ABADE FILEMON
DISCURSO MUITO ÚTIL
Abade
Filemon
Nosso
bem-aventurado Abade Filemon que, dentre os Padres Teóforos levou ao mais alto
grau a nepsis e o luto, viveu num tempo que sua história não registrou. O
presente relato permite a quem quiser ver, que ele foi, mais do que todos,
inteiramente devotado à piedade, à experiência, à hesíquia, à imitação fiel do
grande Arsênio.
Por
suas preces e suas súplicas, dia e noite, perseverante em sua cabana de asceta
como na câmara alta da existência, lavando-se na fonte das lágrimas e dos
gemidos, ultrapassando pelo amor a Deus não apenas o que está submetido ao mal
como também o que provém da melhor parte, tanto o sensível como o inteligível,
ele se apresentou surdo e mudo ao Senhor, conforme está escrito, e alcançou a
bela iluminação da graça por meio da qual, no extremo da hesíquia e do silêncio
e sob o efeito da irradiação solar, ele recebeu abundantemente o dom de
examinar e de discernir, de ver e de prever. Testemunho fiel do que dizemos é o
presente relato, no qual o ensinamento eminente da santa nepsis é transmitido à
perfeição como uma vestimenta bordada tecida por Deus. Às vezes ele se volte
para a ação, às vezes permanece na contemplação, pela longa experiência que,
através das obras, complementa a própria fé. Assim se alguém quiser se despojar
das manchas e do peso das vestes da paixão, se quiser se despojar do homem
velho e se cobrir com a túnica luminosa da impassibilidade e da graça, que
constitui o novo homem conforme a Jesus Cristo, pensando continuamente Nele e
colocando todo seu labor para chegar ao objetivo de suas meditações, ele
alcançará seu louvável desejo.
*
O Abade Filemon foi um desses grandes anacoretas que
povoaram os desertos do Egito, do século IV ao VII, até a conquista árabe em
640. Ele próprio deve ter vivido no século VI. É o que nos deixa entender o
“discurso” inserido na antologia filocálica – metade relato de sua vida, metade
testemunho de sua experiência – que Diádoco de Foticéia menciona no passado
mostrando um Egito no qual os monges, mesmo fugindo das heresias alexandrinas,
iam e vinham à vontade e comunicavam com Constantinopla: o Islã ainda não
chegara. É provável que esta transcrição
anônima dos gestos e ditos de Filemon tenha sido redigida a partir de
testemunhos de seus discípulos pouco depois da sua morte, talvez no início do
século VII. Seria assim um dos últimos testemunhos diretos dos Padres do
deserto, ou ainda o testamento da anacorese egípcia.
Todas as aquisições da experiência eremítica, desde
Evagro e Diádoco, estão aí reunidas: a hesíquia, a nepsis, a purificação do
intelecto, e sobretudo a prece do coração, que Filemon denomina “meditação
secreta”, formulando-a como “Senhor, tenha piedade”, ou “Senhor Jesus, tenha
piedade”; porém, ele também nos transmite – e é um dos primeiros a faze-lo – a
fórmula tradicional: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de
mim”, a mesma herança que os Sinaítas receberam, guardaram e cultivaram.
Resta o que dificilmente poderia ser transmitido: o
extremo rigor, a extrema delicadeza, a extrema liberdade da vida dos Padres do
deserto. E nisto Filemon é exemplar: profundamente despojado, solitário e
silencioso, capaz de mergulhar dia e noite nas preces canônicas de sua
“liturgia” cotidiana como na prece do coração, ao mesmo tempo em que
renunciava, por humildade, celebrar a eucaristia, embora fosse padre; mas
também capaz de exortar longamente o monge que desejava segui-lo, de responder
a todas as perguntas dos que vinham vê-lo, de trabalhar com suas mãos e de oferecer
o fruto de seu trabalho no mercado. Em tudo isto Filemon não mostrava senão sua
fraqueza, suas provações, sua confiança: “Eu não trago nada, dizia ele, senão a
prece contínua”.
Com seu retiro, com seu silêncio, ele manteve sempre
entre si e os demais uma treva, um espaço vazio, que pode revelar fora de toda
paixão os dons mesmos do Deus vivo: o amor e a liberdade. O caminho do coração
se abre ao intelecto em prece, à “meditação secreta”, e pode levar a este ponto
de concentração e êxtase, onde, diz ele, “mesmo a carne é abrasada pelo
Espírito", tornando-se a luz de Deus que se fez carne em Cristo. A partir
daí, tudo foi dito. No próprio momento de passar pela recapitulação do Sinai e
seguir o movimento que levará ao monte Athos, a experiência hesiquiasta aparece
aqui em germe, tal como será.
SOBRE O ABADE FILEMON
DISCURSO MUITO ÚTIL
Conta-se
do abade Filemon, o anacoreta, que ele havia se encerrado numa pequena gruta,
afastada da comunidade dita “dos Romanos”, e que ali enfrentava os combates da
ascese repetindo em seu coração, como um encantamento, aquilo que o grande
Arsênio[1]
dizia a si mesmo: “Filemon, por que você partiu?”.
