João Damasceno - A Fé Ortodoxa - Livro II
15 (II, 1)
O século
Foi ele quem criou os séculos[1],
ele que existe antes de todos os séculos e a quem o divino Davi se dirige: “Tu
existias antes dos séculos[2]”.
E de quem o Apóstolo divino falou: “Por quem ele criou os séculos[3]”.
É preciso ter em mente que o termo aion
possui muitos sentidos, pois ele designa muitas coisas. Chamamos aion à vida de cada homem. Chamamos de aion uma duração de mil anos. Chamamos
ainda de aion a toda a vida presente,
bem como a vida futura, aquela depois da ressurreição, a que não tem fim.
Também falamos de aion a respeito,
não do tempo ou de uma porção do tempo medida pela revolução e pelo curso do
sol, vale dizer, pela sucessão dos dias e das noites, mas a respeito daquilo
que se estende por eternidades, sejam movimentos ou intervalos temporais. Pois
aquilo que o tempo representa para o que está sob a dependência do tempo, o aion representa para o que é eterno.
Falamos, por conseguinte, de sete eras (aions) do mundo desde a criação do céu e da terra até a realização
e a ressurreição geral do gênero humano. Uma realização parcial corresponde à morte
de cada pessoa, mas existirá ima realização geral e universal, quando se
produzir a ressurreição geral dos homens. A oitava era virá a seguir.
Antes da fundação do mundo, quando o sol ainda não estava aí pata
distinguir o dia da noite, não havia um aion
mensurável, mas uma espécie de movimento e de intervalo temporais,
estendendo-se sobre as eternidades. Desse ponto de vista, que é também o que se
usa para dizer que Deus é eterno (aionios),
ou seja, pré-eterno, não existe senão um único aion. Efetivamente, o próprio Deus fez o aion: sendo só e sem começo, Deus é o autor do universo, dos
séculos e de todos os seres. Quando digo Deus, estou evidentemente falando do
Pai, de seu Filho monogênio, nosso Senhor Jesus Cristo, e de seu Espírito
santíssimo, nosso Deus único.
Falamos de “séculos dos séculos” no sentido em que as sete eras do
mundo presente compreendem idades, também chamadas de vidas de homens num
número imenso, sendo que o aion único
compreende todas as idades (aions).
Também chamamos de “século do século” aquele em que estamos agora, mais o que
virá a seguir. As expressões de “vida eterna” e “castigo eterno” indicam o
caráter sem fim do século futuro. Pois após a ressurreição o tempo não mais
será contado em dias e noites; haverá um dia único sem entardecer[4],
sob o brilho ofuscante do sol de justiça para os justos, mas também uma
profunda e interminável noite para os pecadores. Sendo assim, como contar o
tempo de mil anos da apocatástase[5]
de Orígenes? Deus é o autor único de todos os séculos, ele que também criou o
conjunto do universo, e que existe desde antes de todos os séculos.
16 (II, 2)
A criação
Ora, sendo Deus bom e além de toda bondade, ele não se contentou em
contemplar a si mesmo; pela superabundância de sua bondade, ele desejou que
fossem produzidos seres que se beneficiassem de sua liberalidade e que
participassem de sua bondade; ele trouxe do não-ser à existência todo o
conjunto do universo, visível e invisível, assim como o homem, composto do
visível e do invisível. Ele a tudo criou concebendo intelectualmente: sua
concepção veio à luz como uma obra realizada pelo Verbo e levada à sua
perfeição pelo Espírito.
17 (II, 3)
Os anjos
Ele é o autor e o criador dos anjos, que ele trouxe do não-ser à
existência, a quem ele criou à sua imagem com uma natureza incorpórea, como um
sopro ou um fogo imateriais, segundo as palavras do divino Davi: “Aquele fez
dos ventos seus anjos e das chamas do fogo seus servidores[6]”.
Isso bem representa a agilidade, o ardor, o calor, a extrema penetração, a
vivacidade no desejo e no serviço a Deus, sua aspiração para o alto e sua independência de todo pensamento material.
Um anjo, por conseguinte, é uma essência intelectiva, em perpétuo
movimento, livre, incorpórea, a serviço de Deus, que recebeu pela graça em sua
natureza a imortalidade; e somente o criador conhece o gênero e a definição de
sua essência. Mas quando dizemos que o anjo é incorpóreo e imaterial, é apenas
em relação a nós; pois todo objeto comparado com Deus, o único incomparável, se
mostra grosseiro e material, pois somente a divindade é realmente incorpórea e
imaterial.
Assim é que o anjo é uma natureza racional, intelectiva e dotada de
livre arbítrio, suscetível de mudar por sua própria iniciativa, ou seja, que se
move à vontade. Com efeito, toda criatura é também suscetível de mudança;
somente o incriado é imutável, enquanto todo ser racional é dotado de livre
arbítrio. Na medida em que é racional e intelectivo, a criatura é dotada de
livre arbítrio; na medida em que é criada, ela está destinada à mudança, com o
poder de se manter e de progredir para o bem ou de se voltar para o mal.
Incorpóreo, o anjo é inacessível ao arrependimento. Pois o homem,
devido à fraqueza de seu corpo, pode sentir o arrependimento. O anjo é imortal,
não por natureza, mas por graça: tudo o que teve começo terá, por natureza, um
fim. Somente Deus é eterno, ou antes, ele está além da eternidade: autor do
tempo, ele está longe de ficar sob a dependência do tempo, e permanece além do
tempo.
Os anjos são as luzes intelectivas do segundo escalão que recebem a
iluminação da luz primigênia e sem começo. Eles não recorrem à voz, nem ao
ouvido: sem proferir palavra, eles comunicam mutuamente seus pensamentos e
desígnios particulares.
Portanto, pelo Verbo foram criados todos os anjos, e foi pela ação do
Espírito Santo que eles foram levados à perfeição da santidade, participando da
iluminação e da graça na proporção de sua dignidade e de seu posto.
Os anjos são circunscritos: quando eles estão no céu eles não estão
sobre a terra e, se Deus os envia à terra, eles cessam de estar no céu. Eles
não sofrem a limitação de muralhas, portas, cercas, selos, etc., pois eles não
possuem limitação espacial. Digo “sem limitação espacial”, pois eles não se
manifestam tal como são àqueles a quem Deus considera merecedores de sua
aparição; eles se transformam segundo a capacidade de visão daqueles que os
veem. “Pois, sem limitação espacial por natureza e no sentido próprio, somente
o incriado; todas as criaturas recebem seus limites do Deus que as criou”.
