Apresentamos aqui o excelente livro do Bispo Kalistos Ware sobre a Ortodoxia, na tradução do Padre Pedro de Oliveira. Escrito na década de 1960, o livro de Kalistos Ware apresenta a Ortodoxia de forma clara e completa, mostrando sua rica história e os aspectos mais destacados de sua Teologia. Conquanto não seja nossa a tradução dessa obra, acreditamos que sua publicação é importante para uma compreensão ampla e sintética do sentido da Ortodoxia.
I. INTRODUÇÃO
A Ortodoxia não é um tipo de Catolicismo Romano sem o Papa, mas sim alguma coisa muito diferente de qualquer outro sistema religioso do ocidente. No entanto, aqueles que olharem mais de perto esse "mundo desconhecido," nele descobrirão muita coisa que, mesmo diferente, é, ao mesmo tempo, curiosamente familiar, "mas isto é aquilo no qual sempre acreditei!." Esta tem sido a reação de muitos ao aprender, mais profundamente, sobre a Igreja Ortodoxa e sobre o que ela ensina; e eles estão parcialmente certos. Por mais de novecentos anos, o Oriente Grego e o Ocidente Latino têm se desenvolvido firmemente separados cada um seguindo seu próprio caminho, tendo tido, no entanto, solo comum nos primeiros séculos da Cristandade. Atanásio e Basílio viveram, no oriente, mas eles pertencem, também, ao ocidente; e Ortodoxos que viveram na França, Bretanha ou Irlanda podem, por sua vez, olhar para os santos nacionais dessas terras — Albano e Patrick, Cuthbert e Bede, Geneviéve de Paris e Augustine de Canterbury — não como estranhos, mas como membros de sua própria Igreja. Toda a Europa foi um dia tão parte da Ortodoxia como a Grécia e a Rússia são hoje em dia.
Robert Curzon, viajando pelo Levante nos anos de 1830 à procura de manuscritos, que ele pudesse comprar por preço de barganha, ficou desconcertado ao descobrir que o Patriarca de Constantinopla nunca tinha ouvido falar do Arcebispo de Canterbury. As questões que se põe, certamente, mudaram, desde então. As viagens tornaram-se, incomparavelmente, mais fáceis; as barreiras físicas foram derrubadas. As viagens não são, sequer, necessárias atualmente: um cidadão na Europa Ocidental ou da América não precisa mais deixar seu país para observar a Igreja Ortodoxa em primeira mão.
Gregos viajando para o leste por escolha ou necessidade econômica, e Eslavos dirigidos para leste por perseguições, trouxeram sua igreja consigo, estabelecendo, por toda a Europa e América, uma malha de Dioceses, paróquias, Colégios Teológicos e Mosteiros. Mais importante de tudo, em muitas comunidades diferentes, no século presente houve um crescimento de um desejo sem precedente e compelidor pela união visível de todos os Cristãos, e isso deu origem a um novo interesse pela Igreja Ortodoxa. A diáspora Grego-Russa espalhou-se pelo mundo no mesmo momento em que Cristãos Ocidentais, em sua preocupação pela reunião, estavam tornando-se conscientes da relevância da Ortodoxia, e ansiosos por conhecer mais sobre ela. Em discussões para reunião, a contribuição da Igreja Ortodoxa tem provado, inesperadamente, ser iluminadora: precisamente porque os Ortodoxos têm um passado diferente do que o dos ocidentais, eles têm sido capazes de abrir novas linhas de pensamento, e sugerir soluções de há muito esquecidas para velhas dificuldades.
Nunca faltaram ao Ocidente homens cuja concepção de Cristandade não era restrita a Canterbury, Genebra e Roma; porém, no passado, tais homens eram vozes que clamavam no deserto. Agora não é mais assim. Os efeitos de uma alienação que durou mais do que nove séculos, não podem ser refeitos em curto prazo, mas ao menos teve-se início.
