos
que são criadas naturalmente as paixões em torno das manifestações do visível,
quando se detém a energia da razão que, em nós, atravessa os sentidos
mediadores para alcançar o intelecto. É então que o maligno consegue força para
devastar a alma e arrastá-la na confusão das paixões.
39.
A palavra de Deus é lâmpada[280]
da mesma maneira como esta ilumina: ela ilumina aquilo que os fiéis pensam
segundo a natureza, ela queima o que pensam contra a natureza, ela dissipa as
trevas da vida dos sentidos naqueles que, pelos mandamentos, se apressam na
direção da vida esperada, e castiga pelo fogo do juízo os que abraçam voluntariamente, por amor à
carne, esta noite tenebrosa da existência.
40.
Diz-se que quem não começou por retornar a si mesmo rejeitando as paixões
contra a natureza, jamais retornará à sua própria causa, ou seja, a Deus,
adquirindo com a graça os bens mais elevados do que a natureza. Pois é preciso
que aquele que une verdadeiramente a Deus se separe em pensamento das
criaturas.
41.
A obra da lei escrita consiste em escapar às paixões. A obra da lei natural
consiste em honrar de maneira igual a todos os homens. A perfeição da lei
espiritual consiste em se tornar semelhante a Deus, na medida em que isto é
possível ao homem.
42.
A potência do intelecto é, por natureza, capaz de receber o conhecimento dos
corpos e dos incorpóreos. Mas é apenas pela graça que ele recebe as
manifestações da Santíssima Trindade, pois então ele apenas crê, mas não se
torna, por essência, presunçoso em nada, como é o intelecto demoníaco. Quem não
participa do conhecimento ignora totalmente o modo da virtude que liberta do
mal.
43.
Quem ama a mentira entrega a si mesmo à perdição, a fim de conhecer, através do
sofrimento, aquilo que ele cercava de cuidados, e a fim de aprender, instruído
pela experiência, como, contra sua vontade, ele abraçava a morte ao invés da
vida.
44.
Apenas Deus tem conhecimento do bem, pois ele é por essência a natureza e o
conhecimento do bem. E ele ignora o mal, por ser incapaz de perpetrá-lo. Pois
ele possui por essência a conhecimento daquilo que ele tem o poder de fazer por
natureza.
45.
O peito, no Levítico[281],
representa a mais forte e elevada contemplação. A espádua significa a ação[282].
Ou seja, o estado e a atividade do intelecto, ou o conhecimento e a virtude,
sendo que o conhecimento conduz diretamente o intelecto ao próprio Deus, e a
virtude afasta-o do conhecimento dos seres pela ação: aquilo que a palavra
divina consagrou aos sacerdotes, únicos a possuírem a Deus por herança para sempre
e a nada possuírem de terrestre.
46.
Uma vez que aqueles que são totalmente conduzidos em espírito pelo conhecimento
e a virtude propiciam aos corações dos demais receber, pela palavra do
conhecimento, a piedade e a fé, apagando seu estado e sua potência ativa, eles
transportam as obras da natureza corruptível para a energia dos bens
incorruptíveis mais elevados do que a natureza. Com direito eles oferecem em
sacrifício a Deus o peito da vítima imolada sobre o altar, ou seja, oferecem o
coração; e oferecem a espádua, ou seja, a ação. A palavra de Deus ordenou que
estas duas coisas sejam consagradas aos sacerdotes.
47.
Toda a justiça daqui de baixo, compara com a do século futuro, tem o sentido de
um espelho, de uma imagem dos modelos que são as coisas primitivas, pois ela
não possui estas coisas que existem por si mesmas. E todo conhecimento das
coisas supremas daqui de baixo, comparado ao conhecimento do século futuro, é
um enigma, uma aparência da verdade, mas não possui, como existindo por si só, esta
verdade que deverá se revelar.
48.
Uma vez que as coisas divinas estão contidas na virtude e no conhecimento, o
espelho mostra os modelos de virtude, e o enigma mostra os modelos de
conhecimento.
49.
Aquele que, pela ação, agradou a Deus, transporta pela contemplação o intelecto
ao país dos inteligíveis, a fim de não ver por uma imaginação dos sentidos a
morte que reside nas paixões. Pois nada do que tenta agarrá-lo consegue mais
encontrá-lo.
50.
Quem, pelo olho puro da fé, viu a beleza dos bens do século futuro, obedece de
todo coração a ordem de deixar a terra, os parentes, a casa paterna[283]:
ele abandona a carne, os sentidos, as coisas sensíveis, a relação e a paixão.
Ele é mais elevado do que a natureza no momento da tentação e dos combates,
pois ele preferiu a causa à natureza, como o grande Abraão preferiu Deus a
Isaac[284].
51.
Aquele que não se aplica em buscar a virtude ou em estudar as palavras divinas
pela glória ou a cupidez[285],
por interesse, para agradar aos homens ou por ostentação, mas que tudo faz, diz
e pensa por Deus, caminha no conhecimento sobre a estrada da verdade. Pois a
palavra de Deus, por natureza, não gosta de ser engajada em caminhos que não os
direitos, ainda que em alguns encontre a via preparada.
52.
Uma pessoa jejua e se abstém do gênero de vida que inflama as paixões. Por
outro lado, faz de tudo para contribuir a livrar-se do mal. Este homem preparou
a via de que falamos. Mas se ele se aplica a esta ascese por vanglória, por
cupidez, por interesse ou por qualquer outra causa que não a de agradar a Deus,
ele não endireita os caminhos do Senhor. Ele se deu ao trabalho de preparar a
via, mas não conseguiu que Deus marche sobre seus caminhos.
53.
Todo abismo será preenchido[286],
mas não simplesmente todos os abismos, nem os abismos de todos, pois não serão
preenchidos os abismos daqueles que não prepararam a via do Senhor nem
endireitaram seus caminhos. Assim, enquanto o abismo – ou seja, a carne dos que
prepararam como um cavalo a via do Senhor e endireitaram seus caminhos[287]
– for cumulado de conhecimento e de virtude pela chegada do Verbo de Deus que
marcha neles através dos mandamentos, todos os espíritos do falso conhecimento
e da malícia serão rebaixados, pois o Verbo os pisará e submeterá. Ele
derrubará o poder mau sublevado contra a natureza humana, e os abaterá como à
grandeza e a altura das montanhas das
colinas, e os conduzirá para encher os abismos. Pois a rejeição das paixões
contra a natureza e a ligação às virtudes segundo a natureza cumulam a alma,
cavada como o abismo, e abate o poder dos maus espíritos, sublevado como a
montanha.
54.
Os caminhos rochosos, ou seja, as vertentes das provações involuntárias, serão
transformadas em caminhos pavimentados[288],
quando o intelecto, alegre, aceitar as enfermidades, aflições e necessidades[289],
desligando-se de todo o poder das paixões voluntárias pelas penas que ele não
desejou. Pois o profeta chamou de rochosos os eventos ligados às provas
involuntárias, mas que se transformam em caminhos pavimentados pela paciência
da ação da graça.
55.
Quem busca a vida verdadeira, sabendo que toda pena, voluntária ou
involuntária, torna-se a morte do prazer, que por sua vez é a mãe da morte,
acolherá com alegria, regozijando-se, todas as penas rochosas das provações
involuntárias. Pois, pela paciência, ele transformará as aflições em caminhos
fáceis, caminhos pavimentados que, sem desvios, o levarão à recompensa que
somos chamados a receber do alto[290]:
com toda piedade, ele percorrerá estes caminhos da via divina. Pois o prazer é
a mãe da morte. Mas a pena – tanto a desejada como a que não foi escolhida – é
a morte do prazer.
56.
Qualquer um que, pela temperança, tenha conseguido reabsorver as numerosas
circunvoluções e dobras do prazer mesclado de muitas maneiras às coisas
sensíveis, transformou por isso mesmo os caminhos tortuosos em caminhos
direitos[291].
E qualquer um que tenha pacientemente percorrido as encostas rochosas das
penas, nas quais é difícil caminhar, transformou os caminhos rochosos em
caminhos pavimentados. É por isso que, como uma recompensa da virtude e dos
esforços que fez por ela, aquele que lutou bem e regularmente[292],
que venceu o prazer pelo desejo da virtude, que suscitou a dor por amor ao
conhecimento e que, por uma ou outra destas ações, a conduziu nobremente nos
combates divinos, verá, como está escrito, a salvação que vem de Deus[293].
57.
Quem ama a virtude extingue em si mesmo a fornalha dos prazeres. E quem formou
o intelecto pelo conhecimento da verdade, não mais detém, graças às penas
involuntárias, o movimento contínuo que conduz a Deus em seu impulso.
58.
Aquele que, pela temperança, tornou retos os caminhos tortuosos das paixões
voluntárias, ou seja, os movimentos do prazer, e que, pela paciência aplainou
as passagens rochosas das provações involuntárias, ou seja, os modos da dor, e
as transformou em caminhos pavimentados, com todo direito verá a salvação que
vem de Deus, pois seu coração é puro. Por meio das virtudes e das contemplações
suscitadas pela piedade, ele vê a Deus em seu coração ao final dos combates,
segundo o que foi dito: “Bem-aventurados os corações puros, pois eles verão a
Deus[294]”.
Em troca das penas da virtude, ele receberá a graça da impassibilidade. Nada,
mais do que esta graça, revela Deus aos que a possuem.
59.
A Escritura denomina poços os corações que recebem as graças celestes do
conhecimento. Estes corações, cavados pela firme palavra dos mandamentos,
rejeita como a terra retirada o amor aos prazeres que leva às paixões e a
relação que a natureza tem para com as coisas sensíveis. Eles são cheios de conhecimento
no espírito, que lhes vem do alto, que liberta das paixões, que cria a vida e
alimenta as virtudes.
60.
O Senhor cava poços no deserto, ou seja, no mundo e na natureza dos homens: ele
retira a terra dos corações dos que são dignos disto e os alivia do peso e dos
cuidados com a matéria, e faz deles um amplo espaço capaz de receber as chuvas
divinas da sabedoria e do conhecimento, para que eles deem de beber aos
rebanhos de Cristo que necessitam de ensinamento ético, vale dizer, dos que têm
necessidade disto devido à infantilidade de suas almas.
61.
A Escritura chama a alta contemplação da natureza em espírito de “país da
montanha[295]”,
cultivado pelos que vêm das imagens dos sentidos e vão em direção às razões do
intelecto por meio das virtudes.
62.
Por ter viva nela a lembrança de Deus, o intelecto busca o Senhor pela
contemplação, não simplesmente, mas com temor do Senhor, ou seja, pela prática
dos mandamentos. Pois quem busca o Senhor pela contemplação sem a ação não o
encontra, porque não procurou o Senhor com temor a ele, e o Senhor não abençoou
seu caminho[296].
Pois o Senhor abre o caminho a todo homem que age com conhecimento, ensinando
os modos dos mandamentos e revelando as verdadeiras razões dos seres.
63.
O mais alto louvor da Divindade é uma torre que foi fortificada na alma pela
energia dos mandamentos. É o que diz a Escritura: Osias construiu torres em
Jerusalém[297].
Pois quem seguiu o bom caminho em sua busca do Senhor pela contemplação, com o
temor que tem em si, ou seja, pela prática dos mandamentos, constrói torres em Jerusalém,
elevando louvores à Divindade, no estado simples e apaziguado da alma.
64.
As razões daquilo que é parcial, aproximando-se do que é universal, reúnem o
que havia sido separado. Pois o universal abarca na unidade as razões do
particular, às quais o parcial se reporta naturalmente, mas do intelecto aos
sentidos, do céu à terra, do sensível ao inteligível, da natureza à razão,
existe em espírito uma palavra que mantém todas as coisas e lhes permite
manterem-se unidas umas às outras.
65.
Quem conseguiu separar os sentidos das paixões, e que afastou a alma da relação
com os sentidos, conseguiu com isto obstruir a entrada que o diabo havia aberto
no intelecto por meio dos sentidos. É por isso que no deserto, vale dizer, na
contemplação natural, este homem construiu como torres seguras seus pensamentos
sobre os seres, todos de piedade. Quem se refugia neles não teme os demônios
que pilham no deserto, vale dizer, na natureza das coisas visíveis que, pelos
sentidos, desorientam o intelecto e o arrastam para as trevas da ignorância.
Este não teme os demônios que, através das aparências, fazem perderem-se os
homens.
66.
Todo intelecto capaz de contemplação é um verdadeiro cultivador, protegendo as
sementes divinas dos bens livres de toda erva daninha, com seu próprio esforço
e atenção, até que surja nele, para preservá-lo, a lembrança de Deus. Pois está
dito: “Ele buscou o Senhor no tempo de Zacarias que vivia no temor do Senhor[298]”.
A razão sabe que Zacarias, traduzido para o grego, significa a lembrança de
Deus. É por isso que sempre oramos ao Senhor, para que guardemos em nós sua
lembrança salutar, e que a obra cumprida graças à lembrança não altere a
alma que atingiu a altura e ousou, como
Osias, enfrentar o sobrenatural.
67.
A infalível contemplação dos seres precisa de uma alma desembaraçada das
paixões. Ela é chamada de Jerusalém, por causa da virtude bem ordenada e do
conhecimento imaterial. E ela é suscitada, não apenas pela abstenção das
paixões, como também pela abstenção das imagens sensíveis.
68.
Sem a fé, a esperança e o amor[299],
nenhum mal pode ser totalmente abolido, nenhum bem inteiramente adquirido. Com
efeito, a fé persuade o intelecto combatido a recorrer a Deus: ela se torna
para ele um consolo, preparando-lhe mil armas espirituais para encorajá-lo.
Quanto à esperança, ela é para o intelecto a garantia verídica do socorro
divino: ele recebe a promessa de que as potências contrárias serão destruídas.
Enfim, o amor prepara o intelecto, mesmo quando este é combatido, a não se
deixar capturar facilmente, ou antes, a permanecer imóvel na afeição divina,
amarrando ao desejo de Deus toda a potência de sua natureza.
69.
A fé alivia o intelecto combatido fortificando-o com a esperança no socorro. A
esperança, colocando diante dos olhos o socorro no qual se acreditou, repele a
agressão dos adversários. E o amor permite ao intelecto que ama a Deus deter o
ataque dos inimigos, totalmente eliminado pelo impulso na direção de Deus.
70.
O primogênito, o filho único da parte verdadeiramente divina, ou seja, o
verdadeiro conhecimento, é a palavra que, na fé, testemunha a ressurreição
divina em nós, ligada à economia necessária do julgamento, vale dizer, do
discernimento, pois este distingue as sublevações da provas voluntárias. A fé
bem ordenada pelas obras dos mandamentos é a primeira ressurreição de Deus
morto pela falta cometida por nossa ignorância.
71.
O retorno a Deus anuncia claramente por si só o inteiro cumprimento da
esperança divina. Sem este cumprimento, não existe naturalmente nenhuma inclinação para Deus, por ser próprio
da esperança colocar diante dos olhos as coisas do porvir como coisas presentes
e jamais deixar de chamar por Deus, que sustenta aqueles que são combatidos pelas
potências contrárias: é por ele e por causa dele que os santos sustentam seu
combate. Pois sem a espera de alguém, seja ela fácil ou difícil, ninguém pode
naturalmente retornar ao bem.
72.
Nada, tanto quanto o amor reúne verdadeiramente os que estão dispersos e cria
neles a resolução única mantida por um sopor comum, esta resolução que suscita
a beleza da igualdade de honra. O amor é assim o fruto da reunião e da união
das forças da alma juntas ao redor das coisas de Deus, ou seja, o fruto da
razão, do ardor e do desejo. Inscrevendo por meio dele na memória a beleza do
esplendor divino, os que já receberam pela graça a igualdade de honra que
conduz a Deus não esquecem nunca mais o impulso do amor divino, que rememora e
imprime na razão que dirige a alma a beleza sem mescla.
73.
Todo intelecto cingido de poder divino, como alguns anciãos e alguns príncipes,
possui o poder da razão, de onde nasce naturalmente a fé gnóstica, segundo a
qual ele aprende a conhecer inefavelmente a Deus sempre presente e vivo pela
esperança nas coisas do porvir como nas coisas presentes. Ele possui igualmente
o poder do desejo fundado pelo amor divino, pelo qual, voluntariamente aplicado
à busca fervorosa da Divindade pura, ele tem em si, livre de todo entrave, o
impulso que o transporta para Aquele a quem procura. Enfim, ele possui o poder
do ardor, que o liga à paz de Deus para além de qualquer separação, nele
concentrando o movimento do desejo em direção ao eros divino. Todo
intelecto tem assim em si as potências que o ajudam a suprimir o vício e
conservar a virtude.
74.
Sem o poder da razão, não existe conhecimento que instrua. E sem o conhecimento
não é possível nascer a fé, de onde vem, como um bom fruto, a esperança, por
meio da qual o fiel vive com as coisas futuras como se fossem presentes. Sem o
poder do desejo não pode nascer a busca fervorosa cujo fim é o amor: pois é
próprio do desejo amar alguém. E sem o poder do ardor, que conforta o desejo e
leva à união que suscita o prazer, não existe naturalmente nenhuma paz, pois a
paz é verdadeiramente a fruição do amor, uma fruição total que nada pode
perturbar.
75.
Quem ainda não se purificou das paixões não deve se dedicar à contemplação
natural pois as imagens das coisas sensíveis podem moldar e levar às paixões o
intelecto que não foi perfeitamente libertado. O intelecto que, através dos
sentidos, segue em sua imaginação as aparências das coisas sensíveis, suscita
em si mesmo as paixões impuras: ele é incapaz de alcançar, por meio da
contemplação, as coisas inteligíveis que lhe são em realidade aparentadas.
76.
Aquele que fecha os sentidos no momento em que se levantam as paixões, que
afasta totalmente a imaginação e a memória das coisas sensíveis e que reduz os
movimentos naturais do intelecto em sua busca das coisas exteriores, graças à
mão divina, deixa confusa a potência má e tirânica que se levantou contra ele.
77.
Quando a razão se torna insensata, quando o ardor é arrastado e o desejo se
torna irracional, e quando a ignorância, a tirania e o deboche se apoderam da
alma, o hábito do vício se torna efetivo, mesclado ao prazer que domina os
sentidos.
78.
O intelecto que, por seu conhecimento, é capaz de escapar dos laços invisíveis,
não deve buscar a contemplação natural, nem fazer outra coisa, quando as
potências do mal o assaltam, senão rezar, dominar o corpo por meio das penas,
suprimir com todo fervor os cuidados terrestres e guardar as muralhas da
cidade, vale dizer, as virtudes que velam sobre a alma, e os caminhos – a
temperança e a paciência – que mantêm as virtudes, para que ao dar de beber à
alma uma libação confusa não se afaste de Deus fingindo lançar-se a ele,
fraudando por seguir os vícios da direita[300]
e levando para o pior, com a aparência de bens, a reflexão que busca o bem.
79.
Quem fechou nobremente os sentidos pela temperança e a paciência refletidas e
englobantes e que, pelas potências da alma, obstruiu a entrada das formas
sensíveis até o intelecto, destrói facilmente as enganações do diabo
devolvendo-o em confusão ao caminho pelo qual ele chegou. Ora, o caminho por
onde vem o diabo são as coisas materiais que parecem confortar o corpo.
80.
O intelecto que, por meio da razão, ligou a si mesmo os sentidos conforme a
natureza, recolhe o verdadeiro conhecimento que extrai da contemplação natural.
81.
As fontes que ficam fora da cidade, ou seja, fora da alma, que Ezequias tapou[301],
são todas as coisas sensíveis. As águas destas fontes são os pensamentos das
coisas sensíveis. O rio que separa em duas partes a cidade é o conhecimento
fornecido pela contemplação natural e que provém dos pensamentos sensíveis,
pois esta é uma fronteira entre o intelecto e os sentidos. Com efeito, o
conhecimento das coisas sensíveis não é inteiramente estranho à potência do
intelecto, nem totalmente abarcado pela atividade dos sentidos. Encontrando-se
como um meio entre a convergência do intelecto para os sentidos e dos sentidos
para o intelecto, realiza em si mesmo sua união recíproca. Na ordem dos
sentidos, ela é moldada especificamente pelas formas das coisas sensíveis. Na
ordem do intelecto, ela transforma em razões as imagens das formas. O
conhecimento das coisas visíveis é chamada de rio que divide em duas a cidade,
por se achar no meio dos extremos, entre o intelecto e os sentidos.
82.
Aquele que permanece longe da contemplação durante as tentações, e que se agarra
à oração, retirando seu intelecto de tudo para se dirigir somente a Deus,
destrói o estado engendrado pela malícia e põe em fuga confuso o diabo que
havia suscitado o dito estado e que, fiando-se nele, chegou à alma com sua arrogância, através de
pensamentos orgulhosos, em sua revolta contra a verdade. Foi isto que conheceu
e provou o grande Davi, que tinha a experiência dos desdobramentos de todos os
combates do intelecto, e que disse: “Quando o ímpio estava diante de mim, eu
permaneci surdo e humilhado, e me calei, por causa dos seus bens[302]”.
É isto que o divino Jeremias tinha em comum com ele, ao ordenar o povo que não
saísse da cidade, pois as espadas dos inimigos cercavam-na por toda parte[303].
83.
Da mesma forma o bem-aventurado Abel, se tivesse se guardado e não tivesse
saído ao encontro de Caim no campo, ou seja, no espaço da contemplação natural,
antes de obter a impassibilidade, não veria levantar-se contra si a lei da
carne, que é Caim e é chamada de Caim, e não teria sido morto[304],
enganado pelas mentiras dos vícios da direita durante a contemplação dos seres
antes de receber o estado perfeito.
84.
Da mesma forma, se Dina, a filha do grande Jacó, não tivesse saído para
procurar as mulheres do país, ou seja, as imagens das coisas sensíveis, Siquém,
o filho de Hamor, não teria se dirigido a ela e não a teria humilhado[305].
85.
É bom não tocarmos na contemplação natural antes do estado perfeito, a fim de
que sem querer não recolhamos paixões aos buscarmos as razões espirituais das
criaturas. Pois as formas aparentes das coisas visíveis reinam sobre os
sentidos dos homens imperfeitos, mais do que as razões das criaturas,
escondidas pelas formas, reinam sobre suas almas. Assim, aqueles que, como os
Judeus, ligaram seu pensamento apenas à letra, compreendem segundo este século
as promessas de bens sem mescla, ignorando os bens que, por natureza, pertencem
à alma.
86.
Aquele que carrega a imagem celeste[306]
esforça-se por seguir sempre o espírito da sagrada Escritura, no qual, pela
virtude e pelo conhecimento, a alma permanece preservada. Mas quem carrega a
imagem do terrestre não se preocupa senão com a letra, na qual se encontra o
culto dos sentidos para o corpo, que suscita as paixões.
87. A virtude que apaga as paixões é o poder de
Deus. E a virtude que guarda os pensamentos é o poder dos homens piedosos. É
esta virtude que é engendrada pela prática dos mandamentos, por meio da qual,
com a ajuda de Deus, ou antes graças ao poder de Deus, destruímos as potências
do mal que se opõem ao bem. E o conhecimento da verdade é a altura de Deus. Tal
conhecimento é engendrado pela pena concedida pela contemplação das criaturas e
pelos suores que se seguem à prática das virtudes e que são as mães das penas.
Pelo conhecimento, destruímos por completo o poder da mentira que se opõe à
verdade, abatendo e derrubando toda a altura dos maus espíritos que se levantam
contra o conhecimento de Deus[307].
Pois assim como a ação engendra a virtude, também a contemplação engendra o
conhecimento.
88.
O conhecimento que escapa ao esquecimento, que traz em si, sem limites, ao
redor da infinitude divina, o movimento do intelecto acima do entendimento, é
no ilimitado a imagem da glória mais do que infinita da verdade. E a imitação
livre e voluntária da sábia bondade da providência coloca sua honra na
assimilação do intelecto a Deus, com toda clareza, na medida do possível.
89.
A língua é o símbolo do conhecimento da alma. A garganta é o testemunho do amor
egoísta natural pelo corpo. Assim, que liga um ao outro de maneira condenável
não é capaz de se lembrar do estado de virtude e do conhecimento da paz. Em seu
ardor, ele está sob o encanto e a confusão das paixões corporais.
90.
Os desejos e os prazeres segundo a natureza, que não carregam a divisão nos que
os têm, são como uma consequência necessária dos apetites naturais. O prazer
segundo a natureza, independente de nossa vontade, vem do alimento que nos é
dado, que alivia nossa fome. Vem da bebida, que mata a sede. Vem ainda do sono,
que renova as forças que dispendemos no estado de vigília. Tudo o mais que se
encontra entre as coisas naturais é necessário para confortar a natureza e é
útil aos homens fervorosos na aquisição da virtude. É o que acontece ao
intelecto, quando ele foge da confusão do pecado a fim de não permanecer, por
causa dessas coisas, preso na escravidão das paixões desviadas e contra a
natureza, que estão em nós, que não têm em nós outro movimento que o das
paixões segundo a natureza e que não nos acompanharão até a perpetuidade na
vida imortal.
91.
As palavras de Deus, pura e simplesmente proferidas, não são entendidas, por
não terem por voz a ação dos que a proferem. Mas se elas são proferidas pela
prática dos mandamentos, elas dissolvem os demônios sob o efeito desta voz e,
pelo progresso das obras da justiça, ajudam os homens a edificar na obediência
o templo divino do coração.
92.
Assim como Deus, em sua essência, não está sujeito ao conhecimento, também sua
palavra não é abarcada pelo nosso conhecimento. Com efeito, a palavra da
sagrada Escritura, mesmo que possa ser descrita segundo a letra, se limita ao
tempo das coisas que são contadas. Mas, pelas contemplações do inteligível,
segundo o espírito, é sempre impossível descrevê-las.