Como eles recebem sua santificação do exterior de sua essência, do
Espírito santo, é pela graça divina que eles profetizam; e eles não precisam se
casar, pois não são mortais.
Como eles são espirituais, eles vivem em lugares igualmente espirituais,
sem estar corporalmente circunscritos (pois sua natureza não comporta figura
corporal e eles não possuem extensão num espaço de três dimensões), pelo fato
de estarem espiritualmente presentes e agindo aonde quer que tenham sido
ordenados fazê-lo; e eles não podem agir aqui e ali no mesmo instante.
Se eles são por essência iguais ou diferentes uns dos outros, isso nós
ignoramos. Somente Deus, seu criador, o sabe, ele que conhece tudo. Porém eles
diferem uns dos outros por sua iluminação e seu status, seja esse status
proporcional à iluminação, seja por participarem da iluminação em função de seu
status e por iluminarem uns aos outros por causa da superioridade de seu posto
ou de sua natureza. Pois é evidente que são os superiores que transmitem aos
inferiores a iluminação e a ciência.
Firmes e prontos a cumprir a vontade divina, nós os encontramos em
toda parte onde o ordene um sinal divino, graças à sua prontidão natural, para
proteger uma parte da terra, governar as nações e seus territórios segundo as
prescrições do criador, administrar nossos negócios e vir em nosso socorro. De
qualquer maneira, como eles estão acima de nós em virtude da vontade e da ordem
divina, eles vivem constantemente na corte de Deus.
É muito difícil levá-los ao mal, mas eles podem ceder nesse ponto; na
realidade, eles não cedem jamais; não por natureza, porém, mas pela graça, e
porque eles se mantêm próximos somente do bem. Eles estão acima de nós porque
são incorpóreos e livres de toda paixão corporal, mas eles não são impassíveis;
somente a divindade é impassível. Eles se transformam em função das ordens de
Deus, seu mestre, e assim eles aparecem aos homens e lhes revelam os mistérios
divinos. Eles vivem no céu e sua única atividade é o louvor a Deus e o serviço
neste lugar da vontade divina.
Como diz a respeito das coisas divinas o santíssimo, venerável e sábio
Denis o Areopagita, “a Teologia inteira, vale dizer a santa Escritura, forneceu
nove nomes para as essências celestes que nosso divino iniciador das coisas sagradas
dividiu em três ordens tríplices. A primeira, diz ele, está constantemente ao
redor de Deus e se une a ele de modo permanente e imediato; trata-se, segundo a
tradição, dos Serafins de seis asas, dos Querubins de inumeráveis olhos e dos
tronos santíssimos. A segunda é a das dominações, das virtudes e das potências.
A terceira e última é a dos principados, dos arcanjos e dos anjos”.
Alguns dizem que eles vieram à existência antes de toda a criação; é o
que diz Gregório o Teólogo: “Em primeiro lugar ele concebeu as potências
angélicas e celestes, e este pensamento foi uma obra”. Outros dizem que foi
depois da criação do primeiro céu. Que tenha sido antes da criação do homem,
todos o reconhecem. Para mim, eu me coloco com a opinião de Gregório o Teólogo:
com efeito, convinha que em primeiro lugar fosse criada a essência intelectiva,
depois a do sensível e enfim, nascido das anteriores, o homem.
Todos os que afirmam que os anjos são os criadores de uma essência
qualquer são filhos da boca do diabo. Sendo criaturas, os anjos não podem ser
criadores. O autor de todas as coisas, que provê e mantém a tudo, é Deus, o
único incriado, aquele que é louvado e glorificado no Pai, no Filho e no
Espírito Santo.
18 (II, 4)
O diabo e os demônios
Dentre as potências angélicas, o chefe da coluna encarregada por Deus
da proteção da ordem circunterrestre e terrestre não era mau por natureza. Ao
contrário, bom, feito para o bem, desprovido, graças ao criador, de todo traço
de malícia, por não haver suportado a iluminação e a dignidade que o criador
lhe concedera, desviou-se, por uma escolha deliberada, daquilo que era conforme
à sua natureza, voltando-se para o seu contrário. Ele se dirigiu contra Deus,
seu criador, decidido a lhe resistir; pois ele foi o primeiro a se desviar do
bem e a se engajar no mal. O mal não é outra coisa do que a privação do bem,
assim como a escuridão é a privação da luz. Com efeito, se o bem é a luz do
intelecto, o mal é a treva do intelecto. Tendo sido criado bom por seu criador
e bom desde que chegou à existência – efetivamente, Deus “viu tudo o que havia
feito e viu que era muito bom[7]”
– por uma livre escolha de sua vontade, ele se tornou treva. Com ele, em sua
companhia, foi arrastada na queda uma multidão infinita de anjos que haviam
sido colocados sob sua autoridade. Certamente, estes eram da mesma natureza dos
demais anjos, mas se tornaram maus depois de desviarem voluntariamente sua
livre escolha do bem para o mal.
Entretanto, eles não têm nem poder nem força contra ninguém, senão em
virtude de um consentimento providencial de Deus, como, por exemplo, no caso de
Jó[8],
ou segundo o que está escrito no Evangelho a respeito dos porcos[9].
Com a autorização de Deus, porém, eles têm força, eles mudam de aspecto e se
transformam, no plano do imaginário, na figura que quiserem.
Nem os anjos nem os demônios conhecem o porvir. Porém, os anjos
predizem, por revelação de Deus e sob sua ordem, e eis porque eles anunciam o
que irá acontecer. Também os demônios fazem previsões, seja porque conseguem
visualizar o que acontecerá dentro de algum tempo, seja porque o conjuram, e é
por isso que, na maior parte das vezes, eles se enganam. Não se deve confiar
neles, mesmo se eles disserem a verdade seguidas vezes, como dissemos. E eles
também conhecem as Escrituras.
É através deles que todas as maldades são concebidas, bem como as
paixões impuras. E, se por um lado, eles têm a possibilidade de fazer sugestões
ao homem, por outro eles não são capazes de obrigar ninguém. Porque está em
nosso poder aceitar ou não suas sugestões. É por isso que para o diabo e seus
demônios, e também para aqueles que os seguem, foi preparado o fogo
inextinguível, esse castigo eterno[10].
Finalmente, devemos saber que aquilo que a morte representa para os
homens, a queda representou para os demônios. Depois da queda o arrependimento
já não é possível para eles, assim como não o é para os homens após a morte.
