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"Em Seu amor desmedido, Deus tornou-se
o que somos para que pudéssemos nos
tornar o que Ele é" (Santo Irineu, morto em 202).
Deus na Santíssima Trindade.
Nosso plano social, disse o pensador russo Fedorov, é o dogma da Santíssima Trindade. A Ortodoxia acredita veementemente que a doutrina da Santíssima Trindade não é um pedaço de "teologia de elite" reservada ao profissional erudito, mas algo que tenha uma importância prática ativa para cada cristão. O homem, como explicado nas Sagradas escrituras, foi feito a imagem de Deus, e para os Cristãos Deus significa a Santíssima Trindade: portanto, é apenas à luz do dogma da Trindade que o homem pode entender quem ele realmente é e o que Deus quer que ele seja. Nossa vida particular, relações pessoais e todos os nossos planos para formarmos uma sociedade cristã, dependem de uma correta interpretação da Trindade. "Não existe nenhuma outra escolha além da Santíssima Trindade ou o inferno" (V. Lossky, The Mystical Theology of the Eastern Church, p.66).
Como um escritor Anglicano colocou: "Nesta doutrina soma-se a nova forma de pensar sobre Deus ao poder pelo qual o pescador saiu para converter o mundo greco-romano. Isso marca uma revolução compensadora no pensamento humano. (D. J. Chitty, "The Doctrine of the Holy Trinity told to the Children," in Sobornost, série 4, n.º 5, 1961, p.241).
Os elementos básicos de Deus na doutrina Ortodoxa já foram mencionados na primeira parte deste livro, então aqui eles serão resumidos de forma breve:
1. Deus é absolutamente transcendental.
"Nenhuma das coisas de toda criação tem ou terá qualquer comunhão ou proximidade com o Ser Supremo (Gregorio Palamas, P.G. 150,1176c, citado na p. 77). A Ortodoxia salvaguarda essa transcendência absoluta por seu uso enfático da negação, da teologia apofática. A teologia positiva ou catafática — a afirmação — deve sempre ser equilibrada e corrigida pelo emprego da linguagem negativa. As afirmações positivas sobre Deus — que Ele é bom, sensato, justo e assim por diante — são verdadeiras até determinado ponto, no entanto elas não podem descrever adequadamente o caráter íntimo da santidade. Essas afirmações positivas, disse João de Damasco, revela "não a natureza, mas as coisas a sua volta." "Está claro que existe um Deus; mas o que Ele é em sua essência e natureza, está além da nossa compreensão e conhecimento" (On the Orthodox Faith, 1, 4, P.G. 94, 800B, 797B).
2. Deus, apesar de absolutamente transcendental, não é separado do mundo que criou.
Deus está acima e além da Sua criação, no entanto Ele também existe dentro dela. Como diz uma das orações Ortodoxas: ‘Tu que estás em tudo e enches tudo." A Ortodoxia, então distingue a essência de Deus de Sua energia, salvaguardando, assim, tanto a transcendência quanto a imanência divinas: A essência de Deus permanece inacessível, mas Sua energia desce a nós. A energia, que é o próprio Deus, penetra em toda Sua criação e nós a experimentamos na forma de luz e graça divinas. Verdadeiramente nosso Deus é um Deus que se esconde ao mesmo tempo que age — o Deus da história interfere diretamente nas situações concretas.
3. Deus é individual e ao mesmo tempo Trinitário.
Este Deus que age, não é apenas um Deus de energia, mas um Deus pessoal. Quando o homem participa da divina energia, ele não é dominado por um poder indefinido e inominado, mas é posto face a face com a pessoa. Além disso: Deus não é apenas uma única pessoa confinada em seu próprio ser, mas sim uma Trindade de pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, cada uma estendendo-se aos outros dois, em virtude de um movimento perpétuo de amor. Deus é uma unidade e também uma união.
4. Nosso Deus é um Deus encarnado.
Deus desceu ao homem não apenas por Sua energia, mas também em pessoa. A Segunda pessoa da Trindade, "Deus verdadeiro de Deus verdadeiro," foi feito homem: "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós" (João 1:14). Não existe intimidade maior do que esta entre Deus e Sua criação. O próprio Deus tornou-Se uma de Suas criaturas.
Aqueles criados em outras tradições, às vezes, têm dificuldade em aceitar a ênfase Ortodoxa à Teologia apofática e a distinção entre essência e energia; mas excetuando estes dois aspectos, os Ortodoxos concordam sobre a doutrina de Deus com a grande maioria daqueles que se denominam Cristãos. Monofisitas e Luteranos, Nestorianos e Católicos Romanos, Calvinistas, Anglicanos e Ortodoxos igualmente adoram o único Deus em três pessoas e confessam Cristo como o filho encarnado de Deus (Nos últimos cem anos, sob a influência do Modernismo, muitos protestantes abandonaram as doutrinas da Trindade e da Encarnação. Portanto, quando falo aqui sobre Calvinistas,
Luteranos e Anglicanos, falo daqueles que ainda respeitam a fórmula clássica dos protestantes do século XVI).
Todavia, existe um ponto na doutrina da Trindade de Deus em que Ocidente e Oriente discordam — o filioque. Nós já vimos o quão decisivo foi o papel desta palavra para a infortunada fragmentação da cristandade. Mas, admitindo que o filioque tem uma importância histórica, qual o seu verdadeiro valor teológico? Muitos hoje — não excluindo alguns Ortodoxos — consideram o debate tão técnico e confuso que são tentados a torná-lo absolutamente insignificante. Sob o ponto de vista da tradicional teologia Ortodoxa, há apenas uma resposta a esta questão: sem dúvida o debate é técnico e confuso, assim como qualquer outra questão sobre a teologia Trinitária, mas de forma alguma é insignificante. Sendo a crença na Trindade a parte central da fé cristã, uma diferença mínima está fadada a causar repercussão sobre todos os aspectos da vida e do pensamento cristãos. Tentemos, então, entender algumas questões que envolvem o debate sobre o filioque.
Uma essência em três pessoas. Deus é um e Deus é três: A Santíssima Trindade é um mistério de unidade em diversidade e diversidade em unidade. Pai, Filho e Espírito Santo são "um em essência" (homoousios), no entanto cada um é diferente dos outros dois por suas características pessoais. "O divino é indivisível em seus fragmentos (Gregory of Nazianzus, Orations 31,14) pois as pessoas são "unidas mas não confundidas, distintas mas não divididas" (João de Damasco, On the Orthodox Faith, 1, 8, P.G. 94, 809 A); "tanto a distinção quanto a união são paradoxais" (Gregory of Nazianzus, Orations,25, 17).