Ele
passou um longo tempo nesta gruta, fabricando cordas e tecendo bolsas, que
entregava ao ecônomo, recebendo deste pãezinhos para sua alimentação. Pois ele
não comia senão pão e sal. Ele não tomava nenhum cuidado com a carne[2],
mas se consagrava à contemplação e penetrou na iluminação divina. Tendo
alcançado a inefável mistagogia ele vivia alegre. Aos sábados e domingos ia à
igreja, só e recolhido, e não permitia que ninguém dele se aproximasse, para
manter em si sem falha a obra do intelecto. Na igreja, imóvel num canto, rosto
contra a terra, ele derramava rios de lágrimas. Ele tinha em si um contínuo
luto, a lembrança da morte e o exemplo dos santos Padres, em especial o de
Arsênio, cujas pegadas se esforçava por seguir.
Quando
estalou a heresia em Alexandria e na sua região, ele partiu e se colocou na
comunidade vizinha da cidade de Nicanor. Paulino, o amado de Deus, o recebeu,
consagrou a ele o lugar onde ele próprio se retirara e o estabeleceu na
hesíquia total. Durante todo um ano ele só admitiu recebê-lo uma única vez. Ele
próprio só o incomodava nos momentos em que lhe dava o pão de que necessitava.
Pouco antes da Ressurreição de Cristo, no momento de sua visita, eles evocaram
entre si o estado eremítico. Filemon, sabendo que este irmão, em sua grande
piedade, desejava também este objetivo, separou para ele passagens de textos
ascéticos, das Escrituras e dos Padres, e lhe mostrou por meio deles que é
impossível agradar a Deus sem uma perfeita hesíquia, como disse Moisés[3],
este Padre admirável, em seu amor pela sabedoria: “A hesíquia engendra a
ascese; a ascese engendra as lágrimas; as lágrimas engendram o temor; o temor
engendra a humildade; a humildade engendra a visão profética; a visão profética
engendra o amor; o amor liberta a alma das enfermidades e das paixões. Então o
homem sabe que ele não está longe de Deus”.
Então
ele lhe disse: “É preciso purificar totalmente o intelecto e lhe dar um
trabalho espiritual incessante por meio da hesíquia. Pois, assim como o olho se
volta para as coisas sensíveis e admira aquilo que vê, também o intelecto puro
se dirige às coisas inteligíveis[4],
sai de si mesmo sob o efeito da contemplação espiritual, e retorna de seu
êxtase com dificuldade. E na mesma medida em que se despoja e se livra das
paixões por meio da hesíquia, ele se torna digno do conhecimento. O intelecto é
perfeito quando ultrapassa o conhecimento dos seres e se une a Deus[5],
a ponto de não mais suportar ser privado da dignidade real que adquiriu; então
ele não é mais sacudido pelas concupiscências de baixo, ainda que lhe sejam
oferecidos todos os reinos da terra”.
“Assim
sendo, se você quiser alcançar todas as virtudes, não se preocupe com nenhum
homem, fuja do mundo, siga de todo coração o caminho dos santos, tenha uma
aparência negligente, uma vestimenta pobre, uma túnica humilde. Que seu
comportamento seja simples, sua palavra constante, seu caminhar discreto, sua
voz natural. Viva na pobreza, desprezado por todos. Sobretudo, guarde seu
intelecto, mantenha a sobriedade e a vigilância, suporte com paciência todas as
angústias e conserve firmes e intactos todos os bens que lhe forem dados.
Enfim, mantenha-se rigorosamente atento a si mesmo[6],
para não acolher nenhum dos prazeres que tentam penetrar em você contra sua
vontade. Pois as paixões da alma são adormecidas pela hesíquia. Mas excitadas e
exacerbadas elas se tornam naturalmente mais e mais selvagens, obrigam aos que
as recebem a pecar e, como as feridas do corpo que coçamos e esfregamos, se
tornam difíceis de curar. Uma razão preguiçosa pode ainda afastar de Deus o
intelecto, quando os demônios a constrangem e persuadem os sentidos.”
“Guardar
a alma constitui um grande combate e um grande temor. É preciso nos separar do
mundo todo, afastarmos a alma de toda paixão pelo corpo, não possuirmos nem
cidade, nem casa, nem nada de nosso, nem dinheiro, nem domínio, nem nos
ocuparmos de nada, nem estarmos ligados a ninguém, é preciso ser ignorante das
coisas humanas, humildes, compassivos, bons, doces, calmos, prontos a receber
em nossos corações as marcas deixadas pelo conhecimento divino. Pois é
impossível escrever sobre a cera sem primeiro apagar os sinais que nela se acham
impressos; é isto que nos ensina o grande Basílio[7].”
“Este
é o coro dos santos: totalmente separado da vida que levamos no mundo.
Conservando límpido em si próprios o pensamento do céu, os santos receberam a
luz das leis divinas. Eles brilharam através de suas obras e de suas palavras
piedosas, mortificando por meio da temperança, do temor e do desejo por Deus
seus membros que estavam sobre a terra[8].
Com efeito, graças à oração contínua e à meditação das divinas Escrituras, os
olhos do intelecto e da alma se abrem e veem o Senhor dos Exércitos, e uma
grande alegria e um desejo violento se apossam da alma abrasada e, quando a
carne é também arrebatada pelo Espírito, o homem se torna inteiro espiritual. É
por isso que aqueles que se abrem à bem-aventurada hesíquia, que levam a vida
mais estrita e que se separam de todo conforto humano, conversam com toda
pureza com o Mestre que está nos céus: a sós com o único.”