19 (II, 5)
A criação visível
Foi nosso Deus, a quem sejam dadas glórias na trindade e na unidade,
que fez o céu e a terra e tudo o que neles se encerra, levando do não –ser à
existência o conjunto de todas as coisas. Algumas, como o céu, a terra, o ar, o
fogo, a água, não provêm de uma matéria pré-existente; outras, como os animais,
as plantas, as sementes, provêm daquelas coisas que foram criadas por ele.
Essas coisas extraem sua origem da terra, da água, do fogo e do ar sob a ação
ordenadora do criador.
20 (II, 6)
O céu
O céu é a envoltória das criaturas visíveis e invisíveis. Com efeito,
no seu interior estão encerradas as potências intelectivas dos anjos e todas as
realidades sensíveis; ele as circunscreve. Somente a divindade é impossível de
delimitar, ela que preenche tudo, envolve tudo, limita tudo, porque está além
de tudo e a tudo criou.
Assim é que a Escritura fala do céu, do “céu do céu[11]”
e dos “céus dos céus[12]”,
e o bem-aventurado Paulo declara ter sido “arrebatado até o terceiro céu[13]”.
Por conseguinte, afirmamos ter recebido por tradição que o céu foi criado no
decurso da cosmogênese do universo, este céu que os sábios exteriores,
apropriando-se da doutrina de Moisés, chamam de esfera sem astros. Por outro
lado, Deus chamou de céu[14]
também o firmamento cuja existência ele prescreveu em meio às águas, tendo o
papel de fazer a separação entre as águas de cima do firmamento e as águas
debaixo do firmamento. Segundo o divino Basílio, que recebeu sua iniciação da
Santa Escritura, a natureza desse firmamento é sutil como a de uma fumaça. Para
outros, ela é aquosa, por ter sido produzida em meio às águas; segundo outros,
ela foi extraída dos quatro elementos; para outros ainda, trata-se de um quinto
corpo diferente dos quatro elementos.
Alguns pensaram que o céu envolveria circularmente o universo, que ele
teria uma forma esférica e que em todas as direções ele constituiria a parte mais
elevada; que, por outro lado, a parte mediana do lugar que ele envolve seria
uma parte inferior e que os corpos leves e pouco consistentes teriam recebido
do criador um lugar elevado, enquanto que os corpos pesados e grosseiros se
voltariam para baixo, ocupando a região inferior, ou seja, a do meio. Assim, o
elemento mais leve e ascendente, o fogo, seria aquele que, segundo eles,
estaria colocado imediatamente depois do céu, que eles chamam também de “éter”;
depois dele, um grau abaixo, estaria o ar. A terra e a água, por serem pesados
e voltados para baixo, estariam suspensas na parte mais central. Dessa forma,
haveria uma oposição: em baixo, a terra e a água – mas a água, por ser mais
leve do que a terra, é também mais móvel do que ela – e no alto, em todas as
direções e formando como que uma envoltória circular, o ar, e, ao redor do ar,
em todos os sentidos, o éter; finalmente, ao redor de tudo, exteriormente e
circularmente, o céu.
O movimento do céu, afirmam eles, é circular; e ele mantém apertado tudo
o que ele contém, de modo a que tudo permaneça fixo e ao abrigo de quedas.
O céu, dizem eles, possui sete zonas superpostas. Ele é, segundo eles,
de uma natureza extremamente sutil, comparável à do vapor, e a cada zona
corresponde um planeta. Existem sete destes: sol, lua, Zeus, Hermes, Ares,
Afrodite e Cronos. Eles denominam como Afrodite aquele que é tanto a estrela da
manhã como a estrela da tarde. E eles os chamam de planetas porque eles
realização seu movimento num sentido contrário ao do céu: o céu e os outros
astros se movem do oriente para o ocidente, e aqueles se movem do ocidente para
o oriente. Esse fenômeno pode ser reconhecido pela lua, que retrocede um pouco
a cada entardecer.
Os que atribuíram ao céu uma forma esférica são os mesmos que afirmam
que ele está a uma mesma distância da terra para cima, para os lados e para
baixo. Para baixo e para os lados, com certeza, conforme nossa percepção,
porque do ponto de vista da lógica o céu ocupa de todos os lados a parte alta e
a terra a parte baixa. Eles dizem ainda que o céu envolve circularmente a terra
como uma esfera, e que, pela extrema rapidez de seu movimento, ele acompanha o
sol, a lua e os astros, e que, no momento em que o sol está por cima da terra é
dia aqui e noite sob a terra. E que, quando o sol está abaixo da terra, é dia
lá e noite aqui.
Outros, ao contrário, imaginaram um céu semiesférico, segundo as
palavras inspiradas de Davi: “Ele desdobrou o céu como um manto de couro[15]”,
o que designa uma tenda, e também as palavras do bem-aventurado Isaías: “Ele
dispôs o céu como uma abóboda[16]”.
Ademais, ao se por, o sol, a lua e os astros contornariam a terra desde o
ocidente pelo norte e assim chegariam outra vez ao oriente. No entanto, nas
duas hipóteses, tudo se produziu e se estabeleceu pela ordem divina e pela
vontade e o desígnio divinos, que a tudo deram um fundamento inquebrantável.
“Pois ele falou e eles surgiram; ele comandou e tudo foi criado. Ele
estabeleceu a tudo pelos séculos e pelos séculos dos séculos, e estabeleceu uma
lei que não será transgredida[17]”.
O primeiro céu é, portanto, o céu do céu, situado acima do firmamento.
Já temos dois céus. “E Deus chamou ‘céu’ ao firmamento[18]”.
Por outro lado, a santa Escritura também costuma chamar de “céu” os ares,
porque o vemos acima de nós. “Bendiga, diz ela, os pássaros do céu[19]”,
e entendo com isso os ares. Pois são os ares, não o céu, o domínio dos
pássaros. Eis, assim, os três céus de que fala o divino Apóstolo. Se quisermos
agora tomar as sete zonas no sentido de sete céus, a palavra da verdade[20]
não seria afetada. Também é comum, em hebraico, designar o céu no plural, como
“céus[21]”.
Para dizer “céu do céu”, diz-se “céus dos céus[22]”,
o que mostra que o céu do céu designa o que está acima do firmamento e as águas
acima dos céus, ou dos ares e do firmamento, ou as sete zonas do firmamento, ou
o firmamento, designado segundo o costume hebraico pelo nome de “céus”.
Assim, de um lado, tudo o que tem uma origem está submetido à
corrupção, na linha direta de sua natureza; e também os céus são mantidos e
conservados por uma favor divino. Somente a divindade é sem começo nem fim por
natureza. Por isso foi dito: “Eles passarão, mas tu permanecerás (embora os
céus não sejam extintos por completo); eles envelhecerão e, como velhas
vestimentas serão amassados e transformados[23]”,
e “haverá novos céus e uma nova terra[24]”.