Mas, se cada uma das pessoas é distinta da outra, o que mantém unida a Santíssima Trindade? Aqui a Igreja Ortodoxa, seguindo os padres (bispos) capadócios, responde que existe um Deus porque existe um Pai. Na linguagem teológica, o Pai é a "causa" ou "fonte" da divindade, Ele é o princípio (arche) da unidade entre os três; e é neste sentido que a Ortodoxia fala da "monarquia" do Pai. As outras duas pessoas traçam sua origem pelo Pai e são definidas através da relação com ele. O Pai é a fonte da divindade, nascido de nada e procedendo do nada; o Filho é nascido do Pai por toda a eternidade ("antes de todos os séculos," como diz o Credo); o Espírito procede do Pai por toda eternidade.
É neste ponto que a teologia Católica Romana começa a divergir. De acordo com os romanos, o Espírito procede eternamente do Pai e do Filho; e isto quer dizer que o Pai deixa de ser a fonte exclusiva da divindade, pois o Filho também é uma fonte. Já que o princípio da unidade do Ente Supremo não mais pode ser o Pai, os romanos encontram este princípio na substância ou essência que as três pessoas dividem. Para a Ortodoxia, o princípio da unidade de Deus é pessoal, para o catolicismo romano, não.
Mas o que se quer falar com o termo "procede"? A não ser que isto esteja absolutamente claro, nada se compreenderá. A Igreja acredita que Cristo foi submetido a dois nascimentos, o eterno e o outro em um determinado momento no tempo: nasceu do Pai "antes de todos os séculos," e nasceu da Virgem Maria no tempo de Herodes, rei da Judéia, e de Augusto, imperador de Roma. Da mesma forma uma distinção sólida deve ser traçada entre a procedência eterna do Espírito Santo e a missão temporal, a vinda do Espírito ao mundo: a primeira diz respeito às relações existentes na Divindade durante toda eternidade, a outra refere-se a relação de Deus com sua criação. Assim, quando o ocidente fala que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e quando a Ortodoxia fala que Ele procede somente do Pai, ambas referem-se não a ação externa da Trindade em relação à criação, mas sim a certas relações eternas dentro do Ente Supremo — relações que existiam muito antes de o mundo surgir. Mas ao mesmo tempo que a Ortodoxia discorda com o ocidente sobre a procedência eterna do Espírito Santo, ela concorda que ao que se refere a vinda do Espírito ao mundo, mandado pelo Filho, ele é de fato o "Espírito do Filho."
A posição Ortodoxa baseia-se em João 15:26, em que Cristo fala: "Quando porém vier o Consolador, aquele espírito de verdade, que procede do Pai, que eu vos enviarei da parte do Pai, Ele dará testemunho de mim." Cristo manda o Espírito, mas este procede do Pai: é o que ensinam as Escrituras e assim acredita a Ortodoxia. O que a Ortodoxia não ensina, e as Escrituras nunca disseram, é que o Espírito procede do Filho. O entendimento do ocidente é a eterna procedência do Pai e do Filho. Já a procedência do Espírito Santo somente pelo Pai e uma missão temporal do Filho foi uma posição defendida por São Photius contra o Oeste. Mas escritores bizantinos — mais notavelmente Gregório de Chipre, patriarca de Constantinopla entre 1283 e 1289 e Gregório Palamas — foram além de Photius, em uma tentativa de diminuir o abismo entre oriente e ocidente. Eles queriam admitir além da missão temporal uma manifestação eterna do Espírito Santo pelo Filho. Enquanto Photius mencionou somente uma relação temporal entre o Filho e o Espírito Santo, eles reconheceram também uma relação eterna. Contudo, na questão essencial, ambos concordaram com Photius: o Espírito é manifestado pelo filho, mas não procede Dele. O Pai é a única origem, fonte e causa da Santidade.
Resumidamente estas foram as posições de ambos os lados. Vamos agora ponderar as objeções ortodoxas em relação a posição ocidental. O filioque leva tanto ao diteísmo quanto ao semi-Sabelionismo (Sabellius, um herético do século II, considerava Pai, Filho e Espírito Santo não como três pessoas, mas simplesmente como "aspectos" ou "modos" variáveis da Deidade). Se o Filho, assim como o Pai, é um arche um princípio ou fonte do Ente Supremo, existe então (perguntavam os Ortodoxos) duas fontes, dois princípios separados na Trindade? É obvio que não, já que isto seria o equivalente a acreditar em dois Deuses; então a reunião dos Concílios de Lyon (1274) e Florença (1438-1439) foram muito cautelosos em estabelecer que o Espírito procede do Pai e do Filho "como um princípio único," tanquam ex (ou ab) uno principio. Do ponto de vista ortodoxo, no entanto, isto é da mesma forma contestável: evita-se o diteísmo, mas as pessoas do Pai e do Filho misturam-se e confundem-se. Os capadócios consideravam a "monarquia" uma característica exclusiva do Pai: somente Ele é um princípio ou arche na Trindade. Mas a teologia ocidental imputa esta característica do Pai também ao Filho, fundindo assim as duas pessoa em uma; e "o que poderia ser isto além do ressurgimento de Sabellius ou a criação de um monstro semi-Sabelliano," como colocou São Photius? (P.G.102, 289B).
Analisemos com maior cuidado esta idéia de semi-Sabellionismo. A teologia Trinitária Ortodoxa tem um princípio de unidade particular, mas o ocidente encontra este princípio unitário na essência de Deus. Para os Ortodoxos, na teologia escolástica latina as pessoas são ofuscadas pela natureza comum das três e Deus não é visto de forma concreta e individual, mas como uma essência que distingue várias relações. Esta idéia de Deus amadurece por total com Tomas de Aquino que identificou as pessoas com suas relações: personae sunt ipsae relationes (Summa Teológica, 1, questão 40, artigo 2). Pensadores Ortodoxos consideram esta idéia sobre a personalidade medíocre. As relações, eles diziam, não são as pessoas — são as características pessoais do Pai, do Filho e do Espírito Santo; e (como colocou Gregório Palamas) "as características pessoais não constituem a pessoa, mas a caracterizam" (citado em J. Meyendorff, Introduction à l’étude de Grégoire Palamas, Paris 1959, p.294). As relações, quando designam as pessoas, de forma alguma exaurem o mistério de cada uma.
A teoria escolástica latina, ao enfatizar a essência ofuscando as pessoas, praticamente torna a figura de Deus abstrata. Ele torna-se um ser remoto e impessoal cuja existência deve ser comprovada por argumentos metafísicos — um Deus dos filósofos, não de Abraão, Isaac e Jacó. Por outro lado, a Ortodoxia está muito menos preocupada do que o Oeste latino em encontrar provas filosóficas da existência de Deus: o que é realmente importante é que o homem não deve questionar a divindade e sim ter um encontro ativo e direto com um Deus concreto e pessoal.
São estas as razões porque a Ortodoxia considera o filioque perigoso e herético. O filioquismo confunde as pessoas da trindade e destrói o equilíbrio entre a unidade e diversidade do ente supremo. A unidade é enfatizada às custas da Sua trindade; Deus é extremamente considerado em termos de essência abstrata e muito pouco em termos de uma personalidade concreta.