93.
Aquele que, pelo conhecimento, em vista da alma, compreende segundo Cristo a
sagrada Escritura, deve também trabalhar para explicar os nomes, sendo capaz de
esclarecer o sentido das palavras escritas, se se preocupar com sua compreensão
exata. Mas ele não deve, como os Judeus, trazer para o corpo e para a terra a
altura do Espírito, nem circunscrever na corrupção das coisas que passam as
promessas divinas e puras dos bens inteligíveis.
94.
Assim como o voto é a promessa dos bens que os homens oferecem a Deus, também a
prece dita como se deve será claramente o pedido dos bens que Deus dispensa aos
homens para sua salvação, e esta demanda implica que seja dada em troca a boa
disposição das premissas. Quanto ao apelo, ele é o desenvolvimento e o
crescimento dos modos virtuosos da ação e das visões gnósticas da contemplação,
no tempo em que se levantam os demônios malignos. Por este apelo, Deus escuta,
antes de tudo, naturalmente, como uma voz forte, a disposição daqueles que se
aplicam à virtude e ao conhecimento.
95.
O reino mau e funesto do diabo, que é figurado pelo reino dos Assírios e que
concentrou o combate contra a virtude e o conhecimento, imagina derrubar a alma
pelas potências que estão nela. Primeiramente pelo desejo, empurrando-a a
cobiçar as coisas que são contra a natureza e persuadindo-a a preferir o
sensível ao inteligível. Depois pelo ardor, encorajando-a a lutar pelo sensível
que o desejo escolheu. Enfim, pela razão, ensinando-a a conceber os modos dos
prazeres dos sentidos.
96.
É próprio da bondade extrema não apenas ter feito com que as essências divinas
e incorpóreas das coisas inteligíveis sejam as imagens da glória inefável de
Deus, recebendo nelas analogicamente e
na medida do possível toda o incompreensível esplendor da beleza
inacessível, mas também haver mesclado às coisas sensíveis, que estão tão
abaixo das essências inteligíveis, os ecos de sua própria grandeza capazes de
conduzir a Deus sem se perder o intelecto humano levado por elas, elevado acima
de todas as coisas sensíveis, após ter chegado à extrema beatitude.
97.
A toda inteligência coroada de virtude e conhecimento é dado reinar como o
grande Ezequias sobre Jerusalém[308],
ou seja, sobre o estado que vê apenas a paz total, a condição desembaraçada de
paixões de toda espécie. Pois Jerusalém significa a visão da paz. Pelas formas
que a preenchem, ela tem em seu poder toda a criação que leva a Deus, como
dons, por causa de si mesma, as razões espirituais do conhecimento que ela
possui, que lhe oferece igualmente como presente os modos da lei natural que
nela existem e que conduzem à virtude, enfim, que, pelos dois – as razões e os
modos – acolhe o que pode ser mais honrado segundo uns e outros, vale dizer, o
intelecto que ama a sabedoria e que, em palavras e vida, alcança a perfeição
pela ação e a contemplação.
98.
Aquele que, pela ação e a contemplação, conduziu com sucesso até o fim a
virtude e o conhecimento, sobrepuja com justiça todas as paixões condenáveis da
carne. Ele também está acima dos corpos chamados naturais, ou seja, dos seres
submetidos ao devir e à corrupção. Em uma palavra, está, em sua contemplação,
acima de todas as formas submetidas aos sentidos e ultrapassou, em seu conhecimento, todas as razões contidas
nelas. Este homem elevou seu intelecto até as coisas divinas que lhe são
aparentadas.
99.
Quem conseguiu habitar a impassibilidade, como Jerusalém, pelas penas da ação,
que se livrou de todos os tormentos do pecado, que não faz, não diz, não
escuta, não considera senão a paz, depois de ter recebido pela contemplação
natural a natureza das coisas visíveis, a qual, por ele, oferece ao Senhor como
dons as razões mais divinas que contém e lhe entrega como a um rei as leis que
nela estão, este elevou-se acima de todas as nações: ele está acima de todos.
Vale dizer que, pela ação, ele está acima das paixões da carne e que, pela
contemplação, ele está acima dos corpos naturais e de todas as formas
percebidas pelos sentidos, pois ele alcançou as razões e os modos espirituais
que estão nelas.
100.
A filosofia ativa eleva o monge ativo acima das paixões. A contemplação eleva o
monge gnóstico acima das coisas visíveis, levando seu intelecto até as coisas
inteligíveis que lhe são aparentadas.
QUINTA CENTÚRIA
1.
Quem conhece ao mesmo tempo em que age, e que age ao mesmo tempo em que
conhece, é o trono e o pedestal de Deus[309].
É o trono, por causa do conhecimento, e o pedestal, por causa da ação. E se
alguém disser que o intelecto humano é um céu quando purificado de toda imagem
material e consagrado às maravilhas divinas das coisas inteligíveis, ou antes enfeado
com a beleza das razões, não me parece que esteja longe da verdade.
2.
Todo homem que ama a sabedoria, ou seja, que é piedoso, que é protegido pela
virtude, ou pela ação e a contemplação, ao ver o poder do mal levantar-se
contra si através das paixões como o rei dos Assírios se voltou contra Ezequias[310],
tem, para se livrar do mal, um único recurso: Deus, com o qual ele se concilia
sem jamais se calar, sempre estendendo diante de si a virtude e o conhecimento.
Ele assim recebe um anjo que o assiste, ou antes que o salva, vale dizer, uma
palavra de sabedoria e conhecimento, que destrói no campo dos adversários todos
os homens fortes e todos os combatentes, todos os príncipes e todos os senhores
da guerra.
3.
O sensível ao qual nos ligamos está naturalmente na origem de toda paixão. Pois
sem uma coisa inicial que coloca em movimento para si as potências da alma por
meio de um dos sentidos, jamais se formaria uma paixão. Sem algo sensível,
nenhuma paixão se forma. Se não existir uma mulher, não existirá a
prostituição; se não houver comida, não haverá gula; se não existir ouro, não
existirá avareza. Portanto, o sensível, vale dizer, o demônio que por meio dele
excita a alma em vista do pecado, está na origem de todo movimento passional
das potências naturais que existem em nós.
4.
O apagamento do mal suprime sua energia, e sua extirpação suprime o próprio
pensamento. Pois o apagamento é a libertação da ação passional, tal como se
exerce em sua energia; mas a extirpação é a desaparição total dos movimentos
maus dos pensamentos.
5.
O sensível e o inteligível são intermediários entre Deus e os homens. O
intelecto humano que avança para Deus está acima deles. Na ordem da ação, ele
não está sujeito ao sensível. E na ordem da contemplação, ele não é retido pelo
inteligível.
6.
A criação acusa os homens ímpios[311].
Pois, pelas razões que estão nela, ela proclama seu Criador. E pelas leis
naturais que nela regem cada espécie, ela dirige o homem para a virtude.
Portanto, as razões são conhecidas pela continuidade da permanência de cada
espécie. E as leis são manifestadas pela identidade da energia natural da
espécie em cada um. Por não nos ligarmos a elas com todo o poder do intelecto
que existe em nós, nós ignoramos a causa dos seres e fomos consumidos por todas
as paixões contra a natureza.
7.
A fim de revelar o infinito da bondade divina, o Verbo ordenou que sejam
oferecidos por nós dons a Deus, e ele recebe de nós como dons aquilo que
oferecemos, considerando que nossa oferenda é tudo, mesmo que ela não quite
nada previamente. Ele mostra que a bondade de Deus é grande e inefável ao redor
de nós, pois Deus recebe como se fossem nossas as coisas que são dele e que nós
lhe oferecemos, e ele reconhece que nos deve estas coisas, como se lhe fossem
estranhas.
8.
O homem que compreende as razões espirituais do visível aprende que existe um
Criador das coisas aparentes, mas deixa sem examinar, por entendê-la
inacessível, a questão de saber quem é o Criador. A criação visível permite,
com efeito, compreender claramente que existe um Criador, mas não quem é o
Criador.
9.
A cólera de Deus é o sofrimento que sentem aqueles que recebem a instrução. E o
sofrimento que eles sentem é a irrupção das penas involuntárias por meio das
quais Deus costuma levar o intelecto a se encerrar e se humilhar, quando este
se mostra inflado pela virtude e o conhecimento. Assim ele lhe permite conhecer a si mesmo, e
testemunhar sua própria fraqueza. Quando ele a entende, ele se livra do vão
inchaço do coração.
10.
A cólera de Deus é a suspensão do dom dos carismas divinos, infligida para seu
próprio bem a todo intelecto que se levanta, se incha e se orgulha dos bens que
lhe são dados por Deus, como se estes viessem de suas próprias ações direitas.
11.
Todo intelecto gnóstico e filosófico possui em si Judá e Jerusalém. Judá, que é
como a filosofia ativa, e Jerusalém, que é como a mistagogia contemplativa.
Portanto, quando, pela graça divina, o intelecto que ama a Deus e que afastou,
seguindo a filosofia ativa e contemplativa, toda potência contrária à virtude e
ao conhecimento, que cingiu-se perfeitamente com a força que se opõe aos
espíritos de malícia, mas que não rendeu a Deus, que é origem de sua vitória, a
ação de graças que lhe é devida, mas glorificou-se em seu coração considerando
ser ele mesmo a causa da ação direita, então, por não ter rendido a Deus a
oferenda que devia lhe dar em retribuição[312],
não apenas receberá sobre si a cólera do abandono, mas também Judá e Jerusalém
– ou seja, os estados de ação e de contemplação – receberão, por uma permissão
de Deus, de uma parte a cólera das paixões que se levantam contra a ação e
mancham a consciência que até então estava pura, e de outra parte a cólera dos
pensamentos enganadores mesclados à contemplação dos seres e que entortam a
doutrina do conhecimento, que até então era direita. Pois a desonra das paixões
segue a quem se orgulha da ação. E o
justo julgamento permite que aquele que se glorifica do conhecimento
decaia da verdadeira contemplação.
12.
Existe nos seres uma condição e uma lei da providência, ambas divinas em
verdade, que permite que sejam castigados pelas adversidades, para adquirir a
gratidão, aqueles que parecem insensíveis ao melhor. Elas permitem também que a
experiência das coisas contrárias dê a conhecer a potência divina que dirige os
bens, a fim de que, mesmo que a providência permita que nossa presunção não
seja inteiramente destruída sobre a via do melhor, não escorreguemos para o
estado de orgulho oposto a Deus pensando que a posse da virtude e do
conhecimento seja fruto de nosso labor, a fim de que não utilizemos o bem para
que nos venha o mal. Seria preciso que, nestas condições, o conhecimento divino
permanecesse inquebrantável, ainda mais solidamente ligado a nós, ainda que,
para o demais, estivéssemos doentes de
ignorância.
13.
Sabemos que existe nos seres uma condição e uma lei divinas, que são a
providência que engloba todos os seres. Segundo um justo julgamento, a
providência castiga pela raridade dos bens, e para que dela adquiram a gratidão
aqueles que se mostram sem reconhecimento pela abundância destes bens para com
Aquele que os deu. E pelas adversidades, ela os leva a saber discernir Aquele
concede tais bens. Pois a presunção da virtude, se não for corrigida, engendra
facilmente a doença do orgulho, que traz em si o estado oposto a Deus.
14.
Quem considera que já alcançou o fim da virtude[313],
não mais buscará daí por diante a causa que é a fonte dos bens: este encerrou
em si apenas a potência do desejo, e priva a si mesmo da condição da salvação,
ou seja, Deus. Mas quem sentiu o quanto os bens lhe faltam naturalmente, jamais
cessa de correr adiante para Aquele que pode cumular sua indigência.
15.
Quem provou do infinito da virtude não cessa mais de correr por seu caminho,
para não se provar do próprio princípio e do fim da virtude, ou seja, de Deus,
detendo ao redor de si mesmo o movimento do desejo, e para não considerar sem
querer que chegou à perfeição, o que o faria decair daquilo que é
verdadeiramente e daquilo para o que tende todo movimento do monge fervoroso.
16.
A cólera, ou seja, o abandono, como foi dito, castiga justamente o intelecto
orgulhoso. Com efeito, Deus permite que ele seja perturbado pelos demônios
durante a contemplação, a fim de que ele tome consciência de sua própria
fraqueza natural, que ele reconheça a potência e a graça divinas que o recobrem
e assumem a totalidade dos bens, que ele se humilhe afastando de si toda altura
estranha e contra a natureza, e que assim, rebaixado e sentido Aquele que lhe
concede os bens, a outra cólera não o atinja, aquela que retira os carismas
concedidos.
17.
Aquele que não recebeu da primeira forma de cólera – o abandono – a sabedoria
para alcançar a humildade, considerando que esta ensina o bom juízo, receberá
claramente a outra cólera, que virá sobre ele retirando-lhe a energia dos
carismas e o despojando de sua potência, que o protegia até então. Pois Deus
disse da ingratidão de Israel: “Eu
retirarei sua proteção e ela será levada. Abaterei seus muros, que serão
pisoteados. Eu abandonarei minha vinha, e ela não será podada nem arrancada.
Ali nascerão espinheiros como numa terra inculta, e eu ordenarei às nuvens para
que não deixem cair ali a chuva[314]”.
18.
Existe ainda um caminho que inclina à impiedade: é o de não sentir que
prejudicamos as virtudes. Pois aquele que está habituado a desobedecer a Deus
por meio dos prazeres da carne, renega o próprio Deus na primeira ocasião. Pois
ele prefere a Deus a vida na carne, que ele considera oferecer mais prazeres do
que as vontades de Deus.
19.
Quando julgamos que o intelecto foi afetado de um modo ou de outro, acreditamos
que sua potência de agir e de contemplar foi afetada junto com ele, de alguma
maneira, segundo as razões naturais da ação e da contemplação. Pois não é
possível que o fundamento seja afetado e que aquilo que ele sustenta não o
seja. Chamo de fundamento o intelecto, pois é ele quem recebe a virtude e o
conhecimento. E chamo aquilo que ele sustenta de ação e contemplação, que
dirigem para o intelecto a razão dos eventos; é por isso que, de alguma
maneira, elas são afetadas junto com o intelecto afetado, pois elas têm seu
movimento, que é o começo de sua própria transformação.
20.
Todo homem virtuoso e amado por Deus, como o foi Ezequias, todo homem que, em
seu conhecimento, cingiu-se do poder contra os demônios, quando é agredido
pelos maus espíritos que o combatem invisivelmente em seu intelecto e recebe
pela oração um anjo enviado por Deus[315],
vale dizer, uma palavra de sabedoria, se dispersar e destruir toda a falange do
diabo mas não atribuir a Deus tal vitória e salvação, mas atribuir a si mesmo
toda a vitória, este homem não terá agradecido a Deus o que recebeu dele[316],
pois não deu à sua ação de graças a amplitude igual à grandeza da salvação, e
não ofereceu as disposições de sua própria alma em retribuição à benfeitoria
d'Aquele que o salvou.
21.
Iluminemos o intelecto com pensamentos divinos e o corpo com alegria pelos
modos das razões refletidas e mais divinas ainda, fazendo do intelecto um lugar
da razão onde é elaborada a virtude pela rejeição das paixões. Pois as paixões
inatas do corpo, quando dirigidas pela razão, não dividem. Mas quando elas se
desenvolvem sem a razão, trazem consigo a divisão. É preciso rejeitá-las, pois,
se seu movimento é inato, seu uso é muitas vezes contra a natureza, caso não
sejam governadas pela razão.
22.
Quem quer que tenha glorificado seu coração orgulhando-se dos carismas
recebidos e fazendo como se ele não os houvesse recebido[317],
com toda justiça será atingido pela cólera. Pois Deus permite então ao diabo
que se una a este homem em espírito, sacudindo os modos pelos quais age a
virtude e perturbando as razões claras do conhecimento dadas pela contemplação,
a fim de que, tendo aprendido com sua própria fraqueza, este homem reconheça a
única potência que combate em nós as paixões, e se humilhe arrependendo-se,
rejeitando o inchaço da presunção, se reconcilie com Deus e escape à cólera,
que cai sobre os que não se arrependem, afastando a graça que protege a alma e
deixando vazio o intelecto.
23.
A cólera salvadora é a permissão que Deus dá aos demônios para combater por
meio das paixões o intelecto orgulhoso, a fim de que, sofrendo na desonra por ter se orgulhado das
virtudes, este aprenda a saber quem é Aquele que dá estas virtudes, ou então
que ele seja despojado dos bens que lhe eram estranhos e que ele pensava
possuir como se não os tivesse recebido.
24.
Verdadeiramente bem-aventurado é o intelecto que, de modo digno de louvor,
morreu para todos os seres. Ele está morto para as coisas sensíveis pela
retirada da energia dos sentidos; e está morto para as coisas inteligíveis pela
detenção do movimento da inteligência. Note que a morte louvável do intelecto
acolhe naturalmente a vida que provém da graça divina. Em lugar dos seres, ele
terá recebido de maneira incompreensível Aquele que é a origem dos seres.
25.
Bem-aventurado aquele que uniu a vida ativa ao bem segundo a natureza e a vida
contemplativa à verdade segundo a natureza. Pois toda ação se faz naturalmente
para o bem. E toda contemplação busca o conhecimento apenas pela verdade.
Quando se leva uma e outra a termo, absolutamente nada mais atingirá a vida
ativa da alma, e a duração das coisas contempladas não virá apagar sua vida
contemplativa. Pois a alma estará então além de todo ser e de todo pensamento,
e terá entrado em Deus, único bom e verdadeiro acima de todo ser e de todo
entendimento.
26.
O fim da virtude ativa, se diz, é o bem. Este é o cumprimento da energia
divina, que conduz a razão da alma, que se serve do ardor e do desejo segundo a
natureza, quando na alma aparece naturalmente a beleza criada à semelhança de
Deus. E o fim da filosofia contemplativa, diz-se é a verdade, que é
indivisivelmente o conhecimento simples de todas as coisas de Deus, este
conhecimento para o qual se dirige o intelecto puro, que apagou totalmente de
si mesmo o julgamento dos sentidos. Vale dizer que, neste conhecimento, se
mostra sem a menor alteração a dignidade da imagem de Deus.
27.
Ninguém pode verdadeiramente bendizer a Deus se não santificou o corpo pela
virtude, se não iluminou a alma com os conhecimentos. Pois o estado de virtude
é a face do intelecto contemplativo, esta face que se eleva como o céu até a
altura do verdadeiro conhecimento.
28.
Bem-aventurado aquele que sabe em verdade que é Deus quem cumpre em nós, que
somos como que seus instrumentos, toda ação e toda contemplação, toda virtude e
todo conhecimento, toda vitória e toda sabedoria, toda bondade e toda verdade,
quando nós mesmos não contribuímos com nada outro do que nossa disposição em
querer o bem. O grande Zorobabel tinha esta disposição, e falava das coisas que
mencionamos acima quando declarava a Deus: “Bendito seja, você que me deu a
sabedoria, e eu lhe confesso, Senhor dos Pais: de você vem a vitória, a
sabedoria, sua é a glória, eu não passo de um servidor[318]”.
Como um servidor verdadeiramente reconhecido, ele rendia tudo a Deus quem lhe
havia dado, de quem ele havia recebido e possuía a sabedoria, e ele reconhecia como do Senhor dos Pais o poder
dos bens com os quais ele havia sido gratificado e que eram, como foi dito, a
união da vitória com a sabedoria, da
virtude com o conhecimento, da ação com a contemplação, da bondade com a
verdade, que, em união entre si, brilhavam como o raio da glória e do esplendor
únicos de Deus.
29.
Todas as obras direitas dos santos eram manifestamente carismas de Deus. Nenhum
deles, com efeito, possuía algo além do bem que lhe foi dado, medido pelo
Senhor Deus na proporção do conhecimento e da bem-aventurança daquele que o
recebia e não possuía senão as coisas que apresentava ao mesmo Mestre que as
havia dado.
30.
O intelecto que preside a virtude e o conhecimento e que deseja que a alma seja
liberta da escravidão das paixões diz: “As mulheres a transportam e a verdade
triunfa[319]”.
As mulheres são as virtudes deificantes pelas quais o amor unificante – o amor
a Deus e o amor mútuo – é dado aos homens. Este amor arranca a alma de todas as
coisas sujeitas ao devir e à corrupção, mas também às essências inteligíveis
que estão acima destas coisas. Ele abraça a Deus como se abraça numa união
amorosa, na medida em que isto é possível à natureza humana. E ele suscita
misticamente uma intimidade pura e divina. Enfim, o intelecto denomina
“verdade” apenas a causa única e singular dos seres – a origem e o Reino, o
poder e a glória – pela qual e para a qual tudo foi e é feito. É por ela e por
causa dela que todo fervor e todo movimento são dados àqueles que são amados
por Deus.
31.
Por “mulheres” a Escritura mostrou o fim das virtudes, que é o amor, ou seja, o
prazer sem mácula e a união indivisível extraídos do desejo dos que participam
do bem por natureza. E por “verdade” ela simbolizou o termo de todos os
conhecimentos e de todas as coisas conhecidas em si mesmas: aquilo para o que
são atraídos por uma razão geral, como para a origem e o termo de todos os
seres, os movimentos da natureza, quando a origem e a causa dos seres – a
verdade – a tudo venceu segundo a natureza, e atrai para si o movimento das
criaturas.
32.
Quando nos afastamos totalmente do múltiplo, a verdade aparece naturalmente
como uma só e única coisa. Ela recobre as faculdades do conhecer naqueles que
podem compreender ou serem compreendidos, pois, por sua existência acima do
ser, ela está acima do que pensa e do que é pensado, Englobando com sua
potência infinita as extremidades dos seres desde sua origem até seu fim, ela
atrai para si todos os movimentos de todos. A uns ela concede o conhecimento
claro da graça de que estavam privados. A outros, uma percepção inefável e por
participação, o conhecimento evidente da bondade que eles desejavam.
33.
O intelecto é o órgão da sabedoria. A razão é o órgão do conhecimento. A
plenitude natural dos dois é o órgão da
fé, que procede de um e outro. E o amor natural dos homens é o órgão dos
carismas e das curas. Pois todo carisma divino tem em nós um órgão apropriado e
inato que o recebe; este órgão é como uma potência, ou um estado, ou uma
disposição. Assim, aquele que purificou o intelecto de toda imaginação das
coisas sensíveis, recebe a sabedoria. Aquele que permitiu à razão dominar as
paixões que nos são naturais, vale dizer, o ardor e o desejo, recebe o
conhecimento. Aquele que possui a inquebrantável certeza das coisas divinas em
seu intelecto e sua razão, recebe a fé que tudo pode. E quem levou a bom termo
o amor natural pelos homens, depois de se ter separado totalmente do egoísmo,
recebe os carismas e as curas.
34.
Cada um de nós possui a energia manifesta do Espírito em proporção à própria fé[320].
Assim sendo, cada qual é o intendente de sua própria graça. Jamais alguém de
boa disposição poderá invejar aquele que é honrado pelas graças, uma vez que
nele repousa a disposição de receber os bens de Deus.
35.
O que faz com que os bens de Deus permaneçam em nós é a medida da fé de cada
um. Pois é na medida em que cremos que nos é dado o fervor para agir. Portanto,
que age revela a medida de sua fé na proporção de sua ação: ele recebe a graça
na medida daquilo em que acredita. Mas quem não age revela a medida de sua
incredulidade na proporção de sua inércia: ele recebe a privação da graça
segundo sua descrença. O invejoso faz mal em denegrir aqueles cuja obra é reta,
quando é a ele e a nenhum outro que é pedido escolher que creia, para receber a
graça na medida de sua fé.
36.
Aquele que é presa dos bens [celestes] se deixa levar voluntariamente pelas
razões da sabedoria da providência em direção à graça da deificação. E aquele
que não ama os bens [celestes] é involuntariamente desviado do mal pelos modos
do castigo, de acordo com um justo julgamento. Um, por ser amado por Deus, é
deificado pela providência. Mas o julgamento não permite que o segundo, que ama
a matéria, seja condenado. Pois Deus, em sua bondade, cuida daqueles que o
querem pelas razões da sabedoria, e cura pelos modos do castigo os que têm
dificuldade em se engajar no caminho da virtude.
37.
A verdadeira fé é a verdade que abraça e reúne, pois ela é isenta de mentira. E
a boa consciência traz consigo o poder do amor, pois ela não transgrede jamais
um único mandamento.
38.
A Escritura diz que sete espíritos repousarão sobre ele: o espírito da sabedoria,
o espírito da inteligência, o do conhecimento, o da ciência, o espírito do
conselho, o da força, o do temor a Deus[321].
E os seguintes são próprios destes carismas espirituais: é próprio do temor a
rejeição do mal; é próprio da força a prática do bem; é próprio do conselho o
discernimento dos adversários; é próprio da justiça a justa percepção dos
deveres; é próprio do conhecimento a compreensão ativa das razões divinas que
residem nas virtudes; é próprio da inteligência a total disponibilidade da alma
em relação àquilo que ela conhece; é próprio da sabedoria a união incognoscível
que leva a Deus, união pela qual, nos que são dignos, o desejo se torna
fruição, pois ela torna, por participação, um Deus aquele que a experimenta e
lhe permite ser um intérprete da beatitude divina, em seu impulso e sua
aproximação inesgotáveis e irreversíveis que a conduzem para aqueles que rezam
pelos mistérios divinos.
39.