O que se entende por "Igreja Ortodoxa"? As divisões que resultaram na fragmentação presente da Cristandade ocorreram em três estágios, a intervalos de grosseiramente quinhentos anos. O primeiro estágio da separação ocorreu no quinto e sexto séculos, quando as Igrejas Orientais "Menores" ou "Separadas" tornaram-se divididas do corpo principal dos Cristãos. Essas Igrejas caíram em dois grupos, a Igreja Nestoriana da Pérsia e as cinco Igrejas Monofisitas da Armênia, da Síria (assim chamada Igreja "jacobita"), no Egito (a Igreja Copta da Etiópia e da Índia). Os Nestorianos e Monofisitas estiveram fora da consciência ocidental ainda mais completamente, do que vieram a estar fora da consciência da Igreja Ortodoxa mais tarde. Quando Rabban Sauma, um monge Nestoriano de Pequim, visitou em 1288 (ele viajou até Bordeaux, onde deu comunhão para o Rei Eduardo I da Inglaterra), ele discutiu teologia com o Papa e com Cardeais em Roma, e parece que esses não se deram conta que de seu ponto de vista, tratava-se de um herético. Como resultado da primeira divisão, a Ortodoxia tornou-se restrita, em seu lado oriental, principalmente ao mundo de língua Grega. Ocorreu então a segunda separação, convencionalmente datada em 1054. O corpo principal dos Cristãos torna-se então dividido em duas comunhões: na Europa ocidental a Igreja Católica Romana, sob o Papa de Roma; no Império Bizantino, a Igreja Ortodoxa do Oriente. A Ortodoxia estava agora limitada no seu lado Ocidental também. A terceira separação, entre Roma e os Reformadores no século XVI, não é nossa
preocupação direta aqui.
É interessante notar como coincidem as divisões culturais e eclesiásticas. O Cristianismo enquanto universal em sua missão, tendeu, na prática, a estar associado com três culturas: a Semítica, a Grega e a Latina. Como resultado da primeira separação, os Semíticos da Síria, com sua florescente escola de teólogos e escritores, foram cortados do resto da Cristandade. Seguiu-se a Segunda separação, que cavou uma cunha entre as tradições Gregas e Latinas no Cristianismo. No entanto, não deve-se concluir que a Igreja Ortodoxa é exclusivamente uma Igreja Grega e nada mais, tendo em vista que Padres Siríacos e Latinos também tem lugar na tradição Ortodoxa Completa.
Enquanto a Igreja Ortodoxa tornava-se limitada, geograficamente, primeiro no Oriente e a seguir no Ocidente, ela expandia-se para o Norte. Em 863, São Cirilo e São Metódio, os Apóstolos dos Eslavos, viajaram para o Norte para realizar trabalhos missionários, além das fronteiras do Império Bizantino, e seus esforços, eventualmente, conduziram à conversão da Bulgária, Sérvia e Rússia. Enquanto o Império Bizantino encolhia, essas novas Igrejas cresciam em importância, e na queda de Constantinopla para os Turcos em 1453 o principado de Moscou estava pronto para assumir o lugar de Bizâncio como protetor do mundo Ortodoxo. Durante os últimos 150 anos houve uma reversão parcial dessa situação. Apesar de Constantinopla ainda permanecer em mãos Turcas, uma pálida sombra de sua glória anterior, a Igreja da Grécia está novamente livre; mas a Rússia e outros povos Eslavônicos passaram, por sua vez, a viver sob as regras de um governo não-Cristão.
Estes são os principais estágios que determinaram o desenvolvimento externo da Igreja Ortodoxa. Geograficamente, sua área primaria de distribuição encontra-se na Europa Oriental, na Rússia e ao longo da costa oriental do Mediterrâneo. Ela é composta, no presente, pelas seguintes Igrejas Auto Governadas ou Autocéfalas: Os quatro Patriarcados antigos: Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Apesar de muito reduzidos em tamanho, essas quatro Igrejas, por razões históricas, ocupam posição especial na Igreja Ortodoxa, e têm prioridade em honra. Os chefes dessas quatro Igrejas usam o título de Patriarca. Outras dez Igrejas Autocéfalas: Rússia, Romênia, Sérvia, Bulgária, Geórgia, Chipre, Polônia, Albânia, Tchecoslováquia e Sinai.
Todas, exceto três dessas Igrejas — Tchecoslováquia, Polônia e Albânia — estão em países onde a população é inteiramente não Gregas; cinco das outras — Rússia, Sérvia, Bulgária, Tchecoslováquia, Polônia — são Eslavônicas. Os chefes das Igrejas Russa, Romena, Sérvia e Bulgária são conhecidos pelo título de Patriarca. O chefe da Igreja da Geórgia é chamado Patriarca Católico; os chefes das outras Igrejas são chamados de Arcebispo ou Metropolita.