E mais: muitos ortodoxos entendem que, por causa do filioque, o Espírito Santo para os ocidentais tornou-se subordinado ao Filho — se não na teoria, pelo menos na prática. O oeste dá pouquíssima atenção ao trabalho do Espírito Santo no mundo, na Igreja e no cotidiano de cada ser humano.
Escritores ortodoxos também debatem que as duas conseqüências do filioque — subordinação do Espírito Santo e super enfatização da unidade de Deus — contribuíram para a distorção da doutrina na Igreja Católica Romana. Pelo fato de o papel do Espírito ter sido rejeitado no Oeste, a Igreja transformou-se em uma instituição mundana governada por poderes terrenos e com jurisdição. Assim como a doutrina ocidental acentuou a unidade de Deus por conta da diversidade, a sua concepção de unidade na Igreja triunfou em diversidade e o resultado disto foi a grande centralização e valorização da autoridade papal.
Em síntese esta é a posição Ortodoxa quanto ao filioque, embora nem todos relatem o caso de forma tão inflexível. Muitas das críticas feitas acima são aplicadas, em particular, a forma decadente de escolástica e não a totalidade da teologia latina.
Homem: sua criação, sua vocação, sua falha.
"Tu nos fizeste para Ti e nossos corações inquietos só descansarão quando Te encontrarem" (Agostinho, Confissões,1, 1). O Homem foi feito para ser companheiro de Deus: esta é primeira e principal afirmação da doutrina Cristã. No entanto o homem, feito para ser companheiro de Deus, em tudo repudia este companheirismo: este é o segundo fato que toda antropologia cristã dá importância. O homem foi feito para ser o companheiro de Deus: na linguagem da Igreja, Deus criou Adão de acordo com sua imagem e semelhança e o pôs no Paraíso (Os capítulos introdutórios da Gênesis, é claro, referem-se a determinadas verdades religiosas e não devem ser consideradas história. Quinze séculos antes da crítica moderna Bíblica, Padres gregos já interpretavam a história da Criação e do Paraíso simbolicamente em vez de literalmente). O homem, em tudo, repudia este companheirismo: na linguagem da Igreja, Adão caiu e sua queda — seu pecado original — afetou toda a humanidade.
A Criação do Homem.
"E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gênesis 1:26). Deus fala no plural: "Façamos o homem." A criação do homem, como constantemente enfatizaram os Padres gregos, foi um ato das três pessoas da Trindade e, portanto a imagem e semelhança de Deus deves sempre ser entendidas como Trinitárias. Devemos considerar isto como um ponto de importância vital. Imagem e Semelhança. De acordo com muitos padres gregos, os termos imagem e semelhança não querem dizer exatamente a mesma coisa. "A expressão de acordo com a imagem," escreveu João de Damasco, "indica racionalidade e liberdade, enquanto que a expressão de acordo com a semelhança indica a assimilação de Deus através da virtude" (On The Orthodox Faith, 2, 12, P.G. 94, 920B).
A imagem ou, usando o termo grego, o ícone de Deus significa o livre arbítrio do homem, sua razão, seu senso de responsabilidade moral — tudo, resumindo, que diferencia o homem da criação animal e o faz uma pessoa. Mas a imagem significa mais: nós somos "filhos" de Deus (Atos 27:28), Seus parentes e isto quer dizer que entre nós e Ele há um ponto de contato, uma similaridade essencial. O abismo entre a criatura e o Criador não é intransponível pois, por sermos a imagem de Deus, nós O conhecemos e comungamos com Ele. E se um homem usa corretamente a faculdade de comunhão com Deus, então ele será "semelhante" a Deus, adquirirá a semelhança divina; nas palavras de João Damasceno "incorporado a Deus através da virtude." Adquirir a semelhança é ser deificado, é tornar-se um "segundo deus," um "deus de virtude." "Eu disse: Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo" (Salmo 81:6). (Nas citações dos Salmos, segue-se a numeração da Vulgata dos Setenta. Algumas versões da Bíblia consideram este Salmo como 82).
A imagem indica os poderes dos quais todos os homens são dotados por Deus desde o primeiro momento de sua existência; a semelhança não é um dom natural que o homem possui desde o princípio, mas um objetivo que ele deve alcançar, algo que só pode adquirir passo a passo. Não importa quão pecador possa ser o homem, jamais ele perderá a imagem; mas a semelhança depende de nossa escolha moral, de nossa virtude e, então é destruída pelo pecado.
A primeira criação do homem foi perfeita, não de um modo real e sim em potencial. Dotado da imagem desde o princípio, foi convidado a adquirir a semelhança por seu próprio empenho (auxiliado, é claro, pela graça de Deus). Adão começou em estado de inocência e simplicidade. "Ele era uma criança que não tinha um discernimento aperfeiçoado," escreveu Irineu, "Era preciso que ele crescesse para chegar a perfeição (Demonstration of Apostolic Preaching, 12). Deus colocou Adão na trilha certa, mas Adão tinha um longo caminho a cruzar para atingir o seu objetivo.
Esta figura de Adão antes da queda é um tanto diferente daquela apresentada por Santo Agostinho e comumente aceita no ocidente desde a sua época. De acordo com Santo Agostinho, no Paraíso o homem foi dotado de toda sabedoria e conhecimento possíveis: ele era uma perfeição realizada e não em potencial. A concepção dinâmica de Irineu ajusta-se com maior facilidade à teoria moderna sobre a evolução do que a concepção de Santo Agostinho; mas ambos falaram como teólogos e não como cientistas de forma que em nenhuma hipótese suas idéias estão em acordo ou desacordo com qualquer
teoria científica.
O ocidente normalmente associa a imagem de Deus ao intelecto humano. Enquanto muitos ortodoxos fazem o mesmo, outros dizem que já que o homem é um todo unificado, a imagem de Deus compreende toda a sua pessoa, tanto o corpo quanto a alma. "Quando Deus disse que fez o homem a sua imagem," escreveu Gregório Palamas, "a palavra homem não significa apenas a alma sozinha nem o corpo sozinho, mas os dois juntos" (P.G. 150, 1361C). O fato de o homem ter um corpo, argumentava Gregório, faz dele não inferior mas superior aos anjos. Realmente, os anjos são "puro"
espírito, enquanto que a natureza do homem é mista — material assim como intelectual; mas isto quer dizer que sua natureza é mais completa do que a angélica e dotada de potencialidades mais ricas. O homem é um microcosmo, uma ponte, um ponto de convergência para toda a criação de Deus.