Ao
ouvir essas palavras, este irmão amado por Deus, com a alma mortificada pelo
desejo divino, foi com ele a Sceta, aonde os maiores dentre os santos Padres
trilharam com sucesso o caminho da piedade. Eles permaneceram na comunidade de
João Colobos, depois de entregar ao ecônomo da comunidade a responsabilidade de
cuidar deles, pois desejavam viver apenas a hesíquia. Pela graça de Deus, eles
viviam na total hesíquia, mas saiam discretamente aos sábados e domingos. Mas
nos outros dias da semana cada um se aplicava pacientemente em fazer as orações
e as liturgias. A liturgia do ancião era a seguinte: à noite e em paz ele
cantava todo o saltério e as odes, e recitava uma passagem do Evangelho. Depois
se sentava e dizia consigo mesmo: “Senhor, tem piedade”, com tanta tensão e
durante tanto tempo quanto conseguia pronunciar estas palavras. Então ele adormecia
um pouco e pela madrugada cantava a hora prima, sentava-se em seu banco,
voltado para o oriente, e salmodiava seguindo a ordem do ofício, e novamente
recitava de cor as passagens do Apóstolo e do Evangelho. Assim passava ele todo
o dia, cantando e orando sem relaxar[9],
nutrido pela contemplação das coisas do céu, a ponto de que muitas vezes seu
intelecto se elevava na contemplação e ele já não sabia estar sobre a terra.
Vendo-o
assim inflexivelmente voltado para o cumprimento dessas liturgias e totalmente
transformado pelos pensamentos divinos, o irmão lhe disse: “O que tem você,
Pai, velho como é, para se entregar desta maneira às pensa, mortificando e
sujeitando seu corpo?[10]”.
Ele lhe respondeu: “Creia-me, filho, foi Deus quem colocou em minha alma tamanho
ardor e desejo pela liturgia, pois eu sou incapaz de chegar por mim mesmo ao
fim desta tensão. O desejo por Deus e a esperança nos bens futuros são mais
fortes do que a fraqueza do corpo”. Todo o desejo de seu intelecto estava assim
transportado para o céu como que por asas, tanto na hora das refeições como em
todos os outros momentos.
Um
dia, um irmão que estava com ele lhe perguntou: “Qual é o mistério da
contemplação?”. Vendo que ele desejava a prender e que tinha pressa, o ancião
lhe disse: “Filho, digo-lhe naturalmente que, se o intelecto de um homem é puro
no mais alto grau, Deus lhe revela as contemplações das próprias potências e
das ordens litúrgicas”.
Ele
então lhe perguntou: “Porque, Pai, você é cumulado de doçura pelo saltério,
mais do que por toda a divina Escritura? E porque, quando você canta
tranquilamente, você diz as palavras como se conversasse com alguém?”. Ele
respondeu: “Filho, eu lhe digo: Deus imprimiu o poder dos salmos em minha pobre
alma como no profeta Davi, e eu não posso evitar a doçura das contemplações de
todas as espécies que existem neles. Pois eles abarcam por completo toda a
divina Escritura”. Veja com quanta humildade ele se esforçou para revelar essas
coisas para o bem daquele que o interrogou.
Um
irmão chamado João veio do mosteiro dos Paraliotas[11]
encontrar este santo Padre, o grande Filemon e, jogando-se aos seus pés, lhe
disse: “Pai, que devo fazer para ser salvo? Pois vejo meu intelecto girar e
errar por lugares onde ele não deveria”. Ele esperou um pouco, e respondeu:
“Esta paixão é dos homens do mundo, ela persiste porque você ainda não adquiriu
um desejo perfeito por Deus. O calor do conhecimento e do desejo de Deus ainda
não penetrou em você”.
O
irmão disse: “Pai, o que devo fazer?”. Ele lhe respondeu: “Fique retirado até
alcançar em seu coração uma meditação secreta[12],
que possa purificar de tudo isso seu intelecto”. O irmão, que não sabia do que
falava o ancião, disse: “Pai, o que é a meditação secreta?”. Ele lhe respondeu:
“Permaneça em retiro, seja sóbrio e vigilante, diga em seu intelecto: ‘Senhor
Jesus Cristo, tenha piedade de mim’. Isto é o que o bem-aventurado Diádoco
transmitiu aos seus discípulos[13]”.
O
irmão se foi, e com a ajuda de Deus e das orações do Padre, alcançou a hesíquia
e por algum tempo foi cumulado de doçura por essa meditação. Porém, de repente
ela se afastou dele, e como ele já não conseguia cultivá-la com sobriedade e
vigilância e orar, ele retornou ao ancião e lhe disse o que sucedera. Este lhe
falou: “Veja, você acaba de conhecer o rastro da hesíquia e da prática e teve a
experiência da doçura contida nelas. Guarde isto em seu coração todo o tempo.
Comendo, bebendo, na companhia de outros, fora de sua cela, a caminho, que ela
nunca o abandone: com o pensamento sóbrio e vigilante e com um intelecto firme
e direito, reze sempre esta oração, cante e medite as preces litúrgicas e os
salmos. Mesmo nas necessidades do corpo, não deixe seu intelecto parar de
meditar e orar em segredo. Assim você poderá compreender as profundidades da
divina Escritura e o poder oculto nela, e dar ao seu intelecto um trabalho
contínuo, a fim de cumprir a palavra do Apóstolo que disse: ‘Orem sem cessar[14]’.