O espírito de temor a Deus é a abstenção do mal ativo. O espírito da força é o
impulso e o movimento ferventes que conduzem à energia e à prática dos
mandamentos. O espírito do conselho é o estado de discernimento, que nos
permite, com a razão, praticar os mandamentos divinos e separar o melhor do
pior. O espírito da ciência é a infalível percepção dos modos da ação virtuosa:
praticando, graças a ela, o correto julgamento da razão, não caímos jamais. O
espírito do conhecimento é a compreensão dos mandamentos e das razões contidas
neles, segundo as quais são formados os modos das virtudes. O espírito da inteligência
é o consentimento aos modos e às razões das virtudes, ou mais precisamente a
transformação pela qual as potências naturais se unem aos modos e às razões dos
mandamentos. O espírito da sabedoria é a restauração e a união que conduz para
a causa os mais espirituais dos mandamentos, união pela qual, no incognoscível,
simplesmente iniciados nas razões dos seres que estão em Deus, na medida do
possível, nós oferecemos de diversas maneiras aos homens a verdade que está em
tudo, como de uma fonte que brota do coração.
40.
Das últimas coisas criadas por Deus, que estão próximas de nós, devemos nos
elevar progressivamente e em ordem até as primeiras coisas, que estão longe de
nós mas próximas de Deus. Pois da abstenção do mal pelo temor alcançamos a
prática das virtudes pela força. Da prática das virtudes, passamos ao
discernimento do conselho. Do discernimento, chegamos ao estado de virtude, ou
seja, à ciência. Do estado de virtude, atingimos o conhecimento das razões que
estão contidas nas próprias virtudes. Do conhecimento, entramos no estado de
renovação que conduz às razões conhecidas das virtudes, vale dizer, a
inteligência. Enfim, da inteligência abordamos a contemplação simples e precisa
da verdade que está em todas as coisas. E, lançando-nos de tal contemplação,
testemunhamos em retorno a verdade das palavras piedosas, numerosas e diversas,
extraídas da sábia contemplação das essências sensíveis e inteligíveis dos
seres.
41.
O primeiro bem a agir sobre nós – o temor – foi colocado em último lugar pelo texto
da Escritura, que o chama de começo da sabedoria[322].
Levados pelo temor, nós nos elevamos até o fim da sabedoria, que é a
inteligência, depois da qual nos aproximamos do próprio Deus, porque a
sabedoria é a única capaz de assegurar por seu intermédio nossa união com Deus.
Pois não é possível que receba a sabedoria quem, pelo temor e por meio de
outros carismas que nos foram distribuídos, não tenha antes sacudido de si a
peste da ignorância e a poeira da malícia. É por isso que a ordem da Escritura
coloca a sabedoria perto de Deus e o temor perto de nós, a fim de que
aprendamos a condição e a lei na ordem correta.
42.
Assim, elevando-nos com os olhos da fé, ou seja, pelas iluminações, somos
conduzidos para a unidade divina da sabedoria. Pelas elevações parciais das
virtudes, fazemos convergir para sua causa comum os carismas que nos foram
distribuídos, sem omitir nenhum dos citados, com a ajuda de Deus, a fim de que
não tornemos cega e sem olhos nossa fé, privada das luzes que as obras do
Espírito fornecem, por nos deixarmos levar pouco a pouco pela negligência, e
para que não sejamos castigados com justiça nos séculos infinitos por termos
cegado em nós mesmos os olhos divinos da fé, na medida em que isto estava em
nosso poder.
43.
Quem quer que tenha fechado em si os olhos da fé, por não praticar os
mandamentos, está condenado de um modo ou de outro, pois Deus não o olha mais.
De fato, se a palavra divina chama de energias do Espírito os olhos do Senhor[323],
quem não abre seus próprios olhos pela prática dos mandamentos não tem em si a
Deus que o olhe. Pois, como é natural, Deus não olha com outros olhos aqueles
que estão sobre a terra, uma vez que a luminosidade de nossa virtude é um raio
da visão divina.
44.
A sabedoria é uma unidade, indivisivelmente contemplada nas diferentes virtudes
que ela suscita, depois concebida em sua forma única por suas energias, e
novamente revelada como uma unidade simples a partir do momento em que as
virtudes que dela provinham se restabelecem nela, quando nós mesmos, para que
ela as faça progredir paulatinamente, convirjamos para ela, impulsionados para
frente por cada virtude.
45.
Quem não cumpre as ordens divinas da fé tem a fé cega. Pois, se as ordens de
Deus são luz[324],
isto significa que quem não cumpre as ordens divinas de Deus está desprovido da
luz divina. Ele deixa sem resposta o apelo divino; verdadeiramente, ele não
responde.
46.
Ninguém, tendo pecado, pode tomar para se defender a fraqueza da carne. Pois a
união com Deus o Verbo deu força a toda a natureza, destruindo a maldição e
retirando todo pretexto da tendência de nossa vontade pelas paixões. A
divindade do Verbo que, pela graça, se une sempre aos que nele creem, quebrou,
com efeito, a lei do pecado da carne.
47.
Aquele que, pela fé em Deus e o amor por ele, venceu as tolas concupiscências e
com elas os movimentos irracionais das paixões contra a natureza, da mesma
forma ultrapassou a lei natural e transportou-se inteiro para o país dos
inteligíveis. E ele expulsa de si o que lhe é aparentado por natureza, assim o
que lhe chega da escravidão que lhe é estranha.
48.
O conhecimento ligado à ação que não possui o freio do temor a Deus, suscita o
orgulho, pois convence aquele que se orgulha dele de considerar como seu aquilo
que é emprestado, usando para seu próprio louvor a atributo da palavra. Mas a
ação que cresce com o desejo de Deus e não coloca o conhecimento acima do que
faz, torna humilde o monge ativo, o qual, segundo as razões que ultrapassam seu
próprio poder, se retira para dentro de si mesmo.
49.
O estado impassível da virtude e o
conhecimento que não contém em si nenhum pensamento errôneo que combata este
estado são uma morada celeste.
50.
Assim como o múltiplo é o fim da unidade em movimento e a unidade é o começo do
múltiplo imóvel (pois a imobilidade em si é nitidamente o começo de todo fim e
o cumprimento do movimento em si é o fim de todo começo), também a fé, que é o
começo das virtudes segundo a natureza, tem por fim o cumprimento do bem que
elas suscitam. E o bem segundo a natureza, que é o fim das virtudes e que tem
por começo a fé, é conduzido interiormente para esta última. Pois a fé é o bem
interior, e o bem é a fé operando. Deus é fiel e bom por natureza[325];
ele é bom, por ser o primeiro bem, e é fiel por ser a última instância visada
pelo desejo. A bondade e a fidelidade, que estão ligadas uma à outra,
constituem a mesma coisa, pois, salvo se as moldarmos como um projeto, não
existe nenhuma razão para que elas se dividam, por causa do movimento que se
inicia e termina nele. Portanto, o múltiplo, que traz em si a empresa da
aspiração última do desejo, abarca o impulso perfeito daquilo que se dirige a
este ponto último. E a unidade, que traz o signo do primeiro bem, traz consigo
o fundamento perfeito daquilo que provém daquele bem.
51.
A primeira impassibilidade é a total abstenção do mal ativo: podemos observá-la
nos noviços. A segunda impassibilidade é a rejeição total, na reflexão, dos
pensamentos que consentem no mal: ela cabe aos que buscam a virtude com a
razão. A terceira impassibilidade é a total imobilidade do desejo que leva às
paixões, naqueles que, através das formas, contemplam em seu intelecto as
razões do visível. A quarta impassibilidade é a total purificação do próprio
imaginário, nos que fizeram de sua razão um espelho de Deus, puro e
transparente, pelo conhecimento e contemplação. Assim, aquele que se purificou
da energia das paixões, que se libertou do consentimento que lhe era trazido
por seus pensamentos, que deteve o movimento do desejo que o levava para elas e
que protegeu seu intelecto de ser manchado por sua simples imaginação, este,
tendo em si as quatro impassibilidades gerais, deixa a matéria e as coisas
materiais e vai receber sua parte nas coisas inteligíveis, o espiritual, o
divino, o pacífico.
52.
A primeira impassibilidade é o movimento ativo, intocável, dirigido contra os
pecados do corpo. A segunda impassibilidade é a rejeição perfeita dos
pensamentos passionais da alma, por meio da qual se domina o movimento das
paixões que não apareciam na primeira impassibilidade, incendiando-a e
levando-a a agir. A terceira impassibilidade é a perfeita imobilidade do desejo
que conduz às paixões, imobilidade pela qual foi suscitada a segunda
impassibilidade, fundada pela pureza dos pensamentos. Enfim, a quarta
impassibilidade é o abandono de todas as imaginações sensíveis pelo pensamento,
abandono do qual nascera a terceira impassibilidade, que não possuía
imaginações das coisas sensíveis para formar imagens das paixões.
53.
Em todo monge ativo, como se fossem servos, a razão e o pensamento trabalham,
concebendo e suscitando os modos de ação virtuosa depois de se terem oposto com
toda sua potência aos espíritos contrários de malícia e de ter conduzido com
sucesso a filosofia prática, representada pelo sexto ano (pois se diz que o
número seis designa a filosofia prática). Vale dizer que a razão e o
pensamento, depois de alcançarem a contemplação das razões inatas que estão
contidas nos seres, partem livres para a filosofia espiritual.
54.
O ardor e o desejo são servos estrangeiros que, por sua coragem e castidade são
continuamente postos pelo intelecto ativo sob o jugo da razão para servirem às
virtudes, sem deixá-los partir em liberdade até que a lei da natureza tenha
sido perfeitamente absorvida pela lei do Espírito, como a morte da carne
miserável[326]
é absorvida pela vida infinita, e até que se tenha revelado em sua pureza toda
imagem do Reino que não tem começo, trazendo em si por imitação a forma total
do Modelo. Feito a esta imagem, o intelecto contemplativo deixa livres o ardor
e o desejo, conduzindo o desejo para o prazer sem mescla e a atração sem mancha
do eros divino, e transportando o ardor para a ebulição espiritual, o
calor da imobilidade e a sabedoria do delírio amoroso.
55.
A imagem do Reino que não tem começo é a imobilidade do intelecto voltado para
o verdadeiro conhecimento, e a incorruptibilidade dos sentidos voltados para a
virtude, quando alma e corpo – quando em espírito os sentidos se transformam no
intelecto – se unem um ao outro apenas pela lei divina do Espírito: com esta
transformação, eles têm em si a energia
penetrante do Verbo, sempre em movimento e continuamente vivo, no qual toda
irracionalidade é totalmente afastada do divino.
56.
O prazer é o desejo em ação, na medida em que este é um bem presente conforme
sua definição. O ardor é o movimento ativo do delírio amoroso, e o delírio
amoroso é o ardor em ação. Assim, aquele que submeteu suas potências à razão,
encontrará nela o desejo transformado em prazer quando, pela graça, a alma se
unir ao divino sem nenhuma mancha. E encontrará o ardor, a ebulição pura, o
delírio amoroso do prazer do divino, este sábio delírio que o protege quando o
impulso da potência atraída da alma o faça deixar os seres. Portanto, na medida
em que o mundo vive em nós e que a alma está por si mesma em relação com as
coisas materiais, não devemos dar liberdade a estas potências, para evitar que,
misturadas às coisas sensíveis como se estas lhe fossem aparentadas, elas
combatam a alma e a capturem, prisioneira das paixões, como outrora os
Babilônios tomaram Jerusalém[327].
Pois o Verbo quis dizer que havia uma relação de conhecimento entre a alma e
este mundo, o século no qual a Lei ordenou que fossem sujeitados os filhos dos
estrangeiros[328],
sendo este mundo a vida presente: com isto ele mostrou o sentido espiritual das
coisas reportadas pela história.
57.
O mal teve um começo: este começo foi nosso movimento contra a natureza. Mas o
bem não teve começo, pois ele é o bem por natureza antes de todos os séculos e
de todos os tempos. O bem é inteligível: só é preciso compreendê-lo. Mas o mal
não é inteligível: só é preciso não compreendê-lo. O bem é falado, pois só é
preciso enunciá-lo. E é advindo, pois, sendo incriado por natureza, aceita vir
a nós pela graça em seu amor pelo homem, para nos deificar, nós que o
praticamos e enunciamos. Nós fazemos o bem, portanto basta que ele seja. Mas
não devemos fazer o mal, portanto é preciso apenas que ele não seja. O mal é
corruptível: de fato, é a corrupção a natureza do mal, que não tem existência própria
em nada. Mas o bem é incorruptível, pois ele é permanente, jamais deixa de ser
e protege a todos nos quais se encontra. É isto que buscamos pela razão, aquilo
ao que tendemos pela desejo, que pelo ardor guardamos inviolável, aquilo por
meio de que, pelos sentidos aplicados ao conhecimento, discernimos sem
adversidades, que pela voz, ao falarmos, deixamos claro aos que ignoram, que
multiplicamos pela fecundidade, ou antes, a bem dizer, aquilo pelo que nós
mesmos nos multiplicamos.
58.
O intelecto contemplativo que reina sobre os pensamentos, as visões e os
movimentos próprios que residem nos seres, deve estar num estado tal que não
engendre o mal, ou seja, que não o conceba em absoluto nem o traga para o
mundo. É preciso que ele se dirija para este estado de contemplação, para
evitar que, colocando sobre os seres seu olhar espiritual, não o deite contra
sua vontade sobre algum espírito maligno que, por meio de alguma das coisas
sensíveis, corrompa naturalmente o olhar puro do coração.
59.
Aquele que, por causa da virtude e do conhecimento, se deixou ferir pelo amor à
vanglória, nutrindo em vão, como Absalão, a cabeleira da presunção, presa à
presilha e trançada, exibe a vida moral, como a mula, para enganar aos que o
miram. Assim, suspenso no ar, ele acredita dominar o Pai que o engendrou pelo
ensinamento da palavra, pretendendo, em seu orgulho, atrair para si, como um
tirano, toda a glória da virtude e do conhecimento que, vinda de Deus, retorna
para o Pai. Mas este homem, quando se coloca no campo da contemplação natural
em espírito a fim de conduzir o combate da razão pela verdade, se vê retido
pela intrincada galharia do carvalho dos espetáculos naturais, que é a imagem
deste mundo, que prende a ele, em vista da morte, a vã presunção que o segura entre
o céu e a terra[329].
Pois o vaidoso não possui o conhecimento que, como um céu, o atrairia para o alto, para longe da
presunção que o arrasta para baixo. E ele também não possui a terra, ou seja, o
fundamento da ação, na humildade, que o atrairia para baixo, para fora do
orgulho que o leva para cima. Ele está morto, e o mestre que ama a Deus e que o
engendrou chora, em seu amor pelo homem, pois, à imitação de Deus, ele não quer
a morte do pecador, mas que ele retorne e viva[330].
60.
A sabedoria é o começo e o fim da salvação de cada um. É o começo por suscitar
desde logo o temor, pois este conduz ao termo por gerar o desejo. Ou antes,
para nós, pela economia, ela se torna temor de início, a fim de que aquele que
for tomado de amor se abstenha do mal. Depois, ao final, ela se torna desejo, a
fim de encher de riso inteligível aqueles que mudaram a vida que levavam junto
aos demais seres.
61.
A sabedoria é temor, quando se torna privação pela fuga naqueles que não se
dirigem para ela. E ela é desejo quando se torna um estado de regozijo ativo
naqueles que a amam. Pois quando, pela esperança, ela se livra do castigo das
paixões, ela suscita o temor e cumpre o desejo, habituando o intelecto, pela
aquisição das virtudes, a ver as coisas do século por vir.
62.
Toda confissão humilha a alma; uma humilha a alma justificada pela graça de
Deus; outra humilha a alma ensinando-a, quando, por suas faltas ela afunda na
negligência de sua própria vontade.
63.
A confissão pode ser feita de duas maneiras: dando graças pelos bens que nos
foram dados, ou verificando e examinando o que fizemos de mal. Pois chamamos de
confissão tanto a enumeração das benesses divinas que assumimos alegremente com
gratidão, como a enumeração das faltas reveladas aos responsáveis. Ambas as
formas suscitam a humildade. Pois humilha-se quem rende graças pelos bens e
quem se examina para descobrir suas faltas; um se julga indigno dos bens que
lhe foram dados, outro pede por receber a absolvição das faltas.
64.
A paixão do orgulho é feita de duas ignorâncias, que convergem para se unir
constituindo um mesmo sentimento cheio de confusão. Pois só é orgulhoso quem
ignora o socorro divino e a fraqueza humana. O orgulho é assim a privação do
conhecimento divino e humano. Pois a negação dos verdadeiros extremos desemboca
numa mesma afirmação enganadora.
65.
A vanglória nos desorienta para longe do objetivo de Deus. Ela nos transporta
para um outro objetivo que vai de encontro ao objetivo divino. Pois o vaidoso é
aquele que se aplica à virtude para sua própria glória, não para a glória de
Deus, e que troca suas penas pelos elogios inconsistentes dos homens.
66.
Quem busca agradar aos homens só presta atenção às condutas aparentes e, com
certeza, às palavras do adulador, a fim de atrair a vista de uns e os ouvidos
de outros que, encantados ou influenciados apenas pelas aparências e as
palavras ouvidas, entendem as virtudes apenas pelos sentidos. Dizemos que tal
homem busca agradar aos homens quando aquilo que ele faz sob o véu da virtude é
a ostentação da conduta e das palavras.
67.
A hipocrisia é uma imitação da amizade, ou uma aversão escondida sob a forma da
amizade, ou uma inimizade que se exerce sob a cobertura de uma benevolência, ou
uma inveja que imita o caráter do amor, ou uma vida que mostra a boa ordem da
virtude por fingimento mas não em realidade, ou uma afetação de justiça mantida
pelas aparências, ou uma ilusão que toma a forma da verdade e à qual se aplicam
aqueles que, pela perversidade de sua conduta, imitam a serpente.
68.
A causa dos seres e dos bens que neles existem está em Deus. Portanto, que
eleva a si mesmo na virtude e no conhecimento e não acrescenta à medida da
virtude que a graça lhe concede – ou seja, à medida de seu progresso – a
consciência de sua própria fraqueza, não escapou ainda do mal do orgulho. Quem
se dedica ao bem para sua própria glória prefere a si mesmo do que a Deus,
esvaziado que está pela vaidade. Quem pratica a virtude ou dela fala para ser
visto pelos homens coloca a aprovação humana acima da aprovação divina, por estar
enfermo da paixão de agradar aos homens. Enfim, aquele que, com a gravidade da
virtude, não faz senão colorir sua conduta para enganar os outros, e que
encobre sob a aparência da piedade a malícia de seus desígnios, troca a virtude
pela mentira e a hipocrisia. Este homem se desviou do objetivo para correr
atrás de outras coisas, ao encontro da causa de cada uma delas.
69.
Nenhum dos demônios malignos será capaz de impedir o fervor do homem virtuoso.
Mas na realidade, depois de ter devastado com mentiras as insuficiências das
virtudes, os demônios prolongam sua ação participando dos esforços do que
combate, a fim de tomar para si os pensamentos do asceta, quando este perde o
equilíbrio do meio, e encaminhá-los contra a vontade deste a outro lugar, enquanto
ele pensa ir ao encontro do bom.
70.
Os demônios não odeiam a castidade, não detestam nem o jejum, nem a
distribuição das riquezas, nem a hospitalidade, nem a salmodia, nem a leitura,
nem a hesíquia, nem os mais altos ensinamentos, nem o dormir sobre o chão duro,
nem as vigílias noturnas, nem todas as outras coisas que caracterizam a vida
consagrada a Deus, até conseguirem fazer com que se inclinem para eles o
objetivo e a causa de tudo o que fazemos.
71.
Talvez, derrubando os outros demônios, o asceta escape com facilidade ao mal
que eles causam. Mas os demônios que fingem participar do curso da virtude,
como se quisessem construir o templo com o Senhor, qual intelecto, ainda que o
mais elevado, seria capaz de capturá-los sem a palavra de Deus ativa e viva que
não cessa de avançar, penetrante até separar a alma do corpo[331],
ou seja, capaz de discernir quais obras e quais pensamentos são psíquicos –
portanto formas ou movimentos naturais da virtude – e quais obras e quais
pensamentos são espirituais – ou seja, são mais elevados do que a natureza e
representam a Deus? Estas obras e estes pensamentos são dados por natureza
segundo a graça. Pois a palavra de Deus sabe como as articulações e a medula se
unem, bem ou mal, às razões espirituais dos modos da virtude, e ele julga os
sentimentos e os pensamentos dos corações, ou seja, as relações que
mencionamos, escondidos nas profundezas, e suas causas invisíveis na alma. Para
a palavra de Deus, em nós que parecemos esquecer, não existe criação oculta:
existe tudo o que foi criado e pensado, mas também tudo o que será criado e
pensado por nós.
72.
O que separa a alma do espírito é a diferença entre o crescimento das virtudes
cujas razões possuímos naturalmente, e os carismas do Espírito cuja graça
recebemos gratuitamente. Pois a palavra que julga faz claramente a distinção
entre uma coisa e outra.
73.
Os sentimentos e os pensamentos que a palavra de Deus distingue são as relações
da alma com as razões e os pensamentos divinos, e as causas destas relações.
Com efeito, o sentimento suscita a memória, da qual ele é a relação; e o
pensamento visa o termo, que representa a causa.
74.
Se Deus é o conhecimento em sua essência, o intelecto precede claramente todo
conhecimento, e este depende naturalmente do intelecto. Portanto, Deus está
acima do conhecimento, porque está também infinitamente acima de todo
intelecto, do qual, de um modo ou de outro, depende o conhecimento.
75.
Quem poderá, se não tiver a razão divina morando nas profundezas de seu
coração, após ter derrotado as armadilhas escondidas que os demônios dirigem
contra nós, conduzir a si mesmo, absolutamente só e sem se ligar a ninguém, e
construir o templo do Senhor, como o fizeram o grande Zorobabel, Josué[332]
e os chefes das tribos, dizendo em alta voz aos impostores do orgulho, da
vanglória e da hipocrisia, que só querem agradar aos homens: “Não é tarefa
nossa e de vocês construir a casa do Senhor nosso Deus, mas apenas a nós caberá
construir para o Senhor de Israel[333]”.
Este sabe que o fato de se misturar a tais homens leva à ruína e destruição de
todo o edifício e impede a graça da beleza das oferendas divinas.
76.
Ninguém que possua um dos demônios de que falei pode construir para o Senhor.
Pois ele não carrega a Deus como o fim das criaturas, para assumir a virtude
contemplando a Deus, mas traz em si a paixão suscitada por esta virtude.
77.
Os demônios que nos combatem pela falta de virtude são os que nos ensinam a
prostituição e a embriaguez, a avareza e a inveja. Os demônios que nos combatem
pelo excesso de virtude são os que nos ensinam a presunção, a vanglória e o
orgulho que, por meio dos vícios de direita incrustam secretamente em nós os
vícios de esquerda.
78.
Possamos nós sempre dizer aos que se dirigem invisivelmente ao espírito de
malícia imitando a amizade espiritual, que por meio do bem querem secretamente
chegar à morte dada pelo pecado, e que dizem: “Construamos com vocês o templo
de nosso Senhor”, possamos nós dizer a eles: “Não cabe a nós e a vocês
construir a casa do Senhor nosso Deus, mas apenas nós, sozinhos, construiremos
para o Senhor de Israe[334]l”.
Construiremos sozinhos porque, libertos dos espíritos que nos combatem pela
falta de virtude, dos quais nos afastamos, não mais queremos, levados por nós
mesmos ao excesso, ceder outra vez e conhecer uma queda ainda mais dura do que
a primeira, e tanto mais dura na medida em que a esperança de retorno ainda era
fácil aos que haviam sido perdoados por sua fraqueza. Agora, ou bem já não
haverá esperança, ou bem a esperança será difícil aos que foram detestados por
seu orgulho e que se dedicaram a um vício ainda mais à direita do que o vício
da direita. Por outro lado, porém, não estaremos sozinhos, pois teremos os
santos anjos, os quais assumirão os bens, ou melhor, teremos ao próprio Deus,
que se revelará a nós pelas obras da justiça e nos edificará para si como a um
templo santo e livre de toda paixão.
79.
A condição da virtude é, com conhecimento de causa, a união da fraqueza humana
com a potência divina. Portanto, aquele que se encerra na fraqueza da natureza,
não atinge a condição da virtude. É por isto que ele está em falta, por não ter
recebido ainda a potência que dá força à fraqueza. Quanto ao que tem a
presunção de fazer de sua própria fraqueza uma força em lugar da potência
divina, este transgrede a condição da virtude. É por isto que, estando também
em falta por causa do excesso que provocou, ele não aprende a conhecer, porque
pensa que sua falta é uma virtude. O que se encerrou na fraqueza de sua
natureza, separando-se passivamente da virtude, talvez por desleixo, é mais
facilmente perdoável do que o que faz de sua própria fraqueza uma força no
lugar da potência divina para cumprir seus deveres, frequentemente por
presunção.
80.
Como se diz que a oração do justo pode muito por sua ação, eu sei que ela age
de duas maneiras. Ela age de uma primeira maneira quando, com as obras que o
mandamento ordena, aquele que vem a Deus lhe entrega esta oração, não como a
prece inerte e inconsistente que sai da língua e não é feita senão de palavras
e do vão ruído da voz, mas como a prece ativa, viva, animada pelas obras dos
mandamento. Pois o fundamento de toda oração é o evidente cumprimento dos
mandamentos pelas virtudes, graças ao qual o justo tem em si a prece poderosa
que tudo pode, posta a operar pelos mandamentos. Enfim, a oração age segundo
uma outra maneira, quando aquele que deseja a prece do justo a põe para
trabalhar corrigindo sua vida anterior e assumindo esta prece poderosa
fortificada por sua própria boa conduta.
81.