O pensamento religioso ortodoxo configura-se na máxima ênfase da imagem de Deus no homem. O homem é a "teologia viva" e, por ser o ícone de Deus, pode encontrá-Lo olhando dentro de seu coração, "voltando-se para si mesmo": "Porque eis aqui está o Reino de Deus dentro de vós" (Lucas 17:21). "Conheçam a si mesmos," disse Antônio do Egito,..." Aquele que conhece a si mesmo, conhece a Deus" (Carta 3 (nas coleções grega e latina, 6)). "Se sois puro," escreveu Isaac, o sírio (final do século XVII), "o paraíso está dentro de vós; dentro de vós vereis os anjos e o Senhor dos anjos" (Citado por P. Evdokimov, L’Ortodoxie, p.88). E Santo Pachomius lembra: "Na pureza de seu
coração ele viu o Deus invisível como se num espelho" (First Greek Life, 22). Por ser um ícone de Deus, cada membro da raça humana, inclusive o pior pecador, é infinitamente precioso a vista de Deus. "Quando vês teu irmão," disse Clemente da Alexandria (morto em 215), "vês a Deus" (Stromateis, 1, 19, 94,5). E ensinou Evagrius: "Depois de Deus, devemos considerar os homens como o próprio Deus" (On Prayer, 123, P.G. 79, 1193C). Este respeito a todo ser humano é claramente expressado na Liturgia Ortodoxa, quando o padre incensa, além dos ícones, os membros da congregação saudando a imagem de Deus em cada pessoa. "O melhor ícone de Deus é o homem" (P. Evdokimov, L’Ortodoxie, p. 218).
Graça e Livre arbítrio.
Como foi visto, o fato de o homem ser a imagem de Deus significa, dentre outras coisas, que ele tem livre arbítrio. Deus quis um filho e não um escravo. A Igreja Ortodoxa rejeita qualquer doutrina que possa vir a infringir a liberdade do homem. Para descrever a relação entre a graça divina e o livre arbítrio humano, a ortodoxia usa o termo cooperação ou sinergia (synergeia); nas palavras de Paulo:
"Porque nós outros somos cooperadores (synergoi) de Deus" (1 Cor. 3:9). O homem apenas consegue atingir o completo companheirismo com Deus auxiliado por Ele, no entanto também deve cumprir o seu papel: o homem, assim como Deus deve fazer uma contribuição ao trabalho comum, mesmo que o papel desempenhado por Deus seja incomensuravelmente mais importante que o do homem. "A incorporação do homem a Cristo e sua união a Deus requer a cooperação de duas forças desiguais, mas igualmente necessárias: graça divina e vontade humana" (Um Monge da Igreja Oriental, Orthodox Spirituality, p. 23). O exemplo supremo de sinergia é a Mãe de Deus (ver p. 263).
O oeste, desde os tempos de Agostinho e da controvérsia de Pelágio, discute as questões da graça e do livre arbítrio de forma um tanto diferente; e muitos criados na tradição Agostiniana — especialmente os Calvinistas — consideraram suspeita a idéia ortodoxa sobre a sinergia. Mas não é ela tão atribuída ao livre arbítrio humano e tão pouco a Deus? Todavia, na realidade o ensinamento ortodoxo é muito correto. "Eis aí estou eu à porta, e bato: se algum ouvir a minha voz e me abrir a porta entrarei Eu" (Apocalipse 3:20). Deus bate à porta, mas espera o homem abrir — Ele não a arromba. A graça de Deus convida a todos, mas não constrange ninguém. Nas palavras de João Crisóstomo: "Deus jamais arranca alguém para Si a força ou por violência. Ele quer que todos sejam salvos, mas não força nenhum" (Sermão das palavras ‘Saulo, Saulo...’ 6, P.G.51, 144). "É para Deus conceder a Sua graça," disse São Cirilo de Jerusalém (morto em 386), "que sua função deve ser aceitar a graça e resguardá-la (Catechetical Orations, 1, 4).
Mas não se pode acreditar que, porque o homem apenas aceita e resguarda a graça de Deus, ele terá mérito. Os dons de Deus são doados e o homem não pode fazer reclamações do seu Criador. Mas já que não "merece" a salvação ele deve esforçar-se para conquistá-la, pois "a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma" (Tiago 2:17).
A queda: Pecado original.
Deus deu a Adão livre arbítrio — o poder de escolha entre o bem e o mal — e portanto restou a Adão escolher entre aceitar a vocação que lhe foi apresentada ou recusá-la. Ele a recusou em vez de continuar na trilha traçada por Deus, desviou-se e desobedeceu a Deus. A queda de Adão consistiu essencialmente na desobediência à vontade de Deus; ele colocou a sua vontade contra a vontade divina, então por um ato próprio separou-se de Deus. Como resultado, surgiu uma nova forma de vida na terra — aquela de doença e morte. Por afastar-se de Deus, que é imortalidade e vida, o homem pôs-se em estado contrário ao da natureza e esta condição anormal levou-o à desintegração de seu ser e eventualmente à morte física. As conseqüências da queda de Adão estenderam-se a todos seus descendentes. Nós somos membros uns dos outros, como São Paulo jamais deixou de insistir e, se um membro sofre, todo corpo sofre junto. Em virtude desta misteriosa unidade da raça humana, não apenas Adão mas toda a humanidade está sujeita à mortalidade. A desintegração iniciada depois da queda não foi meramente física. Separado de Deus, Adão e seus descendentes ficaram sob a dominação do pecado e do diabo. Cada ser humano nasce num mundo onde o pecado prevalece em toda parte, num mundo onde é fácil fazer o mal e difícil fazer o bem. A vontade humana é enfraquecida e debilitada pelo que os gregos chamam de "desejo" e os latinos de "concupiscência." Estamos todos sujeitos aos efeitos espirituais do pecado original.
Assim, existe algum consenso entre a ortodoxia, o catolicismo romano e o protestantismo clássico; mas além deste ponto, não há total concordância entre leste e oeste. A ortodoxia, mantendo uma idéia menos elevada do homem antes da queda, é também menos severa do que o oeste em sua opinião sobre a queda. Adão decaiu não de um alto estado de sabedoria e perfeição, mas de um estado de simplicidade imatura; por isso ele não pode ser julgado de maneira severa por seu erro. Certamente, como resultado da queda a mente humana tornou-se tão obscurecida e sua força de vontade tão prejudicada que o homem não mais esperava atingir a semelhança de Deus. Os ortodoxos, no entanto, não acreditam que a queda tenha destituído por completo o homem da graça de Deus, embora eles digam que depois da queda a graça passou a agir no homem de fora para dentro e não mais de dentro para fora. Os ortodoxos não dizem, ao contrário de Calvino, que o homem ficou totalmente depravado e incapaz de ter bons desejos, não concordam com Agostinho quando escreve que o ser humano vive sob "uma tremenda necessidade" de cometer pecados e que "sua natureza foi superada pela culpa que caiu sobre ele, e então surgiu a falta de liberdade" (On the perfection of man’s righteousness, 4, 9).
A imagem de Deus é distorcida pelo pecado, mas nunca destruída, como se pode ver nas letras do hino cantado por ortodoxos em um ofício fúnebre para o leigo: "Eu sou a imagem da Tua glória inexprimível, mesmo carregando as marcas do pecado." E porque o homem mantém a imagem de Deus, ele mantém o livre arbítrio apesar de o pecado restringir seu campo de ação. Mesmo depois da queda, Deus "não tira do homem o poder de discernimento — escolher entre obedecer ou não a Ele" (Dositheus, Confession, Decreto 3. Compare o Decreto 14). Fiel à idéia de sinergia, a ortodoxia repudia qualquer interpretação sobre a queda que não dá espaço a liberdade humana.