De resto, as dimensões do céu são bem maiores do que as da terra.
Quanto à essência do céu, não devemos inquiri-la, pois ela não nos pode ser
conhecida.
Enfim, ninguém deve supor que os céus ou os luminares sejam animados:
eles são desprovidos de alma e de sensibilidade. Assim, mesmo que a Escritura
afirme: “Que os céus se rejubilem e que a terra exulte[25]”,
o que ela faz é chamar os anjos do céu e os homens da terra a que se regozijem.
A Escritura trabalha com personificações e fala dos seres sem alma como se eles
fossem animados. Assim: “O mar fugiu, o Jordão bateu em retirada[26]”;
e: “Porque fugiste, ó mar?[27]”.
Montanhas e colinas são interrogadas sobre as razões de seus tremores, do mesmo
modo como dizemos: “A cidade se reuniu”, sem pretender designar os edifícios,
mas os habitantes da cidade. E ainda “Os céus contam a glória de Deus[28]”,
não que eles digam por palavras que possam ser ouvidas por nossos ouvidos
sensíveis, mas porque nos apresentam por sua própria imensidão o poder do
criador, e pela contemplação de sua beleza nos façam dar glórias ao autor, como
a um perfeito artesão.
21 (II, 7)
A luz, o fogo, os luminares, o sol, a lua e as estrelas
O fogo é um dos quatro elementos, ele é leve e sobe mais alto do que
os outros, é capaz de queimar e de iluminar. Ele foi criado pelo demiurgo no
primeiro dia; com efeito, a santa Escritura diz: “Disse Deus: ‘Faça-se a luz’.
E a luz foi feita[29]”.
Pois o fogo, como dizem alguns, não é outra coisa senão a luz. Outros afirmam
que acima dos ares se encontra o fogo cósmico, que eles chamam de “éter”. No
princípio[30],
portanto, ou, dito de outra forma, desde o primeiro dia, Deus fez a luz, veste
e ornamento de toda a criação; pois se suprimirmos a luz tudo se torna
irreconhecível na escuridão, sem poder manifestar sua bela aparência. “Deus
chamou à luz ‘dia’ e chamou de ‘noite’ a escuridão[31]”.
A escuridão não é uma substância, mas um acidente: ela é a privação da luz. Com
efeito, o espaço, em sua substância própria, não possui luz. Portanto, Deus
chamou de escuridão o próprio fato de que o espaço não possui luz. E não é a
substância do espaço que é a escuridão, mas a privação de luz, o que denota um
acidente, mais do que uma substância. Não foi a noite que foi primeiro nomeada,
mas o dia, de tal modo que o dia é o primeiro e a noite vem por último. A noite
se segue ao dia, e do começo do dia até o dia seguinte temos uma jornada. Com
efeito, a Escritura diz: “Houve um entardecer e uma manhã, um só dia[32]”.
Portanto, durante esses três dias, houve dia e houve noite, porque a
luz se espalhava e se retirava sob a ordem de Deus[33].
Mas no quarto dia, Deus fez o grande luminar, o sol, com poder e autoridade
sobre o dia (de fato, é por causa dele que o dia existe: pois um dia consiste
em que o sol esteja acima da terra e o espaço de um dia é aquele do decurso do
sol sobre a terra desde o levante até o poente), e fez os pequenos luminares,
ou seja, a luz e as estrelas, com poder e autoridade sobre a noite para
iluminá-la. A noite consiste em que o sol esteja debaixo da terra e o espaço de
uma noite é o decurso do sol sob a terra do poente até o levante. A lua e as
estrelas, por conseguinte, receberam a ordem de iluminar a noite; não que elas
estejam sempre por sob a terra durante o dia (pois mesmo durante o dia existem
estrelas no céu sobre a terra), mas o sol as dissimula, assim como a lua, não
deixando que elas sejam percebidas por causa de seu brilho excessivo.
Nesses luminares o criador depositou a luz primordial, não porque
faltasse a outra luz, mas para que esta luz não permanecesse inativa. Pois um
luminar não é a luz em si, mas um receptáculo da luz.
Dentre esses luminares, existem sete aos quais chamamos de planetas.
Eles se movem, conforme se diz, com um movimento oposto ao do céu, e daí vem
seu nome de planetas. Pois o céu se move do levante para o poente, e os
planetas do poente para o levante. Por ser mais rápido, o céu arrasta os sete
planetas em seu movimento: o sol, a lua, Júpiter, Mercúrio, Marte, Vênus, Saturno.
A cada zona do céu corresponde um dos sete: para a primeira, o mais elevado,
Saturno; para a segunda, Júpiter; para a terceira, Marte; para a quarta, o sol;
para a quinta, Vênus; para a sexta, Mercúrio; e para a sétima, que é também a
mais baixa, a lua.
Eles percorrem uma trajetória sem fim, que o criador lhes assinalou em
conformidade com o modo como os estabeleceu, como disse o divino Davi: “Lua e
astros que estabelecestes[34]”;
por este termo “estabelecestes” ele indica o caráter fixo e imutável da ordem e
do encadeamento que lhes foram dados por Deus. Pois a cada um ele dispôs seus
momentos, seus dias e seus anos.
Com efeito, é por intermédio do sol que são constituídas as quatro
estações. A primeira é a primavera: foi durante ela que Deus fez todo o
universo; o que o demonstra é que, até hoje, a eclosão das flores ocorre nessa
estação, que é também a do equinócio: tanto o dia como anoite contam doze horas
cada. Ela se produz a partir do nascer mediano do sol, ela é temperada, ela faz
crescer o sangue, ela é quente e úmida e constitui por si própria um termo
médio entre o inverno e o verão, mais quente e seca do que o inverno, mais fria
e úmida do que o verão. Ela se estende desde 21 de março até 24 de junho. A
seguir, na medida em que o nascer do sol sobe para as regiões mais boreais, vem
a estação do verão, meio termo entre a primavera e o outono, recebendo da
primavera o calor e do outono a secura: ela é quente e seca e faz crescer a
bile amarela. É no verão que está o dia mais longo, com quinze horas, e a noite
mais curta, com uma duração de nove horas. O verão se estende de 24 de junho a
25 de setembro. Depois o sol retorna para o meio levante e a estação do outono
sucede a do verão; ela forma de certo modo a média entre o frio e o calor, o
seco e o úmido, e constitui um meio termo entre o solstício de verão e o do
inverno, recebendo do verão a secura e do inverno o frio; sendo ao mesmo tempo
quente e fria, ela faz crescer a bile negra. É igualmente uma estação de
equinócio, com o dia e anoite de doze horas. Ela se estende desde 25 de
setembro até 25 de dezembro. Quando o sol desce para a parte mais baixa e mais
próxima do nível da terra, também chamada de a mais meridional do levante,
chega a estação do inverno, fria e úmida, o que a situa entre o outono e a
primavera: ela recebe o frio do outono e a umidade da primavera. Ela apresenta
o dia mais curto, de nove horas, e a noite mais longa, de quinze horas; ela faz
crescer a fleuma. Ela se estende de 25 de dezembro a 21 de março. Em sua
sabedoria, com efeito, o criador previu não nos fazer passar do frio, do calor,
da umidade ou da secura ao extremo oposto, a fim de que não caíssemos em graves
dificuldades de saúde. De fato, é notório para a razão que as mudanças súbitas
são perigosas.
