segunda-feira, 26 de junho de 2017

Kalistos Ware - A Igreja Ortodoxa - Parte I: Bizâncio: a Igreja dos Sete Concílios (Tradução: Padre Pedro Oliveira)

Bizâncio: A Igreja dos Sete Concílios.

"Tudo professa que existem sete Concílios Ecumênicos e santos, e estes
são os sete pilares da fé do Verbo Divino nos quais Ele erigiu Sua Santa
morada, a Igreja Ecumênica e Católica" (João II, Metropolita da Rússia,
1800-1889).

Constantino se coloca como um divisor na história da Igreja. Com sua conversão, o tempo dos martírios e das perseguições chegaram ao fim, e a Igreja das Catacumbas tornou — se a Igreja do Império. O primeiro grande efeito da visão de Constantino foi o assim chamado "Edito" de Milão, que ele e seu companheiro Imperador Licínio editaram em 313, proclamando a tolerância oficial à fé cristã. E, embora a princípio Constantino garantisse não mais do que tolerância, ele em breve deixou claro que tinha a intenção de favorecer o cristianismo sobre todas as outras religiões toleradas no Império Romano. Teodósio, no prazo de cinqüenta anos após a morte de Constantino, havia levado a cabo sua política: em sua legislação ele tornou o cristianismo não apenas a mais favorecida, mas a única religião reconhecida do Império. A Igreja agora estava estabelecida. ""Vocês não estão autorizados a existir," as autoridades romanas disseram uma vez aos cristãos. Agora era a vez do paganismo ser suprimido.

A visão da cruz que teve Constantino, levou-o também durante sua existência, a tomar duas outras atitudes, igualmente oportunas para o posterior desenvolvimento do cristianismo. Primeiro, em 324 ele decidiu mudar a capital do Império Romano em direção ao Oriente, da Itália para as margens do Bósforo. Ali, no local da cidade grega de Bizâncio, ele construiu uma nova capital, a qual chamou "Constantinoupolis," seu nome. Os motivos dessa mudança foram em parte econômicos e políticos, mas foram também religiosos; a velha Roma estava muito impregnada com associações pagãs para ser o centro do Império Cristão que ele imaginava. Na Nova Roma, as coisas seriam diferentes após a solene inauguração da cidade em 330, ele decretou que em Constantinopla jamais seriam realizados ritos pagãos. A nova capital de Constantino exerceu uma influência decisiva no desenvolvimento da história Ortodoxa.

Em seguida Constantino reuniu o primeiro Concílio Geral ou Ecumênico da Igreja de Cristo em Nicéia em 325. Se era para o Império Romano ser um Império Cristão, Constantino desejava vê-lo firmemente estruturado na fé Ortodoxa. Este era o dever do Concílio de Nicéia, elaborar a essência de tal fé. Nada poderia haver simbolizado mais claramente a nova relação entre a Igreja e o Estado do que as aparentes circunstâncias dessa reunião em Nicéia. O próprio Imperador presidiu, "como um mensageiro celeste de Deus," como um dos presentes, Euzébio, Bispo de Cesaréia, o definiu. Ao término do Concílio os bispos jantaram com o Imperador. "As circunstâncias do banquete," escreveu. Euzébio (que tinha a tendência de se impressionar com tais coisas) "foram esplêndidas além de qualquer descrição. Guarnições da guarda pessoal e outras tropas rodeavam a entrada do palácio com as espadas desembainhadas e pelo meio destes, os homens de Deus entravam sem medo para os aposentos imperiais. Alguns faziam companhia ao Imperador à mesa, outros se reclinavam em divãs enfileirados em ambos os lados. Podia-se pensar tratar-se de uma pintura do reino de Cristo e de sonho em vez de realidade. As coisas certamente haviam mudado desde o tempo em que Nero usou cristãos como tochas vivas para iluminar seus jardins à noite. Nicéia foi o primeiro de sete Concílios Gerais; e este, assim como a cidade de Constantino, ocupa uma posição central na história da Ortodoxia."

Os três acontecimentos — o Edito de Milão, a fundação de Constantinopla e o Concílio de Nicéia — marcam a maioridade da Igreja.

Os primeiros seis concílios (325-681).

A vida da Igreja no período inicial bizantino é dominada pelos Sete Concílios Gerais. Estes Concílios preencheram uma tarefa dupla. Primeiro, eles esclareceram e articularam a organização visível da Igreja, tornando clara a posição das cinco grandes sés ou Patriarcados, como vieram a ser conhecidos. Segundo e mais importante, os Concílios definiram de vez por toda os ensinamentos da Igreja sobre as doutrinas fundamentais da fé cristã — a Trindade e a Encarnação. Todos os cristãos concordam em encarar tais coisas como "mistérios" os quais se encontram além da linguagem e compreensão humanas. Os bispos, quando redigiam definições nos Concílios, não intencionavam explicar o mistério, apenas procuravam eliminar certas maneiras erradas de falar e raciocinar sobre ele. Para impedir que os homens se desviassem em erro ou heresia, eles tão somente esclareciam o mistério.

As discussões nos Concílios às vezes parecem abstratas e remotas, embora tenham uma finalidade prática: a salvação do homem. O homem, como ensina o Novo Testamento, é separado de Deus pelo pecado, e não pode por seus próprios meios romper a barreira que o pecado criou. Deus portanto tomou a iniciativa: tornou-se homem, foi crucificado, e ressuscitou, libertando desta forma a humanidade da prisão do pecado e da morte. Esta é a mensagem central da fé cristã e é a mensagem de redenção que os Concílios estavam preocupados em salvaguardar. As heresias eram perigosas e exigiam condenação pois prejudicavam o ensinamento do Novo Testamento, criando uma barreira entre o homem e Deus e tornando, assim, impossível para o homem atingir a salvação total.

São Paulo exprimiu essa mensagem de redenção em termos de participação. Cristo participou de nossa pobreza para que pudéssemos participar das riquezas de Sua divindade: "Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico se fez pobre pelo amor de vós, para que pela sua pobreza vos tornásseis ricos" (2 Coríntios 8:9). No Evangelho de São João é encontrada a mesma idéia de modo ligeiramente diferente. Cristo declara que Ele deu a seus discípulos uma participação na divina glória e Ele ora para que possam alcançar a união com Deus: "Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado para que sejam um como nós o somos; eu neles e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que Tu me enviaste, e os amaste como também amaste a mim" (João 17:22-23). Os Padres Gregos tomaram este e outros textos similares em seu sentido literal e ousaram falar da "deificação" do homem (do grego theosis). Se é para o homem participar da glória de Deus, eles dizem, se é para que sejam "aperfeiçoados na unidade" com Deus, isto significa de fato que o homem precisa ser "deificado": ele é chamado para tornar-se pela graça o que Deus é por natureza. A este respeito, Santo Atanásio resumiu a finalidade da Encarnação com o seguinte: "Deus tornou-se homem para que possamos nos tornar Deus."