Esteja rigorosamente atento e guarde seu coração para não acolher os maus
pensamentos, ou não importa quais pensamentos vãos e inúteis. A todo o momento,
em pé ou deitado, comendo ou bebendo, quando encontrar alguém, que em sua
reflexão seu coração medite os salmos, ou que ele recite a prece: ‘Senhor Jesus
Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’. Mesmo quando você cantar em voz
alta, vigie para não dizer as palavras com a boca enquanto os pensamentos vagam
por aí”.
O
irmão ainda lhe perguntou: “Em meus sonhos vejo muitas imagens vãs”. Mas o
ancião lhe disse: “Não tema nem se inquiete. Mas antes de se deitar, faça
muitas preces em seu coração e resista aos pensamentos, para não ser desviado
pelas vontades do diabo, e para que Deus o acolha. Tanto quanto puder, só durma
depois dos salmos e da sábia meditação[15].
Não seja negligente, e não permita que seu intelecto acolha pensamentos
estranhos. Deite-se meditando nos pensamentos que teve durante a oração, a fim
de que seu intelecto o guarde durante o sonho e que ao despertar ele converse
com você[16].
Ainda antes de dormir, diga o Símbolo da fé ortodoxa. Pois glorificar a Deus
corretamente é a fonte e a guarda de todos os bens”.
Ele
ainda lhe perguntou: “Faça-me uma caridade, Pai. Diga-me, qual é a obra de seu
intelecto? Ensine-me, para que também eu seja salvo”. O ancião lhe respondeu:
“Porque você me interroga assim?”. Mas o irmão, levantando-se, abraçou os pés
do santo e implorou-lhe que respondesse. Depois de algum tempo, este lhe disse:
“Você ainda não pode possuir isto. Pois é preciso que você seja um homem que
tenha entrado na posse dos bens da justiça para dar a cada sentido a obra que
lhe cabe. Sem nos purificarmos totalmente dos pensamentos vãos do mundo, é
impossível nos tornarmos dignos de tal graça. Por isso, se você deseja estes
bens, mantenha no coração puro a meditação secreta. Se, com efeito, sua prece e
sua meditação das Escrituras permanecerem contínuas os olhos de sua
inteligência se abrirão, seu intelecto experimentará uma grande alegria e um
desejo inefável e violento: mesmo sua carne será abrasada pelo Espírito, a
ponto de que todo o seu ser se tornará espiritual. Então, quando Deus o julgar
digno de orar dia e noite com um intelecto puro, longe de toda distração, não
se prenda mais à sua própria regra, mas, tanto quanto puder, una-se primeiro a
Deus. É ele quem iluminará seu coração sobre a obra espiritual que você deverá
cumprir”.
Ele
acrescentou o seguinte: “Um dia, um ancião se aproximou de mim e, como eu o
interroguei sobre o estado de seu intelecto, ele me disse: Eu passei dois anos
rezando a Deus de todo o meu coração pedindo-lhe sem descanso que me permitisse
ter, impressa em meu coração, continuamente e sem distração, a prece que ele
próprio transmitira a seus discípulos. Vendo minhas penas e minha paciência, o
Senhor que tudo nos concede atendeu o meu pedido”.
Ele
disse ainda: “Os pensamentos de vaidade que atravessam o intelecto são
enfermidades da alma preguiçosa e negligente. Convém, portanto, conforme está
escrito, que guardemos nosso intelecto com toda atenção[17],
que cantemos com todo conhecimento, sem distrações, e que oremos com um intelecto
puro. Eis por que, irmãos, Deus quer que mostremos o fervor com o qual nos
voltamos para ele, primeiro nas penas, depois no amor e na oração contínua, e
então ele próprio nos abrirá o caminho da salvação. Ora, é claro que para
chegar ao céu não existe outro caminho do que a perfeita hesíquia, a fuga de
todo mal, a aquisição dos bens, o amor perfeito a Deus e a união com ele na
santidade e na justiça; se alguém chegar a isto, se elevará rapidamente ao
coração celeste. Mas é absolutamente necessário que quem deseja se elevar a
estas alturas mortifique seus membros que estão sobre a terra[18].
Com efeito, quando nossa alma se regozija na contemplação do bem verdadeiro,
ela já não se volta para nenhuma das paixões que conduzem ao prazer. Mas, dando
as costas a toda fruição do corpo, com um intelecto puro e sem manchas, ela
recebe a graça de Deus”.
“Assim,
estejamos atentos, submetamos nossos corpos às provações e purifiquemos nossas
almas, a fim de fazermos de nossas almas a moradia de Deus e a fim de cumprirmos
sem falta seus divinos mandamentos. E ele próprio, no futuro, nos ensinará a
guardar com segurança suas leis, enviando-nos como raios de sol suas próprias
energias, pela graça do Espírito Santo que ele depositou em nós. Pois é pelas
penas e pelas provações que devemos purificar a imagem que fez de nós seres
dotados de razão, capazes de receber a compreensão e a semelhança de Deus,
trazendo em nós os sentidos puros e sem mancha, de certo modo forjados na
fornalha das provas e transformados com vistas à dignidade real. Foi para que
ela participasse de todos os bens que Deus criou a natureza humana capaz de
contemplar pelo intelecto os coros dos anjos, os esplendores das Dominações, as
Potestades e os Principados, os Exércitos, a luz inacessível e a glória que
brilha acima de tudo”.