Assim, portanto, o sol regula as estações e por meio delas todo o ano,
e também os dias e as noites, os primeiros erguendo-se e se mantendo acima da
terra, estas deitando-se sob a terra; enfim, ele assiste aos outros luminares,
à lua e às estrelas, emprestando a elas seu brilho.
Costuma-se dizer que doze figuras formadas por estrelas se encontram
no céu, que elas apresentam um movimento contrário ao do sol, da lua e dos
demais cinco planetas, e que os sete planetas passam pelos doze signos do
zodíaco. O sol percorre cada signo do zodíaco em um mês e em doze meses ele
atravessa os doze. Eis os nomes dos signos e os meses que a eles correspondem:
Áries (recebe o sol em 21 de março), Touro (em 23 de abril), Gêmeos (em 24 de
maio), Câncer (em 24 de junho), Leão (em 25 de julho), Virgem (em 25 de
agosto), Libra (em 25 de setembro), Escorpião (em 25 de outubro), Sagitário (em
25 de novembro), Capricórnio (em 25 de dezembro), Aquário (em 25 de janeiro) e
Peixes (em 25 de fevereiro).
A lua atravessa a cada mês os doze signos do zodíaco, porque ela é
mais baixa e os percorre mais velozmente; é como se fosse um círculo dentro do
qual se traça um outro círculo; o círculo inscrito será menor; da mesma forma,
a trajetória da lua, que é mais baixa, é menos longa e termina mais depressa.
Ora, os gregos afirmavam que tudo o que nos concerne é regulamentado
pelo nascente, o poente e o encontro desses astros, do sol e da lua: é disso
que se ocupa a astrologia. Quanto a nós, afirmamos que daí provêm os sinais de
chuva e de ausência de chuva, de resfriamento e de aquecimento, de umidade e de
secura, de ventos e de outras coisas semelhantes; mas não nossos atos. Pois
fomos dotados de livre arbítrio pelo criador e, sendo assim, somos mestres de
nossos atos. Com efeito, se fizermos tudo em função da revolução dos astros,
será por necessidade que o fazemos; ora, o que se faz por necessidade não é nem
virtude, nem vício. Se por outro lado não possuímos nem virtude nem vício, tampouco
merecemos elogios, nem recompensas, nem reprimendas, nem castigos; e Deus se
mostrará injusto, ele que prodiga bens a uns e adversidades a outros. Por outro
lado, Deus não exercerá nem governo, nem providência para com suas próprias
criaturas, se tudo for conduzido e levado pela necessidade. E a razão será
supérflua para nós: com efeito, se não somos mestres de nenhuma de nossas
ações, será supérfluo deliberar sobre elas. A razão nos foi dada essencialmente
tendo em vista a deliberação; daí se segue que todo ser racional é também
dotado de livre arbítrio.
Quanto a nós, afirmamos que essas conjecturas celestes não são a causa
de seja lá o que for que aconteça, nem da produção do que acontece, nem da
corrupção do que se corrompe. Antes, são os sinais da chuva e das mudanças
atmosféricas. Podemos sem dúvida dizer também que elas não são causas, mas
sinais da guerra, e que a qualidade da atmosfera produzida pelo sol, a lua e as
estrelas produz, seja de um modo, seja de outro, misturas, estados e
disposições diferentes. Mas as atitudes da alma provêm de nós: pois elas são governadas
pela razão e por ela levadas a se modificar.
Frequentemente também aparecem cometas, sinais anunciadores da morte
dos reis; não se trata de astros constituídos desde o princípio, mas que surgem
por ordem da divindade em função de qualquer circunstância, e que se desagregam
a seguir; é assim que não estava entre os astros surgidos no princípio a
estrela vista pelos magos na época do nascimento do Senhor por nós, segundo a
carne, num gesto de benevolência e de salvação. O que torna a coisa evidente é que
os cometas fazem seu percurso tanto do levante para o poente, quanto do norte
para o sul, e ora se escondem, ora aparecem, coisas que não pertencem à ordem
natural dos astros.
Devemos saber, por outro lado, que a lua recebe sua luz do sol, não
porque a Deus lhe faltasse uma luz específica para lhe dar, mas a fim de
introduzir na criação medida e ordem entre o ser que comanda e o que é
comandado, a fim de nos ensinar as comunicações e as trocas entre uns e outros,
bem como, em primeiro lugar, a subordinação para com Deus, autor, criador e
soberano mestre, a seguir para com os chefes estabelecidos por ele, sem
examinarmos qual a razão pela qual outro comanda e não eu, a fim de que a tudo
aceitemos de Deus com gratidão e reconhecimento.
O sol e a lua sofrem eclipses, que mostram a tolice daqueles que
adoram a criação ao invés do criador[35],
e que nos ensinam que eles são objetos que se movem e que e são sujeitos a
alterações. Ora, tudo o que é mutável não é Deus: pois tudo o que muda é
corruptível por natureza.
O sol é eclipsado quando a massa da lua se interpõe como uma espécie
de muro e produz sombra ao invés de deixar que ele derrame sua luz sobre nós. O
eclipse dura pelo tempo em que a massa da lua esconder o sol. Embora a massa da
luz seja muito pequena, não devemos nos espantar: com efeito, no dizer de
alguns, o sol é muito maior do que a terra, e, segundo os Padres, ele é igual à
terra. Ademais, muitas vezes uma pequena nuvem, uma colina ou um muro o
escondem.
Quanto ao eclipse da lua, ela é produzida pela sombra da terra, no
momento em que lua chega ao seu décimo quinto dia, e quando, em oposição
relativamente ao seu ponto culminante, o sol se encontra abaixo da terra e a
lua acima da terra. A terra então projeta uma sombra e a luz do sol não chega a
iluminar a lua, que, por conseguinte, se eclipsa.