Assim, se este "tornar-se Deus esta theosis, é possível, Cristo o Salvador deve ser ambos, completamente homem e completamente Deus. Ninguém a não ser Deus pode salvar o homem; portanto se Cristo é que salva, Ele deve ser Deus. Mas apenas se Ele for verdadeiramente homem, como somos, podemos nós homens participar naquilo que ele fez por nós.É firmada uma ponte entre Deus e o homem pelo Cristo Encarnado que é ambos. "E acrescentou: Em verdade, em verdade vos digo que vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem" (João 1:51). Não apenas os anjos usam aquela escada mas toda a raça humana.

Cristo deve ser completamente Deus e completamente homem. Cada heresia a seu tempo nega alguma parte desta afirmação vital. Ou Cristo foi criado menos do que Deus (arianismo); ou Sua humanidade era tão afastada de sua divindade que Ele tornou-se duas pessoas em vez de uma (nestorianismo) ou Ele não era apresentado como verdadeiramente homem (monofisismo, monotelitismo). Cada Concílio defendia esta afirmação. Os dois primeiros, ocorridos no século IV, concentraram-se na primeira parte (de que Cristo deve ser completamente Deus) e formularam a doutrina da Trindade. Os quatro seguintes nos séculos V, VI e VII, concentraram-se na segunda parte (a plenitude da humanidade de Cristo) e também procuraram explicar como humanidade e divindade
podiam ser unidas numa única pessoa. O sétimo Concílio, em defesa dos Santos Ícones, parece à primeira vista afastado da questão, mas como os primeiros seis, estava basicamente relacionado com a Encarnação e a salvação do homem. 

A principal realização do Concílio de Nicéia em 325 foi a condenação do arianismo. Arius, um padre de Alexandria, sustentava que o Filho era inferior ao Pai e, ao traçar uma linha divisória entre Deus e a criação, ele colocou o Filho entre as coisas criadas: uma criatura superior é verdade, mas uma criatura. Sua intenção, sem dúvida, era proteger a unidade e transcendência de Deus, mas o efeito de seus ensinamentos, fazendo Cristo menos do que Deus tornava,a deificação do homem impossível. Apenas se Cristo for verdadeiramente Deus, o Concílio respondeu, poderá nos unir a Deus, pois ninguém além de Deus poderá abrir para o homem o caminho da união. Cristo é "um em essência" (homoousios) com o Pai. Ele não é um semideus ou uma criatura superior, mas Deus da mesma forma que o Pai é Deus: "Deus verdadeiro de Deus verdadeiro," o Concílio Proclamou no Credo que redigiu, "gerado não criado, consubstancial ao Pai."

O Concílio de Nicéia tratou também da, organização visível da Igreja. Fazendo referência aos três grandes centros: Roma, Alexandria e Antioquia (Cânone VI). Ele também dispôs que à Sé de Jerusalém, mesmo permanecendo sujeita ao Metropolita de Cesaréia, deveria ser dado o próximo lugar de honra após essas três (Cânone VII). Constantinopla obviamente não foi mencionada, uma vez que ainda não havia sido oficialmente inaugurada como capital, o que somente aconteceu cinco anos depois; ela continuava sujeita como antes, ao Metropolita de Heraclea.

O trabalho de Nicéia foi retomado pelo segundo Concílio Ecumênico, realizado em Constantinopla em 381. Este Concílio aumentou e adaptou o Credo de Nicéia, desenvolvendo em particular os ensinamentos a respeito do Espírito Santo, de quem afirmava ser Deus da mesma forma que o Pai e o Filho são Deus: "que procede do Pai e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e a mesma glória." O Concílio alterou também o conteúdo do sexto Cânone de Nicéia. A posição de Constantinopla, agora capital do Império, não podia mais ser ignorada, e lhe foi designado o segundo lugar, após Roma e antes de Alexandria. "O Bispo de Constantinopla deve ter prerrogativas de honra após o Bispo de Roma, pois Constantinopla é a nova Roma" (Cânone III).

Atrás das definições do Concílio existia o trabalho de teólogos, que davam precisão às palavras que o Concílio empregava. Era a suprema realização de São Atanásio de Alexandria extrair todas as implicações das palavras chaves no Credo de Nicéia; homoousios, um na essência ou substância, consubstancial. Complementando seu trabalho havia o dos três Padres Capadócios, São Gregório de Nazianze, conhecido na Igreja Ortodoxa como Gregório Teólogo (329-390), São Basílio o Grande (330-379) e seu irmão caçula São Gregório de Nissa (morto em 394). Enquanto Atanásio enfatizava a unidade de Deus — Pai e Filho são um em essência (ousia) — os capadócios enfatizavam a trindade divina — Pai, Filho e Espírito Santo são três pessoas (hypostaseis). Preservando um equilíbrio delicado entre a trindade e a unidade em Deus, eles deram significado total ao clássico sumário da doutrina Trinitária, três pessoas em uma essência. Nunca até então a Igreja havia possuído quatro teólogos de tal envergadura em uma única geração. 

Após 381 o arianismo deixou rapidamente de ser uma questão empolgante, exceto em certas partes da Europa Oriental. O aspecto polêmico do trabalho do Concílio está no seu terceiro Cânone, do qual se ressentiram igualmente Roma e Alexandria. A Velha Roma se questionava aonde as pretensões da Nova Roma terminariam. Não poderia Constantinopla vir a reivindicar o primeiro lugar? Roma decidiu ignorar o Cânone ofensivo e somente no Concílio de Latrão (1215) o Papa reconheceu formalmente a reivindicação de Constantinopla de segundo lugar. (Constantinopla encontrava-se naquela época nas mãos dos Cruzados e sob a legislação de um Patriarca latino). Mas o Cânone era igualmente um desafio para Alexandria, que até então havia ocupado o primeiro lugar no Oriente. Os setenta anos seguintes testemunharam um agudo conflito entre Constantinopla e Alexandria e por um tempo a vitória foi para a última. O primeiro grande sucesso de Alexandria foi no Sínodo de Oak, quando Teófilo de Alexandria garantiu a deposição e o exílio do Bispo de Constantinopla, São João Crisóstomo, "João Boca de Ouro" (344-407). Um pregador fluente e eloquente — seus sermões duravam freqüentemente uma hora ou mais.