Muitos teólogos ortodoxos rejeitam a idéia da "culpa original," apresentada por Agostinho que ainda é aceita (não obstante de uma forma branda) pela Igreja católica romana. Os homens (como ensinam os ortodoxos) herdaram automaticamente a corrupção e a mortalidade de Adão, mas não sua culpa: eles só têm culpa pois, por livre arbítrio, imitam Adão. Muitos cristãos ocidentais acreditam que não importa o que o homem faça em seu estado decaído e perdido, por estar marcado com a culpa original
não é agradável a Deus: "Obras para o Julgamento," diz o décimo terceiro dos trinta e nove artigos da Igreja Inglesa,..." não são agradáveis a Deus.. mas têm uma natureza de pecado." Os ortodoxos são hesitantes nesta afirmação. Eles nunca defenderam (como fez Santo Agostinho e muitos outros ocidentais) que bebês não batizados, por estarem marcados com a culpa original, são entregues pelo Deus justo aos jogos eternos do inferno (Tomás de Aquino, em seu debate sobre a queda, concordou inteiramente com Agostinho e, em especial, reteve a idéia da culpa original; mas em relação às crianças não batizadas, sustentou que elas não vão para o inferno e sim para o Limbo — uma opinião normalmente aceita por teólogos romanos. Ao que sei, escritores ortodoxos não usam a idéia do Limbo. É mister mencionar que a visão Agostiniana da queda é encontrada de tempos em tempos na literatura teológica ortodoxa; mas isto ocorre normalmente por influência ocidental. A Confissão Ortodoxa de Pedro de Moghila é, como se pode esperar, muito Agostiniana; por outro lado a Confissão de Dositheus nada tem desta visão). A visão ortodoxa sobre a decadência humana é bem menos lúgubre do que a Agostiniana e a Calvinista.
Mas, apesar de os ortodoxos sustentarem que depois da queda o homem ainda possuía livre arbítrio e era capaz de praticar boas ações, eles sem dúvida concordaram com o ocidente na crença de que o pecado humano colocou entre Deus e o homem uma barreira que ele, por si só, não poderia derrubar. O pecado bloqueou o caminho que unia o homem a Deus. Já que ele não poderia ir a Deus, Deus veio a ele.
Jesus Cristo.
A encarnação é um ato de philanthropia (caridade) de Deus, de Sua benevolência para com a espécie humana. Muitos escritores orientais, falando da encarnação sob este ponto de vista, dizem que mesmo se o homem nunca tivesse decaído, Deus em Seu amor pela humanidade ainda assim se tornaria homem: a encarnação deve ser entendida como parte do propósito eterno de Deus e não simplesmente como uma resposta à queda. Tal era a visão de Maximus, o confessor e de Isaac, o sírio, e também de alguns escritores ocidentais, com maior ênfase Duns Scotus (1265-1308).
Pelo fato de o homem ter decaído, a Encarnação é, além de um ato de amor, um ato de salvação. Jesus Cristo, ao unir homem e Deus em Sua própria pessoa, reabriu o caminho de união entre Deus e a humanidade. Em pessoa, Cristo mostrou qual a verdadeira "semelhança de Deus" e por sua redenção e sacrifício vitorioso restabeleceu esta semelhança ao alcance do homem. Cristo, o segundo Adão, veio ao mundo e reverteu os efeitos da desobediência do primeiro Adão.
Os elementos essenciais na doutrina ortodoxa de Cristo já foram esboçados no Capítulo 2: Deus verdadeiro e homem verdadeiro, uma pessoa em duas naturezas, sem separação nem confusão: uma única pessoa dotada de duas vontades e duas energias.
Deus verdadeiro e homem verdadeiro; como colocou o Bispo Theophan, o recluso: "Atrás do véu da carne de Cristo, os cristãos adoram o Deus triuno." Estas palavras colocam-nos face a face ao que pode ser a característica mais extraordinária da abordagem ortodoxa sobre o Cristo encarnado: uma sensação irresistível da Sua glória divina. Há dois momentos na vida de Deus que esta glória foi especialmente manifestada: A transfiguração quando, no Monte Tabor, a Luz não criada da Sua divindade visivelmente atravessou as vestimentas de Sua carne; e a Ressurreição, quando o túmulo é aberto pela pressão da vida divina, e Cristo retorna triunfante dos mortos. Dá-se tremenda ênfase a ambos os eventos durante a adoração e espiritualidade ortodoxas. No calendário bizantino, a Transfiguração é reconhecida como uma das Doze Grandes Festas e desfruta maior eminência do que no Ocidente; e já falamos qual o lugar que a Luz não criada de Tabor ocupa dentro da doutrina ortodoxa de oração. Já a Ressurreição, seu sentido preenche toda a vida da Igreja Ortodoxa: Por todas as vicissitudes de sua história, a Igreja Grega foi capaz de manter algo do espírito dos primeiros tempos do Cristianismo. A Liturgia ainda cultua o elemento de puro júbilo na Ressurreição do Senhor, que encontramos em muitos escritos Cristãos dos primeiros tempos (P. Hammond, The Waters of Marah, p. 20).
O tema Ressurreição de Cristo une todos os conceitos teológicos e realidades do Cristianismo oriental em um conjunto harmônico (O. Rousseau, "Incarnation et anthropologie en oriente et en ocident," in Irénikon, vol. 26, 1953, p. 373).
No entanto, seria errado pensar na Ortodoxia apenas como um culto à glória divina de Cristo, à Transfiguração e à Ressurreição, e nada mais. Não importa quão grande é a devoção à glória divina de Nosso Senhor, os ortodoxos não deixam de lado a Sua humanidade. Considere por exemplo o amor dos ortodoxos pela Terra Santa: nada pode superar a intensa reverência feita por camponeses russos aos lugares exatos onde o Cristo Encarnado viveu, onde como homem comeu, ensinou (pregou), sofreu e morreu. Nem o sentido de júbilo pela Ressurreição leva a Ortodoxia a minimizar a importância da Cruz.Imagens da Crucifixão não são menos importantes em Igrejas não-ortodoxas do
que na Igreja Ortodoxa, apesar de o respeito à Cruz Sagrada ser mais revelado na adoração bizantina do que na latina.
Deve-se, assim, entender que é errada a comum asserção de que o leste concentra-se no Cristo Ressuscitado e o oeste concentra-se no Cristo Crucificado. Se fizermos uma comparação, é mais exato dizer que ambos vêem a Crucifixão de forma um pouco diferente. A atitude ortodoxa perante a Crucifixão é melhor compreendida nos hinos cantados na sexta-feira Santa, como os seguintes.
Aquele que veste-se de luz como roupas,
Estava nu em Seu julgamento.
Em Seu rosto recebeu sopros
Das mãos que Ele criou.
A multidão sem leis pregada a Cruz
O Deus de glória.