“Quando
você conseguir alcançar com sucesso uma virtude, não se volte contra seu irmão
pensando que você obteve aquilo em que ele foi negligente: este é o começo do
orgulho. Com toda sua força, evite fazer o que quer que seja para agradar aos
homens. Se você combate a paixão, não perca a coragem. Se a guerra persistir,
não relaxe. Levante-se, atire-se diante de Deus e diga com todo o coração como
o Profeta: ‘Senhor, julgue os que me ultrajam[19],
pois eu nada posso contra eles’. E ele, vendo a sua humildade, lhe enviará
depressa o seu socorro. Quando você caminhar na companhia de alguém, recuse
qualquer conversa vã. Continue dando ao seu intelecto seu trabalho espiritual,
a fim de que este se torne para ele um bom costume e o esquecimento dos
prazeres do mundo, alcançando assim o porto da impassibilidade”.
Depois
de ter instruído o irmão com estas e outras palavras, despediu-se dele. Pouco
tempo depois, este voltou para conversar com ele, começando por esta questão:
“Pai, que fazer? Durante minha liturgia noturna o sono me ataca e não me
permite orar com sobriedade e vigilância, nem mesmo velar. Sinto vontade de
fazer trabalhos manuais quando salmodio”. Ele respondeu: “Quando você orar com
sobriedade e vigilância não realize trabalhos manuais. Mas se você for tomado
de acídia, reaja um pouco ameaçando o pensamento, e atire-se ao trabalho
manual”.
O
irmão lhe disse ainda: “Você mesmo não é acossado pelo sono durante sua
liturgia?”. Ele lhe respondeu: “Miseravelmente. Mas se o sono me ameaça um
pouco, eu reajo e começo por dizer uma passagem do Evangelho de João, voltando
para Deus o olhar do intelecto, e logo o sono se dissipa. Faço o mesmo com os
pensamentos: quando eles chegam, vou ao seu encontro como um fogo, com
lágrimas, e eles se dissipam. Você ainda não pode estar armado desta maneira,
mas mantenha sempre a meditação secreta e as preces cotidianas formuladas pelos
santos Padres, ou seja, as horas terceira, sexta, nona e as vésperas. E
esforce-se por cumprir as liturgias noturnas, evitando com todas as suas forças
de fazer o que seja para agradar aos homens, bem como evitando toda aversão aos
seus irmãos. A fim de não se separar de Deus. Esforce-se por guardar seu
intelecto sem distração e cuidadosamente voltado para os pensamentos
interiores. Quando você estiver na igreja e for comungar os mistérios divinos[20]
de Cristo, não tome nenhuma iniciativa antes de sentir em si mesmo a perfeita
paz. Permaneça em pé no mesmo lugar e não saia daí até o fim. Considere que
você está no céu e que vai ao encontro de Deus com os santos anjos e que vai
recebê-lo em seu coração. Prepare-se com grande temor e tremor para não tomar
parte indignamente das santas Potências”.
Depois
de ter armado o irmão com estas palavras e tê-lo confiado ao Senhor e ao
Espírito de sua graça[21],
ele o despachou.
O
irmão que vivia com ele contava também o seguinte: “Um dia, quando eu estava
sentado perto dele, perguntei se ele havia sido provado pelas agressões dos
demônios quando estava no deserto. Ele me disse: Irmão, perdoe-me. Se Deus
permitisse que sobre você caíssem as tentações que eu recebi do diabo, receio
que você não teria suportado tal amargor. Tenho setenta anos, ou quase isto.
Passei a maior parte de minha vida entre tentações, morei em diferentes
desertos na mais extrema hesíquia, fui tão provado e sofri tantas tentações que
é inútil descrever seu amargor aos que ainda não receberam a experiência da
hesíquia. Nas tentações, era assim que eu sempre agia: entregava toda minha
esperança a Deus, com quem eu me engajara para renunciar ao mundo. Logo ele me
livrava da angústia. É por isso, irmão, que eu já não me ocupo de mim mesmo:
pois eu sei que ele se preocupa comigo, e assim suporto com mais facilidade as provações que me sobrevêm.
De mim, só trago uma coisa: a prece contínua[22].
Eu sei que os infortúnios cresce na medida em que quem os suporta recebe mais e
mais coroas. Este é um pacto perante o justo Justo.
“Assim
sendo, se você sabe disto, irmão, não caia na negligência. Você sabe que
permanece combatendo em meio à batalha e que numerosos são os que combatem por
nós o inimigo de Deus. Pois como seria possível que ousássemos encarar um
adversário tão terrível de nossa raça, se a direita do Verbo de Deus não nos
sustentasse com toda a sua força, envolvendo-nos e nos cobrindo de solicitude? Como
poderia a natureza humana escapar das armadilhas que lhe coloca o inimigo? Com
efeito, foi dito: ‘Quem abrirá suas vestes? Quem penetrará nas dobras de sua
couraça? De sua boca saem chamas ardentes e brotam braseiros de fogo. Uma
fumaça levanta-se de suas narinas, como cinzas fumegantes ou brasas de fogo.