João expressava de forma popular as idéias teológicas, formuladas por Atanásio e pelos Capadócios. Um homem de vida austera e meticulosa, inspirado por uma profunda, compaixão pelos pobres e por um ardoroso zelo por justiça social. De todos os Padres ele talvez seja o mais amado da Igreja Ortodoxa, e o que tem seus trabalhos mais lidos. O segundo grande sucesso de Alexandria foi conseguido pelo sobrinho e sucessor de Teófilo, São Cirilo de Alexandria (morto em 444), que provocou a queda de outro Bispo de Constantinopla, Nestório, no Terceiro Concílio Ecumênico realizado em Efeso (431). 

Mas em Éfeso havia mais em jogo do que a rivalidade de duas Sés. Assuntos doutrinais, adormecidos desde 381 despertaram de novo, centralizados agora não mais na Trindade mas na Pessoa do Cristo. Cirilo e Nestório concordavam que Cristo era completamente Deus, um da Trindade, mas divergiam em suas descrições 'de Sua humanidade e em seus métodos de explicar' a união de Deus e homem numa única pessoa. Eles representavam diferentes tradições ou escolas de teologia. Nestório cresceu na escola de Antioquia, mantida a integridade da humanidade de Cristo, mas distinguia tão enfaticamente a humanidade e a divindade quê parecia correr o risco de terminar, não com uma pessoa, mas com duas coexistindo no mesmo corpo. Cirilo, o protagonista da tradição oposta de Alexandria, partia da unidade da pessoa do Cristo do que da diversidade de Sua humanidade e de sua divindade, mas falava da humanidade de Cristo com menos empolgação que o antioquense. Qualquer uma das teses, se pressionada com força, poderia tornar-se herética, e a Igreja necessitava de ambas para formar uma imagem equilibrada de todo o Cristo. Foi uma tragédia para o cristianismo que as duas escolas, em vez de se equilibrarem mutuamente, entraram em conflito.


Nestório precipitou a controvérsia se recusando chamar a Virgem Maria "Mãe de Deus" (Theotokos). Este titulo já era aceito na devoção popular, mas parecia a Nestório implicar uma confusão na humanidade de Cristo e Sua divindade. Maria, ele questionava, e aqui fica evidente seu "separatismo" antioquense — somente deve ser chamada "Mãe do Homem" ou no máximo "Mãe do Cristo," uma vez que ela é mãe apenas da humanidade de Cristo, não de Sua divindade. Cirilo, apoiado pelo Concílio respondeu com o texto "E o Verbo se fez carne" (S. João l:4): Maria é a mãe de Deus, pois "ela deu à luz o Verbo de Deus feito carne." A quem Maria deu a luz não era um homem vagamente unido à Deus, mas uma única e íntegra pessoa, que é Deus e homem ao mesmo tempo. O nome Theotokos salvaguarda da unidade da pessoa do Cristo: negar-lhe tal titulo significa separar o Cristo Encarnado em dois, rompendo a ponte entre Deus e o homem e erigindo na pessoa do Cristo um muro de separação. Assim podemos ver que não apenas títulos de devoção estavam envolvidos em Efeso, mas a própria mensagem de salvação. A mesma primazia que a palavra homoousios ocupa na doutrina da Trindade, a palavra Theotokos tem na doutrina da Encarnação.

Alexandria teve outra vitória no segundo Concílio realizado em Efeso em 449, contudo essa reunião, ao contrário de sua predecessora de 431, não foi aceita pela totalidade da Igreja. Sentiu-se que o partido de Alexandria havia ido dessa vez longe demais. Dióscoro e Eutiques, levando a extremos os ensinamentos de Cirilo, sustentavam que em Cristo havia não apenas uma unidade de personalidade mas uma única natureza — Monofisismo. Parecia a seus oponentes — embora os monofisitas negassem que se tratava de mera interpretação de seus pontos de vista — que tal modo de falar punha em perigo a totalidade da humanidade de Cristo, a qual no monofisismo tornou-se tão amalgamada com Sua divindade que poderia ser engolida como uma gota no oceano.

Apenas dois anos mais tarde, o Imperador convocou na Calcedônia uma nova reunião de bispos, que a Igreja de Bizâncio e o ocidente consideram como o quarto Concílio Geral. O pêndulo agora voltou em direção aos antioquinos. O Concílio reagiu tenazmente contra a terminologia monofisita e afirmou que embora Cristo seja uma pessoa, existe n'Ele, não uma, mas duas naturezas. Os bispos aclamaram o Livro de São Leão o Grande, Papa de Roma (morto em 461), no qual as duas naturezas estão claramente distinguidas. Em sua proclamação de fé eles afirmavam sua crença em "um e verdadeiro Filho, perfeito na divindade e perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem ..., reconhecido em duas naturezas inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis; a diferença entre as naturezas não é de forma alguma removida por causa da união, ao contrário a propriedade peculiar de cada natureza é preservada e ambas combinam em uma pessoa e em uma hipóstase." A Definição de Calcedônia, pode-se notar, não é dirigida apenas aos monofisitas ("em duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis), mas também aos seguidores de Nestório ("um e verdadeiro Filho...indivisível, inseparável).

Mas Calcedônia foi mais do que uma derrota para a teologia de Alexandria: foi uma derrota para os apelos de Alexandria de governadora suprema no Oriente. O Cânone XXVIII de Calcedônia confirmou o Cânone III de Constantinopla, assegurando à Nova Roma o próximo lugar em honra logo após a Velha Roma. Leão repudiou este Cânone, mas o Oriente desde então reconheceu sua validade. O Concílio também emancipou Jerusalém da jurisdição de Cesaréia e lhe deu o quinto lugar entre as grandes sés. O sistema mais tarde conhecido entre os ortodoxos como Pentarquia agora estava completo, por meio do qual cinco grandes sés da Igreja eram mantidas em honra especial e uma dada ordem de precedência foi estabelecida entre elas: em ordem decrescente Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Todas as cinco reivindicavam fundação apostólica. As quatro primeiras eram as mais importantes cidades do Império Romano; a quinta foi anexada por tratar-se do lugar onde Cristo sofreu na cruz e levantou dos mortos. O bispo de cada uma dessas cidades recebia o título de Patriarca. Os cinco patriarcados dividiam entre eles em esferas de jurisdição todo o mundo conhecido, com exceção de Chipre, a quem foi garantido independência pelo Concílio de Éfeso e permaneceu independente desde então Quando se fala da concepção ortodoxa de Pentarquia existem dois prováveis mal entendidos que devem ser evitados. Primeiro, o sistema de Patriarcas e Metropolitas é um assunto relativo à organização eclesiástica. Contudo, se olharmos a Igreja do ponto de vista não de ordem eclesiástica, mas de direito divino, então temos que dizer que todos os bispos são essencialmente iguais, por mais humilde ou nobre que seja a cidade que ele preside. Todos os bispos participam igualmente na sucessão apostólica, todos têm os mesmos poderes sacramentais e todos são divinamente indicados mestres da fé.