A Igreja Ortodoxa, na Sexta-Feira Santa, não vê isoladamente a dor e o sofrimento humanos de Cristo, mas sim o contraste entre Sua humilhação externa e a glória interna. Os ortodoxos não vêem apenas o lado humano do Cristo sofrendo, mas o Deus sofrendo:
Hoje está suspenso no Lenho
O que suspendeu a Terra por entre as águas.
Uma coroa de espinhos o veste
Aquele que é o rei dos anjos.
Ele está envolvido em púrpura zombaria
Aquele que envolve os céus de nuvens.
Sob o véu da carne rompida e sangrenta, os ortodoxos ainda apreciam o Deus Triuno. Até Gólgota é uma Teofania; até na Sexta-Feira Santa a Igreja entoa notas da alegria da Ressurreição:
Nós adoramos Tua Paixão, ó Cristo:
Mostra-nos Tua gloriosa Ressurreição!
Eu glorifico Teus sofrimentos,
Eu louvo Teu sepultamento e Tua Ressurreição.
Clamando, Senhor, glória a Ti!
A Crucifixão não está separada da Ressurreição, pois ambas são um ato único. O Calvário é sempre visto à luz do sepulcro vazio; a Cruz é um símbolo (emblema) de vitória. Quando os ortodoxos pensam no Cristo Crucificado, não pensam apenas no Seu sofrimento e desolação; eles pensam no Cristo, o vitorioso, no Cristo Rei, reinando em triunfo na Cruz:
O Senhor veio ao mundo e viveu entre os homens para destruir a tirania do Demônio e libertá-los. Na Cruz, Ele triunfou sobre os poderes que se opunham a Ele, quando o sol escureceu e a terra estremeceu, quando as sepulturas abriram-se e os corpos dos santos levantaram-se (Do primeiro exorcismo antes do Santo Batismo). Cristo é nosso Rei vitorioso, não apesar da Crucifixão, mas por causa dela: "Eu O chamo de rei porque o vejo crucificado" (João Crisóstomo, Second Sermon on the Cross and the Robber, 3, P.G. 49, 413).
Este é o espírito de adoração dos cristãos ortodoxos à morte de Cristo na Cruz. Entre esta abordagem da Crucifixão e aquela do oeste medieval e pós-medieval existem, é claro, muitos pontos de contato; no entanto, na abordagem ocidental existem também determinados aspectos que deixam os ortodoxos apreensivos. O ocidente, ao que parece, tende a pensar na Crucifixão isoladamente, separando-a de forma brusca da Ressurreição. Como resultado, a visão do Cristo como um Deus sofredor é substituída, em prática, pela figura de um Cristo-Homem sofredor: o adorador ocidental, quando medita perante a Cruz, é estimulado com muita freqüência a sentir uma mórbida compaixão ao Homem das Dores, em vez de glorificar o rei vitorioso e triunfante. Ortodoxos sentem-se muito a vontade nas letras do grande hino latino de Venâncio Fortunato (530-609), Pange lingua, que saúda a Cruz com um emblema de vitória:
Canta, minha boca, a batalha gloriosa,
Canta o final da briga;
Agora sobre a Cruz, nosso troféu,
Soa alto o hino triunfal:
Conta como o Cristo, redentor do mundo,
Como vítima venceu o dia.
Da mesma forma sentem-se no hino Vexilla regis, também de Fortunato:
Cumprido está o que falou Davi
Em canto profético dos antigos:
Dentre as nações, disse ele,
Reinou e triunfou da Cruz.
No entanto, ortodoxos sentem-se menos à vontade com composições do final da Idade
Média tal como Stabat Mater:
Pelo pecado de seu povo, em agonia,
Lá ela viu a vítima definhar-se,
Sangrar atormentado, sangrar e morrer:
Viu o Senhor sagrado ser levado;
Viu seu Filho a morte abandonado;
Ouviu Seu último suspiro de morte
É mister dizer que o Stabat Mater, em suas sessenta linhas, não faz referência alguma a Ressurreição.
Onde a ortodoxia vê sobretudo o Cristo vitorioso, o ocidente do final da Idade Média e pós-medieval vê sobretudo Cristo como vítima. Enquanto a ortodoxia interpreta a Crucificação primordialmente como um ato de vitória triunfante sobre os poderes do mal, o oeste desde os tempos de Anselmo de Canterbury (1033-1109) — tende a pensar na Cruz em termos jurídicos e penais, como um ato de satisfação ou substituição destinado a aplacar a ira de um Pai nervoso.
No entanto este contraste não deve ser muito estimulado. Escritores orientais, assim como os ocidentais, aplicaram linguagem jurídica e penal a Crucifixão e escritores ocidentais, assim como os orientais, nunca deixaram de considerar a Sexta-Feira Santa como um momento de vitória. Recentemente, no ocidente, houve revitalização da idéia patrística do Christus Victor, semelhante na teologia, na espiritualidade e na arte; e os ortodoxos estão bem satisfeitos que isto possa acontecer.
O Espírito Santo.
Durante as atividades dentre os homens, a Segunda e a Terceira pessoa da Trindade são complementares e recíprocas. A obra de redenção de Cristo não pode ser vista separada da obra de santificação do Espírito Santo. O Verbo virou carne, disse Atanásio, por isso podemos receber o espírito (On the Incarnation and against the Arians, 8, P.G. 26, 996c): de um ponto de vista, todo propósito da Encarnação é a descida do Espírito Santo no Pentecostes.
A Igreja Ortodoxa dá grande importância ao trabalho do Espírito Santo. Como já vimos, uma das razões da objeção ortodoxa ao filioque é porque eles vêem uma tendência a subordinar e desprezar o Espírito. São Serafim de Sarov descreveu de forma breve todo o propósito da vida cristã como nada além da aquisição do Espírito Santo, dizendo no início de sua conversa com Motovilov: "Oração, jejum, vigílias e todas as outras práticas cristãs, por melhores que possam ser em si só, certamente não constituem o propósito da nossa vida cristã: são apenas maneiras indispensáveis de obter este propósito. Pois o verdadeiro alvo da vida cristã é a aquisição do Espírito Santo de Deus. Quanto aos jejuns, vigílias, doações e outras boas obras feitas em nome de Cristo, estes são os únicos meios de adquirir o Espírito Santo de Deus. Note bem que apenas as boas obras feitas em nome de Cristo que nos trazem os frutos do Espírito."
"Esta definição," comentou Vladmir Lossky, "apesar de parecer a primeira vista muito simples, forma o conteúdo da tradição espiritual da Igreja Ortodoxa" (The Mystical Theology of the Eastern Church, p. 196). Como perguntou Teodoro, discípulo de São Pachomius: O que é mais magnífico do que obter o Espírito Santo? (First Greek Life de Pachomius, 135).