Devemos saber que a lua foi criada cheia pelo demiurgo, ou seja, no
seu décimo quinto dia, pois ela devia ser produzida pronta e acabada. Ora, o
sol foi criado no quarto dia. A lua, assim, está defasada do sol em onze dias,
pois do quarto ao décimo quarto existem onze dias. É por isso que, em relação
ao tempo, os doze meses lunares deixam por onze dias de concordar com os doze
meses solares. Pois os meses solares contam 365 dias e um quarto. É por isso
que, adicionando este quarto a cada quatro anos, resulta um dia, ao qual
chamamos bissexto. Esse ano conta então 366 dias. Mas os anos lunares são de
354 dias. De fato, a luz, desde seu nascimento, também chamado de renovação,
cresce até chegar a quatorze dias e três quartos; então ela começa a decrescer
até o vigésimo nono dia e meio, quando se torna inteiramente escura. Depois ela
se liga outra vez ao sol, renasce e se renova, trazendo-nos uma lembrança de
nossa ressurreição. Assim, a cada ano ela deixa onze dias ao sol. assim, para
os hebreus, constitui-se a cada três períodos um mês intercalado, e então o ano
comporta treze meses pela adição consecutiva dos onze dias.
Evidentemente o sol, a lua e os astros são compostos e submetidos por
sua natureza à corrupção. Quanto a essa natureza, ignoramo-la. Alguns pretendem
que o fogo não surge sem alguma espécie de matéria, de sorte que, uma vez
extinto, ele desaparece. Outros pretendem que, uma vez extinto, ele se
transforma em ar.
O ciclo zodiacal se move obliquamente, dividido em doze sessões às
quais chamamos de signos do zodíaco; um signo do zodíaco possui três decanatos
e trinta partes; e cada parte comporta sessenta subdivisões. Assim sendo, o céu
possui 360 graus, sendo 180 no hemisfério acima da terra e 180 no hemisfério
abaixo da terra.
As casas dos planetas são as seguintes: Áries e Escorpião, casa de
Marte; Touro e Libra, casa de Vênus; Gêmeos e Virgem, casa de Mercúrio; Câncer,
casa da Lua; Leão, casa do Sol; Sagitário e Peixes, casa de Júpiter; Capricórnio
e Aquário, casa de Saturno.
São os ascendentes: Áries, ascendente do Sol; Touro, da lua; Câncer,
de Júpiter, Virgem, de Mercúrio. Libra, de Saturno; Capricórnio, de Marte;
Peixes, de Vênus.
As fases da lua são: conjunção, quando ela está na região onde se
encontra o sol; nascimento, quando ela aparece; nascente, quando ela está a
quinze graus do sol; os dois crescentes, quando ela está a uma distância de
sessenta graus; as duas meias-luas, quando está a uma distância de noventa
graus; os dois chifres, quando está a uma distância de cento e vinte graus;
semiplena ou semiluminosa, por duas vezes, quando está a uma distância de cento
e cinquenta graus; lua cheia, quando está a uma distância de cento e oitenta
graus. Quando falamos em duas vezes, significa uma crescente e uma minguante. A
lua ocupa cada signo do zodíaco por dois dias e meio.
22 (II, 8)
O ar e os ventos
O ar é um elemento muito sutil, úmido e quente, mais pesado do que o
fogo, mais leve do que a terra e as águas. Ele é a causa da respiração e da
voz, ele é incolor, ou seja, por sua natureza ele não possui cor, ele é
límpido, transparente (pois ele acolhe a luz); ele é um auxiliar para três de
nossos sentidos (pois graças a ele vemos, ouvimos e sentimos); ele acolhe o
aquecimento e o resfriamento, a secura e a umidade, é nele que se fazem todos
os movimentos locais, movimentos para o alto, para baixo, para o interior e o
exterior, para a direita, a esquerda e em círculo. Ele não possui a luz, mas é
iluminado pelo sol, a lua, os astros e o fogo. É o que diz a Escritura: “Havia
trevas sobre o abismo[36]”;
com isso ela significa que o ar não possui luz própria e que a essência da luz
é outra.
O vento é um movimento do ar. O lugar também provém do ar, pois o
lugar de cada corpo é aquilo que o rodeia. E o que envolve os corpos, senão o
ar? Existem lugares diferentes, e daí provém o movimento do ar, e é deles que
os ventos tiram seus nomes: no total de doze. Diz-se, de resto, que o ar é um
fogo extinto ou o vapor da água que se aquece. Em todo caso, o ar é quente por
sua própria natureza, mas ele se resfria ao contato com a água e a terra, de
tal maneira que ele é frio nas camadas baixas e quente nas altas.
22b
Os ventos
O vento é uma superabundância da exalação quente e seca em movimento
ao redor da terra. Os ventos que sopram
do levante no verão são os seguintes: o caekias e o meses; do levante no
equinócio: o apeliotes; do levante no inverno: o euro; do poente no inverno: o
lips; do poente no equinócio: o zéfiro; do poente no verão: o argestes ou
olímpias, aos quais chamamos também de japix ou ergastes. Depois vêm o noto e o
aparctias que sopram em sentido contrário um do outro. Entre o arpactias e o
caekias, sopra o bóreas; entre o euro e o noto, o fênix, também chamado de
euronotos; entre o notos e o lips, o libonotos, também chamado de leuconotos;
entre aparctias e argestes, o trácias, também chamado de cercias pelas pessoas
da região.
Existem assim doze ventos, que descrevemos aqui: vento leste estival,
vento leste de equinócio, vento leste invernal: caekias, apeliotes, euro, meses,
euronotos, bóreas, fênix, arctos; apractias, notos; mesembria; trácias,
libonotos, meses, leuconotos, cercias, lips; vento oeste estival: argestes;
vento oeste invernal: japix, olímpias; vento oeste estival: ergastes, zéfiro.
23 (II,9)
As águas
A água é igualmente um dos quatro elementos, uma obra prima de Deus. A
água é um elemento úmido e frio, denso, pesado e fluído. A santa Escritura a
menciona quando diz: “As trevas estavam sobre o abismo e o Espírito de Deus
planava sobre as águas[37]”;
o abismo, com efeito, não é outra coisa do que a água profunda, cujo fundo o
homem não pode sondar. No começo, portanto, a água recobria toda a terra. E
Deus criou primeiro o firmamento que separa ao meio a água situada acima da que
está situada abaixo[38]:
ele foi estabelecido por ordem do Senhor nomeio do abismo das águas. Eis porque
Deus disse: “Que haja um firmamento[39]”,
e eis que houve o firmamento. Porque colocou Deus a água acima do firmamento?