Se surge uma disputa sobre doutrina, não é suficiente aos Patriarcas expressar sua opinião: todos os bispos das dioceses tem o direito de assistir ao Concílio Ecumênico, de falar e de votar. O sistema da Pentarquia não reduz a igualdade essencial de todos os bispos, nem priva cada comunidade local da importância que Inácio lhes havia assegurado.

Em segundo lugar, os ortodoxos acreditam que entre os cinco Patriarcas o Papa tem um lugar de destaque. A Igreja Ortodoxa não aceita a doutrina da autoridade papal, publicada nos decretos do Concilio Vaticano de 1870, e ensinada hoje na Igreja Católica Romana; mas ao mesmo tempo, a Ortodoxia não nega à Santa e Apostólica Sé de Roma, uma primazia de honra, junto com o direito (sob certas condições) de atender chamados de todas as partes da cristandade. Note que usamos a palavra "primazia," não "supremacia." Os ortodoxos consideram o Papa corno o Bispo "que preside no amor," para adaptar uma frase de Santo Inácio: o erro de Roma, assim crêem os ortodoxos — foi tornar essa primazia ou "presidência de amor" em supremacia de jurisdição e força externa.

Esta primazia que Roma goza tem sua origem em três fatores. Primeiro Roma foi a cidade onde São Pedro e São Paulo foram martirizados e onde Pedro foi bispo. A Igreja Ortodoxa reconhece Pedro como o primeiro entre os apóstolos: ela não esquece os célebres "textos Petrinos" nos Evangelhos (Mateus 16:8-19; Lucas 22:2; João 21:5-17) — embora os teólogos ortodoxos não entendam estes textos da mesma forma que os comentaristas católicos romanos modernos. E enquanto muitos teólogos ortodoxos diriam que não apenas o Bispo de Roma mas todos os bispos são sucessores de Pedro, muitos deles ao mesmo tempo admitem que o Bispo de Roma é sucessor de Pedro de uma forma especial. Em segundo, a sé de Roma também possuía sua primazia na posição ocupada pela cidade de Roma no Império: ela era a capital, a cidade principal do mundo antigo, e como tal em certa medida ela continuou a ser mesmo após a fundação de Constantinopla. Em terceiro embora houvesse ocasiões em que o Papa caía em heresia, de um modo geral durante os oito primeiros séculos da história da Igreja, a sé romana se destacava pela pureza de sua fé: outros patriarcados oscilavam durante as grandes disputas doutrinais, mas Roma geralmente permanecia firme. Quando bastante pressionada na batalha contra os heréticos, os homens sabiam que podiam confiar no Papa. 

Não apenas o Bispo de Roma, mas todo bispo é indicado por Deus para ser um mestre da fé; seja porque a sé de Roma havia na prática ensinado a fé com uma destacada lealdade a verdade, era acima de tudo à Roma que os homens pediam orientação nos primeiros séculos, da Igreja.

Mas como com os Patriarcas, também com o Papa; a primazia assegurada por Roma não sobrepõe a igualdade essencial de todos os bispos. O Papa é o primeiro bispo na Igreja — mas ele é o primeiro entre iguais.

Éfeso e Calcedônia foram a base da Ortodoxia, mas formam também um marco de ofensas. Os arianos se reconciliaram gradualmente e não formaram um cisma duradouro. Mas até os dias de hoje existem cristãos nestorianos que não aceitam as decisões de Efeso e monofisitas que não aceitam as de Calcedônia. Os nestorianos em sua maioria ficaram fora do Império e se ouviu muito pouco a respeito deles na história bizantina. Contudo grande número dos monofisitas, particularmente no Egito e Síria, ficaram súditos do Imperador, e numerosos e mal sucedidos esforços foram feitos para trazê-los de volta à comunhão com a Igreja de Bizâncio. Como acontece com freqüência, diferenças teológicas tornam-se mais amargas por tensões nacionais e culturais. Egito e Síria, ambos predominantemente não gregos na língua e cultura, se ressentiam do poder da grega Constantinopla, tanto em questões religiosas como políticas. Assim, um cisma eclesiástico foi reforçado por separatismo político. Não fossem por tais fatores teológicos ambos os lados poderiam talvez ter alcançado uma compreensão teológica após Calcedônia. Estudiosos modernos estão inclinados a pensar que a diferença entre monofisitas e calcedônios foi basicamente de terminologia: os dois partidos usavam linguagem diferente, mas intimamente ambos estavam preocupados em manter as mesmas crenças.

A Definição de Calcedônia foi suplementada pelos dois concílios seguintes, ambos  realizados em Constantinopla. O quinto Concílio Ecumênico (553) reinterpretou os decretos de Calcedônia de um ponto de vista alexandrino e procurou explicar em termos mais construtivos do que Calcedônia havia usado, como as duas naturezas de Cristo se uniram para formar uma única pessoa. O sexto Concílio Ecumênico (680-1) condenou a heresia monotelista, uma nova forma de monofisismo. Os monotelistas argumentavam que embora Cristo tenha duas naturezas e sendo Ele uma única pessoa, ele tem apenas uma vontade. O Concílio respondeu que se Ele tem duas naturezas, então Ele deve ter
duas vontades. Os monotelistas como os monofisitas depreciavam a totalidade da humanidade de Cristo, uma vez que humanidade sem vontade humana seria incompleta, uma mera abstração. Uma vez que Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus, Ele deve ter uma vontade humana assim como uma divina.

Durante os cinqüenta anos antes do encontro do sexto concílio, Bizâncio confrontou um repentino e alarmante acontecimento: o surgimento do Islam. O fato mais surpreendente sobre a explosão do Islam é sua velocidade. Quando o Profeta morreu em 632, sua autoridade pouco se estendia além de Hejaz. Mas em quinze anos seus seguidores árabes haviam tomado a Síria, Palestina e Egito; nos próximos cinqüenta anos eles estavam nos muros de Constantinopla e quase capturaram a cidade; em cem anos haviam varrido o Norte da África, avançado através da Espanha, e forçado a Europa ocidental a lutar por sua vida na batalha de Poitiers. As invasões árabes foram chamadas "uma explosão centrífuga, dirigindo em todas as direções pequenos corpos de cavaleiros montados em guerra de comida, saque e conquista. Os antigos impérios não estavam em condições de resistir a eles. O cristianismo sobreviveu, mas com dificuldades. Os bizantinos perderam suas possessões orientais e os três Patriarcados de Alexandria, Antioquia e Jerusalém passaram para controle dos infiéis; com o Império Cristão do Oriente, o Patriarcado de Constantinopla estava agora sem rival. Desde então, Bizâncio nunca mais se viu livre dos ataques dos maometanos e embora tenha resistido mais oito séculos ao final ela sucumbiu.