A prece do justo não tem serventia quando este apela para ela mais do que para
as virtudes daquele que tem prazer em suas faltas. Assim, o grande Samuel,
antigamente, chorou a culpa de Saul, mas não conseguiu apaziguar a Deus, pois
não recebeu, para atender às suas lágrimas, a correção que o culpado deveria
operar. É por isso que Deus, detendo as lágrimas insensatas de seu servidor,
lhe disse: “Até quando você chorará Saul? Eu o rejeitei para que ele não mais
reine sobre Israel[335]”.
82.
O compassivo Jeremias tampouco foi ouvido, quando rezou pelo povo judeu que
permanecia agarrado aos erros dos demônios. Pois ele não trazia consigo, para
dar poder à sua oração, a conversão dos judeus ateus arrependidos de seu erro.
É por isso que, dissuadindo-o de orar em vão, Deus lhe disse: “Não reze por
este povo, não peça piedade por eles, não suplique, não mais venha a mim
interceder por eles: pois eu não o escutarei mais[336]”.
83.
Quem se entrega ao prazer é verdadeiramente de uma enorme ignorância, para não
dizer inteiramente louco, se buscar a salvação por meio da prece dos justos e
pedir o perdão daqueles nos quais se glorifica, enquanto se suja
deliberadamente por seus atos. Quem deseja a prece dos justos não deve permitir
que ela se torne inerte e imóvel, se estiver verdadeiramente perseguido pelo
ódio dos demônios malignos. Ele deve fazer com que ela seja ativa e poderosa,
levada pelas asas de suas próprias virtudes, para que ela alcance Aquele que
pode conceder o perdão das faltas.
84.
A oração do justo pode muito se for feita, seja pelo justo que a cumpre, seja
por aquele que pede ao justo[337].
Quando ela é feita pelo justo, ela lhe dá toda a liberdade diante d'Aquele que
pode atender as demandas dos justos. E quando ela é feita pelo que pede ao
justo, ela o afasta de sua pena anterior, dispondo-o para a virtude.
85.
Uma vez que o Apóstolo disse: “Vocês se regozijarão nisto, ainda que tenham que
sofrer diversas provas por algum tempo[338]”,
como não se regozijará em sua aflição aquele que é afligido pelas provações?
86.
A palavra da verdade ensina que a aflição é dupla. Existe uma aflição que está
invisivelmente fundada na alma, e existe uma aflição que está visivelmente
fundada sobre os sentidos. Uma abarca toda a profundidade da alma atormentada
pelo martelo da consciência. A outra compreende todos os sentidos crispados sob
o peso das dores do escoamento natural. Uma é o fim do prazer dos sentidos;
outra o fim da alegria da alma. Ou antes, uma é o cumprimento do conhecimento
dos sentidos e a outra o cumprimento das paixões deste falso conhecimento.
87.
A aflição, me parece, é um estado privado de prazeres. A privação dos prazeres
suscita em nós as penas. A pena é claramente a ausência ou a perda de uma
faculdade natural. A ausência de uma faculdade natural é a paixão da potência
da natureza que está submetida a esta faculdade. A paixão da potência da natureza submetida a
esta faculdade é o modo da energia natural em seu mau uso. E o mau uso do modo
da energia é o movimento da potência que não é feita bem está fundamentada
conforme a natureza.
88.
A aflição da alma é o objetivo do prazer dos sentidos, pois a aflição da alma é
suscitada por este prazer. Do mesmo modo, a aflição da carne é a finalidade do
prazer da alma, pois a aflição da carne se torna o regozijo da alma.
89.
Existem duas aflições. Uma é a dos sentidos: ela é feita da privação dos
prazeres do corpo. Outra é a do intelecto: ela é feita da privação dos bens da
alma. As provações também são duplas. Umas são voluntárias, outras
involuntárias. As provas voluntárias estão na origem do prazer corporal dos
sentidos, e engendram a aflição da alma, pois, quando este é cumprido, o pecado
aflige a alma. E as provas involuntárias, que se revelam nas penas como um
falso conhecimento, estão na origem do prazer da alma e engendram a aflição
corporal dos sentidos.
90.
Assim como a palavra da verdade ensina a dupla aflição, como eu disse, também
ela conhece o duplo modo das provações. O primeiro modo consiste nas provas que
nos acontecem como as desejamos; o outro, nas provas que nos acontecem contra nossa
expectativa. Um suscita prazeres voluntários; outro leva a dores involuntárias.
Pois a prova que desejamos suscita claramente prazeres voluntários que nos
agradam. Mas a prova que não esperamos nos impõe manifestamente penas
involuntárias que não nos agradam. Umas estão na origem da aflição da alma;
outras na origem da aflição dos sentidos.
91.
A prova que desejamos suscita a aflição da alma, e engendra claramente o prazer
dos sentidos; mas a prova que não esperamos impõe o prazer da alma e a aflição
da carne.
92.
Penso no que disse nosso Senhor e nosso Deus quando ensinou a seus discípulos
como deveriam rezar para conjurar o tipo de provas que desejassem: Ele disse:
“Não nos deixe cair em tentação[339]”.
Isto significa que eles deveriam se acostumar a orar para não serem abandonados
às provações voluntárias voltadas ao prazer e ao conhecimento. Penso também
naquilo que o grande Tiago, chamado de irmão do Senhor. Disse das provações
involuntárias, quando ensinou aos que combatiam pela verdade que não se deixassem
abater. Ele disse: “Considerem uma grande alegria, meus irmãos, serem vítimas
de toda sorte de provações[340]”,
ou seja, da provas involuntárias que não esperamos e que suscitam as penas.
Isto fica claramente demonstrado pelo fato de que o Senhor acrescenta:
“Livra-nos do mal”, e o grande Tiago: “Vocês sabem que o valor de sua fé
suscita a paciência. Mas que a sua paciência traga consigo uma obra perfeita,
para que vocês sejam perfeitos e completos, não deixando nada a desejar[341]”.
93.
O Senhor nos ensina a esconjurar as provas voluntárias, pois elas suscitam o
prazer da carne e a dor da alma. E o grande Tiago nos exorta a que nos
regozijemos com as provas involuntárias, pois elas apagam o prazer da carne e a
dor da alma.
94.
É perfeito aquele que combate com a temperança as provas voluntárias e que
suporta com paciência as provas involuntárias. É completo aquele que alia a
ação ao conhecimento, e cuja contemplação não acontece sem a ação.
95.
Quando a aflição e o prazer são divididos entre a alma e os sentidos, aquele
que se volta para o prazer da alma e que assume com paciência a aflição dos
sentidos, é primeiro noviço, depois perfeito e por fim completo. Ele se torna
um noviço experiente, por sua experiência nas adversidades que combatem os
sentidos. Ele se torna perfeito, pois, pela temperança e a paciência, ele
combate implacavelmente o prazer e a aflição dos sentidos. E ele se torna completo, pois, na constância
da identidade da razão, ele mantém intactas as faculdades que combatem as disposições dos sentidos opostas umas às
outras. Estas faculdades são a ação e a contemplação, que estão unidas entre si
e jamais se separam. Mas a ação manifesta por seus modos o conhecimento da
contemplação; e a contemplação manifesta a virtude recoberta pela armadura da
ação, não menos do que a da razão.
96.
Podemos chamar de noviço experiente a quem conheceu a aflição e o prazer da
carne, pois ele teve a experiência da satisfação e das dificuldades das coisas
da carne. Podemos chamar de perfeito aquele que, pelo poder da razão, combateu
o prazer e a dor da carne. E podemos chamar de completo a quem, pela
intensidade de seu desejo por Deus, guardou inalteráveis as faculdades de ação
e de contemplação.
97.
A aflição da alma tem dois modos. Um é suscitado pelas faltas que nos são
próprias. Outro é provocado pelas faltas que nos são estranhas. A causa de tal
aflição é manifestamente o prazer dos sentidos daquele que é afligido, ou o
prazer daqueles por quem ele se aflige. Rigorosamente falando, não existe
praticamente nenhum pecado dentre os homens que não tenha a origem de sua
própria gênese na relação irracional entre a alma e os sentidos, por causa do
prazer. Quanto à causa do prazer da alma, ela está manifestamente na aflição
dos sentidos daquele que se regozija e se alegra com suas próprias virtudes e
com as virtudes dos outros, Pois, falando rigorosamente, não existe
praticamente nenhuma virtude dentre os homens que não tenha a origem de sua
própria gênese na aversão racional da alma em relação aos sentidos.
98.
Sem a relação passional entre a alma e os sentidos, não existe pecado entre os
homens. Mas o prazer da carne precede toda aflição que se forma na alma.
99.
A verdadeira gênese da virtude é a transformação voluntária da alma diante da
carne. Quem domina a carne pela penas voluntárias cumula a alma de alegria
espiritual.
100.
Quando a alma, por meio das virtudes, chega a ter aversão pelos sentidos, estes
sentirão necessariamente as penas. Pois eles não terão mais, unido a eles numa
relação de conhecimento, o poder da alma que concebe os prazeres. Ao contrário,
pela temperança, este poder repele corajosamente o levante dos prazeres, e por
intermédio da paciência permanece implacável diante da agressão das penas
involuntárias e contra a natureza. Ela
não deixa a dignidade e a glória divina da virtude pelo prazer inconsistente. E
pelos sentidos, que fazem sofrer e que não tombam das alturas das virtudes, ela
se abstém da carne, a fim de assumir as penas. A causa da aflição dos sentidos
é a obra da alma inteiramente ocupada comas coisas segundo a natureza. Mas a
energia da alma contra a natureza é manifestamente o prazer dos sentidos, que
não pode ter outra origem para se formar do que a demissão da alma, quando ela
desiste das coisas segundo a natureza.
SEXTA CENTÚRIA
1.
A potência intelectual da alma permite ao pensamento ultrapassar a si mesmo.
Separado da relação com os sentidos, em sua resolução ele deixa a carne vazia
de toda busca pelo prazer e não tenta consolar a dor da carne, a tal ponto
está, em sua resolução, ocupado com as coisas de Deus.
2.
O intelecto e os sentidos se opõem pela energia de suas naturezas, tão extremas
são a diferença e a alteridade que as fundamenta. Um tem por fundamento as
essências inteligíveis e incorpóreas, às quais ele se liga naturalmente em seu
próprio ser. Os outros têm por fundamento as naturezas sensíveis e corpóreas,
às quais, também eles, se ligam naturalmente.
3.
A demissão da alma e a desistência das coisas segundo a natureza é naturalmente
o começo do prazer dos sentidos. Pois enquanto a alma sente falta dos bens
segundo a natureza, a potência capaz de encontrar o modo do prazer dos sentidos
não pode se manifestar.
4.
Aonde a razão precede e guia os sentidos, durante a contemplação do visível, a
carne fica privada de todo prazer segundo a natureza, pois ela não tem em si, a
serviço de seus próprios prazeres, a impulsão desabrida, desembaraçada dos bens
da razão. É por isso que quando a razão que está em nós a carrega devido à
necessidade, a carne é posta à prova, por estar submetida à razão para alcançar
a virtude.
5.
Uma vez que ele dirige seus próprios bens segundo a natureza, o intelecto
misturado às manifestações do sensível pensa nos prazeres da carne, por ser
incapaz de atravessar a natureza das coisas visíveis, pois está ligado à
relação passional que o leva para os sentidos.
6.
Se não é possível ao intelecto dirigir-se ao inteligível que lhe é aparentado
sem contemplar as coisas sensíveis projetadas no intervalo, também é impossível
que tal contemplação possa acontecer sem os sentidos, que, de um lado, estão
ligados ao intelecto e, de outro são aparentados ao sensível por natureza. Se,
em seu impulso, ele mergulha nas manifestações do sensível, pensando que os
sentidos que estão ligados a ele são uma energia natural, o intelecto se
desliga do inteligível segundo a natureza, e é capturado com as duas mãos pelos
corpos contra a natureza, como se diz. Dirigido por eles de encontro à razão,
por causa dos sentidos vitoriosos, ele engendra a tristeza da alma, atormentada
pelos repetidos golpes da consciência, e suscita visivelmente o prazer dos
sentidos, fecundado que está pelos pensamentos dos modos que reconfortam a
carne. Mas se, ao mesmo tempo em que se lança em direção aos sentidos ele apaga
a manifestação do visível, ele verá as razões espirituais dos seres,
purificados das formas que os recobrem: ele terá chegado ao prazer da alma que
não está mais prisioneira das coisas sensíveis que ela contempla, e ele terá
suscitado a aflição dos sentidos que ficam privados de todo o sensível segundo
a natureza.
7.
Uma vez que o prazer dos sentidos suscita a aflição, ou seja, as penas da alma
(pois ambas, uma pela outra, são a mesma coisa), o prazer da alma suscita
naturalmente a aflição, ou seja, as penas dos sentidos. Aquele que busca a vida
esperada, a vida de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, pela ressurreição dos
mortos, na herança guardada nos céus longe de toda corrupção, de toda mancha e
de toda condenação[342],
tem na alma um regozijo e uma alegria inefáveis: ele está constantemente
radiante, iluminado pela esperança dos bens futuros, mas carrega na carne e nos
sentidos uma aflição, as penas que lhe vêm das tentações de todas as sortes e
dos sofrimentos que elas infligem. Pois o prazer e a pena acompanham toda virtude.
A pena da carne, quando esta é privada dos sentidos agradáveis e lisos. E o
prazer da alma, quando esta se regozija nas delícias das razões no espírito,
purificadas de toda coisa sensível.
8.
É preciso que no decorrer da vida presente o intelecto, afligido pela carne –
penso eu – devido às numerosas penas e provas que lhe acontecem por causa da
virtude, se regozije sempre na alma e seja cumulado de prazer por causa da
esperança nos bens eternos, ainda que os sentidos estejam oprimidos. “Pois os
sofrimentos do tempo presente em nada se comparam à glória do provir, que
deverá se revelar em nós[343]”,
disse o Apóstolo divino.
9.
A carne pertence à alma, mas a alma não pertence à carne. Com efeito, a
Escritura diz que o homem inferior está submetido ao superior, mas não o
superior ao inferior. Portanto, uma vez que a lei do pecado foi misturada à
carne pela transgressão (tal é o prazer dos sentidos, por cuja causa a
condenação à morte foi pronunciada por intermédio das penas da carne), aquele
que sabe que a morte veio por causa do pecado, depois de haver concebido a anulação da lei da carne para a
destruição daquele, permanece sempre alegre em sua alma que, através de todas
as espécies de penas, vê a lei do pecado desaparecer de sua própria carne, para
receber a vida no espírito, a vida bem-aventurada do século futuro. Mas não é
possível descobrir esta vida de outro modo: na vida presente, segundo a relação
que a une à vontade, a carne deve primeiro se esvaziar da lei do pecado, como
se esvazia uma vaso.
10.
Aquele que é afligido pela virtude em sua carne por causa dos pecados,
regozija-se em sua alma por esta mesma virtude, pois vê, como se estivesse
presente, a beleza das coisas do porvir, pela qual morre diariamente em sua
vontade de deixar a carne, como o grande Davi[344],
quem que se renova continuamente seguindo o devir da alma no Espírito, por ter
em si o prazer salvador e a aflição útil. Chamamos de aflição, não a aflição
insensata que atormenta a alma quando esta é privada das numerosas paixões e
das coisas materiais que suscitam os impulsos contra a natureza em direções e
fugas indevidas, mas a aflição submetida à razão, esta aflição que confirma aos
sábios o divino e que lhes apresenta o mal presente. Os sábios dizem, com
efeito, que o mal presente é a aflição que se forma na alma quando o prazer dos
sentidos prevalece sobre o discernimento da razão, e é a aflição que se insinua
nos sentidos quando a trajetória da alma sobre o caminho da virtude é conduzido
de forma correta e livremente, levando aos sentidos penas na mesma medida em que suscita o prazer
e a alegria na alma, que se dirige a Deus pelo esplendor da virtude e do
conhecimento que lhe é aparentado.
11.
O prazer salvador é a alegria da alma dada pela virtude e pela aflição útil, é
o sofrimento da carne por causa da virtude. Assim, quem se consome nas paixões
e nos afazeres dirige seus impulsos indevidamente. E quem não busca as ocasiões
capazes de privá-lo das paixões e dos afazeres foge também indevidamente.
12.
Nem a graça divina opera as iluminações do conhecimento se não houver quem
receba, por intermédio de uma potência natural, a iluminação, nem tampouco
aquele que é capaz de receber opera a iluminação do conhecimento sem a graça
que a concede.
13.
A graça do Santíssimo Espírito Santo não produz nem a sabedoria nos santos sem
o intelecto para recebê-la, nem o conhecimento sem a potência da razão para
recebê-lo, nem a fé sem que haja no intelecto e na razão a certeza das coisas
do século por vir, estas coisas que até agora estão ocultas a todos, nem os
carismas das curas[345]
sem o amor aos homens conforme a natureza, nem nenhum dos outros carismas sem a
faculdade e a potência que deve, receber cada um deles. E, certamente, não
existe homem capaz de adquirir por sua potência natural sequer um dos carismas
que enumeramos sem a potência divina que os concede. É isto que mostram
claramente todos os santos que, depois das revelações das coisas divinas,
buscaram as razões daquilo que lhes havia sido revelado.
14.
Quem pede sem paixão recebe a graça de poder agir praticando as virtudes. Quem
busca impassivelmente encontra na contemplação natural a verdade que está no
coração dos seres. E quem bate impassivelmente na porta do conhecimento[346],
entrará sem ser impedido na graça oculta da teologia mística.
15.
Quem busca impassivelmente as coisas divinas receberá certamente aquilo que
busca. Mas quem busca com qualquer paixão não obterá o que procura. Com efeito,
o Apóstolo disse: “Vocês pedem e não recebem, porque pedem mal[347]”.
16.
O Espírito Santo busca e sonda em nós o conhecimento dos seres. Mas não é por
si mesmo que ele busca isto, pois ele é Deus e está além de todo conhecimento.
Assim como o Verbo se fez carne, não por si mesmo, certamente, mas por nós,
cumprindo o mistério pela carne (pois não foi sem a carne animada pelo
intelecto que o Verbo da carne produziu de maneira divina as coisas conforme a
natureza), também o Espírito Santo não cumpre nos santos os conhecimentos dos
mistérios sem a potência que busca e sonda,
conforme a natureza, o conhecimento.
17.
Assim como não é possível que, sem a luz do sol, o olho perceba as coisas
sensíveis, da mesma forma, sem a luz espiritual, um intelecto humano não é
capaz de receber uma contemplação espiritual. Com efeito, a luz sensível
ilumina os sentidos, na ordem da natureza, para que estes percebam as coisas
corporais. E a luz espiritual, na ordem da contemplação humana, ilumina o
intelecto, para que este compreenda o que está acima dos sentidos.
18.
A natureza dos homens recebeu as potências que buscam e sondam as coisas
divinas fundamentalmente como depósito de Deus quando de sua própria passagem
pelo ser. Mas as revelações do divino, é a potência do Espírito Santo que as
realizou pela graça, quando ele veio habitar entre nós. Uma vez que no
princípio, pelo pecado, o maligno fixou estas potências à natureza das coisas
visíveis (e ninguém havia que compreendesse ou buscasse a Deus[348],
pois tudo o que participava da natureza tinha a potência de seu intelecto e de
sua razão encerrada na manifestação das coisas sensíveis, sem noção alguma das
coisas mais elevadas do que os sentidos), com direito a graça do Santíssimo
Espírito Santo restabeleceu a potência que havia sido fixada às coisas
materiais, depois de desligá-las, naqueles que deliberadamente não se submeteram
mais ao erro de sua vida anterior. É esta potência que tais homens primeiro
buscaram e sondara, quando receberam a graça por sua pureza. E foi então que
eles puderam buscar e sondar mais profundamente: pela graça mesma do Espírito.
19.
Evidentemente, a finalidade da fé consiste propriamente na salvação das almas[349].
A finalidade da fé é a verdadeira revelação de tudo aquilo no que acreditamos.
A verdadeira revelação de tudo aquilo no que acreditamos é, de modo indizível,
seu resultado[350]
na proporção da fé de cada um. O resultado daquilo em que acreditamos é o
retorno ao início, conforme o fim daqueles que creram. O retorno ao início
próprio ao fim dos que creram é o cumprimento ao qual leva o impulso dos que
vão manifestamente em direção a Deus. O
cumprimento a que leva o impulso é o movimento perpétuo ao redor daquilo que
desejam aqueles que buscam. O movimento
perpétuo ao redor daquilo que desejam aqueles que buscam é a fruição contínua e
incessante do desejável. A fruição contínua e incessante do desejável é a
participação nas coisas divinas mais elevadas do que a natureza. A participação
nas coisas divinas mais elevadas do que a natureza é a semelhança daqueles que
participam com aquilo que eles recebem em participação. A semelhança daqueles
que participam com aquilo que eles recebem em participação é, na ação, a
identidade dos que participam pela semelhança e aquilo mesmo que eles recebem
por participar. A identidade possível, na ação, daqueles que participam pela
semelhança é, pela semelhança daquilo que eles recebem em partilha, a
deificação dos que são dignos de ser deificados. A deificação é, segundo a
razão do modelo, o desenvolvimento e o fim de todos os tempos e de todos os
séculos e de tudo o que está contido nos tempos e nos séculos. O desenvolvimento e o fim de todos os tempos e
de todos os séculos e de tudo o que está contido neles é a unidade do começo
puro e simples com o fim puro e simples naqueles que foram salvos. A unidade
contínua do começo puro e simples com o fim puro e simples nos salvos é a mais elevada saída das coisas da
natureza, fundamentalmente medidas pelo começo e o fim. A saída das coisas da
natureza, fundamentalmente limitadas pelo começo e pelo fim, é a energia de
Deus, toda poderosa e mais do que poderosa, imediata, infinita, aberta ao
infinito, naqueles que foram considerados dignos da saída das coisas da
natureza. A energia de Deus, toda
poderosa e mais do que poderosa, imediata, infinita, aberta ao infinito, é o
prazer e a alegria inefáveis e mais do que inefáveis daqueles que foram
cumulados desta energia, na união silenciosa que ultrapassa o entendimento,
esta união cuja razão, sentido ou expressão são absolutamente impossíveis de se
achar na natureza dos seres.
20.
A natureza não contém as razões daquilo que é mais elevado do que a natureza,
assim como não contém as leis daquilo que é contra a natureza. Chamo de mais
elevado do que a natureza ao impensável prazer divino que Deus suscita por
natureza, unindo-se pela graça àqueles que dela são dignos. E chamo de contra a
natureza a dor indizível provocada pela privação da graça que Deus continuou a
suscitar por natureza unindo-se contra toda a graça àqueles que são indignos
dela. Conforme a qualidade das disposições inerente a cada um, Deus, unido a
todos, como quiser, dará a cada um a faculdade de sentir, conforme cada um
formou a si mesmo para receber Aquele que se unirá totalmente a todos no fim
dos séculos.
21.
Os que buscam as razões e os modos espirituais de tal salvação serão levados
pelo Espírito Santo a compreender, sem que neles permaneça imóvel e inerte a
potência pela qual eles buscam naturalmente as coisas divinas.
22.
Buscamos em primeiro lugar destruir o pecado pela intenção, e destruir a
intenção de pecar: examinaremos então como
e de que maneira devemos destruí-los um pelo outro, e, após havermos
destruído perfeitamente a ambos, buscaremos dedicar a vida à intenção pela
virtude, e a dedicar a vida à intenção da virtude: examinaremos então como e de
que maneira devemos suscitar a vida em uma e outra. A busca, para defini-la
assim, consistirá na tendência pela coisa desejada. E o exame é o modo eficaz
da tendência pela coisa desejada.
23.
Na verdade, aquele que é chamado à salvação deve não apenas destruir o pecado
pela intenção mas também destruir a intenção de pecar; e não apenas ele deve
ressuscitar a intenção pela virtude, como também a própria virtude pela
intenção, a fim de que a intenção morta não se sinta inteiramente separada do
pecado inteiramente morto, e que a intenção viva se sinta inteiramente em união
contínua com a virtude inteiramente viva. Aquele que destruiu a intenção de
pecar se torna, por semelhança, da mesma natureza que a morte de Cristo. E quem
ressuscitou a intenção pela justiça torna-se também da mesma natureza que sua
ressurreição[351].
24.
O pecado e a intenção, que se destroem mutuamente, são duplamente insensíveis
um quanto ao outro. Da mesma forma, a justiça e a intenção, que se dão vida
reciprocamente, são duplamente sensíveis.
25.
Cristo, que é Deus e homem por natureza, é por nós recebido em herança pela
graça, em sua divindade, mais elevada do que a natureza, conforme a inefável
participação. E por nós, unido a nós em sua humanidade que tomou nossa forma,
ele herdou de si mesmo conosco, segundo a incompreensível compaixão. Depois de
tê-lo antes contemplado misticamente em espírito, os santos aprenderam
convenientemente que os sofrimentos sofridos por ele presentemente em vista da
virtude precedem a glória em Cristo que, por causa da virtude, será manifestada
no século por vir[352].
26.
O intelecto levado inconsciente à causa dos seres, seguindo apenas seu desejo,
não faz mais do que buscar. Mas a razão, examinando de muitas maneiras, sonda
as verdadeiras razões que estão nos seres.
27.
A busca, ligada ao desejo, é o movimento inicial e simples do intelecto em
direção à sua própria causa. O exame, ligado a um dado pensamento, é o
discernimento inicial e simples da razão em direção à sua própria causa. A
busca profunda é novamente, ligada a um desejo ardente, o movimento gnóstico do
intelecto na direção de sua própria causa, conforme a ciência; e o exame
profundo, ligado a um pensamento refletido e sábio, é o discernimento da razão
sobre sua própria causa, conforme a atividade das virtudes.