Seu sopro são brasas. Uma chama se ergue de sua boca. No seu pescoço reside sua
força. Diante dele corre a perdição. Seu coração é duro como pedra, inflexível
como uma bigorna. Ele faz o abismo ferver como uma chaleira. Ele agita o mar
como se fosse um vidro de perfume. Ele conduz o cativo às profundezas abissais.
Ele enfrenta tudo que se ergue, ele que reina sobre tudo o que existe nas águas[23]’.
É contra ele que lutamos, irmão: este tirano com tanto poder, conforme descrito
na Escritura. Mas àqueles que assumem a vida solitária como se deve é fácil
vencê-lo, nada possuindo de seu, renunciando ao mundo, trabalhando as virtudes
com sucesso, nelas conduzindo Aquele que combate por nós. Com efeito, diga-me:
quem, depois de se ter aproximado do Senhor e de ter aberto seu intelecto ao
temor de Deus, não foi transformado em sua natureza? E quem, depois de se ter
iluminado sob a chama da lei e das obras de Deus, não viu cumulada de luz sua
alma, e não a preparou assim para irradiar as reflexões e os pensamentos
divinos? Este não a deixa estéril, pois ela agora traz a Deus consigo, Deus que
leva o intelecto a buscar a luz insaciavelmente. Se esta alma não cessa de agir
assim, o Espírito não permite que ela se esgote nas paixões. Ela agora é como
um rei: ela opõe aos seus adversários seu sopro poderoso e terrível, despedaça
inexoravelmente e jamais bate em retirada. Pela ação ela ergue as mãos para o
céu e pela prece do intelecto ela obtém a vitória no combate”.
O
mesmo irmão contava ainda: “O abade Filemon, além de outras virtudes, havia
adquirido esta: ele jamais se permitia escutar propostas insignificantes. Se
alguém, por desatenção, lhe falava de algo que não objetivava o bem da alma,
ele simplesmente não lhe respondia. E se eu partisse para uma missão, ele não
perguntava: ‘Porque você está partindo?’. Quando eu regressava, ele não
indagava: ‘Porque você partiu?’, ou: ‘Como?’, ou: ‘O que você foi fazer?’. Um
dia, precisei ir a Alexandria de barco, e de lá fui até a rainha das cidades[24]
por negócios da igreja. Resolvido o assunto com os piedosos irmãos que lá se
achavam, ali permaneci, sem enviar nenhuma notícia ao servidor de Deus. Depois
de ter passado em Constantinopla por um tempo bastante longo, retornei a Sceta
para junto de Filemon. Ele ficou feliz de me ver, me abraçou, fez uma oração e
se sentou, mas não me perguntou nada e permaneceu mergulhado em sua
contemplação”.
“Uma
vez quis pô-lo à prova: passei muitos dias sem lhe levar o pão para comer. Mas
ele não me procurou nem disse nada. Então fiz uma metanias e lhe disse:
‘Faça-me uma caridade, Pai, e me diga: você não ficou aflito por não ter eu lhe
trazido o pão como de costume?’ Ele respondeu: ‘Perdoe-me, irmão. Se durante vinte
dias você não me trouxesse o pão para comer, mesmo assim eu não lhe pediria.
Pois, pelo tempo que suportasse minha alma, suportaria meu corpo”. A este ponto
ele estava tomado pela contemplação do verdadeiro bem”.
Ele
dizia: “Depois que cheguei a Sceta não mais permiti que meu pensamento deixasse
a cela. Não pensei em outra coisa senão no temor a Deus e na geena no século
por vir. Lembrei-me do julgamento que ameaça os pecadores, do fogo eterno e das
trevas exteriores, e de como as almas dos pecadores serão separadas das dos
justos, e de quais bens serão reservados aos justos, recebendo cada qual seu
salário de acordo com o que fez[25]:
um, pelo acúmulo de suas penas; outro, por sua compaixão e amor sem hipocrisia;
outro, por sua pobreza e sua renúncia ao mundo inteiro; outro, por sua
humildade e sua profunda hesíquia; outro, por sua extrema submissão; outro, por
sua hospitalidade. Quando eu reflito sobre tudo isso, não deixo mais nenhum
pensamento agir em mim e já não posso estar com os homens nem permitir que meu
intelecto se ocupe deles, a fim de não me separar dos pensamentos mais
divinos”.
Ele
acrescentava a história de um eremita: “Ele alcançou a impassibilidade e
recebia da mão de um anjo o pão que o alimentava. Mas, por sua negligência, ele
perdeu esta honra. De fato, quando uma alma relaxa pouco a pouco a concentração
e a tensão do intelecto a noite toma conta dela. Pois aonde não brilha Deus,
tudo escoa nas trevas, e a alma já não é capaz de ver a Deus e de tremer às
suas palavras. ‘Eu sou um Deus próximo, disse o Senhor, e não um Deus distante.
Se um homem se esconde em segredo, não o verei? Será que eu não preencho o céu
e a terra, diz o Senhor?’[26]”.
Ele
evocava as lembranças de tantos outros que haviam passado pelas mesmas provas.
Também lembrava a queda de Salomão, que depois de haver recebido tamanha
sabedoria e ter sido glorificado por todos – pois era como a estrela da manhã
que se levanta na aurora, iluminando todos os seres com a claridade de sua
sabedoria – por um pequeno prazer perdeu sua glória[27].