No próximo capítulo teremos a oportunidade de observar a posição do Espírito na doutrina da Igreja Ortodoxa; e em outros capítulos, algo será dito sobre o Espírito Santo na adoração ortodoxa. Em cada ato sagrado da Igreja, e de forma mais enfática no clímax da Oração Eucarística, o Espírito é solenemente invocado. Em suas orações matinais, um cristão ortodoxo coloca-se sob a proteção do Espírito Santo, com as seguintes palavras: "Rei dos Céus, Consolador, Espírito de Verdade, tu que estás presente em tudo e enches tudo, Tesouro de bens e Doador da vida, vem e habita em nós. Purifica-nos de toda a impureza e salva as nossas almas, Tu que és bom" (esta mesma oração é usada no início da maioria dos ofícios litúrgicos).
Participantes da Natureza Divina.
O propósito da vida cristã, que Serafim descreveu como a aquisição do Espírito Santo de Deus, pode igualmente ser bem definida em termos de deificação. Basílio descreveu o homem como uma criatura que recebeu a ordem de tornar-se um deus; Atanásio, como sabemos, disse que Deus virou homem para que o homem pudesse virar deus. "Em meu reino, disse Cristo, serei Deus com vocês como deuses" (Cânon para as matinas da Quinta-Feira Santa, Ode 4, Tropario 3). Este, de acordo com os ensinamentos da Igreja Ortodoxa, é o objetivo final que cada cristão ortodoxo deve atingir: tornar-se Deus, alcançar a theosis, "deificação" ou "divinização," pois para a ortodoxia, a salvação e redenção do homem significam sua deificação.
Sob a doutrina de deificação existe a idéia do homem feito de acordo com a imagem e semelhança de Deus, a Divina Trindade. "Para que eles sejam todos um," rezou Cristo na Última Santa Ceia; "Como tu, Pai, o és em mim, e eu em ti, para que também eles sejam em nós" (João 17:21). Assim como as três pessoas da Trindade "vivem" umas nas outras em um movimento contínuo de amor, o homem feito a imagem da Trindade é chamado para viver no Deus Trinitário. Cristo reza para que nós possamos fazer parte da vida da Trindade, do movimento de amor que circula entre as três pessoas divinas; Ele reza para que possamos ser levados para a Divindade. Os santos, como coloca Máximo, o Confessor, são aqueles que expressam a Santíssima Trindade em si mesmos. Esta idéia de uma união pessoal e organizada entre Deus e o homem — Deus vivendo no homem e o homem Nele — é um tema constante no evangelho de São João e também nas Epístolas de São Paulo que vê a vida Cristã, acima de tudo, como uma vida "em Cristo." A mesma idéia é vista no famoso texto: "Para que por elas (as promessas de Cristo) sejais feitos participantes da natureza divina" (2 Pedro 1:4). É importante ter em mente este ensinamento do Novo Testamento. A doutrina ortodoxa de deificação, distante de não ter escritura (como às vezes se pensa), tem base bíblica muito sólida, não apenas em 2 Pedro, mas em Paulo e no Quarto Evangelho.
A idéia de deificação deve sempre ser entendida a luz da distinção entre a essência de Deus e Suas energias. A união com Deus significa união com as energias divinas, não com a essência divina: quando fala de deificação e união, a Igreja ortodoxa rejeita qualquer forma de panteísmo.
Há outro ponto de igual importância que está muito ligado a este. A união mística entre Deus e o Homem é verdadeira, apesar de Criador e criatura não estarem aqui fundidos um ao outro como um ser único. Ao contrário da religião ocidental que ensina que o homem é sugado pela divindade, a teologia mística ortodoxa sempre insistiu que o homem apesar de muito ligado a Deus, mantém a sua integridade individual. O homem, quando deificado, permanece distinto (e não separado) de Deus. O mistério da "Trindade é um mistério de unidade em diversidade, e aqueles que expressam a Trindade em si não sacrificam suas características individuais. Quando São Maximus escreveu que "Deus e aqueles merecedores de Deus têm a mesma e única energia" (Ambigua, P.G. 91, 1076C), ele não quis dizer que os santos perdem o livre arbítrio, mas que quando deificados eles, voluntariamente e com amor, combinam suas vontades com a Vontade de Deus. Nem o homem, quando "se torna Deus," deixa de ser humano: "Nós permanecemos criaturas enquanto nos tornamos, por graça, deuses, assim como Cristo permaneceu Deus quando tornou-se homem na Encarnação (V. Lossky, The Mystical Theology of the Eastern Church p. 87). O homem não torna-se Deus por natureza, mas é meramente um "deus criado," um deus por graça ou status.
A deificação é algo que envolve o corpo. Já que o homem é uma unidade de corpo e alma, e já que o Cristo Encarnado salvou e resgatou o homem como um todo, conclui-se que "o corpo humano é deificado ao mesmo tempo que sua alma" (Maximo, Gnostic Centuries, 2, 88, P.G. 90, 1168A). Na divina semelhança a que o homem é convidado a realizar em si mesmo, o corpo tem importância. "Vossos membros são o templo do Espírito Santo," escreveu São Paulo (1 Cor. 6:19). "Assim, que pela misericórdia de Deus vos rogo, irmãos, que ofereçais os vossos corpos como um sacrifício vivo a Deus" (Romanos 12:1). Deve-se esperar a completa deificação do corpo, no entanto, até o Último Dia, pois nesta vida a glória dos santos é, como regra, um esplendor interno, um esplendor apenas da alma; mas quando os justos voltarem dos mortos vestidos no corpo espiritual, então a santidade será manifestada externamente. "No dia da Ressurreição a glória do Espírito Santo virá de dentro para fora, cobrindo e forrando os corpos dos santos — a glória que tinham antes escondida em suas almas. O que agora tem o homem, mais tarde surge em seu corpo" (Homilias da Macário, 5, 9. É esta transfiguração do "corpo Ressuscitado" que o iconógrafo tenta reproduzir. Assim, enquanto preserva distintos traços das características fisionômicas dos santos, ele evita, de forma deliberada, pintar um retrato realista e "fotográfico." Pintar o homem como ele é agora, é pintá-lo em seu estado ainda decaído, com o corpo "terrestre" e não "celestial"). Os corpos dos santos serão transfigurados externamente pela Luz divina, assim como o de Cristo foi transfigurado no Monte Tabor. "Também devemos aguardar a aurora do corpo" (Minucius Felix, Final do século segundo, Octavius, 34).