28.
Os santos e os divinos profetas, que buscaram profundamente e que sondaram
profundamente a salvação das almas[353],
tinham em si, em seu desejo fervoroso e ardente, o movimento do intelecto para
Deus, ligado À ciência e ao conhecimento, e tinham, refletido e sábio, o
discernimento da razão, conforme a energia das coisas divinas. Aqueles que os
imitam com conhecimento e ciência também buscam profundamente a salvação das
almas. E, sondando profundamente com prudência e sabedoria, eles chegam a
discernir as obras divinas.
29.
A palavra da verdade ensina que o conhecimento das coisas divinas é duplo. Um é
o conhecimento relativo, situado apenas na razão e nos pensamentos e não
trabalha com a percepção daquilo que é conhecido pela experiência: é por este
conhecimento que somos governados durante nossa vida presente. O outro é o
conhecimento próprio, o conhecimento verdadeiro fundamentado apenas sobre a
experiência, e que trabalha, fora da razão e dos pensamentos, com a percepção
total daquilo que é conhecido pela graça, na participação: é por este conhecimento
que recebemos, acima da natureza, a deificação que não cessa de trabalhar para
o momento do século por vir. Os sábios dizem que o conhecimento relativo, que
está situado na razão e nos pensamentos, coloca em movimento o impulso para o
conhecimento que trabalha pela participação; e que o conhecimento operacional,
que cumpre o impulso em direção àquilo que é conhecido pela experiência, na
participação, apaga o conhecimento situado na razão e nos pensamentos.
30.
Existem dois conhecimentos. Um, que está situado na razão e nos pensamentos
divinos, não possui em realidade propriamente a percepção dos inteligíveis. O
outro, que trabalha, tem apenas, fora da razão e dos pensamentos, a fruição
real daquilo que é verdadeiro. Com efeito, uma vez que, pelo conhecimento, a
razão representa naturalmente aquilo que é conhecido, ela desenvolve o desejo
por aquilo que ela suscita, com vistas a usufruir daquilo que ela representou.
31.
Os sábio dizem que é impossível a coexistência do discurso sobre Deus com a
experiência de Deus, ou a intelecção e a percepção de Deus. Chamo de discurso
de Deus a analogia que extraímos dos seres quando contemplamos a Deus para
conhece-lo. Chamo de percepção a experiência dos bens mais elevados do que a
natureza, esta experiência que permite a participação. E chamo de intelecção o
conhecimento simples e único que temos dele a partir dos seres. Mas é possível
conhecer de um modo totalmente diferente: se a experiência de uma dada coisa
suprime o discurso sobre ela, e se a percepção de uma dada coisa suscita a
intelecção que se consagra a ela. Chamo de experiência este a conhecimento em
ato, que vem depois de toda palavra. E chamo de percepção a esta participação
ao conhecido, que se manifesta depois de toda intelecção. Está aí, justamente,
o que é ensinado misticamente pelo grande Apóstolo, quando diz: “As profecias
serão abolidas, as línguas cessarão, o conhecimento desaparecerá[354]”,
falando do conhecimento situado na razão e nos pensamentos.
32.
Era necessário, em verdade, que Aquele que é por natureza o Criador da essência
estivesse também na origem da deificação das criaturas pela graça, a fim de que
Aquele que dá o ser aparecesse igualmente como Aquele que concede ao ser o bem
eterno. Uma vez que nenhum ser conhece outra coisa senão aquilo que ele é por
essência, está claro que nenhum ser possui por natureza a presciência de nada
do que está por vir, salvo Deus que está acima dos seres e conhece a si mesmo –
aquilo que ele é por essência – e que conheceu, antes mesmo que nascessem, a
existência de todos os que foram criados por ele, e que buscará, para os seres,
pela graça, o conhecimento de si mesmos e dos outros – aquilo que eles são por
essência – e manifestará as razões de seu porvir, que pré-existem nele na
unidade.
33.
Deus o Verbo, que criou a natureza dos homens, não fundou com ela nem o prazer
nem a dor dos sentidos. Mas ele suscitou nela uma potência do intelecto que a
conduz ao prazer pelo qual ela poderá inefavelmente usufruir dele. Ora, depois
de haver dado aos sentidos, como devir, esta potência – quero dizer o impulso
do intelecto para Deus – neste primeiro movimento o primeiro homem se ligou ao
prazer voltado contra a natureza para as coisas sensíveis, por intermédio dos
sentidos. Foi aí que, então, Aquele que vela por nossa salvação fixou sua
providência, a dor, como uma potência vingadora, por meio da qual a lei da
morte foi enraizada com sabedoria na natureza dos corpos, limitando o desejo da
loucura do intelecto, voltado contra a natureza para as coisas sensíveis.
34.
O prazer e a dor não foram criados junto com a natureza dos corpos. Mas a
transgressão concebeu um pata corromper a vontade, e condenou a outra a
dissolver a natureza, a fim de que o prazer fizesse do pecado a morte
voluntária da alma, e a dor, pela dissolução, suscitasse a desaparição da forma
exterior da carne. Com efeito, foi com sua providência, para castigar o prazer
voluntário, que Deus deu à natureza a dor involuntária e a morte.
35.
Por causa do prazer entranhado na natureza de encontro à razão, a dor penetrou
em seguida, segundo a razão, por meio de numerosos sofrimentos, nos quais e
pelos quais veio a morte, a fim de suscitar a supressão do prazer contra a
natureza, mas não a supressão total pela qual se manifesta naturalmente a graça
do prazer divino.
36.
O desejo pelas penas voluntárias e o ataque às penas involuntárias suprimem o
prazer e detêm sua atividade, mas não fazem desaparecer a potência que se
encontra na própria natureza como uma lei do devir. Pois a filosofia ligada à
virtude, esta filosofia pela qual a graça do prazer divino no intelecto sucede
à impassibilidade da reflexão, suscita naturalmente a impassibilidade da
reflexão, mas não a da natureza.
37.
Toda pena que tem por causa de sua própria gênese o ato de prazer que a
precedeu é, evidentemente, uma dívida adquirida por esta causa por aqueles que
tem parte com a natureza. Pois a pena natural segue com certeza o prazer contra
a natureza em todos aqueles cujo porvir é guiado, sem que haja causa, pela lei
do prazer. Chamo sem causa ao prazer que vem da transgressão, pois,
evidentemente, ele não sucede uma pena que o tenha precedido.
38.
Era impossível que a natureza decaída sob o prazer voluntário e a dor
voluntária fosse novamente chamada à vida original, se o Criador não se tivesse
tornado homem, recebendo voluntariamente a dor concebida para castigar o prazer
voluntário da natureza (esta dor que não precedera o devir saído do prazer), a
fim de libertar a natureza do nascimento que segue à condenação, uma vez que
ele assumiu o nascimento cuja origem não foi o prazer.
39.
Uma vez que após a transgressão todos os homens passaram a carregar o prazer
que precede naturalmente seu próprio devir, ninguém havia que estivesse de todo
livre naturalmente do devir passional ligado ao prazer. Mas como todos pagaram
as penas como uma dívida natural e suportaram a morte ligada ao devir, o modo
da liberdade era impossível aos que estavam tiranizados pelo prazer injusto e
naturalmente entravados pelas justas penas e a justíssima morte que estas
carregavam consigo. Para suprimir o prazer injusto e as justas penas sofridas
por sua causa, estas penas pelas quais o homem sofredor estava, digno de
piedade, feito em pedaços, extraindo da
corrupção do prazer a origem de seu devir e terminando sua vida na corrupção e
na morte, e também para reendireitar a natureza sofredora, era preciso conceber
uma pena e uma morte a um tempo injustas e sem causa. Sem causa, porque elas
não teriam conhecido nenhum prazer que fosse anterior ao devir; injustas,
porque elas não teriam sucedido a absolutamente nenhuma vida passional, a fim
de que, tomadas como intermediárias entre o prazer injusto e a pena e a morte
justas, a pena e a morte injustas suprimissem totalmente a origem injusta vinda
do prazer e o justo fim da natureza que, por causa do prazer, vem pela morte, e
para que a raça dos homens fosse novamente livre, desembaraçada do prazer e da
dor, tendo a natureza recuperado a boa parte que possuía de início, esta parte
que não foi manchada por nenhum dos traços que marcam naturalmente aquilo que
está submetido ao devir e à corrupção. É por isso que o Verbo de Deus, que é
Deus perfeito por natureza, se tornou homem perfeito composto de uma alma
dotada de inteligência e de um corpo votado ao sofrimento, próximo de nós por
natureza, mas sem pecado. Pois absolutamente nenhum prazer – saído da
transgressão – havia precedido seu nascimento de uma mulher no tempo. E por
amor ao homem, por sua vontade, ele assumiu a dor – a dor sofrida por causa do
prazer – que é o fim da natureza, a fim de, sofrendo injustamente, suprimir a
origem do devir, que tiraniza a natureza por um prazer injusto (pois a morte do
Senhor não foi como o pagamento de uma dívida originada pelo devir, como
acontece com os demais homens, mas de algo projetado sobre ele), e fazer
desaparecer o justo fim da natureza pela morte, pois ele não tinha como causa
de ser o prazer único por cuja causa a morte entra, e castigar com justeza a
esta morte.
40.
Era preciso – era verdadeiramente necessário – que o Senhor, que é sábio, justo
e poderoso por natureza, em sua sabedoria não ignorasse o modo de cura, em sua
justiça não mantivesse tirânica a salvação do homem voluntariamente tomado pelo
pecado, em sua plenipotência não descansasse, a fim de levar a cura até o bem
sucedido fim.
41.
A sabedoria de Deus se revela no fato de que ele nasceu por natureza segundo a
verdade. Sua justiça se revela no fato de que ele assumiu como nós o sofrimento
segundo o devir da natureza. Sua potência se revela quando, pelos sofrimentos e
pela morte, ele fez da vida eterna por natureza uma impassibilidade imutável.
42.
O Senhor deixou manifesta a razão da sabedoria no modo da cura, tornando-se
homem sem mudança e sem transformação de qualquer espécie. Ele mostrou a
igualdade da justiça na grandeza da compaixão, assumindo voluntariamente a
sentença que condenava a natureza a se submeter ao sofrimento e fazendo desta
sentença uma arma para suprimir o pecado e a morte devida ao pecado, ou seja, o
prazer e a dor engendrada pelo prazer, mesmo diante da existência do poder do
pecado e da morte, da tirania do pecado ligado ao prazer e do poder da morte
ligada à dor por causa do pecado. Pois o poder do prazer e o poder da dor
existem, evidentemente, no fato de estar a natureza submetida ao sofrimento. De
uma certa maneira, nos aumentamos, de fato, a pena que, segundo a natureza, nos
destina à dor forçando-nos a aliviar esta dor com o prazer. Querendo escapar à
sensação da dor, fugimos para o prazer, tentando aliviar a natureza oprimida
pela violência da dor. Mas, ao nos esforçarmos para amaciar pelo prazer os
movimentos da dor, logo confirmamos a caução que estes movimentos deram ao
prazer, incapazes que somos de termos em nós o prazer livre da dor e das penas.
43.
Pelas adversidades que sofreu, ele tornou evidente a força da potência
transcendente, uma vez que colocou na natureza o devir inalienável. Ao dar à
natureza a impassibilidade pela paixão, a quitação das dívidas pelas penas e a
vida eterna pela morte, ele restabeleceu as faculdades da natureza renovando-as
por sua renúncia e privação na carne e ao dar à natureza, com sua própria
encarnação, a graça sobrenatural: a deificação.
44.
Deus se tornou homem verdadeiramente e deu um novo começo à natureza, a origem
de uma segunda gênese, que pelas penas desemboca no prazer da vida do século
futuro. Com efeito, da mesma forma como Adão o Ancestral, ao transgredir o
mandamento divino, fez entrar na natureza um outro começo da gênese, oposto à
primeira origem, que nascia do prazer mas terminava na morte pelo sofrimento; assim
como concebeu, seguindo o conselho da serpente[355],
um prazer que não era decorrente de uma pena anterior mas que estava presente
na própria pena; e assim como, por causa da origem injusta extraída do prazer,
carregou consigo, na morte, pela pena, todos os que nasceram dele na carne à
sua imagem; também o Senhor, quando se tornou homem e suscitou na natureza,
pelo Espírito, outro começo de uma segunda gênese, recebendo a justa morte de
Adão pelo sofrimento – esta morte que nele era evidentemente injusta (pois ele
não tinha como origem de sua própria gênese o prazer injusto que fora dado a
Adão pela transgressão) – o Senhor, ao suprimir os dois, a origem e o fim do
devir humano em Adão, retirou aquilo que até então não era de Deus e libertou da
culpabilidade deste devir todos os que dele receberam espiritualmente o novo
nascimento.
45.
Depois de haver suprimido o prazer do pecado nascido da lei para ultrapassar o
nascimento carnal dos que haviam nascido pelo Espírito na graça, o Senhor lhes
concedeu, a fim de condenar o pecado, que recebessem a morte anteriormente
destinada a condenar a natureza, pois eles já não tinham o prazer do devir de
Adão, este prazer que vinha dele, mas apenas a dor que agia sobre eles por
causa de Adão, não porque ela quitava o pecado, mas pela economia (a lei e a
ordem do projeto divino), para reencontrar a com dição de estado da natureza: a
morte do pecado. Quando já não tem para gerá-la o prazer da qual é a justiceira
natural, a morte se torna como o pai da vida eterna. Pois, assim como a vida de
prazer que Adão tinha se tornou a mãe da morte e da corrupção, da mesma forma a
morte do Senhor por Adão, por estar livre do prazer nascido de Adão, engendra a
vida eterna.
46.
A natureza dos homens depois da transgressão teve por origem de seu próprio
devir a concepção nascida da inseminação pelo prazer e o nascimento a partir da
ejaculação. Ela termina na morte pela dor e na corrupção. Mas o Senhor, que não
tinha esta origem no seu nascimento carnal, não pôde ter tido este mesmo fim,
ou seja, a morte.
47.
Depois de haver seduzido a Adão no princípio, o pecado o persuadiu a
transgredir o mandamento divino[356],
segundo o qual, por haver suscitado o prazer e por ter se enterrado pelo prazer
nesta profundidade da natureza, ele condenava à morte toda a natureza,
empurrando a natureza dos seres criados para a decomposição e a morte pelo
homem. Tudo isto foi tramado pelo semeador do pecado e pai da malícia, o
maligno diabo, que, devido a seu orgulho, foi banido da glória divina, mas em sua
inveja[357]
contra nós e contra Deus, fez banir Adão do Paraíso para fazer desaparecer as
obras de Deus e destruir o que havia sido criado em vista do devir.
48.
O diabo, que invejava a Deus e que nos inveja, depois de haver com suas
armadilhas persuadido o homem de que este era invejado por Deus[358],
preparou-o para que transgredisse o mandamento. Como ele invejava a Deus, ele o
fez de tal modo que a potência digna de todo louvor deste, que deificava o
homem, não se tornasse visível. E como ele invejava o homem, ele fez de modo a
que este, por sua virtude, não participe realmente da glória divina. Pois o
impuro não apenas inveja nossa glória que conduz a Deus pela virtude, mas
também inveja o poder de Deus digno de todo louvor, que nos chega pela
salvação.
49.
Assim como em Adão a morte foi a condenação da natureza[359],
que tinha como origem de seu devir o prazer, também a morte de Cristo foi a
condenação do pecado[360],
uma vez que em Cristo a natureza se revestiu novamente de seu devir puro de
todo prazer.
50.
Se mesmo nós, que fomos, no Espírito, considerados dignos de nos tornamos
morada de Deus pela graça[361],
devemos dar provas de paciência quando sofremos pela justiça em vista da
condenação do pecado[362]
e devemos nos dirigir de bom coração para a morte ignominiosa como se fôssemos
malfeitores, ainda que sejamos bons, qual será o fim daqueles que desobedecem
ao Evangelho de Deus[363]?
Vale dizer, qual será o fim, qual será a condenação daqueles que, não somente
em suas almas e corpos, vontades e natureza, carregam em si até o final,
apressadamente, vivo e ativo, o devir da natureza que dominou a Adão por meio
do prazer, mas não recebem nem Deus Pai – que consola por intermédio do Filho
encarnado – nem o próprio mediador[364],
o Filho que intercede junto ao Pai, e que ofereceu a si mesmo à vontade do Pai
em sua morte por nós a fim de nos reconciliar com o Pai e deste modo nos
glorificar por sua própria causa, iluminando-nos com a beleza de sua própria
divindade, que ele mesmo aceitou ser desonrada por nós e pelos nossos sofrimentos?
51.
Uma vez que Deus será o lugar sem limites, sem dimensões, sem fim, de todos os
salvos, tornado tudo em todos na medida da justiça, ou melhor, na medida dos
sofrimentos que suportou aqui em baixo conscientemente pela justiça, dando a si
mesmo a cada membro (pois a graça revela a si mesma na obra conforme o poder
que reside no coração de cada membro e a partir daí no próprio ser cujos
membros foram conservados em vida), onde ficam o ímpio e o pecador[365]
privados desta graça? Pois onde se encontrará quem não pode acolher em si a
presença eficiente de Deus na beatitude, quando sofrer o banimento para longe
da vida divina que é mais elevada do que o século, o tempo e o espaço?
52.
Quem não tem Deus, que mantém a vida voltada para a beatitude e que deve se
tornar um lugar para todos os que são dignos dele, uma vez que não terá por si
a Deus na morada e no edifício da beatitude em Deus? E se o justo é salvo com
grandes penas[366],
o que acontecerá, ou a quem se confiará aquele que nada fez de piedoso nem de
virtuoso durante a vida presente?
53.
Pelo poder infinito de uma mesma resolução de sua bondade, Deus manterá unidos
todos os seres, os anjos e os homens, os bons e os maus[367].
Mas nem todos participarão igualmente de Deus, que os separou absoluta e
irresistivelmente, e sim participarão conforme ao que são em si mesmos.
54.
Os que guardaram sua reflexão continuamente igual à natureza e a tornaram capaz
de receber por sua atividade as razões da natureza ligadas à razão global da
beatitude, por causa do prazer com que esta reflexão se volta para a vontade
divina, estes participarão totalmente da bondade da vida divina que brilha
sobre eles, tanto homens como anjos. Mas os que tornaram sua reflexão
continuamente desigual à natureza e que mostraram isto dispersando com sua
atividade as razões da natureza ligadas à razão global da beatitude, por causa
da repugnância com que esta razão se volta para a vontade divina, estes serão
derrubados de toda bondade porque neles se manifesta a alienação do pensamento
voltado para a beatitude. Por causa desta alienação, estes homens serão
separados de Deus, por não trazerem em si, na expressão de seu pensamento, a
razão da beatitude fecundada pela energia dos bens, esta razão segundo a qual a
vida divina aparece naturalmente.
55.
Quando vier o Juízo, a razão da natureza será a balança que pesará cada
pensamento, pois ela mostra o movimento que pende para mal ou para o bem,
movimento segundo o qual se dá ou não a participação na vida divina. Com
efeito, por sua presença, Deus manterá no ser e no ser eterno a todas as
criaturas. Mas não o fará de um modo particular, no ser eterno pleno de
felicidade, senão aos anjos e aos santos homens, deixando aos que não o são o
ser eternamente infeliz, como o fruto alterado de seus pensamentos.
56.
O mistério da encarnação divina não coloca sobre o mesmo plano a alteridade
segundo a natureza – a alteridade dos seres que a constituem – e a diferença
segundo a hipóstase. De um lado, para que o mistério da Trindade não receba
adjunção e, de outro, para que ninguém seja por natureza semelhante e
consubstancial à Divindade. Com efeito, a união das duas naturezas numa
hipóstase não se deu em uma única natureza, a
fim de que a unidade da hipóstase se revelasse ao se realizar na união,
a partir das duas naturezas que convergiam uma para a outra, e para que fosse
acrescentada fé à diferença destas naturezas que se uniram na união
indissolúvel segundo sua propriedade natural, e para que esta diferença
permanecesse fora de toda mudança e de toda confusão.
57.
Nós não dizemos que em Cristo exista uma diferença de hipóstase, pois a
Trindade permaneceu Trindade mesmo quando o Verbo se encarnou; a encarnação não
acrescentou uma pessoa à Santíssima Trindade. Nós dizemos que existe uma
diferença de naturezas, a fim de que não se considere que, segundo a natureza,
a carne é consubstancial ao Verbo.
58.
Quem não diz que existe uma diferença de natureza não tem nenhum meio de
confirmar a confissão de que o Verbo se fez carne[368]
sem se alterar. Pois ele não sabe que o que assumiu e o que foi assumido estão
salvaguardados em suas naturezas, depois da união, no seio da única hipóstase
do Cristo único, Deus e Salvador.
59.
Se em Cristo existe, depois da união, uma diferença de natureza (pois a
divindade e a carne jamais são a mesma coisa em essência, para poder se tornar
um só natureza), jamais houve uma união das naturezas conjuntas, mas união em
vista de uma só hipóstase, na qual não encontramos em Cristo, seja do modo que
for, nenhuma diferença. Pois o Verbo na hipóstase se identifica à sua própria
carne, uma vez que, se Cristo tinha em si uma diferença, ele não poderia ser um
de nenhum modo. Mas na medida em que ele recusa absolutamente toda diferença,
qualquer que seja ela, ele possui em si de todas as maneiras, na piedade, o ser
e o nome do Um.
60.
Pela esperança, a fé suscita o amor perfeito a Deus. A boa consciência assume o
amor ao próximo pela guarda dos mandamentos. Pois a boa consciência não tem
contra ela nenhum mandamento que tenha sido transgredido e que a acuse. Somente
o coração dos que desejam a salvação verdadeira se confia naturalmente aos
mandamentos.
61.
Nada é mais rápido do que crer, e nada mais fácil do que confessar pela boca
aquilo em que se acreditou. Um simboliza o amor vivo que o crente dirige ao
Criador; o outro, a benevolência ao próximo, amado por Deus. O amor e a
verdadeira benevolência, ou seja, a fé e a boa consciência, são manifestamente
obras do movimento do coração, esta obra que não necessita de matéria interior
para acontecer.
62.
Aquele que sofre ser incapaz de se mover no bem, se coloca certamente à
disposição do mal. Pois é impossível permanecer imóvel nos dois. É por isso que
a Escritura pode chamar de pedra a negligência da alma no bem, quando a alma é
insensível às virtudes, e pode chamar de madeira o ardor no mal. Mas o
movimento dos sentidos, quando ligado à atividade do intelecto, suscita a
virtude com o conhecimento.
63.
Em minha opinião a Escritura denominou muro de divisa a lei do corpo segundo a
natureza. E chamou de fechamento[369]
àquilo que nos liga às paixões pela lei da carne, ou seja, o pecado. De fato,
somente a relação mantida entre as paixões da infâmia e a lei da natureza, ou
seja, a parte da natureza submetida às paixões, se torna um fechamento, que
separa o corpo e a alma e não permite que, sob o efeito da ação, a razão das
virtudes passe para a carne por intermédio da alma. Mas quando a razão vem
trazer seu auxílio e combate a lei da natureza, ou seja, a parte da natureza
submetida às paixões, ela suprime a relação que essas paixões contra a natureza
tinham no seio desta lei.
64.
Quando, com suas intrigas e mentiras o maligno se apodera da virtude da
natureza, desta virtude implantada em Deus, ele é como um ladrão que tenta
fazer passar para si a veneração por Deus. Vale dizer que ele desvia para longe
das razões espirituais que estão nas criaturas a faculdade intelectual de
contemplar, e a limita à simples capacidade de observar superficialmente as
coisas sensíveis. Mas a partir do momento em que, começando pelos movimentos
naturais que conduzem às coisas da natureza, ele arrasta de maneira falaciosa a
potência prática e, com sua persuasão, por meio de supostas benesses, ele liga
ao pior o impulso desta potência, ele jura falsamente em nome do Senhor,
conduzindo a alma dócil para outras coisas, ao encontro de suas promessas. Ele
é ladrão, pois ele despoja para si próprio o conhecimento da natureza. E ele é
perjuro, pois ele convence a potência prática da alma a trabalhar penosamente
para fazer o que é contrário à natureza.
65.
Ou ainda, o ladrão é aquele que, para enganar aos que os escutam, aparentemente
utiliza as palavras divinas, das quais não conhece o poder por obras, fazendo
da simples enunciação da glória um comércio e buscando com as palavras de sua
boca o elogio que lhe fazem os que o escutam e o consideram como um justo. Numa
palavra, aquele cuja vida não está em harmonia com a palavra e cuja disposição
de alma é contrária ao conhecimento, é um ladrão que, escondido pelos bens
estrangeiros, não se deixa ver com clareza. É dele que o Verbo disse: “Deus
disse ao pecador: Porque você recita meus mandamentos e tem na boca minha
aliança?[370]”.
66.
Também é um ladrão aquece que recobre a maldade escondida na alma por atitudes
e modos aparentes, e que dissimula a disposição interior sob o disfarce da
bondade. Como aquele que, pela enunciação das palavras do conhecimento, rouba o
entendimento dos que o escutam, este homem, pelo modo hipócrita de seu
comportamento, rouba os sentidos daqueles que o veem. Ser-lhe-á dito igualmente:
“Sejam confundidos, vocês que usam vestes estrangeiras[371]”,
e: “Neste dia o Senhor retirará o véu de suas roupas[372]”.
De fato, a cada dia, no lugar secreto das obras do coração, parece que ouço
Deus me dizer estas palavras, condenado que sou por umas e outras.
67.