Devemos, portanto, temer a negligência. É preciso orar continuamente[28],
para que nenhum outro pensamento venha a nos separar de Deus nem tome lugar em
nossa inteligência. Pois o coração puro inteiramente tomado pelo Espírito Santo
vê como toda pureza, como num espelho, Deus por inteiro.
“Quando
escutei estas suas palavras, disse o irmão, compreendi que por suas próprias
obras as paixões da carne já não trabalhavam nele. Ele desejava absolutamente o
melhor, a ponto de o vermos sempre transformado pelo Espirito, exalando
suspiros inefáveis[29],
voltado para si mesmo, pesando a si mesmo e lutando para que nele não entrasse
fosse lá o que fosse para turbar a pureza de sua reflexão e que, contra sua
vontade, pudesse lhe ser prejudicial”.
“Vendo
isso tudo, disse o irmão que vivia com ele, eu o pressionava todo o tempo,
excitado por imitar tantas marcas de virtude, e lhe fazia numerosas perguntas.
Eu lhe dizia: ‘Como posso adquirir como você um intelecto puro?’. Ele
respondia: ‘Vá, trabalhe penosamente. É preciso que o coração trabalhe e pene.
Não é quando dormimos e estamos deitados que nos chega aquilo que é digno de
nosso esforço e de nossas penas. Nem os bens terrestres vêm às pessoas sem
penas. Quem quer alcançar o progresso espiritual deve antes de tudo renunciar à
suas próprias vontades, ter em si constantemente o luto e a pobreza, não
prestar atenção aos pecados dos outros mas apenas aos seus, chorar por eles dia
e noite, e não ligar a ninguém por amizade. Pois a alma que é oprimida pelos
infortúnios e mortificada pela lembrança de seus pecados anteriores morre para
o mundo, e o mundo para ela[30].
Vale dizer que as paixões da carne não mais agem e que o homem está morto para
as paixões. Pois quem renuncia ao mundo, que se une a Cristo e se consagra à
hesíquia, este ama a Deus, guarda sua imagem e é rico em sua semelhança. Do
alto, Deus lhe concede o dom do Espírito: ele se torna morada de Deus e não
habitação de demônios, e em Deus ele obtém a experiência das obras justas. A
alma purificada da existência e liberta das manchas da carne, nem possuindo
mais crostas nem rugas[31],
recebe a coroa da justiça e brilha com a beleza das virtudes’. Assim falava ele”.
“Pois
naquele que, no início da renúncia, não traz o luto em seu coração, nele não
existem nem lágrimas espirituais, nem memória do castigo sem fim, nem
verdadeira hesíquia, nem prece constante, nem salmodia, nem meditação das
divinas Escrituras: ele não tem o hábito desta ascese, que faz com que o
intelecto, mesmo que ele não queira, o obrigue a praticá-la na continuidade da
paciência. O temor a Deus domina seus pensamentos, mas ao mesmo tempo este
homem repousa na amizade do mundo e não é capaz de adquirir a pura inteligência
na oração. Pois a piedade unida ao temor de Deus purifica a alma das paixões,
predispõe o intelecto para a liberdade, leva-o à contemplação natural, permite
que ele se aplique à teologia que recebe como a própria imagem da beatitude,
cujas garantias ele confia aos teólogos aqui de baixo, enfim, ele a guarda em
paz”.
“Dediquemo-nos
com todas as nossas forças ao trabalho ativo por meio do qual somos conduzidos
à piedade, que é a pureza do intelecto, cujo fruto é a contemplação natural e
teológica. Pois a ação é a via de acesso para a contemplação, como o afirmou
uma inteligência penetrante e inteiramente teológica[32].
Portanto, se negligenciarmos a ação, ficaremos desprovidos de toda filosofia.
Mesmo que alguém tenha alcançado o mais alto cume da virtude, ele precisará das
penas da ascese para colocar um freio nos impulsos desordenados do corpo e
guardar atentamente os pensamentos. Desta maneira dificilmente conseguiremos
nos tornar morada de Cristo. Pois na medida em que aumenta em nós a justiça
aumenta-nos também a coragem espiritual. E o intelecto que se tornou perfeito
se une inteiramente a Deus, cercado do esplendor da luz divina, e descobre os
segredos indizíveis dos mistérios. Ele então aprende em verdade onde está o
entendimento, onde está a força, onde está a compreensão de todas as coisas,
onde estão a longevidade e a vida, onde está a luz dos olhos e a paz[33].
Com efeito, enquanto ele estiver ocupado em combater as paixões, não terá tempo
de usufruir destes bens. Pois as virtudes e os vícios tornam o intelecto cego[34].
Os vícios, para que ele não veja as virtudes; e as virtudes, para que ele não
veja os vícios. Mas quando lhe é concedido colocar fim à guerra e se torna
digno dos carismas espirituais, ele se torna inteiramente luminoso, permanece
constantemente sob o efeito da graça, firme na contemplação espiritual. Este
homem já não estará ligado às coisas aqui de baixo, mas terá passado da morte
para a vida[35]”.
“Quem
se aproxima da vida consagrada e que se dirige para Deus, deve ter o coração
casto e a boca pura, a fim de que a palavra pura que sai de sua boca possa
louvar a Deus condignamente. Pois s alma unida a Deus conversa com ele
continuamente”.