Em razão da combustão por demais ardente do sol e do éter; com efeito, o éter
se desenvolveu imediatamente após o firmamento. E o sol, a lua e os astros se
encontram no firmamento; assim, se a água não se interpusesse, o firmamento
teria se inflamado por causa do calor.
Em seguida, Deus ordenou às águas que se reunissem numa única
concentração. A expressão “uma única concentração[40]”
não quer dizer que elas estivessem reunidas em um único lugar. Eis o que a
Escritura diz a seguir: "Ele deu o nome de mares às massas de água[41]”.
A fórmula mostra que as águas se separaram da terra juntas e num mesmo momento.
As águas se reuniram em suas concentrações e a terra apareceu[42].
A partir daí os dois mares que envolvem
Egito (pois este está situado entre dois mares) se formaram em toda sua
extensão, suas montanhas, suas ilhas, seus promontórios, seus diversos portos,
cercados de golfos, de margens e de falésias – o litoral arenoso tem o nome de
praias, o rochoso e escarpado se chama falésia. O mesmo acontece em relação ao
mar oriental, a que chamamos índico, e com o mar do norte ou cáspio. Também
neste momento os lagos foram reunidos.
Quanto ao oceano, ele é como que um rio que envolve toda a terra. É a
respeito dele, me parece, que a Escritura disse: “Um rio corria do Paraíso”,
cuja água era potável e doce. É ele que fornece a água aos mares, que, ao se
estagnar e permanecer sem movimento, se torna amarga; na medida do possível, o
sol e os sifões[43]
fazem com que se evapore a sua parte mais sutil. Daí provém a constituição das
nuvens e a produção das chuvas, proporcionando um filtro que adoça a água.
Esse oceano se divide também em quatro braços ou quatro rios: “O
primeiro se chama Fison[44]”
e corresponde ao Ganges indiano; “O nome do segundo é Geon[45]“:
trata-se do Nilo, que desce da Etiópia ao Egito. O terceiro se chama Tigre; e o
quarto tem o nome de Eufrates. Existem ainda muitos rios grandes, dos quais
alguns se jogam no mar e outros se perdem na terra. Entretanto, a própria terra
é perfurada por subterrâneos, como se ela tivesse veias; recebendo neles as
águas do mar, ela faz brotar as fontes. É, portanto, nessa qualidade da terra
que está a origem da água das fontes. A terra filtra a água do mar, que se
torna doce. Se o lugar onde jorra a fonte é amargo ou salgado, a água será tal
qual a terra de onde brota. Muitas vezes a água. Comprimida, escapa com
violência e é aquecida; daí provêm as águas naturalmente quentes. Segundo a
ordem divina, por conseguinte, formaram-se cavidades na terra, e nesses
receptáculos se reuniram as águas; daí também provêm as montanhas.
Agora, foi da água que Deus ordenou que surgisse primeiro um ser vivo,
dado que é pela água e pelo Espírito Santo, levado sobre as águas no princípio,
que o homem deve se renovar; de fato, é isso que afirma o divino Basílio. Deus
fez surgir os animais pequenos e grandes, os cetáceos, as serpentes e os peixes
que nadavam nas águas e os pássaros alados. Por meio dos pássaros se reúnem a
água, a terra e o ar, pois eles saíram da água, eles vivem sobre a terra e eles
voam no ar. A água é a obra-prima dos elementos, ela é de grande utilidade, ela
purifica a sujeira – apenas a sujeira do corpo, a menos que se adicione a ela a
graça do Espírito, dirigindo-a à alma.
23b
Os mares
Ao Egeu sucede o Helesponto, que termina em Abidos e Sestos; depois
vem a Propôntide, que termina na Calcedônia e em Bizâncio. Lá estão os
estreitos, onde começa o Ponto; depois vem o Paulus Meótida. Por outro lado,
falando da Europa e da Líbia temos o mar ibérico, que vai das colunas até os
Pirineus, o mar da Ligúria que vai até os limites da Etrúria, o mar da Sardenha,
que vai do alto da Sardenha até em baixo, na direção da Líbia, o mar tirreno
que para na Sicília e parte das pontas da Ligúria; em seguida vem o mar líbio,
depois os de Creta, da Sicília, o mar jônico, o adriático, aquele que se desvia
do mar da Sicília e ao qual chamamos de golfo de Corinto ou mar de Alcione. O
mar encerrado entre os cabos de Sunion e Cila é o mar sarônico. Depois vem o
mar de Mirto e o de Ícaro, onde se encontram as Cíclades; depois os mares de
Cárpatos, da Panfília e o Egito. Acima do mar de Ícaro e na sua sequência vem o
mar Egeu. A travessia do mar da Europa da embocadura do Tanais até as colunas é
de 609.709 estádios; a do mar líbio a partir de Tinges até o estuário canópico
é de 209.252 estádios; a do mar da Ásia, de Canopo até Tanais, incluído dos
golfos, é de 400.111 estádios. O conjunto das margens, com os golfos, que
bordeiam as terras habitadas é de 1.309.072 estádios.
24b (II, 10)
A terra e o que ela encerra
A terra é um dos quatro elementos, ela é seca, fria, densa e imóvel, e
foi trazido do não-ser à existência no primeiro dia. Foi dito, com efeito: “No
princípio criou Deus os céus e a terra[46]”.
Nenhum homem jamais pôde dizer sobre qual fundamento ela se assenta. Uns
afirmam que ela está fundada e fixada sobre as águas, segundo a declaração do
divino Davi: “Aquele que fixou a terra sobre as águas[47]”.
Outros falam do ar, e outro diz: “Aquele que fixou a terra sobre nada[48]”.
Dai, inspirado, direto, empresta ao criador as palavras: “Eu firmei as colunas
da terra[49]”
(pelo termo de “colunas”, ele designa a capacidade de coesão da terra. Quanto à
frase: “Sobre os mares ele fundou a terra[50]”,
ela mostra que a água, por sua natureza, se espalha de todos os lados ao redor
da terra. Portanto, se concordamos que ela está fundada sobre si mesma, sobre o
ar, sobre a água ou sobre nada, não devemos nos afastar da concepção
verdadeiramente religiosa, mas confessar que todo o conjunto é governado e
conservado pelo poder do criador.