O perjuro, ou seja, aquele que faz um juramento falso em nome do Senhor, é o
homem que promete a Deus viver segundo a virtude e que se ocupa de coisas
estranhas, malgrado a garantia de sua promessa, e transgrede seu engajamento de
abraçar a vida santa não praticando os mandamentos. Numa palavra, aquele que
escolheu viver segundo Deus e que não morre completamente para a vida presente
é um mentiroso e um perjuro, pois fez um voto a Deus prometendo lutar
irrepreensivelmente nos combates divinos, mas não mantém sua promessa; é por
isso que ele não é louvado. É louvado quem jura por ele[373],
Deus, ou seja, quem oferece sua vida a Deus e realiza pela verdade das obras da
justiça os votos de sua bela promessa.
68.
Quem imita o conhecimento apenas pela enunciação por meio das palavras, rouba
para sua própria glória os pensamentos dos que o escutam. E quem imita a
virtude com suas maneiras, rouba para sua própria glória a vista dos que o veem.
Roubando com mentiras, os dois desviam, um os pensamentos da alma dos que o
ouvem, outro os sentidos do corpo dos que o veem.
69.
Se aquele que sustenta suas promessas é inteiramente digno de louvor, pois fez
um voto a Deus e diz a verdade, é claro que o que transgrede seu próprio
contrato merecerá a vergonha e a desonra, pois fez uma promessa a Deus e
mentiu.
70.
Nenhum homem que nasce neste mundo é totalmente esclarecido pela palavra. Pois
muitos permanecem sem luz e não participam da luz do conhecimento. Mas é claro
que quem nasce para o verdadeiro mundo das virtudes é iluminado segundo sua
própria resolução. Com efeito, qualquer um que nasce segundo a verdade neste
mundo passando voluntariamente pelo nascimento escolhido é iluminado pela
palavra, pois recebe o estado imutável da virtude e da ciência infalível do
verdadeiro conhecimento.
71.
Nem tudo que tem a mesma pronúncia é compreendido de uma mesma e única maneira.
Mas cada palavra dita deve ser compreendida à luz do poder que fundamenta o
modo da Santa Escritura, se tentarmos mirar corretamente o objetivo com que foi
escrita.
72.
Nenhum dos personagens, dos lugares e dos tempos, nenhuma das coisas vivas ou
inanimadas, sensíveis ou inteligíveis, mencionadas nas Escrituras, tem sua
história ou seu sentido espiritual em perfeita harmonia, segundo um modo de compreensão
sempre igual. É por isso que quem se dedica impecavelmente à ciência divina da
Escritura deve compreender diferentemente, em sua diversidade, cada uma das
coisas que enumeramos, que surgem ou que são ditas, e esperar a visão do
sentido espiritual que concorde com elas convenientemente, segundo o modo e o
tempo.
73.
A todos os que estão no mundo se deve ensinar a viver e se conduzir apenas pela
razão e a não ter cuidados com o corpo senão para romper, pela prática da
atenção, a relação entre este corpo e a alma, e não permitir a esta nenhuma
imaginação material, uma vez que doravante a razão extingue os sentidos que
antes a repeliam e que recebiam a irracionalidade do prazer como uma cobra que
serpenteia. É justamente a estes sentidos que foi oposta a morte, para que eles
cessem de oferecer ao diabo uma entrada para a alma.
74.
Os sentidos, que em gênero são uma coisa só, possuem cinco formas: através do
ato de percepção própria a cada um deles, eles persuadem a alma perdida a amar
o mundo sensível correspondente, em lugar de Deus. É por isso que quem segue
sabiamente a razão antes da morte forçada e contrária ao desejo decide-se
voluntariamente pela morte da carne, separando totalmente o desejo dos
sentidos.
75.
Quando os sentidos têm o intelecto em seu poder, eles ensinam cada qual o
politeísmo, honrando as paixões com a servidão, como se o mundo que lhes
corresponde fosse divino.
76.
Quem permanece estrito à letra da Escritura não possui mais do que os sentidos
para captar a natureza, e por meio deles somente a relação da alma com a carne
se deixa ver naturalmente. A palavra que não é entendida espiritualmente não
tem por ela senão os sentidos, que determinam o modo como ela é enunciada e não
permitem que o poder daquilo que está escrito passe para o intelecto. Ora, se a
palavra não está ligada senão aos sentidos, quem a receber apenas na ordem da
história, como o fazem os judeus, viverá segundo a carne do pecado, morrendo a
cada dia em sua faculdade cognitiva, por causa dos seus sentidos vivos, incapaz
que é de fazer morrer pelo Espírito as obras do corpo para vive no Espírito a
vida bem-aventurada. Pois “se vocês vivem segundo a carne, vocês morrerão,
disse o Apóstolo divino, mas se fizerem morrer as obras do corpo pelo Espírito,
vocês viverão[374]”.
77.
Não coloquemos debaixo de uma vasilha a lâmpada divina[375]
– ou seja, a palavra iluminada pelo conhecimento – quando a acendemos com a
contemplação e a ação, a fim de não sermos condenados por termos encerrado na
letra o poder da sabedoria, que ninguém pode limitar. Coloquemo-la sobre o
candelabro, ou seja, a Santa Igreja, onde ela fará brilhar sobre todos, nas
alturas da verdadeira contemplação, a luz do divino.
78.
Quem resiste aos ataques das provas involuntárias com um coração
inquebrantável, como bem-aventurado Jó e os nobres mártires, é uma lâmpada
sólida[376]:
este mantém inextinguível a luz da salvação mantida pela paciência da coragem,
pois o Senhor é sua força e seu louvor[377].
E quem combate as intrigas do maligno e não ignora os enfrentamentos dos
combates invisíveis envolto na luz do conhecimento é também uma lâmpada: este
diz, como convém ao santo Apóstolo: “Nós não ignoramos os seus desígnios[378]”.
79.
Nos que são dignos da pureza das virtudes, o Espírito Santo opera a purificação
pelo temor, a piedade e o conhecimento. Aos que são dignos da luz, ele concede
a iluminação do conhecimento dos seres nas razões de sua existência pela força,
o conselho e a inteligência. Aos que são dignos da deificação, ele concede a
graça da perfeição pela sabedoria luminosa, simples e total, elevando-os
diretamente por todos os meios até a causa dos seres, na medida em que isto é
possível ao homem: eles se reconhecem simplesmente nas propriedades divinas da
bondade, uma vez que conhecem a si mesmos a partir de Deus e conhecem Deus a
partir de si mesmos, pois nada existe entre eles que os separe. Entre a
sabedoria e Deus não há intermediário. Eles possuirão em si a inalienável
imutabilidade quando tiverem ultrapassado todos os intermediários nos quais
existia antes o perigo de se enganar no caminho do conhecimento. Chamamos de
intermediário a essência das coisas inteligíveis e das coisas sensíveis pelas
quais o intelecto humano se eleva naturalmente até Deus como para a causa dos
seres.
80.
O temor, a piedade e o conhecimento colocam a trabalhar a filosofia prática. A
força, o conselho e a inteligência levam a cabo a contemplação natural no
Espírito. Mas apenas a sabedoria divina concede a graça da teologia mística.
81.
Assim como é impossível manter uma lâmpada acesa sem óleo, também é impossível
manter viva a luz dos carismas sem o hábito de alimentar os bens com os
comportamentos, as palavras, as atitudes e as condutas, as reflexões e os
pensamentos convenientes. Pois todo carisma espiritual necessita do hábito que
está ligado a ele e assim não cessa de espargir sobre este, como óleo, a
própria matéria do intelecto, a fim de se manter continuamente no hábito
daquele que o recebeu.
82.
Assim como é impossível encontrar o verdadeiro óleo natural sem a oliveira,
assim como é impossível conservar este óleo sem um vasilhame que o contenha,
assim como a luz da lâmpada seguramente se extingue se não for alimentada de
óleo, também, sem a Sagrada Escritura, não é possível que o poder dos
pensamentos seja verdadeiramente divino, e, sem o hábito que contém os
pensamentos como um vasilhame, nenhum pensamento divino consegue se formar. Se
não for alimentada pelos pensamentos divinos, a luz do conhecimento que existe
nos carismas não sobrevive naqueles que os possuem.
83.
Eu penso que a oliveira da esquerda[379]
representa o Antigo Testamento: ele pertence primeiramente à filosofia prática.
E penso que a oliveira da direita representa o Novo Testamento: ele ensina o
mistério novo e suscita o estado contemplativo em cada fiel. Um traz os modos
da virtude, outro as razões do conhecimento aos que amam a sabedoria do divino.
Um, arrebatando à bruma das coisas divinas, eleva o intelecto purificado de
toda imaginação material até aquilo que lhe é aparentado. Outro separa do
pendor material, arrancando pela tensão da coragem, como um martelo, os pregos
que ligam o corpo ao pensamento.
84.
O Antigo Testamento eleva até a alma o corpo conduzido à razão por meio das
virtudes, impedindo o intelecto de descer para o corpo. O Novo Testamento eleva
para Deus o intelecto consumido pelo fogo do amor. Um faz do corpo a mesma
coisa que o intelecto no movimento de adoção. Outro torna semelhante a Deus o
intelecto em estado de graça, que se assemelha a Deus a ponto de conhecê-lo
através de si, a Deus a quem ninguém absolutamente conhece em sua natureza a
partir de si mesmo, como se pode conhecer um modelo a partir de uma imagem.
85.
O Antigo Testamento, que é o símbolo da prática da virtude, prepara o corpo
para se adaptar ao intelecto e seguir seu movimento. O Novo Testamento, que
suscita a contemplação e o conhecimento, ilumina por intermédio dos pensamentos
divinos e dos carismas o intelecto que, misticamente, se liga a ele. Assim o
Antigo Testamento fornece ao monge gnóstico os modos das virtudes, e o Novo Testamento
concede ao monge ativo as verdadeiras razões do conhecimento.
86.
Deus é chamado, e pela graça se torna tal, o Pai[380]
dos que nascem para a virtude, este nascimento único e voluntário no Espírito,
segundo o qual eles passam a possuir pelas virtudes como que o rosto da alma, o
sinal visível do Deus nascido. Deste modo eles preparam os que os veem durante
esta vida para que glorifiquem a Deus pela mudança dos hábitos, oferecendo a
eles suas próprias vidas para que as imitem, como excelentes modelos de
virtude. Pois Deus não é naturalmente glorificado pela simples palavra; é pelas
obras da justiça que eles proclamam com palavras muito mais fortes a
magnificência divina.
87.
A lei natural fica à esquerda, por causa dos sentidos: ela conduz à razão os modos
das virtudes e torna o conhecimento ativo. Mas a lei espiritual está à direita,
por causa do intelecto: ela mistura aos sentidos as razões espirituais que
estão nos seres e torna a ação refletida.
88.
Aquele que mostrou o conhecimento encarnado pela ação e a ação vivificada pelo
conhecimento encontrou o modo exato da verdadeira teurgia. Mas quem traz em si
um separado do outro, ou bem fez do conhecimento uma imaginação inconsistente
ou fez da ação um simulacro. Pois o conhecimento que não fecunda a ação não
difere em nada da imaginação; ele não traz em si esta razão que a fundamenta. E
a ação que não é penetrada pela e razão não passa de um simulacro: ela não
possui o conhecimento que a vivifica.
89.
O mistério de nossa salvação faz da vida a manifestação da razão e da razão a
glória da vida. Ele mostra que a ação é uma contemplação ativa, e que a
contemplação é uma ação iniciada, numa palavra, que a virtude é a manifestação
do conhecimento, que o conhecimento é o poder que preserva a virtude e que os
dois, a virtude e o conhecimento, suscitam uma sabedoria única, a fim de que
saibamos que os dois Testamentos concordam inteiramente um com o outro na
graça, primeiramente unindo-se um com o outro, para realizar um só e mesmo
mistério neste acordo, que a alma e o corpo só se unem para formar um homem.
90.
Assim como uma alma e um corpo fazem um homem ao se unirem, também a ação e a
contemplação, quando conjugadas, constituem uma mesma sabedoria gnóstica, e o
Antigo e o Novo Testamento colocam em ação e um só e mesmo mistério. Mas o bem
pertence por natureza a Deus apenas, de quem recebe a luz e a bondade tudo o
que é iluminado e que se torna bom por participação.
91.
Quem compreende o mundo visível contempla o mundo inteligível. Ele representa
as coisas inteligíveis pelos sentidos imaginando-as e modela segundo o
intelecto as razões que contemplou, transportando para os sentidos, de diversas
maneiras, a constituição do mundo inteligível, bem como, para o intelecto, a
composição complexa do mundo sensível. Ele considera os sentidos no mundo
inteligível transportando pelas razões o mundo sensível para o intelecto. E ele
considera o intelecto no mundo sensível inserindo por meio das formas, com
ciência, o mundo inteligível nos sentidos.
92.
O profeta chamou de cabeça à primeira razão que fundamenta a unidade (pois ela
é a origem de toda virtude) quando disse: “Minha cabeça está mergulhada nas anfractuosidades
das montanhas[381]”.
Ele chamou de anfractuosidades das montanhas os pensamentos dos espíritos de
malícia, sob os quais nosso intelecto é soterrado por causa da transgressão.
Ele chamou de terras baixas a terra que não percebe o conhecimento divino, e de
vida conforme a virtude o estado de traz em si tal movimento. Ele chamou de
abismo a ignorância ligada ao estado de malícia, como a terra que é invadida
pelo oceano do mal. Ou ainda, ele chamou de terra a consolidação do mal. Enfim,
ele chamou de barreiras eternas as tendências passionais das coisas materiais,
que mantêm o pior estado.
93.
A paciência dos santos esgota o poder mau e agressivo. Pois ela persuade a que
nos glorifiquemos nas penas sofridas pela verdade, e ensina a nos deitarmos antes
nos sofrimentos do que no conforto. Nos que se preocupam demasiado com a vida
carnal, ela suscita o fundamento de um poder do Espírito que ultrapassa a
fraqueza natural da carne pelo sofrimento. De fato, veja como a natureza fraca
dos santos, mais forte do que o diabo orgulhoso (conforme nos mostrou o Senhor)
é o fundamento do mais alto poder divino.
94.
A palavra da graça, por meio de numerosas provas tocantes à natureza dos homens
– vale dizer, a Igreja das nações – como Jonas viajando a Nínive, a grande
cidade, através de numerosas aflições, persuade a lei reinante, a lei da
natureza, a deixar o trono, ou seja, o estado anterior do mal ligado aos
sentidos, a retirar suas vestes, ou seja, despojar-se do orgulho da glória
mundana ligada aos costumes, e a se revestir de um saco, ou seja, do luto e da
difícil e rude ascese do sofrimento, esta ascese que convém à vida levada
segundo Deus, e, enfim, a assentar-se sobre as cinzas[382]:
estas representam aqui a pobreza de espírito sobre a qual se assenta todo homem
que aprende a viver na piedade e que porta o flagelo da consciência, que o
atormenta pelas faltas cometidas.
95.
Considere que o rei representa a lei natural; o trono, o estado passional dos
sentidos; as vestes, a agressão da vanglória; o saco, o luto a que leva o
arrependimento; a cinza, a humildade; os homens, os que se enganam em sua
razão; os cavalos, os que se enganam em seus desejos; os bois, os que se
enganam em seu ardor; os cordeiros, os que se enganam em sua contemplação das
coisas visíveis.
96.
Quem, pela virtude conforme a lei esquece as paixões da carne, estes pecados da
esquerda, e que, pelo conhecimento infalível, não se deixa prender em seus sucessos
contra a doença da presunção orgulhosa, este pecado da direita, se torna um
homem que não conhece sua direita, porque não deseja uma glória separada de
Deus, e que tampouco conhece sua esquerda[383],
pois não é excitado pelas paixões da carne. Como de costume, chamamos de vício
da direita a vanglória dos sucessos aparentes, e chamamos de vício da esquerda
o deboche nas paixões infames. Pois a razão da virtude desconhece o pecado da
carne, que é o vício da esquerda; e a razão do conhecimento desconhece a
malícia da alma, que é o vício da direita.
97.
O conhecimento das virtudes segundo a razão, ou seja, o verdadeiro
reconhecimento eficiente da causa das virtudes suscita naturalmente uma total
ignorância dos vícios da direita e da esquerda, que são o excesso e a falta de
um lado e de outro do centro das virtudes. Pois se nada é naturalmente
insensato na razão, que se elevou claramente até a razão das virtudes não
conhecerá jamais a adoção das coisas insensatas. Com efeito, não é possível
deplorar como um mesmo mal os dois vícios que se opõem e, ao mesmo tempo,
conhecer um porque se parece com o outro.
98.
Se na fé não existe uma única palavra de incredulidade, se, por natureza, a luz
não causa as trevas, e se o diabo não se mostra naturalmente junto com Cristo[384],
fica claro que o que é insensato tampouco pode coexistir com a razão. E se o
insensato não pode existir junto com a razão, que se eleva à razão das virtudes
tampouco adotará coisas insensatas, porque só conhece a virtude tal como ela é
e não tal como a imagina. É por isso que ele desconhece o vício da direita pelo
excesso e o vício da esquerda pela falta. Pois em ambos ele considera
claramente o vício insensato.
99.
A incredulidade é a recusa aos mandamentos, como a fé é sua aceitação. As
trevas são a ignorância do bem e a luz, seu discernimento. Chamamos a Cristo de
essência e hipóstase do bem. E chamamos ao diabo de pior estado, que engendra
todos os males.
100.
Se a razão é a condição e a medida dos seres, o mesmo acontece com a
irracionalidade. É por isso que o que vai contra a condição e contra a medida
dos seres, ou que se coloca acima de sua condição e acima de sua medida, é
insensato. Pois ambas as atitudes provocam igualmente, nos que assim caminham,
a queda para fora do ser em si. Uma os persuade a tornar invisível e
indeterminado o movimento de seu curso, pois na desmedida da inteligência este
movimento não tem a Deus como objetivo, como um fim concebido por eles
previamente; estes se colocam mais à direita que o vício da direita. A outra os
persuade a desviar do objetivo o
movimento de seu curso, dirigindo-o apenas aos sentidos, por um
relaxamento do intelecto: eles pensam que o fim concebido previamente é aquele
que eles encerram em seus sentidos. Tudo isso ignora (porque não experimenta)
aquele que está ligado apenas à razão da virtude e que fez penetrar nesta razão
todo o movimento do próprio poder de seu intelecto. É por isso que ele não pode
pensar em nada que esteja acima ou contra a razão.
SÉTIMA CENTÚRIA
1.
A razão da natureza, por intermédio das virtudes, eleva naturalmente ao
intelecto aquele que se aplica à ação. E o intelecto, pela contemplação, faz
penetrar na sabedoria aquele que busca o conhecimento. Mas a paixão insensata
faz quem negligencia os mandamentos se entregar aos sentidos, cujo fim está em
trancar o intelecto nos prazeres.
2.
Chamamos de virtude ao estado perfeitamente impassível e firme do bem. Nada se
intromete neste estado, pois este traz em si a marca de Deus, à qual nada se
opõe. Deus é a causa das virtudes. E o conhecimento eficiente de Deus é a
mudança que conduz ao Espírito, de acordo com seu estado, ao que
verdadeiramente conheceu a Deus.
3.
Se a razão determinou, como é natural, o devir de cada um, nenhum ser pode por
si mesmo ultrapassar o limite, nem por si só permanecer em retirada. O limite
dos seres é assim o reconhecimento desejado da causa, e sua medida é a imitação
eficiente da causa, na medida em que lhe for possível. Levar além do limite e
da medida o desejo dos que participam do movimento torna vão seu curso, uma vez
que eles não alcançam a Deus, em quem se detém o movimento do desejo de todos,
o qual recebe como inelutável fim o regozijo em Deus. Mas permanecer aquém do
limite e da medida o desejo dos que participam do movimento torna igualmente
vão o curso, pois ao invés de atingir a Deus eles alcançam apenas os sentidos,
nos quais, devido ao prazer, penetrou o regozijo infundado das paixões.
4.
O intelecto irresistivelmente voltado para a causa dos seres permanecerá em
total ignorância, por não contemplar nenhuma razão de Deus que, em toda causa,
está por essência acima de qualquer razão. Retirando-se de todos os seres para
tender unicamente a Deus, o intelecto ignora totalmente as razões dos seres dos
quais ele se separou, para inexplicavelmente contemplar, pela graça, o Único
para quem ele se dirige. Mesmo as razões dos incorporais são deixados de lado
pelo intelecto que se eleva para Deus em êxtase. Pois, desde que ele vê a Deus,
ele deixa naturalmente de ver tudo o que está antes de Deus.
5.
A ostentação é uma paixão verdadeiramente maldita. Ela é feita da mistura de
dois males, o orgulho e a vanglória. Destes dois, o orgulho recusa a causa da
virtude e da natureza, e a vanglória falsifica a natureza e a própria virtude.
Pois, para o orgulhoso nada se faz segundo Deus e, para o vaidoso nada acontece
segundo a natureza.
6.
É típico do orgulho negar que Deus seja o Pai da virtude e da natureza. E é
típico da vanglória dividir a natureza, para permitir a complacência. A
ostentação é naturalmente a filha dos dois: ela é um estado composto, um estado
de malícia que traz em si a recusa voluntária de Deus e a ignorância da
igualdade de honra que todos os homens possuem por natureza.
7.
A ostentação constitui uma mistura de orgulho e de vanglória. Ela sente por
Deus o desprezo com o qual acusa de modo blasfemo a providência. E sente pela
natureza a aversão alienante com a qual maneja contra a natureza, para
abusá-la, todas as coisas da natureza, deformando sua beleza.
8.
O sopor ardente[385]
significa não apenas as tentações como também o abandono de Deus, este abandono
que retirou dos judeus o dom dos carismas divinos. Mas o parentesco com o
Espírito liberta da carne a relação da vontade, que o desejo de amor corre a
ligar a Deus.
9.
A razão natural, quando nela os sentidos não se sobrepõem à razão, persuade a que
abracem o que é próximo e semelhante, sem nada receber, todos os que a própria
natureza ensina o socorro de que necessitam os demais, e os persuade a todos
desejarem para os outros aquilo que cada qual pensa ser-lhe agradável vindo dos
demais. É o que o Senhor ensina ao dizer: “Façam aos outros o que querem que
lhes façam[386]”.
10.
A obra da lei natural é a relação unânime do pensamento que une todos a todos.
Aqueles cuja natureza é dirigida pela razão possuem naturalmente uma mesma
disposição. Se sua disposição é a mesma, seu modo de conduta e o curso de suas
vidas serão natural e manifestamente os mesmos. E se forem os mesmo o seu modo
de conduta e o curso de suas vidas, o laço da relação de uns com os outros
segundo o pensamento será igualmente o mesmo, pois ele conduz todos os seres
segundo um mesmo pensamento para a razão única da natureza, na qual não se
encontra jamais a divisão que reina quando existe o egoísmo. Mas a lei escrita,
que, pelo temor dos castigos, retém os impulsos desordenados dos mais
desequilibrados costuma ensinar-lhes a ver apenas a permanência da igualdade
segundo a qual o poder da justiça, afirmado pelos tempos, se transforma em natureza,
fazendo do temor uma disposição lentamente confirmada, pouco a pouco, pelo
pensamento do bem, e fazendo do comportamento um hábito purificado pelo
esquecimento das primeiras faltas, que engendra consigo o afeto mútuo.
11.
A lei escrita, ao impedir a iniquidade por meio do temor, acostuma à justiça.
Com o tempo, o hábito cria uma disposição cheia de amor pelo que é justo,
suscitando um estado estável, voltado para o bem e que conduz ao esquecimento
da malícia anterior.
12.
Mas a lei da graça ensina diretamente aqueles a quem ela conduz a imitar o
próprio Deus, que nos amou mais do que a si mesmo, se podemos dizê-lo (e isto
mesmo que tenhamos sido seus inimigos por causa do pecado), que, sem se
alterar, ele veio a nós, ele que estava acima de todos os seres, recebendo
acima dos seres nossa natureza, fazendo-se homem, tornando-se como os homens,
não recusando tornar sua nossa condenação. E assim como pela economia ele se
fez homem, pela graça nos deificou, a fim de que não apenas aprendêssemos a nos
ligar naturalmente uns aos outros e a nos amar espiritualmente uns aos outros
como anos mesmos, como também a cuidarmos divinamente uns dos outros mais do
que de nos mesmos, e a dar provas do amor que temos uns pelos outros escolhendo
de bom grado, pela virtude, morrermos voluntariamente uns pelos outros. Pois
Cristo disse que não há maior amor que o de dar a própria vida a quem se ama[387].
13.
A lei da natureza, numa palavra, é a razão natural que toma os sentidos sob seu
poder, a fim de suprimir a irracionalidade, que divide o que estava unido
naturalmente. A lei escrita é a razão natural que, depois da supressão da
irracionalidade nos sentidos, assume também o desejo espiritual, o qual mantém
a conexão com aquilo que nos é aparentado. E a lei da graça é a razão que,
acima da natureza, conduz à deificação transformando inflexivelmente a
natureza, mostrando à natureza dos homens, como uma imagem e de modo
incompreensível, o modelo que ultrapassa a essência e a natureza, e oferecendo
a permanência do ser eternamente bem-aventurado.
14.
Considerar o próximo como a si mesmo é como cuidar só de sua vida em seu ser:
isto é próprio da lei natural. Amar o próximo como a si mesmo[388]
consiste em, pela virtude, velar sobre a vida do próximo para sua beatitude: é
isto que a lei escrita prevê. Mas amar ao próximo mais do que a si mesmo, isto
só a lei da graça permite.
15.