Existem, em adição, várias outras Igrejas que, apesar de auto-governadas, ainda não atingiram total independência. Elas são determinadas autônomas, mas não autocéfalas: Finlândia, Japão e China.
Existem províncias eclesiásticas na Europa Ocidental, nas Américas do Norte e do Sul, e na Austrália, que dependem de diferentes Patriarcados e de Igrejas Autocéfalas. Em algumas áreas, essa "diáspora" Ortodoxa está, lentamente, adquirindo auto-governança. Em particular, passos têm sido dados para formar uma Igreja Ortodoxa Autocéfala na América, mas isso ainda não foi, oficialmente, aceito pela maioria das outras Igrejas Ortodoxas.
A Igreja Ortodoxa é assim uma família de Igrejas auto-governadas. É mantida junto, não por uma organização centralizada, não por único Prelado exercendo poder absoluto sobre todo o corpo da Igreja, mas pela dupla ligação: unidade da fé e comunhão nos sacramentos. Cada Igreja, ainda que independente, está em completa concordância com as outras em todos temas de doutrina, e entre elas todas, existem uma completa comunhão sacramental. (Existem certas divisões entre os Russos Ortodoxos, mas nesse caso, a situação é, totalmente, excepcional e, espera-se, de caráter temporário). ]
Não existe, na Ortodoxia, ninguém com uma posição equivalente ao do Papa na Igreja Católica Romana. O Patriarca de Constantinopla é conhecido com o Patriarca "Ecumênico" (ou universal), e desde o cisma entre Oriente e Ocidente desfruta de uma posição de honra entre todas as comunidades Ortodoxas; mas ele não tem o direito de interferir nos assuntos internos de outras Igrejas. Seu lugar assemelha-se ao do Arcebispo Canterbury, na comunidade Anglicana.
Esse sistema descentralizado de Igrejas locais independentes tem vantagem de ser altamente flexível, e é facilmente adaptado a condições mutáveis. Igrejas locais podem ser criadas, suprimidas e restauradas de novo, com muito pouca perturbação para a vida na Igreja como um todo. Muitas dessas Igrejas locais, são também Igrejas nacionais, pois durante o passado, em países Ortodoxos, Igreja e Estado estiveram, usualmente, firmemente ligados. Mas enquanto um Estado independente, freqüentemente, possui sua própria Igreja Autocéfala, as divisões eclesiásticas, não necessariamente, coincidem com os limites geográficos dos Estados. A Geórgia, por exemplo, fica dentro da União Soviética, mas não é parte da Igreja Russa, enquanto que os territórios dos quatro antigos Patriarcados estão, praticamente, em vários países diferentes. A Igreja Ortodoxa é uma Federação de Igrejas locais, que nem sempre são Igrejas nacionais. Ela não tem como sua base o princípio político da Igreja de Estado.
Entre as várias Igrejas existem, como pode ser visto, uma enorme variação em tamanho, com a Rússia em um extremo e Sinai no outro. As diferentes Igrejas também variam em idade, algumas datando desde os tempos Apostólicos, enquanto outros são mais novas que uma geração. A Igreja da Tchecoslováquia, por exemplo, só obteve sua autocefalia em 1951.
Essas são as Igrejas que fazem a comunhão Ortodoxa como ela é hoje. Elas são conhecidas, coletivamente, por vários títulos. Algumas vezes são chamadas de Gregas ou Grego-Russa; mas isso não é correto, pois existem milhares de Ortodoxos que não são nem Gregos, nem Russos. Os Ortodoxos, freqüentemente, chamam suas Igrejas de Igreja Ortodoxa Oriental, Igreja Católica Ortodoxa ou Igreja Católica Ortodoxa do Oriente, ou algo parecido. Esses títulos não devem ser mal entendidos, pois enquanto a Ortodoxia considera-se a verdadeira Igreja Católica, ela não é, no entanto, parte da Igreja Católica Romana; e apesar da Ortodoxia chamar-se de Oriental, não é algo limitado ao povo oriental. Outro nome muito empregado é Santa Igreja Ortodoxa. Talvez seja menos confuso e mais conveniente, usar-se o título mais curto: Igreja Ortodoxa.