Os santos ícones.

As disputas referentes à Pessoa do Cristo não cessaram com o Concílio de 681, mas foram expandidas de forma diferente nos séculos oitavo e nono: a luta centrada nos Santos Ícones, as pinturas de Cristo, da Mãe de Deus, e dos Santos, que eram mantidas e veneradas nas igrejas e nas casas. Os iconoclastas ou destruidores de ícones, desconfiados de qualquer arte religiosa que representasse seres humanos ou Deus, exigiam a destruição dos ícones; o partido oposto, os defensores ou veneradores de ícones, defendiam vigorosamente o lugar dos ícones na vida da Igreja. A luta não foi apenas um conflito entre duas concepções de arte cristã. Questões mais profundas estavam envolvidas aí, o caráter da natureza humana de Cristo, a atitude cristã em relação ao assunto, o significado verdadeiro da redenção cristã.

Os iconoclastas podem ter sido influenciados por conceitos dos judeus e islâmicos, e é significativo que três anos antes da primeira erupção do iconoclasmo no Império Bizantino, o califa maometano Yezid ordenou a remoção de todos os ícones de seus domínios, Mas o iconoclasmo não foi simplesmente importado de fora; mesmo no cristianismo sempre existiram posições "puritanas," que condenavam os ícones porque parecia haver nas imagens uma latente idolatria. Quando os imperadores isaurianos atacaram os ícones, eles encontravam bastante apoio dentro da Igreja. 

Exemplo típico dessa posição puritana é a atitude de São Epifânio de Salamis (315-403), que ao encontrar numa igreja do interior da Palestina uma cortina de pano com figura. de Cristo, rasgou-a com indignação. Esta atitude foi sempre violenta na Ásia Menor, e alguns afirmam que o movimento iconoclasta foi um protesto asiático contra a tradição grega. Mas há dificuldades em tal ponto de vista; a controvérsia foi realmente uma divisão dentro da tradição grega.

A controvérsia iconoclasta que durou por volta de 120 anos, se dá em duas fases. O primeiro período iniciou—se em 726 quando Leão III começou seu ataque aos ícones, e terminou em 780 quando a Imperatriz Irene suspendeu a perseguição. A posição dos defensores foi mantida pelo sétimo e último Concílio Ecumênico (787), que se reuniu (como o primeiro havia feito) em Nicéia. Ícones, o concílio proclamou, devem ser mantidos nas Igrejas e honrados com a mesma relativa veneração como outros símbolos materiais, como "a cruz preciosa e vivificante" e o Livro dos Evangelhos. Um novo ataque aos ícones, começou, com Leão V, o Armênio, em 815, e continuou até 843 quando os ícones foram novamente reintegrados, desta vez permanentemente por outra Imperatriz, Teodora. A vitória final das Santas Imagens em 843 é conhecida como "Triunfo da Ortodoxia," e é comemorada com o ofício especial celebrado no "Domingo da Ortodoxia," o primeiro domingo da Grande Quaresma. Durante este ofício a fé verdadeira — Ortodoxia — é proclamada, seus defensores são honrados e anátemas são declarados a todos os que atacam os Santos ícones ou os Concílios Ecumênicos: "A todos aqueles que rejeitam os Concílios dos Santos Padres e suas tradições as quais estão de acordo com a revelação divina as quais a Igreja Católica Ortodoxa piamente mantém, Anátema! Anátema! Anátema!".

O maior defensor dos ícones no primeiro período foi São João Damasceno (675?-749), no segundo São Teodoro Estudita (759-826). João pode trabalhar mais livremente porque ele trabalhava em território islâmico, fora do alcance do governo bizantino. Não foi a última vez que o Islam agiu, sem intenção, como protetor da ortodoxia. Uma das características mais distintas da ortodoxia é a posição que ela atribui aos ícones. Uma igreja ortodoxa de hoje é cheia deles: dividindo o santuário da nave existe uma parede, a iconostase totalmente coberta de ícones, enquanto outros ícones são colocados em sacrários em volta da igreja; e as paredes são cobertas por ícones às vezes em afresco ou mosaico. 

Um ortodoxo prostra-se em frente desses ícones, beija-os e acende velas na frente deles; eles são incensados pelo padre e levados em procissão. O que significam estes gestos e as atitudes? O que significam os ícones e porque João Damasceno e os outros os consideravam tão importantes?

Devemos considerar primeiro a carga de idolatria que os iconoclastas lançaram contra os defensores dos ícones; e então o valor positivo dos ícones como meio de instrução; e finalmente sua importância doutrinal.

A questão da idolatria. 

Quando um ortodoxo beija um ícone ou se prostra diante dele, ele não está cometendo idolatria. O ícone não é um ídolo, mas um símbolo; a veneração feita às imagens é direta, não dirigida à pedra, madeira e tinta, mas dirigida à pessoa retratada. Isto foi salientado por Leôncio de Nápoles (morto cerca de 650) algum tempo antes da controvérsia iconoclasta: "Não nos prostramos diante da natureza da madeira, mas reverenciamos e nos prostramos diante d'Ele que foi crucificado na Cruz.... Quando dois eixos da Cruz são postos juntos adoro a figura do Cristo que foi crucificado na Cruz, mas se os dois eixos são separados, jogo-os fora e os queimo".

Pelo fato dos ícones serem apenas símbolos, os ortodoxos não os adoram, mas os reverenciam e veneram. João Damasceno distinguiu cuidadosamente entre a honra relativa ou veneração dedicada aos símbolos materiais e a adoração devida somente a Deus.

Os ícones como parte dos ensinamentos da Igreja. Os ícones, dizia Leôncio, são "livros abertos a nos lembrarem de Deus": são um dos meios empregados pela Igreja para ensinar a fé. Aquele que se ressente de um aprendizado ou de tempo para estudar obras de teologia, basta entrar na igreja e ver desdobrados diante de si nas paredes os mistérios da religião Cristã. Se um pagão te pedir para lhe mostrar sua fé, diziam os defensores, leve-o a uma igreja e ponha-o diante dos ícones.