Quem se afasta das ocasiões de se entregar aos prazeres do corpo aprende as
razões da providência que retêm a matéria inflamada das paixões. E quem aceita
os golpes que fazem o corpo sofrer se instrui nas razões do juízo que o
purifica das manchas anteriores por meio das penas involuntárias.
16.
Se a Escritura opôs a ligação de Deus com Nínive ao profeta afligido pela
cabana e da mamoneira[389],
ou seja, pela carne e o prazer da carne, é claro que o que é amado por Deus é
bem melhor e mais precioso que todos os seres queridos que prendem os homens;
estes seres não são melhores nem mais preciosos, apenas são presumidos assim
por um julgamento errôneo. Nenhum deles é uma razão fundamentada na existência.
Cada qual não passa de uma imaginação que engana o intelecto e que, por meio da
paixão, dá uma forma vazia ao que não é, embora não possa lhe dar uma
hipóstase.
17.
O conhecimento exato das palavras do Espírito é revelado naturalmente apenas
àqueles que são dignos do Espírito, os quais, purificando o intelecto da
escória das paixões por meio de uma grande aplicação na prática das virtudes,
recebem como um espelho puro e brilhante o conhecimento das coisas divinas, que
se imprime neles como um rosto e os invade ao tocá-los. Mas àqueles cuja vida
foi manchada pelas sujeiras das paixões, é no mínimo difícil testemunhar o
conhecimento das coisas divinas a partir de perspectivas justas e, com mais
razão ainda, não ter a arrogância de pensar e expressar estas coisas de forma
justa.
18.
Diz-se de quem recebeu como uma forma do intelecto o conhecimento que no
Espírito divino provém das virtudes, que este experimentou as coisas divinas,
por ter assumido este conhecimento não pela natureza da existência, mas pela
graça da participação. Mas quem não recebeu o conhecimento que vem da graça,
mesmo q eu diga algo gnóstico, não conhece por experiência o poder daquilo que
disse. Pois o simples fato de ter aprendido não implica um conhecimento real.
19.
O intelecto purificado ao extremo pelas virtudes faz naturalmente justiça às
razões das virtudes, ao fazer seu rosto do conhecimento divinamente marcado por
elas. Com efeito, todo intelecto, que por si só é sem forma nem marca, só adquire
uma forma se esta lhe vier, seja do conhecimento suscitado pelas virtudes
através do Espírito, seja da ignorância trazida pelas paixões.
20.
Quem decaiu do amor divino traz a lei que está na carne e que reina pelo
prazer, e não quer nem pode observar nenhum mandamento de Deus. De fato, uma
vez que preferiu a vida de amor ao prazer à vida da virtude no Espírito de Deus
e ao Reino, atrai sobre si mesmo a ignorância ao invés do conhecimento.
21.
Aquele que, em seu intelecto, não acede à beleza divina que existe no Espírito
no interior da letra da lei, engendra naturalmente a tendência voluntária ao
prazer, ou seja, o pendor mundano e o amor pelo mundo, pelo fato de aprender
unicamente seguindo as palavras que ouviu dizer.
22.
A desonra da boca consiste no exercício dos pensamentos do intelecto por amor
ao mundo e ao corpo, uma vez que, seguindo a tendência voluntária, o mundo – ou
seja, a disposição para amar o mundo e o exercício dos pensamentos do intelecto
por amor ao prazer – provém naturalmente da formação do corpo tal como ela
aparece na letra da lei. Com efeito, aquilo a que estamos dispostos por nossa
tendência será também aquilo sobre quê exerceremos nossa inteligência.
23.
Ou ainda: a desonra da boca consiste no movimento do intelecto que oferece uma
forma às paixões e que molda a beleza pelo prazer, para satisfazer os sentidos.
Pois, sem o poder intelectual da inteligência, nenhuma paixão seria capaz de
modelar a menor forma. Ou então: o movimento das paixões, material, sem beleza
e sem forma, é anátema. E a desonra da boca consiste no movimento que dá uma
forma à paixão abrindo a ela os sentidos que, por meio dos pensamentos, fornece
a matéria correspondente à paixão.
24.
Aquele que acredita que Deus ordenou na lei os sacrifícios, as festas, os
sábados e as luas novas apenas para as delícias e o conforto do corpo, estará
inteiramente sob os golpes da atividade das paixões e conhecerá a vergonha da
impureza dos pensamentos infames ligados a estas paixões. Ele estará submetido
ao mundo corrompido e aos cuidados do amor pelo corpo em seus pensamentos.
Pois, sujeitado à matéria e à forma das paixões, nada terá de precioso fora das
coisas corrompidas.
25.
Aquele que está persuadido de que usufruir dos prazeres do corpo segundo a lei
é uma prescrição divina, recebe como se fosse um dom de Deus a gula, a fim de
viver alegremente nela: deste modo, ele engendra as maneiras que mancham a
atividade dos sentidos por meio do abuso.
26.
A partir do momento em que a faculdade contemplativa da alma abarca, englobando-as
na lei escrita, as delícias da alma como se elas fossem divinas, a fim de viver
com elas conforme o mandamento, ela busca utilizar os sentidos contra a
natureza, não permitindo a nenhum dos sentidos usar a energia de acordo com a
natureza. Pois ela engendra o costume e a atividade das paixões e faz da gula
sua moradia, coo se a gula fosse divina: assim ela suscita comportamentos que
mancham os sentidos por meio do abuso, e acaba por suprimir as razões e as
sementes naturais que residem nos seres.
27.
Se alguém se aplica apenas à observância corporal da lei não será capaz de
receber nenhuma palavra e nenhum pensamento natural, porque os símbolos e a
natureza não são a mesma coisa. Pois quem se apega aos símbolos da lei não é
capaz de ver segundo a razão a natureza dos seres nem se apropriar das razões
que o Criador colocou realmente nos seres, por causa da diferença que separa os
símbolos da natureza dos seres.
28.
Quem considera que o ventre é Deus e se vangloria da vergonha[390]
como se ela fosse uma glória, apega-se com ardor às paixões da infâmia como se
elas fossem divinas. É por isso que ele confere todos os seus cuidados apenas
às coisas temporais, vale dizer, à matéria, à forma e à quíntupla energia dos
sentidos em seu mau uso. Com efeito, quando, misturando-se com elas, os
sentidos se unem à matéria e à forma, eles desembocam naturalmente nas paixões,
e acabam por matar e destruir as razões da natureza. Ora, a paixão e a
natureza, segundo a razão do ser, não podem viver uma com a outra. Pois a razão
da natureza não se manifesta naturalmente com a paixão, assim como a paixão, em
seu devir, não é gerada com a natureza.
29.
Quem não crê que a Escritura é espiritual não percebe sua própria indigência na
ordem do conhecimento, mas é corroído pela fome. Pois a fome é na verdade a
falta dos bens que a experiência da Escritura permite conhecer, a total
insuficiência dos alimentos espirituais que confortam a alma. De fato, como não
considerar como uma fome ou um dano a perda daquilo que um dia se conheceu?
30.
Na verdade, o povo tem fome da verdade daquilo que é digno de fé e conhecido. E
a alma de cada um tem fome, pois ela busca a contemplação espiritual na graça, mas
se submete à servidão formal da letra, não alimentando o intelecto com o gênio
dos pensamentos, mas enchendo os sentidos de imaginações passionais, pelas
imagens corporais que nele imprimem os signos escritos.
31.
Quem não se abre para a contemplação espiritual da Santa Escritura é porque não
afastou a lei natural nem a lei escrita dos judeus e porque ignorou a lei da
graça, segundo a qual é dada a contemplação [deificação] aos que levam sua vida
neste caminho. Assim é que quem recebe de maneira corporal a lei escrita não
alimenta a alma de virtudes. Quem não se aplica às razões dos seres não dá
generosamente ao intelecto o festim da sabedoria variada de Deus. E quem não
conhece o grande mistério da nova graça não se regozija na esperança da
deificação por vir. Assim, a ausência de contemplação ligada à lei escrita tem
como consequência a falta da sabedoria variada de Deus concebida segundo a lei
natural, falta que por sua vez tem como decorrência a ignorância da deificação
de todos, que é dada pela graça segundo o novo mistério.
32.
Todo intelecto perspicaz segundo Cristo e capaz de visão deseja e busca sempre
a face do Senhor. Ora, a face do Senhor é a verdadeira contemplação e o
verdadeiro conhecimento das coisas divinas segundo a virtude. É procurando esta
contemplação e este conhecimento que este intelecto aprende a causa da falta e da
necessidade que existem nele. Pois, assim como o rosto permite distinguir as
pessoas, o conhecimento espiritual simboliza manifestamente o divino. Diz-se
daquele que procura este conhecimento, que ele busca a face do Senhor. Mas
aquele que, segundo a letra da lei, se besunta de sacrifícios sangrentos, tem
em si uma ignorância plena de desejo, pois compreende o mandamento apenas no
sentido do prazer da carne e se apega de maneira corporal, por intermédio dos
sentidos, apenas à matéria da letra.
33.
Aquele que serve segundo a lei, mas de maneira corporal, engendra na ordem da
matéria o pecado ativo e modela de modo material, na ordem das formas, o
consentimento da lei ao pecado, pelos prazeres correspondentes dos sentidos.
Mas quem compreende a Escritura de modo espiritual mata por meio dos
pensamentos naturais, da altura da contemplação, a atividade do pecado na ordem
da matéria e o consentimento ao pecado na ordem das formas, juntamente com os
modos dos sentidos que vão contra o uso e que conduzem ao prazer.
34.
A matéria e a forma, e os cinco modos dos cinco sentidos que vão contra o uso
na ordem da matéria e na ordem das formas – vale dizer, a união passional e
contra a natureza dos sentidos e das coisas sensíveis, ou seja, das coisas que
estão submetidas ao tempo e ao escoamento – depois de ultrapassada a
observância da letra da lei e a ignorância, são entregues pela lei espiritual e
o intelecto para serem mortas pelas razões e os pensamentos mais elevados da
contemplação natural, a partir do momento em que estas alcançam a altura da lei
da contemplação espiritual, para destruir e levar à morte a relação universal
que, nos símbolos, as coisas submetidas ao tempo têm com os sentidos e o corpo.
35.
Sem a contemplação natural ninguém é capaz de discernir o quanto os símbolos da
lei estão afastados das coisas de Deus. Pois se, em primeiro lugar, não vemos
natural e profundamente que as coisas divinas e inteligíveis não aparecem nos
símbolos, considerando que fora do divino é impossível que os sentidos cheguem a
desejar conforme o intelecto a beleza das coisas inteligíveis, não podemos nos
livrar de uma vez por todas da diversidade corporal que existe no espaço. Nesta
diversidade, na medida em que ela permanece ligada à letra, não existe nenhuma
razão para que seja atenuada a indigência que provém da fome de conhecimento,
pois ela esta condenada a comer, tal como a serpente enganadora, a terra da
Escritura, ou seja, o corpo. Mas o mesmo não acontece com aquele que, seguindo
a Cristo, se alimenta do céu, do espírito e da alma da Escritura, ou seja, do
pão celeste e angélico, da contemplação e do conhecimento espirituais das
Escrituras em Cristo, que Deus concede em abundância como que por acréscimo aos
que os querem, conforme está escrito: “Ele lhe deu o pão celeste, e o homem
comeu do pão dos homens[391]”.
36.
A compreensão da Escritura que passa pelos sentidos e leva ao corpo engendrando
manifestamente as paixões e o pendor pelas coisas temporais que escoam, ou
seja, a energia passional dos sentidos voltados para as coisas sensíveis, como
os filhos e descendentes de Saul, devem desaparecer pela contemplação natural
sobre a montanha à qual nos levam as palavras de Deus, se quisermos ser
cumulados da graça divina.
37.
O povo judeu e a lei concebida apenas como letra alteram a verdade. Também a
altera aquele que é seu imitador pelo pensamento, uma vez que encerra na pura
letra o poder da lei e não recebe, para que se manifeste o conhecimento
secretamente oculto na letra, a contemplação natural que é um intermediário
entra as imagens e a verdade, de umas afastando e da outra aproximando os que
ela conduz. Mas aquele homem recusa totalmente esta contemplação e age fora de
toda iniciação aos mistérios de Deus. Os que se aplicam às visões divinas sobre
a montanha, na altura do conhecimento, devem destruir por meio da contemplação
natural esta acepção corporal e passageira da lei submetida ao tempo e ao
escoamento.
38.
Faz desaparecer completamente a intelecção corporal da Escritura aquele que, na
ação e pela contemplação natural destrói sua tendência a amar os prazeres e o
corpo – esta tendência que, na alma, conduz a lei escrita à matéria instável e
flutuante –, por interditar a passagem à intelecção vulgar da lei, como aos
filhos e descendentes de Saul[392],
por meio da contemplação natural a partir da altura da contemplação (como sobre
uma montanha); ele assim desvela diante do Senhor, pela confissão, a antiga
acepção da lei, voltada para o corpo. É assim que pode ser entendido pelos que
amam aprender, “estar exposto ao sol[393]”
diante do Senhor. Este homem leva para a luz, pelo conhecimento, a presunção
errada da lei. Isto implica revelar, da altura da contemplação e pelo
conhecimento no Espírito, que a letra da lei está morta.
39.
A Escritura diz que a letra mata e que o Espírito vivifica[394].
É por isso que se deve destruir pelo Espírito vivificante aquilo que mata por
natureza. É totalmente impossível que um e outro existam ao mesmo tempo,
ativamente e da mesma maneira – o caráter corporal e o caráter divino da lei –,
a letra e o Espírito. Pois o que dá a vida conforme a natureza não se compõe
com o que pode destruí-la.
40.
O Espírito abarca a vida, mas a lei a destrói. Assim, a letra não pode agir da
mesma maneira que o Espírito, assim como o que vivifica não pode coexistir com
o que corrompe.
41.
A circuncisão mística consiste na ablação total do pendor passional do
intelecto até se tornar estranho a ele. Pois, se nos aplicamos naturalmente às
coisas, sabemos que a ablação daquilo que, conforme à natureza, é ordenado por
Deus, não consiste numa perfeição. A natureza truncada por um artifício e
suprimindo ela própria por uma decisão do intelecto o excedente da criação que
provém de Deus conforme a razão, não constitui uma perfeição, para que não
tomemos como certo que o artifício é mais forte do que a justiça de Deus e para
que não façamos daquilo que roubamos à natureza por decisão do intelecto uma
complemento daquilo que nos falta na justiça da criação. Em lugar da parte que
foi circuncidada, aprendamos a fazer voluntariamente a circuncisão do estado
passional da alma, segundo a qual a vontade é primeiramente disposta a se
conformar à natureza, corrigindo a lei passional de um devir que lhe é
estranho.
42.
O prepúcio é natural. Ora, toda obra natural da criação divina é boa, conforme
a palavra: “E Deus viu o que havia feito e viu que era bom[395]”.
Mas a lei, ordenando retirar o prepúcio pela circuncisão[396],
como se ele fosse impuro, tenta levar Deus a corrigir sua própria obra por meio
de um artifício, o que é ímpio pensar. Assim, quem se aplica naturalmente aos
símbolos da lei sabe que Deus não corrige a natureza com artifícios, mas que
ele ordena circuncidar a parte passional da alma dócil à razão e figurada pelo
membro corporal, que o conhecimento suprime naturalmente, graças à coragem
ativa da vontade. Pois o sacerdote que circuncisa simboliza o conhecimento,
que, como o ferro posto contra o sofrimento, tem a coragem ativa da razão. A
tradição da lei desaparece, com efeito, quando o Espírito supera a letra.
43.
O sábado[397]
das paixões é também o repouso do movimento do intelecto ao redor da natureza
dos seres. Da mesma forma, a perfeita inércia das paixões e a detenção total do
movimento do intelecto ao redor daquilo que o ocupa são o meio perfeito para
passar para o divino. Quem chegou ao divino pela virtude e o conhecimento, na
medida do possível, não deve mais se lembrar da matéria das paixões, qualquer
que seja ela, esta matéria que queima como madeira, nem buscar em hipótese
alguma as razões da natureza, a fim de que não sustentar, como fazem os gregos,
que Deus sente prazer nas paixões ou que ele pode ser medido pelos limites da
natureza, Deus, o único que proclamou o silêncio perfeito e que representa por
excelência o desconhecimento total.
44.
A fé pura é uma coroa de bondade[398],
florida pela sublimidade dos dogmas à maneira de pedras preciosas e pelas
palavras e os pensamentos espirituais que encerram como a cabeça o intelecto
amado por Deus. OU antes, é a própria palavra de Deus que é uma coroa de
bondade, esta palavra que, pela diversidade dos modos da providência e do juízo
– ou seja, pela abstenção das paixões voluntárias e pela paciência nas paixões
involuntárias – envolve o intelecto como a cabeça que, pela participação na
graça e na deificação, torna ainda mais belo do que ela este intelecto.
45.
Aqui em baixo, a temperança é uma obra da providência, na medida em que ela
purifica das paixões voluntárias. E a paciência do julgamento é uma ação reta,
na medida em que ela resiste às tentações[399]
involuntárias e é o símbolo da filosofia prática, transportando para a virtude,
como para longe do pecado do Egito, aqueles que estavam dominados pelo pecado.
46.
Deus não quer que os dias sejam honrados pelos homens. Ele prescreveu que sejam
honrados o sábado[400],
as luas novas e as festas. Assim é que ele ensinou nos mandamentos da lei:
aqueles que pensam que os dias são santos e dignos de serem venerados servem à
criação em lugar do Criador[401].
Mas ele declarou que seria ele próprio que, simbolicamente, seria venerado
através dos dias: pois ele mesmo é o sábado, ele o repouso das penas da alma na
carne e o apaziguamento das penas sofridas em nome da justiça. Ele é a Páscoa,
ele a origem e o fim dos seres e a palavra que a tudo criou na natureza.
Considere que a lei perde os que a compreendem de maneira corporal,
persuadindo-os a servir a criatura em lugar do Criador e a pensar que são
veneráveis por natureza as coisas que foram feitas por eles, pois eles ignoram
Aquele pelo qual elas foram feitas.
47.
O mundo é um lugar realizado e um estado acabado, e o tempo é um movimento
limitado. É por isso que o movimento da vida muda aqueles que estão no tempo.
Mas quando a natureza, que pela energia e o pensamento atravessa o espaço e o
tempo – ou seja, aquilo sem o que ela não é, vale dizer, o estado e o movimento
realizados – e se lega diretamente à providência, ela encontra esta
providência, que é simples e estável por natureza e que não tem nenhum limite,
assim como não tem, por conseguinte, absolutamente nenhum movimento.
48.
A natureza que existe no mundo de maneira temporal traz em si o movimento que a
transforma devido ao estado realizado do mundo e do curso do tempo ligado à
transformação. Mas chegando a Deus, por causa da unidade natural d’Aquele por
quem ela foi criada, ela adquire um estado imóvel e um movimento próprio
estável, que se faz eternamente ao redor do mesmo, do um e do único, este
movimento do qual a razão sabe ser uma moradia fixa, imediata, ao redor da
causa primeira dos que foram criados por ela.
49.
O mistério do Pentecostes é a união direta que liga à providência aquilo que
havia sido concebido previamente, ou seja, a união da natureza e da Palavra
segundo o desígnio da providência, união na qual não existe absolutamente
nenhuma manifestação do tempo e do devir. E mais: a Palavra é nossa trombeta,
pois ela nos faz ouvir os conhecimentos divinos e inefáveis. Ela é a expiação,
pois, depois de se apropriar de nossa natureza, ela apaga nela nossas faltas e,
pelo dom da graça no Espírito, deifica a natureza que havia pecado. E ela é a
festa dos Tabernáculos, pois nos imobiliza em torno do bem, no estado que imita
a Deus, e nos liga a todos à transformação que nos torna imortais.
50.
Quem se regozija apenas com sacrifícios cruentos, passional que é, prepara os
sacrificadores a se voltarem para as paixões. Pois quem venera verdadeiramente
quer se regozijar com aquilo que o adorado se regozija. É por isso que a razão
sabe que os sacrifícios são antes a imolação das paixões e a oferenda das
potências naturais. Dentre estas potências, o cordeiro é a imagem da razão, o
touro traz em si o símbolo do ardor e a cabra representa o desejo.
51.
Sabemos que os sacrifícios espirituais são não apenas a condenação à morte das
paixões imoladas pela espada do Espírito – vale dizer, pela palavra de Deus[402]
– e a kénose ou esvaziamento
deliberado de toda a vida que existe na carne, como a efusão do sangue, mas
também a oferenda das condutas filosóficas e de todas as potências naturais
consagradas a Deus e consumidas pelo fogo da graça do Espírito, em vista a
receber a herança divina.
52.
Quando a inteligência terrestre da Escritura domina a alma, ela rejeita as
razões naturais eliminando-as pelo mau uso das potências da natureza. Pois esta
inteligência viva, que limita a lei apenas à carne, na verdade vem em busca das
razões e dos pensamentos – refiro-me àqueles que seguem a natureza –, ela os
expulsa e as conduz igualmente à perdição, honrando como se fossem divinas as
paixões da infâmia, estas mesmas paixões que os pensamentos conformes à
natureza destroem e matam quando recebem a lei do Espírito de liberdade.
53.
Quando buscamos racionalmente a filosofia das virtudes, também transportamos
naturalmente para o Espírito a compreensão das Escrituras, servindo a Deus
ativamente por meio das mais altas contemplações sob o novo regime do Espírito
e não sob o regime caduco da letra[403].
Ao contrário, se assumirmos a lei em um nível mais baixo, nos sentidos e tendo
em vista o corpo, alimentaremos as paixões, como o fazem os judeus, e
flertaremos com o pecado.
54.
Quando cessamos de compreender a Escritura segundo os sentidos, com vistas ao
corpo, lançamo-nos para o Espírito, segundo o intelecto, por intermédio da
natureza. Aquele que procede na ordem do Espírito do modo como os judeus
realizam na ordem do corpo atrai sobre si a ira de Deus.
55.
Todo intelecto que tende para o alto e se eleva conforme a Deus imola por isso
mesmo a atividade das paixões e o movimento deslocado dos pensamentos. Além
disso, ele imola os modos desordenados da atividade dos sentidos em seu mau
uso. Pois as paixões são destruídas pelos altos pensamentos da natureza e são
levadas cativas ao triunfo da contemplação mais elevada.
56.
O poder do pecado, ou seja, o cuidado com a carne é eliminado naturalmente pela
graça do batismo, e a obediência ativa aos mandamentos divinos o destrói com a
espada do Espírito[404],
ou seja, pela palavra do conhecimento divino no Espírito, que interpela
misticamente a paixão do pecado, como o grande Samuel interpelou Agag: “Assim
como a sua espada privou as mães de seus filhos, também hoje sua mãe dentre as
mulheres será privada de seu filho[405]”.
57.
Pelo pensamento agudo do prazer, como que por uma espada, a paixão da gula priva
de filhos muitas virtudes. Pela intemperança, ela mata as sementes da
castidade. Pela cupidez, ela altera a igualdade de honra que nos mantém na
justiça. Pelo egoísmo, afasta aquilo que leva a amar os homens e que provém da
natureza. Numa palavra, a paixão da gula destrói todos os frutos da virtude.
58.
A paixão da gula destrói todos os frutos divinos das virtudes, mas é destruída
pela graça da fé e a obediência aos mandamentos de Deus, por meio da razão do
conhecimento.
59.
Nosso Senhor é realmente a luz das nações[406],
pois ele desvela por meio do verdadeiro conhecimento os olhos do intelecto fechados
pelas trevas da ignorância, e, depois de se ter oferecido novamente aos povos
fiéis como um bom exemplo da virtude da pessoa virtuosa, ele se tornou para
eles o modelo e a imagem da conduta divina. Vendo-o como o príncipe da nossa
salvação, conduzimos com sucesso as virtudes por meio da ação, imitando-o tanto
quanto nos é possível.
60.
Quem quer que odeie por inveja e que difame e calunie o que é mais forte no
combate das virtudes e na eloquência do conhecimento espiritual é como Saul
sufocado pelo espírito maligno[407]:
ele não suporta a boa reputação que a abundância de virtude e conhecimento
concede ao melhor, e por isso fica cada vez mais furioso por não poder agredir
seu benfeitor. Muitas vezes ele afasta amargamente seu querido Jonatas[408],
vale dizer, o pensamento inato da consciência, que lhe reprova a raiva injusta
e lhe lembra com todo o amor da verdade as boas ações daquele a quem ele
detesta.
61.
Peçamos também nós, à imagem de Davi, que faça soar a cítara da contemplação e
do conhecimento espirituais em nosso intelecto demente submetido às coisas
materiais, e que expulse o maligno da materialidade que cerca os sentidos, a
fim de que possamos compreender espiritualmente a lei, encontrar misticamente a
razão escondida nela e dela fazer um bem suficiente para que se torne um
viático da vida eterna.
62.
Quem quer que se torne presa da salvação se aplicará absolutamente, seja à
ação, seja à contemplação. Pois sem a virtude e sem o conhecimento ninguém
jamais pode de nenhum modo descobrir a salvação. Quanto à virtude, ela assinala
o lugar próprio ao movimento do corpo, detendo ciosamente, por meio do
pensamento reto, como um freio, o impulso que conduz à extravagância. Quanto à
contemplação, ela decide escolher sabiamente o que foi bem pensado e bem julgado.
63.
Uma vez que pensar é intelectual e que aquilo que é pensado é inteligível e é o
alimento e como que a constituição daquele que pensa, está claro que Deus, pelo
fato de que os incorpóreos são inteligências, é ele próprio pensado e lhes é
inteligível na medida em que eles chegam até ele, e que ele lhes ilumina o
coração do intelecto que pensa e que é alimentado.
64.