A Ortodoxia clama ser universal — não alguma coisa exótica e oriental, mas simplesmente Cristianismo. Por conta das falhas humanas e dos acidentes da história, a Igreja Ortodoxa esteve no passado muito restrita a certas áreas geográficas. Ainda assim, para os próprios Ortodoxos, sua Igreja é algo mais que um grupo de corpos locais. A palavra "Ortodoxia" tem duplo significado de "crença correta" ou "glória correta" (ou "louvação correta"). Os Ortodoxos por isso, fazem algo que, a primeira vista, pode ser uma afirmação surpreendente: eles olham sua Igreja com a Igreja que guarda e ensina a verdadeira crença sobre Deus e que O glorifica com a correta louvação, isto é, nada menos do que a Igreja de Cristo na Terra. Como essa posição é entendida. e o que os Ortodoxos pensam sobre os outros Cristãos que não pertencem à sua Igreja, é parte do objetivo deste livro explicar.
Os Primórdios.
Na aldeia há uma capela escavada na terra, sua entrada cuidadosamente camuflada. Quando um padre visita a aldeia secretamente, é aí que ele celebra a Liturgia e outros serviços. Seus moradores acham, alguma vez, que estão a salvo da observação da polícia, toda a população da aldeia se reúne na apela, com exceção dos que ficam do lado de fora vigiando para dar o alerta se algum estranho aparecer. Outras vezes os serviços são realizados em turnos diferentes...
A cerimônia de Páscoa foi realizada num apartamento pertencente a uma instituição do governo. A entrada de alguém só era possível com um passe especial que eu obtive para mim e minha filha pequena. Havia cerca de trinta pessoas presentes, entre as quais algumas eram minhas conhecidas. Um velho padre celebrou a cerimônia — a qual jamais hei de esquecer. "Cristo ressuscitou!," cantamos baixinho, mas cheios de alegria. A alegria que senti naquela cerimônia na "Igreja da Catacumba" me dá forças para viver ainda hoje.
Essas são duas histórias da vida da Igreja na Rússia pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Com pequenas alterações, poderiam facilmente ter sido extraídas de descrições da fé cristã nos tempos de Nero ou Diocleciano. Elas ilustram o caminho no qual, ao longo de dezenove séculos, a história cristã percorreu um ciclo completo. Os cristãos de hoje encontram-se muito mais próximos da Igreja dos primeiros tempos do que seus avós estiveram. O cristianismo começou como a religião de uma pequena minoria dentro de uma sociedade predominantemente não cristã — o que está voltando a ser novamente. A Igreja em seus primórdios era distinta e separada do Estado; hoje, em vários países, um após outro, a aliança tradicional entre Igreja e Estado está chegando ao fim. O Cristianismo era, inicialmente, uma religio illicita, uma religião proibida e perseguida pelo governo; hoje, a perseguição não é mas uma realidade do passado apenas, não sendo de forma alguma impossível que nos trinta anos entre 1918 e 1948 tenham morrido mais cristãos por sua Fé do que nos trezentos anos que se seguiram à Crucificação de Cristo.
Membros da Igreja Ortodoxa em particular foram muito mais afetados por tais acontecimentos, uma vez que a grande maioria deles vive atualmente em países comunistas, sob governos anti—cristãos. O primeiro período da história cristã, indo do dia de Pentecostes à conversão de Constantino é de especial relevância para a Ortodoxia contemporânea.
"De repente veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceram-lhes então uma espécie de línguas de fogo, que se repartiram e repousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo" (At. 2, 2 — 4). Assim começa a história da Igreja de Cristo, com a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos em Jerusalém durante a festa de Pentecostes, o sétimo Domingo após a primeira Páscoa. Naquele mesmo dia, por causa da pregação de São Pedro, três mil homens e mulheres foram batizados e a primeira comunidade cristã em Jerusalém estava formada.
Pouco tempo depois os membros da Igreja de Jerusalém ficaram amedrontados pela perseguição que se seguiu ao apedrejamento de Santo Estevão. "Ide, pois," Cristo disse, "ensinai a todas as nações" (Mt. 28, 19). Obedientes a esta ordem eles pregavam aonde iam, primeiro para os judeus e, em seguida para os gentios também. Algumas histórias dessas viagens apostólicas são registradas por São Lucas no livro dos Atos; outras estão preservadas na tradição da Igreja. As lendas que cercam os apóstolos talvez não sejam sempre literalmente verdadeiras, mas é, de qualquer forma, certo que num tempo incrivelmente curto pequenas comunidades cristãs nasceram em todos os principais centros do Império Romano e mesmo em lugares além das fronteiras romanas.