Mas mesmo nesta vida, alguns santos provaram os primeiros frutos da glorificação visível e material. São Serafim é o mais conhecido, mas não é o único exemplo. Quando Arsênio, o Grande estava orando, seus discípulos o viram "como um fogo" (Apophthegmata, P.G. 65, Arsenius 27); e é registrado de outro Padre do Deserto: "Como Moisés recebeu a imagem da glória de Adão, quando seu rosto foi glorificado, então a face de Abba Pambo mostrou-se como um raio e ele tornou-se rei sentado em seu trono" (Apophthemagta, P.G. 65), Pambo, 12. Compare Apophthemagta, Sisoes 14 e Silouanus 12. Epifânio em seu Life of Sergius of Radonezh, relata que o corpo do santo mostrou-se em glória depois da morte. Algumas vezes é dito, e com certa verdade, que a transfiguração corporal pela luz divina corresponde, dentre os santos ortodoxos, ao recebimento dos estigmas de Cristo para os santos ocidentais. Porém, não se deve delinear um contraste absoluto neste caso. Episódios de glorificação material também são encontrados no oeste, como por exemplo o caso da inglesa, Evelyn Underhill (1875- 1941): um amigo relata como em uma ocasião seu rosto estava transfigurado em luz
(toda a narrativa faz lembrar São Serafim: ver The Letters of Evelyn Underhill, editada Charles Williams, Londres 1943, p. 37). A estigmatização também não é desconhecida no leste: na vida copta de São Macário do Egito, sabe-se que um querubim apareceu para ele, "mediu seu peito" e "crucificou-o na terra"). Nas palavras de Gregório Palamas: "nas próximas eras o corpo compartilhará com a alma as bênçãos indescritíveis, é certo que devem compartilhar, na medida do possível, agora também" (The Tome of The Holy Mountain, P.G. 150, 1233C).
Porque os ortodoxos estão convencidos de que o corpo é santificado junto com a alma, eles têm tremendo respeito às relíquias dos santos. Como os católicos romanos, ortodoxos acreditam que a graça de Deus presente no corpo dos santos durante a vida permanece ativa em suas relíquias depois da morte, e que Deus usa estas relíquias como um canal de poder divino e instrumento de cura. Em alguns casos os corpos dos santos foram milagrosamente preservados da corrupção, mas mesmo onde isto não aconteceu, os ortodoxos mostram a mesma adoração aos ossos. Esta reverência às relíquias não é fruto de ignorância e superstição, mas brotos de uma teologia do corpo altamente desenvolvida.
Não apenas o corpo humano, mas toda a criação material será, ao final, transfigurada: "E vi um céu novo e uma terra nova. Porque o primeiro céu e a primeira terra se foram" (Apocalipse 21:1). O homem resgatado não deve ser separado de toda criação, esta é que deve ser salva junto com ele (ícones, como já vimos, são os primeiros frutos da redenção da matéria). "A própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus... pois ela será liberta da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus. Sabemos que até hoje ela vem sofrendo as dores do parto" (Romanos 8:19-22). Esta idéia de redenção cósmica é baseada, assim como as doutrinas ortodoxas sobre o corpo humano e sobre os ícones, em uma correta compreensão da Encarnação: Cristo tomou a carne — que é de ordem material — e tornou possível a redenção e metamorfose de toda criação — tanto a imaterial quanto a física.
A discussão sobre deificação e união, transfiguração do corpo e redenção cósmica pode parecer muito vaga na experiência de um cristão comum; mas quem chegar a esta conclusão, entendeu completamente errado a concepção da Theosis. Para prevenir essa má interpretação, seis idéias devem ser traçadas.
Primeiro, a deificação não é algo para alguns selecionados, mas para todos sem diferenciação. A Igreja Ortodoxa acredita que ela (a deificação) é o propósito comum de todo Cristão, sem exceção. Nós, é claro, apenas seremos deificados por completo no dia do Juízo Final; mas para cada um de nós, o processo de divinização deve começar aqui e agora, nesta vida. É verdade que aqui poucos atingem total união mística com Deus, mas cada verdadeiro cristão tenta amar a Deus e realizar todos os Seus mandamentos e quando o faz com sinceridade, não importa se fracas as tentativas ou freqüentes as tentações, ele já estará de alguma forma deificado.
Segundo, o fato de o homem ser deificado não significa que ele deixa de ter a consciência dos pecados. Ao contrário, a deificação pressupõe um ato contínuo de contrição. Um santo, por mais avançado que esteja em seu caminho para a santidade, nunca deixa de usar as palavras da Oração do Coração, "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, tem piedade de mim pecador." O Padre Silouan do Monte Atos costumava dizer para si mesmo "Lembre-se do Inferno e não se desespere"; outros santos ortodoxos repetiam as palavras "Todos serão salvos e eu o único condenado." Escritores ocidentais dão grande importância ao "dom das lágrimas." A teologia ortodoxa é de glória e transfiguração e também de penitência.
Em terceiro lugar, não há nada de esotérico e extraordinário sobre os métodos a serem seguidos para a divinização. Se alguém pergunta "como posso tornar-me Deus?" a resposta será muito simples: vá a igreja, receba os sacramentos regularmente, reze a Deus "em espírito e em verdade," leia os Evangelhos e siga os mandamentos. O último item — siga os mandamentos — nunca deve ser esquecido. A ortodoxia, tanto quanto o cristianismo ocidental, rejeita o misticismo que busca dispensar as regras morais.
Quarto, a divinização é um processo "social" e não solitário. Nós já vimos que a deificação significa "seguir os mandamentos" que foram descritos por Cristo, de forma resumida, como amor a Deus e amor ao próximo, sendo essas maneiras de amor inseparáveis. Um homem pode amar ao próximo como a si mesmo apenas se amar a Deus sobre todas as coisas; e um homem não pode amar a Deus se não ama seu irmão (1 João 4:20). Assim, não existe egoísmo na deificação, pois somente amando seu irmão é que o homem pode ser santificado. "Do irmão surge a vida, e dele também surge a morte," disse Antônio do Egito. "Se ganhamos um irmão, ganhamos a Deus, mas se nele pisamos, pecamos contra Cristo" (Apophgmata, P.G. 65, Antônio 9). O homem, feito à imagem da Trindade, só pode atingir a divina semelhança se viver uma vida tal qual a da Santa Trindade: assim como as três pessoas da trindade "vivem" umas nas outras, o homem deve "viver" em seus irmãos, não apenas para si, mas para todos. "Se fosse possível encontrar um leproso," disse um dos Padres do Deserto, "trocaria meu corpo pelo dele com alegria, pois este é o perfeito amor" (ibid, Agatho 26). Esta é a verdadeira natureza da theosis.
Em quinto lugar, o amor a Deus e aos homens deve ser praticado. A ortodoxia não aceita qualquer tipo de quietismo ou de amor que não resulte em ação. A deificação, além de Ter as maravilhas da experiência mística, tem um aspecto muito prosaico e terreno. Quando nela pensamos, devemos nos lembrar dos Hesicastas rezando em silêncio e do rosto transfigurado de São Serafim; devemos também lembrar de São Basílio cuidando dos doentes no hospital da Cesaréia, de São João, o doador de esmolas, de São Sérgio em suas roupas sujas, trabalhando como camponês na horta para fornecer comida aos convivas do mosteiro. Estas são uma única forma de amor.
Por último, a deificação pressupõe a vida na Igreja, em sacramento. De acordo com a semelhança da Trindade, a theosis envolve a vida em comum, mas apenas dentro da comunidade da Igreja que essa vida de intimidade (inerência) pode ser corretamente realizada. A Igreja e os sacramentos são meios, indicados por Deus, pelos quais o homem pode adquirir o Espírito Santificado e ser transformado na divina semelhança.
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