O significado doutrinal dos ícones. Chegamos agora ao ponto crucial da disputa iconoclasta. Consideremos que os ícones não são idolatrados; que são úteis para a instrução; mas são eles além de permitidos necessários também? É essencial ter ícones? Os defensores assim o afirmavam, pois os ícones salvaguardam uma doutrina total e adequada da Encarnação. Os iconoclastas e os defensores de ícones concordavam que Deus não pode ser representado em Sua natureza eterna: "ninguém jamais viu a Deus" (João l:18). Mas, os defensores continuavam, a Encarnação tornou possível uma arte religiosa representacional: Deus pode ser retratado porque Ele tornou-se homem e se fez carne. Imagens materiais, retrucava João Damasceno, podem ser feitas d'Ele que tomou um corpo material: "O velho Deus o incorpóreo e o infinito nunca foi retratado. Mas agora que Deus nasceu na carne e viveu entre os homens, faço uma imagem do Deus que pode ser visto. Não adoro a matéria, mas o Criador da matéria, que por minha causa tornou-se material e condescendeu habitar na matéria, que através da matéria realizou minha salvação. Não cessarei de venerar a matéria através da qual minha salvação foi realizada".

Os iconoclastas ao repudiarem todas as representações de Deus, falharam em considerar a Encarnação na sua essência. Caíram, como muitos puritanos já haviam feito, numa forma de dualismo. Considerando a matéria como algo sujo, queriam a religião livre de todo contato com o que é material; uma vez que achavam que o que é espiritual deve ser não — material. Contudo isto significa trair a Encarnação, não permitindo espaço para a humanidade de Cristo, para Seu corpo; significa esquecer que o corpo humano tal qual sua alma precisa ser salvo e transfigurado. A controvérsia iconoclasta é pois estritamente ligada às disputas iniciais a respeito da pessoa do Cristo. Não foi apenas uma controvérsia sobre arte religiosa, mas sobre a Encarnação e a salvação do homem. Deus tomou um corpo material, provando desta forma que a matéria pode ser redimida: "O Verbo ao se tornar carne, deificou a carne," disse João Damasceno. Deus "deificou" a matéria, tornado-a "portadora do espírito"; e se a carne tornou-se um veículo do Espírito, então — pode ser pintada ainda que de maneira diferente. A doutrina ortodoxa dos ícones é ligada a crença ortodoxa de que toda criação de Deus, material e espiritual, será redimida e glorificada. Nas palavras de Nicholas Zernov (1898-1980) — o que ele diz dos russos é verdadeiro para todos os ortodoxos: "Os ícones eram para os russos não apenas pinturas. Eram manifestações dinâmicas da força espiritual do homem de redimir a criação por meio de beleza e arte. As cores e linhas dos [ícones] não pretendiam imitar a natureza; os artistas tensionavam demonstrar que homens, animais e plantas, e todo o cosmos, podiam ser salvos de seu atual estado de degradação e restituídos a sua verdadeira "imagem." Os [ícones] eram uma promessa da vitória vindoura da criação redimida sobre a decaída....
A perfeição artística de um ícone não era apenas um reflexo da glória celestial — era um exemplo concreto de matéria restituída à sua beleza e harmonia original, e servindo como um veículo do Espírito. Os ícones eram parte do cosmos transfigurado". Como João Damasceno definiu: "O ícone é a canção do triunfo, é uma revelação, e um monumento permanente à vitória dos santos e à desgraça dos demônios".

A conclusão da disputa iconoclasta, o encontro do Sétimo Concílio Ecumênico, o Triunfo da Ortodoxia em 843 — marcam o final do segundo período na história ortodoxa, o período dos Sete Concílios. Estes Sete Concílios são de imensa importância para a Ortodoxia. Para os membros da Igreja Ortodoxa, seu interesse não é meramente histórico, mas contemporâneo; eles são considerados não apenas pelos estudiosos e pelo clero, mas por todos os fiéis. "Mesmo camponeses simples," disse Dean Stanley, "para quem, na sua correspondente classe social na Espanha ou na Itália os nomes de Constância ou Trento seriam provavelmente desconhecidos, estão bastante cônscios que sua igreja repousa sobre a base dos Sete Concílios, e tem esperança que viverão ainda para ver um oitavo Concílio Ecumênico, no qual os mal entendidos do tempo serão esclarecidos." Os ortodoxos freqüentemente se denominam "a Igreja dos Sete Concílios." Isto não significa que a igreja Ortodoxa tenha cessado de pensar criativamente deste 787. Mas vêem no período dos Concílios a grande era da teologia; e logo após a Bíblia, são os Sete Concílios que a Igreja Ortodoxa considera como sua referência e guia ao buscar soluções para os novos problemas que surgem a cada geração.

Santos,monges e imperadores.

Com muita propriedade, Bizâncio foi chamada "o ícone da Jerusalém celeste." A religião fazia parte de cada aspecto da vida bizantina, Os feriados bizantinos eram festas religiosas; as corridas realizadas no Circo começavam com o canto de hinos; seus contratos comerciais invocavam a Trindade e eram marcados com o sinal da Cruz. Hoje em dia, numa época não teológica, é impossível imaginar o entusiasmo que se tinha por questões religiosas em toda a sociedade, tanto os leigos como o clero, tanto os pobres e sem instrução, como a corte e os estudiosos. Gregório de Nissa descreve as intermináveis discussões teológicas em Constantinopla à época do segundo Concílio Ecumênico: "Toda a cidade está repleta, os quarteirões, as praças, as estradas, as alamedas, andarilhos, cambistas, feirantes: todos estão ocupados discutindo. Se você pede troco a alguém, ele filosofa a respeito do Criado e do Incriado; se você pergunta o preço do pão, obtém como resposta que o Pai é superior e o Filho inferior; se você pergunta "meu banho está pronto?" o criado responde que o Filho foi criado do nada". 

Este relato curioso nos mostra a atmosfera na qual o Concílio se realizou. As paixões surgidas, eram por vezes tão violentas que as sessões não eram sempre contidas ou elegantes. "Sínodos e Concílios eu os saúdo a distância," notou secamente Gregório de Nazianze, "pois sei como eles são problemáticos." "Nunca mais me sentarei naquelas reuniões de garças e gansos." Os Padres às vezes defendiam suas causas por meios questionáveis: Cirilo de Alexandria, por exemplo, em sua luta contra Nestório subornou pesadamente a Corte e aterrorizou a cidade de Efeso com uma guarnição privada de monges. Cirilo era temperamental nos seus métodos por causa de seu ardoroso desejo de ver o lado certo triunfar; e se os cristãos foram as vezes amargos, foi porque estavam preocupados com a fé cristã. Talvez a desordem seja melhor do que a apatia. A Ortodoxia reconhece que os Concílios foram realizados por homens imperfeitos, mas ela acredita que estes homens imperfeitos foram guiados pelo Espírito Santo.