O Império pelo qual esses primeiros missionários cristãos viajavam era, principalmente em sua parte oriental, um império de cidades. Isto determinou a estrutura administrativa da Igreja primitiva. A unidade básica era a comunidade de cada cidade, governada pelo seu próprio bispo; para assistir aos bispos haviam presbíteros ou padres e diáconos. A zona rural correspondente dependia da Igreja da cidade. Este modelo, com o ministério triplo de bispos, padres e diáconos, já era largamente empregado pelo final do primeiro século. Podemos ver isto nas sete breves cartas que Santo Inácio, bispo de Antioquia, escreveu por volta do ano 107 enquanto viajava para Roma para ser martirizado. Inácio dá ênfase a duas coisas em particular: o bispo e a Eucaristia; ele via a Igreja como hierárquica e sacramental. "O bispo em cada Igreja," ele escreveu, "preside no lugar de Deus. Que ninguém faça nada que diz respeito à Igreja sem o bispo... Onde quer que o bispo apareça, que esteja o povo como se Jesus Cristo lá estivesse. Lá está a Igreja Católica." E é a primeira e distinta tarefa do episcopado, celebrar a Eucaristia, "a medianeira da imortalidade."
As pessoas hoje pensam na Igreja como uma organização mundial, na qual cada corpo local compõe uma parte de um todo maior e mais abrangente. Inácio não via a Igreja dessa forma. Para ele a comunidade local é a Igreja. Ele via a Igreja como uma sociedade Eucarística, que só realiza sua natureza verdadeira quando celebra a Santa Ceia, recebendo Seu Corpo e Seu Sangue no sacramento. Mas a Eucaristia é algo que só pode acontecer localmente — em cada comunidade particular reunida em torno de seu bispo; e, a cada celebração local da Eucaristia, é o Cristo inteiro quem está presente, não apenas parte d’Ele. Portanto, cada comunidade local, quando celebra a Eucaristia, a cada Domingo, é a Igreja em sua totalidade.
Os ensinamentos de Santo Inácio têm um lugar permanente na tradição Ortodoxa. A Ortodoxia ainda vê a Igreja como uma sociedade Eucarística, cuja organização externa, embora necessária, é secundaria em relação à sua vida interna, sacramental; e a Ortodoxia ainda enfatiza a importância fundamental da comunidade local na estrutura da Igreja. Para aqueles que assistem a uma Liturgia Pontifical Ortodoxa (A Liturgia: Este termo é normalmente usado por Ortodoxos em referência ao Ofício da Santa Comunhão, A Missa), quando o bispo se coloca, no meio da Igreja, cercado pelo seu
rebanho, a imagem de Santo Inácio de Antioquia, do bispo como centro da unidade na comunidade local, vai aparecer com particular clareza.
Mas além da comunidade local, existe também a unidade maior da Igreja. Este segundo aspecto é desenvolvido nos escritos de um outro bispo mártir, São Cipriano de Cartago (morto em 258). Cipriano via todos os bispos como que compartilhando de um só episcopado, de tal forma que cada um possuía não uma parte, mas a totalidade dele. "O episcopado," escreveu, "é um todo único, do qual cada bispo participa plenamente. Assim a Igreja é um todo, embora ela se descobre em inumeráveis Igrejas, na medida em que se torna mais fértil." Existem muitas Igrejas mas uma só Igreja; muitos bispos mas só um episcopado.
Houve muitos outros nos primeiros três séculos da Igreja que, como Cipriano e Inácio, morreram martirizados. As perseguições, é verdade, tiveram freqüentemente um caráter local e duravam pouco tempo. Embora houvesse longos períodos em que as autoridades romanas tinham para com o Cristianismo medidas de tolerância, a ameaça de perseguição estava sempre presente e os cristãos sabiam que, de um momento para o outro, ela podia tornar-se realidade. A idéia do martírio ocupava um lugar central na espiritualidade dos primeiros cristãos. Eles viam sua Igreja como fundada sobre sangue — não apenas o Sangue de Cristo, mas o sangue daqueles "outros Cristos": os mártires.