“Irmãos,
queiramos alcançar este cume de virtudes, não permaneçamos agarrados à terra
por causa das paixões. Pois quem combate, que consegue se aproximar de Deus,
que participa da santa luz, que é abençoado pelo desejo que sente por ela,
desfruta no Senhor de uma alegria espiritual inconcebível. Como diz o salmo
divino: ‘Deleite-se também no Senhor, e ele concederá os desejos do seu
coração; ele fará sobressair a sua justiça como a luz, e o seu juízo como o
meio-dia[36]’.
De fato, qual desejo da alma é tão violento e insuportável quanto aquele que
Deis concede à alma purificada de todo mal e que diz com o coração
verdadeiramente voltado para ele: ‘Eu desfaleço de amor[37]’?
Os relâmpagos da beleza divina são inteiramente indizíveis e inexplicáveis. A
palavra não os descreve, os ouvidos não os recebem. Mesmo que pudéssemos
invocar a beleza da estrela da manhã, o clarão da lua, a luz do sol, todas
estas coisas nada são comparadas a esta glória, e estão tão distantes da
verdadeira luz como uma noite profunda ou a mais espessa treva está do brilho
puro do meio-dia. É isto que Basílio, tão admirável em seus ensinamentos,
recebeu por experiência e ensinou, e nos transmitiu[38]”.
Tudo
isto nos contou o irmão que com ele vivia. Mas quem não se admiraria deste
traço dele, que nos dá outra grande prova de sua humildade? Muito depois que
ele havia sido considerado digno do sacerdócio e alcançado os bens celestes por
sua conduta e seu conhecimento, ele fugia da majestade das divinas hierurgias[39]
a tal ponto que, durante a maior parte dos anos que durou o combate de sua
ascese, ele jamais aceitou se aproximar da Santa Mesa. E ele ainda fugia da
comunhão aos mistérios divinos. Ele vivia com tanto rigor que não comungava depois
de ter conversado com os homens, mesmo que não tivesse dito nada de terrestre e
que tivesse tido a conversa pelo bem daqueles que lhe pediam a palavra. Se ele
tinha que comungar dos divinos mistérios, ele suplicava a Deus por preces,
salmodias e confissões. Ele tremia à voz do padre, quando este chamava para a
comunhão e exclamava: “Os santos dons para os santos”. Pois ele dizia que toda
a igreja estava cheia com os santos e anjos e com o Rei dos Exércitos em
pessoa, que celebrava misteriosamente e se transformava em nossos corações em
corpo e sangue. Por isso, ele dizia: “É preciso ousar – com castidade e pureza,
como se estivéssemos fora da carne, sem hesitar nem duvidar – entrar na
comunhão dos puríssimos mistérios de Cristo, a fim de participar da iluminação
que provém destes mistérios. Dentre os santos Padres são muitos os que veem os
anjos que os guardam. É por isso que eles se mantém em silêncio, guardando-se,
e não falam com ninguém”.
Ele
ainda dizia que, se tivesse que vender ele próprio o trabalho de suas mãos, ele
se colocaria, fazendo-se de louco, de medo que, a custa de falar e responder,
proferisse uma mentira, ou um juramento, ou uma vanglória, ou qualquer outra
espécie de pecado. Quem quisesse adquirir o fruto de seu trabalho recebê-lo-ia
dele e lhe daria o quanto quisesse. Ele confeccionava coroas. E este homem
verdadeiramente filósofo recebia com gratidão aquilo que lhe davam, sem dizer
palavra.
[1] Cf. Sentenças
dos Padre do Deserto, Arsênio 40.
[2] Cf. Romanos
13: 14.
[3] Segundo Hausherr, o monge Ammonas.
[5] Cf. Evagro, Centúria
III, 49 e Carta 58.
[6] Cf. Gênesis
24: 6,
[7] Carta II, 2.
[8] Cf. Colossenses
3: 5.
[9] Cf. I Tessalonicenses
5: 17.
[10] Cf. I Coríntios
9: 27.
[11] Situado no litoral (paralia).
[12] Kryptè mélétè:
a prece do coração.
[13] Diádoco de Foticéia, Cem capítulos, 59 e 61.
[14] I Tessalonicenses
5: 17.
[15] Nounéchès:
intelectual.
[16] Cf. Provérbios
6: 22.
[17] Cf. Provérbios
4: 23.
[18] Cf. Colossenses
3: 5.
[19] Cf. Salmo 34
(35): 1.
[20] O sacramento da Eucaristia.
[21] Cf. Atos 20:
32.
[22] Cf. I Tessalonicenses
5: 17.
[23] Jó 41: 5-26.
[24] Constantinopla.
[25] Cf. I Coríntios
3: 8.
[26] Jeremias 23:
23-24.
[27] Cf. I Reis
11: 1-11.
[28] Cf. I Tessalonicenses
5: 17.
[29] Cf. Romanos 8:
26.
[30] Cf. Gálatas
6: 14.
[31] Cf. Efésios
5: 27.
[32] Gregório de Nazianze, Discursos IV, 133.
[33] Cf. Baruq 3:
14.
[34] Cf. Evagro, Tratado
Prático 62.
[35] Cf. João 5:
24.
[36] Salmo 36
(37): 4, 6.
[37] Cânticos 5:
8.
[38] São Basílio, Grande
Regra 2.
[39] A celebração dos mistérios de Deus.
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