O bispo bizantino não era apenas uma figura distante que participava dos Concílios; ele agia também em muitos casos como um verdadeiro pai para seu povo, um amigo e protetor em quem as pessoas confiavam quando tinham algum problema. A preocupação com os pobres e oprimidos que João Crisóstomo demonstrava é encontrada também em muitos outros. São João o "Doador de Esmolas," Patriarca de Alexandria (morto em 619), por exemplo, doou toda a riqueza de sua sé para ajudar aqueles a que ele chamava "meus irmãos, os pobres." Quando seus próprios recursos acabaram, ele pediu a outros: "Ele costumava dizer," um conceito contemporâneo, "que se, sem rancor, alguém tirar a camisa do rico para dar aos pobres, não estaria errado." "Aqueles que você chama pobres e pedintes," João dizia, "estes eu declaro meus mestres e ajudantes, pois apenas eles, podem realmente nos ajudar e nos conceder o reino do céu." A Igreja no Império bizantino não deixava de cuidar de suas obrigações sociais, e uma de suas funções principais era com obras de caridade. 

O monasticismo teve um papel decisivo na vida religiosa de Bizâncio, da mesma forma que em todos os países ortodoxos. Tem-se dito corretamente que "o melhor modo de penetrar na espiritualidade ortodoxa é fazê-lo por meio do monasticismo." "Existe uma grande variedade de formas de vida espiritual a serem encontradas nos limites da ortodoxia, mas o monasticismo continua a ser a mais clássica de todas." A vida monástica, como instituição definitiva, surgiu primeiro no Egito, no inicio do século IV, e de lá espalhou-se rapidamente pela cristandade. Não é coincidência que o monasticismo tenha se desenvolvido imediatamente após a conversão de Constantino, no tempo que as perseguições cessaram e o cristianismo tornou-se moda. Os monges, com sua austeridade eram mártires numa época em que o martírio de sangue já não existia mais; formavam o contra — peso do cristianismo estabelecido. As pessoas na sociedade bizantina corriam o perigo de esquecer que Bizâncio era um ícone e um símbolo, não a realidade; corriam o risco de identificar o reino de Deus com um reino terrestre. Os monges com sua saída da sociedade para o deserto preenchiam um ministério profético e escatológico na vida de Igreja. Eles lembravam aos cristãos que o reino de Deus não é deste mundo.

O monasticismo tomou três formas principais, todas apareceram no Egito por volta de 350 DC, e todas subsistem até hoje na Igreja Ortodoxa. Existe primeiro os eremitas, homens vivendo uma vida solitária em cabanas ou cavernas, e mesmo em tumbas, troncos de árvores ou topo de colunas. O grande modelo de vida eremita é o próprio pai do monasticismo. Santo Antônio do Egito (251 — 356). Em segundo existe a vida comunitária, onde monges moram juntos sob um regulamento comum e num mosteiro constituído regularmente. Aqui o grande pioneiro foi São Pacomio do Egito (286 — 346), autor de um regulamento usado por São Benedito no ocidente. Basílio o Grande, cujos escritos ascéticos exerceram influência na formação do monasticismo ocidental, era um forte defensor da vida comunitária. Dando ênfase social ao monasticismo, ele recomendava com insistência que as casas religiosas deviam cuidar dos doentes e dos pobres, mantendo hospitais e orfanatos, e trabalhando diretamente para o benefício da sociedade de um modo geral. Mas em geral o monasticismo oriental tem sido muito menos voltado a um trabalho ativo do que o ocidental, na Ortodoxia a principal tarefa de um monge é orar e é através disso que ele ajuda os outros. O importante não é tanto o que o monge faz, mas o que ele é. Finalmente existe uma forma de vida monástica intermediária entre estas duas, a vida semi-eremita, um "meio termo" onde ao invés de uma única comunidade altamente organizada existe um grupo disperso em uma pequena colônia, cada colônia abriga de dois a seis irmãos morando juntos e sob a orientação de um mais velho. Os grandes centros de vida semi-eremita no Egito foram Nítria e Setis, que ao final do quarto século haviam produzido muitos monges ilustres — Ammon fundador de Nítria, Macário do Egito e Macário de Alexandria, Evagrio Pôntico e Arsênio o Grande. (Este sistema semi-eremita não é encontrado apenas no oriente, mas também no extremo ocidente, no monasticismo celta).

Por causa de seus mosteiros, o Egito no século IV era considerado a Segunda Terra Santa, e viajantes para Jerusalém achavam sua peregrinação incompleta se não incluíam as casas ascéticas do Nilo. Nos séculos V e VI a liderança dos movimentos monásticos transferiu-se para a Palestina, com São Eutímio o Grande (morto em 473) e seu discípulo São Sabbas (morto em 532). O mosteiro fundado por São Sabbas no vale do Jordão representa uma história ininterrupta até os dias de hoje; era a esta comunidade que João Damasceno pertencia. Quase tão antiga é uma outra casa importante com uma história ininterrupta até o presente, o mosteiro de Santa Catarina no Monte Sinai, fundado pelo Imperador Justiniano (reinou de 527-565). Com a Palestina e o Sinai nas mãos dos árabes, a proeminência monástica no Império bizantino passou para o imenso mosteiro de Studium em Constantinopla, originalmente fundado em 463; São Teodoro foi abade lá e fez uma revisão do regulamento da comunidade.

Desde o século X o centro mais importante de monasticismo ortodoxo é Athos, uma península rochosa ao Norte da Grécia que se projeta no Mar Egeu e culminando com um pico de 2033 metros de altura. Conhecido como a "Montanha Santa," Athos abriga vinte mosteiros "regulares" e um grande número de casas menores, assim como eremitérios; toda a península é inteiramente cedida para estabelecimentos monásticos, e nos dias de sua maior expansão diz-se que contava com aproximadamente quarenta mil monges. Apenas um dos vinte mosteiros regulares, produziu sozinho 26 Patriarcas e 144 bispos; isto nos dá uma idéia da importância de Athos na história ortodoxa.

Não existem "Ordens" no monasticismo ortodoxo. No ocidente um monge pertence a Ordem cartusiana, cisteciana ou qualquer outra Ordem; no oriente ele é apenas um membro de uma grande irmandade que inclui todos os monges e monjas, embora, é claro, ele esteja ligado a um mosteiro particular. Escritores ocidentais às vezes referem-se aos monges ortodoxos como "monges Basílios" ou "monges da Ordem Basília," mas isto não é correto. São Basílio é uma figura importante no monasticismo ortodoxo, mas não fundou Ordem alguma, e embora duas de suas obras sejam conhecidas como Regras Maiores e Regras Menores, não são de forma alguma comparáveis às Regras de São Benedito.