Nos séculos seguintes, quando a Igreja tornou-se "estabelecida" e não sofria mais perseguições, a idéia do martírio não desapareceu, mas tomou outras formas: a vida monástica, por exemplo, é freqüentemente vista pelos escritores gregos, como um equivalente do martírio. A mesma abordagem é encontrada também no ocidente: por exemplo no texto céltico — uma homilia irlandesa do século VII — no qual a vida ascética é comparada com o caminho do mártir:
"Existem três formas de martírio que contam como uma Cruz para o homem: o martírio branco, o martírio verde e o martírio vermelho. O martírio branco consiste no homem abandonar tudo o que ele ama pelo amor de Deus... O martírio verde consiste em, por meio de jejum e trabalho, se libertar dos desejos perniciosos; ou passar por trabalhos árduos em penitência e arrependimento. O martírio vermelho consiste em suportar a Cruz ou a morte pelo amor de Cristo".
Em vários períodos na história da Ortodoxia, a perspectiva do martírio vermelho foi bastante remota e as formas verde e branca prevaleceram. Embora também tenha havido épocas, sobretudo no presente século, quando os Cristãos Ortodoxos foram novamente chamados para suportar o martírio vermelho de sangue.
Era então natural que os bispos, como Cipriano enfatizava, que compartilhavam de um episcopado, se reunissem em concílios para discutir seus problemas comuns. A Ortodoxia sempre deu grande importância à realização dos concílios na vida da Igreja. A Ortodoxia crê que o concílio é o principal órgão através do qual Deus guia Seu povo e considera-se a Igreja Católica como uma Igreja essencialmente conciliar. (De fato, em russo o adjetivo soborny tem o duplo significado de "católica" e "conciliar," enquanto o substantivo correspondente, sobor, significa "igreja" e "concílio"). Na Igreja não existe ditadura nem individualismo, mas harmonia e unanimidade; as pessoas permanecem livres mas não isoladas, uma vez que estão unidas no amor, na fé e na comunhão sacramental. Num concílio, essa idéia de harmonia e livre unanimidade pode ser vista realizada na prática. Num concílio verdadeiro nem um único membro impõe arbitrariamente sua vontade aos outros, mas cada um consulta os outros e, desta forma, todos livremente alcançam um "consenso." Um concílio é uma incorporação viva da natureza essencial da Igreja.
O primeiro concílio da história da Igreja é descrito nos Atos, 15. Com a presença dos Apóstolos, realizou-se em Jerusalém para decidir de que forma os gentios convertidos deveriam se submeter à Lei de Moisés. Os Apóstolos, quando finalmente chegaram a uma decisão, falaram com palavras que, em outras circunstâncias, poderiam parecer presunçosas: "Com efeito, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós..." (Atos 15:28). Os concílios posteriores ousaram falar com a mesma confiança. Um indivíduo, isoladamente, hesitaria em dizer: "Pareceu bem ao Espírito Santo e a mim"; mas quando reunidos num concílio, os membros da Igreja podem juntos pretender uma autoridade que individualmente nenhum deles possui.
O concílio de Jerusalém, reunido com líderes de toda a Igreja, foi uma reunião excepcional, que não encontra paralelo até o Concílio de Nicéia em 325. Mas na época de Cipriano, tinha-se tornado comum a realização de concílios locais, dos quais participavam os bispos de uma determinada província do Império Romano. Um concílio local desse tipo era normalmente realizado na capital provincial, sob a presidência do bispo da capital, a quem era dado o título de Metropolita. Por ocasião do terceiro século, os concílios cresceram em amplitude e começaram a incluir bispos não só de uma, mas de várias províncias. Essas reuniões maiores tendiam a acontecer nas principais cidades do Império, como Alexandria ou Antioquia; e assim aconteceu que os bispos de certas cidades começaram a adquirir uma importância acima dos metropolitas provinciais. Mas naquele tempo nada ainda havia sido decidido sobre a situação exata dessas grandes sedes. Nem durante o terceiro século essa contínua expansão de concílios lhes conferiu um caráter definitivo. Até aquele momento (com exceção do Concílio Apostólico) havia ocorrido apenas concílios locais de maior ou menor extensão, mas nenhum concílio "geral," formado por bispos de todo o mundo cristão e pretendendo falar em nome de toda a Igreja.
Em 312 ocorreu um evento que transformou completamente a situação exterior da Igreja. Ao cavalgar através da França com seu exército, o Imperador Constantino olhou para o céu e viu uma cruz luminosa em frente ao sol. Na cruz havia uma inscrição: "Com este símbolo vencerá." Como resultado dessa visão, Constantino tornou-se o primeiro imperador romano a abraçar a fé cristã. Naquele dia na França iniciou-se uma série de acontecimentos que determinaram o fim do primeiro principal período da Igreja e levaram à criação do Império Cristão de Bizâncio.
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