Uma coisa é o inteligível, outra coisa o intelectual. Pois o inteligível é como
que o alimento do intelectual, como já se disse. Quanto ao que é pensado, ou
seja, o inteligível, ele é maior do que o que pensa, ou seja, do que o
intelectual, e é concebido antes dele. De fato, chamamos de intelectuais os
inteligíveis transcendentes pensados pelo intelecto. Pois o inteligível é o que
é pensado, e é também o alimento do intelectual, ou seja, daquele que pensa.
65.
É preciso saber no que consistem os efeitos, as imagens possíveis das causas,
pois os efeitos são tudo o que foi levado à criação, e as causas são o que leva
à criação. Entre causas e efeitos não há nenhuma semelhança.
66.
É preciso saber que nosso intelecto tem a capacidade de pensar, por meio da
qual ele enxerga os inteligíveis, e que ele traz em si a união que ultrapassa
sua natureza, por maio da qual ele se liga ao que está além de si mesmo. É
assim por meio desta união, não por nossa natureza, que devemos compreender as
coisas divinas: é quando por inteiro saímos inteiramente de nós mesmos e nos
entregamos inteiramente a Deus. Pois é melhor estar com Deus do que conosco. É
assim que o divino será dado aos que estão com Deus.
67.
O intelecto que pretende pensar desce de si mesmo quando mergulha nas
intelecções. Pois as intelecções estão abaixo daquele que pensa: na medida em
que são pensadas e compreendidas, elas consistem naturalmente numa dispersão e
numa divisão da unidade do intelecto em si. Com efeito, o intelecto é simples e
indivisível, mas as intelecções são múltiplas e dispersam o intelecto, ao menos
em sua forma. É por isso que o que é intelectual, ou seja, aquilo que pensa, é
inferior ao que é inteligível ou ao que é pensado. Chama-se união do intelecto
aquilo por meio de quê o intelecto se prolonga além de si mesmo, ou seja, se
dirige para a contemplação de Deus, saindo de todas as coisas sensíveis e
inteligíveis, e até mesmo de seu próprio movimento: é assim que ele pode
receber o raio do conhecimento divino.
68.
Se o que é intelectual de desenvolve em relação a si mesmo em todo o intelecto,
certamente ele pensa. E se ele pensa, certamente ele é presa daquilo em que
pensa. Se for presa, certamente conhece o êxtase que o conduz àquilo que recebe
seu amor. Se ele conhece o êxtase, é claro que ele se apressa. Apressando-se,
ele certamente faz crescer o ardor do movimento. Aumentando o ardor de seu
movimento, ele não terá parada enquanto não se colocar por inteiro naquilo que
ele ama inteiramente, enquanto nele não se envolver voluntariamente e por
inteiro, recebendo como desejava o abraço salutar, a fim de obter por inteiro a
qualidade daquilo que o abraça por inteiro, de sorte que aquilo que é abraçado
não possa mais ser inteiramente conhecido a partir de si mesmo, mas a partir
daquilo que o abraça, como o espaço inteiramente iluminado pela luz, como o
ferro inteiramente abrasado pelo fogo, ou coisas semelhantes.
69.
Não existe semelhança exata entre efeitos e causas. Mas os efeitos trazem em si
as imagens das causas que eles podem receber. Estas causas de efeitos são
lançadas por si mesmas e reconstruídas acima delas próprias conforme a razão de
sua própria origem. Pois o que reside nos efeitos está antes nas causas, para
além do necessário e realmente.
70.
Os efeitos são tudo o que foi levado à criação, seja no céu, seja na terra. As
causas são o que levou à criação, ou seja, as Três Pessoas da Santíssima
Trindade. É claro, assim, que não há semelhança possível entre umas e outras,
vale dizer, entre causas e efeitos.
71.
É múltipla a relação entre o que pensa e o que é pensado, entre o que sente e o
que é sentido. O homem, que é capaz de sentir com sua alma e com seu corpo
através da relação e da propriedade naturais da troca entre uma e outra destas
duas partes da criação, é determinado e determina. Ele é determinado pela
essência, e determina pela potência. Pois ele é naturalmente determinado pelas
coisas inteligíveis e sensíveis, uma vez que ele é alma e corpo, e ele
naturalmente determina essas coisas em potência, uma vez que ele pensa e sente.
Mas Deus está de maneira simples e fora de todo limite acima de todos os seres,
os que abarcam e os que são abarcados, pois ele é totalmente irredutível a seja
lá o que for.
72.
Todo prazer das coisas proibidas provém da paixão e se coloca natural e
certeiramente sobre algo de sensível por intermédio dos sentidos. Com efeito, o
prazer não passa de uma forma de sensação: ele se manifesta através de alguma
coisa sensível na parte da alma capaz de sentir. Ou é um modo da atividade dos
sentidos constituído por um desejo contrário à razão. Com efeito, quando se
dirige aos sentidos, o desejo se transforma em prazer conduzindo ele próprio a
esta forma de sensação: e quando se veem no movimento do desejo, os sentidos
suscitam o prazer atraindo o sensível para si. Sabendo então que, por
intermédio da carne, a alma levada contra a natureza para a matéria reveste-se
da forma terrestre, os santos, voltados para Deus segundo a natureza por
intermédio da alma, conceberam unir convenientemente a carne a Deus, vestindo-a
com a beleza das revelações divinas pelo exercício das virtudes, na medida em
que isto é possível.
73.
Segundo o modo verdadeiro e infalível do movimento da natureza, os santos
atravessaram nobremente o século presente e seus abismos. Depois de ter, por
intermédio da razão, unido os sentidos ao intelecto, que traz em si as razões
dos seres, e de ter conduzido a Deus este intelecto claramente liberto de seu
movimento ao redor dos seres e desembaraçado de sua própria atividade natural,
até de sua energia, totalmente unidos no intelecto para se dirigir a Deus,
foram considerados dignos de se misturar inteiros pelo Espírito a Deus por
inteiro, portando inteira a imagem do celeste, na medida em que isto é possível
aos homens, e foram de tal modo atraídos pela revelação divina que, à força de
serem atraídos foram eles próprios colhidos em Deus, se podemos nos exprimir
assim.
74.
Deus e o homem são modelos um para o outro. Tanto, diante do homem, Deus se
torna homem por amor ao homem, quanto, diante de Deus, o homem se deifica
quando por amor o consegue. E tanto o homem é arrebatado por Deus em seu
intelecto para alcançar aquilo que ele pode conhecer, quanto manifesta por suas
virtudes o Deus invisível por natureza.
75.
Quem tenha feito morrer seus membros que estão sobre a terra[409],
quem tenha apagado todo o cuidado com sua própria carne e tenha se
desembaraçado da relação que o ligava a ela, esta relação que divide o amor que
somente a Deus devemos, quem tenha renunciado a todas as marcas da carne e do
mundo por causa do amor divino até poder repetir com o bem-aventurado apóstolo
Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo?[410]”,
este se tornou, como o grande Melquisedeque, um homem sem pai nem mãe , sem
genealogia[411],
sem nada possuir em si que seja dominado pela carne e pela natureza, e
inteiramente unido ao Espírito.
76.
Penso que não é justo chamar de “morte” ao término da vida presente, mas que
devemos chama-lo de “libertação da morte”, desembaraço da corrupção, libertação
da escravatura, detenção da perturbação, supressão das guerras, recuo das
trevas, alívio das penas, calma que apazigua a agitação, véu que cobre a
vergonha, fuga para longe das paixões, numa palavra, fim de todas as obras do
mal. Chegando a este ponto por se terem já voluntariamente liberto da morte, os
santos se fizeram estranhos à existência, viajantes, combatendo nobremente o
mundo, o corpo e suas revoluções. Depois de haverem sufocado o erro suscitado
pelo mundo e pelo corpo na união dos sentidos e das coisas sensíveis, eles
mantiveram em si mesmos a dignidade da alma fora de qualquer servidão.
77.
A própria natureza nos dá uma boa prova de que o conhecimento da providência
foi semeado naturalmente em nós, quando, nos revezes súbitos, voltando-nos para
Deus com orações que não foram ensinadas, ela nos prepara para receber a
salvação. Com efeito, partir do momento em que somos colhidos bruscamente por
uma necessidade, buscamos o socorro de Deus espontaneamente sem pensar em mais
nada, como se a própria providência nos atraísse para ele fora de qualquer
pensamento, ultrapassando a rapidez de que é capaz o intelecto e mostrando que
o socorro divino é mais forte do que tudo. Ora, a natureza não nos empurraria
espontaneamente a buscar onde não houvesse natureza. Tudo o que persegue
naturalmente uma coisa, seja ela qual for, traz em si, coo ao prova forte e
irrefutável, o poder da verdade, que todo mundo pode ver.
78.
Uma vez que, dentre os seres, alguns são bons e outros maus, que uns pertencem
ao século presente e outros ao século por vir, chamamos de desejo o bem que se
espera e de prazer o bem presente. E, em sentido inverso, chamamos de temor ao
mal que se espera e de tristeza ao mal presente. Assim, o prazer e o desejo
fazem parte dos bens, sejam eles reais ou supostos, ou são considerados como
tais, enquanto que a tristeza e o temor fazem parte dos males, ou são
considerados como tais. Com efeito, quando o desejo atinge seu objetivo, ele
suscita o prazer, mas quando não o alcança suscita a tristeza.
79.
Por sua própria natureza, toda tristeza é um mal. Mesmo se, em sua compaixão, o
monge diligente se afligir com a infelicidade alheia, ele não o fará a priori,
deliberadamente, mas depois, e conforme as circunstâncias. Quanto ao
contemplativo, que se mantém igualmente impassível diante dessas infelicidades,
ele se mantém unido a Deus e se faz estrangeiro da todas as coisas daqui.
80.
Todos os santos que tomaram sobre si a palavra divina e infalível atravessaram
o século presente sem imprimir os traços da alma em nenhum dos encantos que
existem aí. Pois, com todo direito, eles desenvolveram o intelecto nas palavras
que exprimem Deus até o limite do que é possível aos homens, ou seja, as
palavras de bondade e de amor. Eles aprenderam que Deus, transportado pelo
movimento destas palavras, concede aos seres seu ser e também a graça de ser
bem, se é que podemos, a respeito de Deus que é o único imóvel, falar de
movimento o invés da vontade que põe tudo em movimento, que faz tudo ser e que
mantém a tudo sendo, sem jamais e de modo algum estar submetido ao movimento.
81.
A alma, que é um ser com intelecto e razão, pensa e raciocina. Ela tem o poder
da inteligência, como movimento a intelecção, como atividade o pensamento. Este
é o termo da intelecção da que pensa e do que é pensado, na medida em que
define a relação dos extremos entre si. Pois a alma que pensa deixa de pensar o
que pensou depois de sua intelecção. O que foi pensado propriamente de uma vez
por todas não suscita mais a potência que lhe permitiria ser pensado outra vez.
Cada pensamento assume assim a detenção da intelecção do que foi pensado nele.
82.
Assim como a ignorância separa os que estão perdidos, a presença da luz
inteligível reúne e une os que são iluminados, os conduz à perfeição e os faz
regressar ao ser em si, reunindo-os longe das opiniões múltiplas, recolhendo
suas diferentes perspectivas das coisas, ou, falando propriamente, suas
imaginações, em um só conhecimento, verdadeiro, puro e simples, cumulando-os
com a luz única e unificante.
83.
O belo é a mesma coisa que o bom, pois tudo busca o belo e o bom em toda causa,
e não existe ser que não participe do belo e dom bom. Pois o belo e o bom estão
em todos, na medida em que todos são verdadeiramente admiráveis, desejáveis,
amáveis, eleitos e amados. Note que o eros
divino, que preexiste ao bem, gerou o bom
eros que existe em nós, pelo qual nós buscamos o belo e o bem, segundo o
que foi dito: “Eu me tornei amante de sua beleza[412]”,
e: “Ame-a e ela o guardará. Estreite-a e ela o honrará[413]”.
84.
Os teólogos chamam o divino às vezes de eros,
às vezes de ágape, às vezes de amável e amado. Por isso, enquanto eros e ágape, ele é conduzido pelo
movimento, mas enquanto amável e amado e carrega sobre si mesmo tudo o que
recebe o eros e o ágape. Para dizê-lo
mais claramente, ele é levado pelo movimento quando suscita uma relação do eros e do ágape naqueles que os recebem.
Mas quando ele atrai por natureza, ele coloca em movimento o desejo tensionado
dos que são levados a ele. E novamente ele coloca em movimento e é levado pelo
movimento, na medida em que tem sede de ter sede, é presa de ser presa e ama
ser amado.
85.
O eros divino é extático, pois ele
não permite que os amantes pertençam a si mesmos, mas àqueles de quem são
presa. Eles mostram que os superiores estão votados a cuidar dos inferiores,
que os iguais estão destinados a se unir uns aos outros, que os inferiores
estão convocados a retornar mais divinamente aos primeiros. É por isso que o
grande Paulo, que era possuído pelo eros
de Deus e que participava da potência extática, disse com sua boca divina: “Não
sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim[414]”.
Como um verdadeiro amante, fora de si, como ele próprio disse a Deus, ele já
não vivia sua própria vida, mas a vida daquele a quem amava, esta vida
profundamente amada.
86.
A respeito da verdade, é preciso ousar dizer o seguinte: Aquele que é ele
próprio a causa de tudo se coloca fora de si por amor a tudo, pelo eros belo e bom, em sua imensa bondade
amorosa, quando cuida de todos os seres, e ele fica como que encantado pela
bondade, a afeição e o eros. A partir
daquilo que o separa de tudo e que o coloca acima de tudo, ele desce em tudo,
em sua potência extática mais elevada que o ser e inseparável de si mesmo. É
por isso que os que conhecem bem as coisas divinas o chamam de ciumento, tão
grande é seu bom amor pelos seres, tanto seu ciúme excita seu impulso amoroso,
e tanto ele se mostra ciumento, ele que tem ciúme do que busca como o tem dos
seres de quem cuida.
87.
Com toda evidência, o próprio Deus suscitou e engendrou o ágape e o eros. Foi ele mesmo quem conduziu ao
exterior, ou seja, para as criaturas, este amor que existe nele. É como foi
dito: “Deus é ágape[415]”,
e também: “Ele é doçura e desejo[416]”,
ou seja, eros. É ele próprio que é
amado e verdadeiramente amável. Assim, de um lado se diz que o eros amoroso escorre dele e que ele
mesmo, que engendrou o eros, é levado
pelo seu movimento; de outro, se diz que é ele próprio que é verdadeiramente
amável e amado, desejado e digno de ser eleito: ele coloca em movimento os
seres que velam por isso. Eles, a quem se dirige o poder de seu desejo, o
desejam na mesma medida.
88.
Penso que Deus seduz e coloca em movimento para a união amorosa que existe no
Espírito. Vale dizer que ele é o
mediador desta união e que ele a ajusta, de modo a receber ele mesmo o eros e o ágape de suas criaturas. Ele
coloca em movimento, por que ele leva cada ser a retornar para ele segundo sua
própria razão. Quanto ao fato de que ele nos seduz, mesmo que para os profanos
isto significa algo que não é puro, ele é aqui em baixo a mediação que provoca
a união em Deus.
89.
O movimento amoroso do bem, que preexiste no bem, que é simples, que se move por
si só e que provém do bem, logo retorna ao seu lugar, pois ele não tem começo
nem fim. Este movimento simboliza nosso impulso perpétuo para o divino e nossa
união com ele. Pois a união amorosa com Deus se eleva e se situa acima de todas
as uniões.
90.
Quando dizemos que o eros é divino,
ou angélico, ou intelectual, ou psíquico, ou natural, entendemos por isto uma
potência que conduz à união e à fusão. Ele leva os seres superiores a cuidar do
inferiores; depois leva os iguais a se ajudarem mutuamente; e, por fim, leva os
seres inferiores a retornar aos seres melhores situados acima deles.
91.
Se o conhecimento unifica o que foi conhecido, e se a ignorância é sempre uma
causa de transformação e da divisão que vem de si mesmo para aquele que ignora,
ele nunca afastará da mesa da verdadeira fé aquele que acreditou em verdade,
segundo a palavra sagrada. É lá que ela portará a permanência da identidade
imóvel e imutável. Pois aquele que está unido à verdade sabe bem que está bem,
mesmo que a maioria reprove o fato de que ele está fora de si. Com efeito, à
maioria escapa naturalmente que pela verdade da verdadeira fé ele escapou do
erro. Ele próprio não sabe se foi presa da loucura, como lhe dizem, mas ele
sabe que se libertou da instável e mutante corrupção das múltiplas variedade do
erro, pela verdade simples que segue sempre a mesma vida e que é sempre
idêntica.
92.
Os santos eram bons, amaram os homens, se tornaram misericordiosos e
compassivos. Ele se esforçaram para não ter senão uma única e sempre mesma disposição
de amor para com todo o gênero humano. Possuindo por esta disposição a forma
suprema de todos os bens, vale dizer, a humildade constante por toda a duração
de suas vidas, esta humildade que protege os bens e destrói os vícios
contrários, eles não deram chance a absolutamente nenhuma das tentações que nos
perturbam, sejam elas voluntárias e dependentes de nossa razão, sejam
involuntárias e independentes de nós, reduzindo pela temperança os levantes de
umas e derrubando pela paciência os ataques das outras.
93.
A fé reta e o temor verídico de Deus suscitam a ação perfeita da virtude. A
firma esperança e a consciência íntegra suscitam a contemplação natural
infalível devotada à elevação. E o amor perfeito e a inteligência voluntária e
totalmente separada dos seres na transcendência suscitam a deificação por meio
da qual Deus nos assume.
94.
A obra da filosofia prática é de tornar o intelecto puro de toda imaginação
passional. A obra da contemplação natural é de mostrar aos que receberam o ser
a causa pela qual eles existem, como Aquele mesmo que traz em si o verdadeiro
conhecimento. E a obra da mistagogia teológica é de tornar, pela graça, em seu
estado, semelhante a Deus e igual a ele, na medida do possível, aquele que, por
causa da transcendência, já não pensa em mais nada que esteja abaixo de Deus.
95.
Aquilo que o éter – ou seja, o elemento fogo – representa no mundo percebido
pelos sentidos, a sabedoria representa no mundo do pensamento, como um estado
luminoso simbolizando as razões, em especial as razões espirituais que estão em
cada um dos seres, manifestando por meio deles a causa que está em todos
infalivelmente, e atraindo para ela o desejo do divino que reside na alma.
Aquilo que representa o ar no mundo sensível equivale à coragem no mundo do
pensamento, como um estado que coloca em movimento, reúne, faz com que aja a
vida inata do Espírito e conforta o movimento perpétuo da alma ao redor do
divino. Aquilo que a água representa no mundo sensível corresponde à castidade
no mundo do pensamento: ela é um estado que suscita a fecundidade vivificante
do Espírito e que engendra o encanto amoroso, que não cessa de se espalhar no
impulso que leva ao divino. E aquilo que a terra representa no mundo sensível,
representa a justiça no mundo do pensamento: ela é um estado que engendra
segundo sua espécie as razões que estão nos seres, e que opera de maneira igual
a difusão vivificante do Espírito, elevando de maneira imutável o fundamento
que ela própria coloca no belo com sua ação.
96.
Assim como alma é atormentada e entenebrecida pelas paixões quando a carne é
vigorosa e opulenta, e que nesta condição recuam o estado de virtude e a
iluminação do conhecimento, também o homem exterior se destrói quando a alma é
protegida e iluminada pela beleza divina das virtudes e pela iluminação do
conhecimento, e quando, para que a razão se estabeleça, a carne rejeita seu
vigor natural.
97.
Não seria possível que o homem criado se revelasse filho de Deus em Deus
segundo a deificação pela graça, se antes ele não tivesse nascido
deliberadamente do Espírito graças ao poder que se move por si só com toda
liberdade e que o une naturalmente a Deus, qual um nascimento vivificante,
divino e imaterial este nascimento que o primeiro homem desleixou por preferir
as delícias visíveis dos sentidos aos bens concebidos pelo intelecto e ocultos
até então. Assim foi ele condenado a carregar o devir do corpo, irrefletido,
material e mortal.
98.
Agora o homem se agita, ou bem ao redor das imaginações irracionais das paixões
suscitadas pelo erro causado pelo amor ao prazer, ou bem ao redor das razões
das obras suscitadas pelas circunstâncias em função das necessidades, ou bem ao
redor das razões naturais da natureza com a finalidade de aprender. Na origem,
nada disto atraía necessariamente o homem, que havia sido justamente criado
acima de tudo. Era preciso que fosse ele assim, desde o começo, ele que não era
distraído por nenhuma das coisas que vieram depois dele, ou que estavam ao
redor dele, ou que existiam por sua causa, ele que para se realizar só
precisava de uma única e só coisa, o movimento irresistível suscitado pela
potência inteiramente amorosa, este movimento que o levava para Aquele que
estava acima dele, ou seja, Deus.
99.
O primeiro homem não tinha entre ele e Deus nada que precisasse conhecer e que
impedisse o parentesco livremente escolhido por amor, este parentesco que
deveria se realizar no movimento que conduzia o homem a Deus. Pois desde que,
pela graça, ele era impassível, ele não era levado pelo prazer à ilusão das paixões.
Não tendo necessidade de nada, ele era livre da necessidade das obras que as
circunstâncias impunham pela necessidade. Enfim, sendo sábio, ele se
estabelecera acima da contemplação da natureza para alcançar o conhecimento.
100.
Deus, que com sabedoria fundou toda a natureza e nela colocou secretamente seu
conhecimento para confortar cada um dos seres racionais, nos deu também, a nós
homens, um mestre generoso, o desejo e o eros
tensionados em sua direção, depois de haver juntado o eros à potência da razão por meio da qual nos esforçamos para poder
conhecer facilmente os modos de realização do desejo e não nos perdermos nos
erros que podemos vir a cometer. Levados por este desejo, e confessando
vivamente que ele nos dirige através das coisas, partimos em busca e ao
encontro d’Aquele graças a quem recebemos o desejo.
[2] Dynamis:
designa tanto o movimento que leva do incriado ao criado como uma faculdade da
alma, capaz do movimento recíproco do criado para o incriado.
[3] Energeia: a
mesma palavra designa a potência do criado no homem e a potência do Incriado: o
Espírito Santo.
[4] Aion: indica uma fase do tempo
compreendida entre um começo e um fim, e oferecida à eternidade.
[5] Cf. Hebreus
11: 1.
[7] Cf. Malaquias
3: 20.
[8] Cf. Êxodo 7:
13, etc.
[9] Cf. Efésios
2: 22.
[10] Gênesis 27:
30.
[11] Cf. Mateus
13: 44.
[12] Cf. Deuteronômio
1: 43-44.
[13] Deuteronômio
6: 10-11.
[14] Cf. II Coríntios
5: 15.
[15] Cf. Mateus
3: 7-8.
[16] Cf. Levítico
11: 1-43.
[17] Cf. Gálatas
2: 4.
[18] Cf. Provérbios
26: 24.
[19] Mateus 10:
8.
[20] Cf. Mateus
25: 24.
[21] Cf. Mateus
27: 3-5.
[22] Êxodo 14:
14.
[23] Deuteronômio
6: 4.
[24] Êxodo 14:
15.
[25] Cf. Mateus 12:
1-2.
[26] Cf. Mateus 17:
20.
[27] Cf. Mateus 14:
19-20.
[28] Cf. Mateus
10: 1-8.
[29] Cf. Lucas
10: 19.
[30] Cf. Marcos
2: 27-28
[31] Cf. Isaías 66:
23.
[32] Cf. Êxodo
16: 23.
[34] Cf. Gênesis 17:
13.
[35] Cf. Gênesis
8: 22.
[36] Levítico 23:
10.
[37] Cf. Deuteronômio
24: 5.
[38] Cf. Josué 5:
3.
[39] Cf. Levítico
23: 10-11.
[40] Mateus 9:
37.
[42] Gênesis 2:
3.
[43] Êxodo 15:
19-22.
[44] Cf. Josué 3.
[45] Cf. Efésios 2:
22.
[46] Cf. Mateus
13: 39 e 24: 36.
[47] Cf. Mateus
24: 36.
[48] Gênesis 1:
31.
[49] Cf. João 20:
6-7.
[50] Cf. Mateus
27: 66.
[51] Cf. Mateus 28:
13.
[52] Cf. Mateus
27: 35.
[53] Cf. Efésios
2: 5.
[54] Salmo 70
(71): 3.
[55] Cf. I Coríntios
1: 22-23.
[56] Cf. Lucas
23: 12.
[57] Cf. Lucas
23: 7-11.
[58] Cf. Lucas 6:
44.
[59] Cf. Deuteronômio
33:2.
[60] João 19: 15.
[61] Lucas 10:
20.
[62] Cf. Lucas
22: 36.
[63] Cf. Lucas 3:
23.
[64] Em grego o número 10 é indicado pela letra iota, que é também a inicial do nome de
Jesus nesta língua.
[65] Cf. João 5:
5-7.
[66] João 5: 8.
[67] Êxodo 33: 7.
[68] Levítico 16;
Hebreus 9: 7.
[69] Cf. Êxodo
20: 21 e 33: 7.
[70] Cf. Romanos
7: 14.
[71] Cf. Hebreus
10: 1.
[72] Cf. Salmo 49
(50): 14
[73] Isaías 53:
2.
[74] Cf. Mateus
17: 2.
[75] Cf. Salmo 44
(45), 3.
[76] Cf. II Coríntios
3: 18.
[77] Cf. Êxodo 16:
14-15; Sabedoria 16: 20.
[78] Cf. I Pedro
2: 2.
[79] Cf. Romanos
14: 2.
[80] Cf. Hebreus
5: 14.
[81] Cf. Mateus
25: 21.
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