Uma figura característica no monasticismo ortodoxo é o "ancião" ou "homem velho" (no grego geron; no russo staretz, no plural startsi). O ancião é um monge de discernimento espiritual e sabedoria, a quem os outros — monges ou pessoas de fora — adotam como seu guia e diretor espiritual. Ele é as vezes um padre, mas freqüentemente um monge leigo; ele não recebe ordenação especial ou indicação para o trabalho de presbítero, mas é dirigido a ele pela inspiração direta do Espirito. O ancião vê de um modo prático e concreto qual é o desejo de Deus em relação a cada pessoa que vem consultá-lo: este é o dom especial do ancião ou carisma. O mais antigo e mais celebrado dos startsi monásticos foi Santo Antônio. A primeira parte de sua vida, de dezoito aos cinqüenta e cinco anos, passou-a em retiro e na solidão; então, embora ainda vivendo no deserto, abandonou esta vida de clausura total e começou a receber visitantes. Um grupo de discípulos reuniu-se em torno dele, e além desses discípulos havia um grande círculo de pessoas que vinham freqüentemente de longa distância pedir seus conselhos; tão grande era o volume de visitas que, como escreveu Atanásio o biógrafo de Antônio, tornou-se o médico de todo o Egito. Antônio teve muitos sucessores, e na maioria deles encontra-se o mesmo modelo exterior de eventos — um retiro para retornar. Um monge deve primeiro retirar-se, e em silêncio deve aprender a verdade a seu respeito e a
respeito de Deus. Então, após essa longa e rigorosa preparação na solidão, tendo recebido os dons do discernimento necessários a um ancião, ele pode abrir a porta de sua cela e receber o mundo do qual ele anteriormente fugiu.

No centro da política Cristã de Bizâncio existia a figura do Imperador, que não era um regente comum, mas o representante de Deus na terra. Se Bizâncio era um ícone da Jerusalém celeste, então a monarquia terrestre do imperador era uma imagem ou ícone da monarquia de Deus no céu; na igreja os homens prostravam-se diante do ícone de Cristo, e no palácio diante do ícone vivo de Deus — o Imperador. O palácio labiríntico, o elaborado cerimonial da corte, a sala do trono onde leões mecânicos rugiam e pássaros cantavam: tais coisas foram elaboradas para deixar claro o status de vice-regente de Deus do Imperador. "Por tais meios," escreveu o Imperador Constantino VII o Porfirogênito, "nós representamos o movimento harmonioso de Deus Criador em seu universo, enquanto o poder imperial é preservado em harmonia e ordem." O Imperador tinha um lugar especial no rito da Igreja: não podia é claro celebrar a eucaristia, mas recebia comunhão "como os padres," pregava sermões, em certas festas incensava o altar. As vestimentas que os bispos ortodoxos usam hoje em dia são as vestes usadas outrora pelo Imperador na igreja.

A vida em Bizâncio formava um todo uniforme, e não havia uma linha rígida de separação entre religiosos e seculares, entre Igreja e Estado: ambos eram vistos como partes de um mesmo organismo. Mesmo que fosse inevitável o Imperador ter uma participação ativa nos assuntos da Igreja. Ao mesmo tempo não é justo acusar Bizâncio de cesaropapismo, de subordinar a Igreja ao Estado. Embora Igreja e Estado formassem um mesmo organismo, dentro deste organismo único havia dois elementos distintos, o presbiterado (sacerdotium) e o poder imperial (imperium); e mesmo trabalhando em total cooperação, cada um desses elementos tinha sua esfera própria na qual era autônomo. Entre os dois havia "sinfonia" ou "harmonia," mas nenhum elemento exercia controle absoluto sobre o outro.

Esta é a doutrina explicada no grande código da lei bizantina redigida sob Justiniano (veja o sexto apêndice) e repetida em vários outros textos bizantinos. Tome por exemplo as palavras do Imperador João Tzimices: "Reconheço duas autoridades, clero e império; o Criador do mundo confiou ao primeiro a guarda das almas e ao segundo o controle dos corpos dos homens. Não permita que nenhuma autoridade seja atacada e o mundo gozará de prosperidade." Assim era tarefa do Imperador convocar concílios e fazer suas decisões serem cumpridas, mas estava além de seus poderes ditar o conteúdo de tais decretos; cabia aos bispos reunidos nos concílios a decisão do que significava a verdadeira fé. Os bispos foram indicados por Deus para ensinar a fé, enquanto o Imperador era o protetor da Ortodoxia, não seu expoente. Assim era a teoria, assim na maioria das vezes foi praticado. Devemos admitir que houve ocasiões nas quais o Imperador interferia injustificadamente em assuntos eclesiásticos; mas quando surgia uma questão de base, as autoridades da Igreja mostravam rapidamente que tinham vontade própria. O iconoclasmo, por exemplo, foi vigorosamente defendido por toda uma série de Imperadores, e, apesar disso, foi com sucesso rejeitado pela Igreja. Na história bizantina a Igreja e o Estado eram bastante interdependentes, mas nenhum era subordinado ao outro.

Existem muitos hoje em dia, não apenas fora mas também dentro da Ortodoxia, que criticam duramente o Império bizantino e o conceito de sociedade cristã que ele representava. Mas estavam os bizantinos totalmente errados? Eles acreditavam que Cristo, que havia vivido na terra como homem, havia redimido cada aspecto da existência humana, e sustentavam que isto havia portanto tornado possível batizar não apenas indivíduos, mas todo o espírito e organização da sociedade. Assim esforçaram-se para criar uma política inteiramente Cristã em seus princípios de governo e em suas vidas diárias. Bizâncio de fato não era nada além de uma tentativa de aceitar e de aplicar todas as implicações da Encarnação. Certamente esta tentativa tinha seus perigos: em particular os bizantinos sempre caíram no erro de identificar o reino terrestre de Bizâncio com o Reino de Deus, o povo grego com o povo de Deus. Certamente Bizâncio estava bastante aquém dos altos ideais em que se colocava, e suas falhas foram freqüentemente lamentáveis e desastrosas. As histórias da crueldade, violência e duplicidade de Bizâncio são bastante conhecidas para serem repetidas aqui. Elas são verdadeiras — mas são apenas parte da verdade. Pois atrás de todas as falhas de Bizâncio pode-se sempre discernir a grande visão na qual os bizantinos se inspiravam: fundar aqui na terra um ícone vivo do governo de Deus no céu.

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