Portanto, no princípio, segundo afirma a Escritura, a terra estava
oculta sob as águas, e ela era informe, ou seja, sem ordem. Ao comando de Deus,
formaram-se os receptáculos das águas; então as montanhas vieram à existência
e, mediante o comando divino, a terra recebeu sua ordem própria, depois de
haver se ornado com toda espécie de verduras e plantas, nas quais a ordem
divina depositou um poder de crescimento, de nutrição e de germinação, vale
dizer, de reprodução do semelhante. Depois, ao chamado do criador, surgiram
todas as espécies de animais, os rastejantes, as feras e os animais de carga.
Todos estão destinados a um uso eventual pelo homem, alguns para sua
alimentação, como cervos, cordeiros e cabras, etc., outros para seu serviço,
como os camelos, bois, cavalos, asnos, etc., outros para sua diversão, como os
macacos e também, entre os pássaros canoros, os papagaios, etc. Dentre as
árvores e as plantas, algumas trazem frutos bons para comer, outras nos forma
dadas por suas flores perfumadas e outras para a cura das doenças. Pois não
existe animal ou planta no qual o criador não tenha depositado alguma energia
que sirva às necessidades dos homens. Este, com efeito, “que conhece todas as
coisas antes de seu nascimento[51]”,
sabia que o homem iria cometer uma transgressão voluntária e ser atirado à
corrupção; por conseguinte, ele a tudo criou para o uso do homem no tempo
oportuno, tanto o que está no firmamento, como o que está sobre a terra e nas
águas.
Assim, antes da transgressão tudo estava submetido ao poder do homem,
pois Deus o estabelecera como mestre de tudo o que há na terra e nas águas. E a
serpente, mais do que todos, era familiar ao homem; ela o frequentava e se
dirigia a ele com mímicas sedutoras. Foi a partir daí que o diabo, príncipe do
mal, insinuou aos nossos primeiros parentes o pior dos conselhos. Até então, a
terra produzia espontaneamente os frutos indispensáveis aos seres vivos
submetidos ao homem, e sobre a terra não havia chuva nem tempestade. Mas depois
da transgressão, quando o homem se tornou comparável aos animais privados de
inteligência e se reuniu a eles[52],
disposto a deixar que o desejo irracional comandasse seu intelecto racional,
recusando-se a ouvir o preceito do Senhor, a criação, até então submissa, se
revoltou contra o metre escolhido pelo criador e ele teve que trabalhar com seu
suor a terra do qual fora tirado.
Mesmo no presente, porém, a frequentação dos animais selvagens não
deixa de ter utilidade: ela inspira o temor e leva ao reconhecimento e à
invocação de Deus, seu autor. Os espinhos nasceram da terra depois da
transgressão de acordo com a sentença do Senhor; segundo esta, os espinhos
foram acrescentados à rosa para nos lembrar a transgressão, por cuja causa a
terra foi condenada[53]
a gerar cardos e espinhos.
Podemos acreditar que foi assim que as coisas se passaram, pois até
hoje a palavra do Senhor fez subsistir os seres, pois ele disse: “Crescei,
multiplicai-vos e enchei toda a terra[54]”.
De resto, alguns afirmam que a terra tem o formato de uma esfera,
enquanto outros dizem que ela tem a forma de um cone. Ela é muito menor do que
o céu, como um ponto suspenso no meio deste. Também ela passará e será
transformada. Bem-aventurado aquele que herdar a terra dos mansos[55]:
pois a terra que deve receber os santos é imortal. Quem, portanto, não admitirá
com justeza a infinita e incompreensível sabedoria do criador? E quem seria
capaz de render graças como convém ao dispensador de tão grandes benesses?
24b
Eis as províncias conhecidas na terra.
Existem 34 províncias na Europa, 10 cartas: 1. Ibérnia, ilha
britânica; 2. Albion, ilha britânica; 3. Espanha bética; 4. Espanha Lusitânia;
5. Espanha tarragonesa; 6. Gália Aquitânia; 7. Gália lionesa; 8. Gália céltica;
9. Gália narbonesa; 10. Grande Germânia; 11. Récia e Vindelícia; 12. Nórica;
13. Panônia superior; 14. Panônia inferior; 15. Ilíria; 16. Dalmácia; 17.
Itália; 18. Ilha de C´rsega; 19. Ilha da Sardenha; 20. Ilha de Sicília; 21.
Sarmácia da Europa; 22. Chersonésia táurica; 23. Iáziges nômades; 24. Dácia;
25. Mésia superior; 26. Mésia inferior; 27. Trácia; 28. Chersonésia; 29.
Macedônia; 30. Épira; 31. Acádia; 32. Ilha de Eubeia; 33. Peloponeso; 34. Ilha
de Creta.
Existem 12 províncias da Líbia, 8 cartas: 1. Mauritânia tingitana; 2.
Mauritânia cesariana; 3. Numídia; 4. África inteira; 5. Pentapolis cirenaica;
6. Marmárica; 7. Líbia; 8. Baixo Egito; 9. Egito tebano; 10. Líbia interior à
África; 11. Etiópia acima do Egito; 12. Etiópia além dessas regiões todas.
Existem 48 províncias no grande continente da Ásia, 12 cartas: 1.
Bitínia do Ponto; 2. Ásia propriamente dita ao redor do Éfeso; 3. Grande
Frígia; 4. Lícia; 5. Galácia; 6. Paflagônia; 7. Panfília; 8. Capadócia; 9.
Pequena Armênia; 10. Cilícia; 11. Sarmácia interior à Ásia; 12. Cólcida; 13.
Ibéria; 14. Albânia; 15. Grande Armênia; 16. Ilha de Chipre; 17. Celessíria;
18. Síria Fenícia; 19. Síria Palestina;
20. Arábia pétrea; 21. Mesopotênia; 22. Arábia desértica; 23. Babilônia;
24.Assíria; 25. Susiânia; 26. Média; 27. Pérsia; 28. Parciênia; 29. Carmânia
desértica; 30. Carmânia segunda; 31. Arábia feliz; 32.Hircânia; 33. Margiânia;
34. Bactrinana; 35. Sogdinana; 36. Sácia; 37. Scítia iterior aos monres Imaos;
38. Scítia exterior aos montes Imaos; 39. Sérica; 40. Ária; 41. Paropamisades;
42. Drangiana; 43. Aracósia; 44. Gedrósia; 45. Índia interior aos Ganges; 46.
Índia exterior ao Ganges; 47. China; 48. Ilha do Ceilão.
No total, a Europa apresenta 10 cartas, 34 províncias e 118 cidades
dignas de nota; a Líbia, 8 cartas, 12 regiões, 52 cidades importantes; Grande
Ásia. 12 cartas, 48 regiões, 180 cidades importantes. O conjunto do ecomeno
contempla 94 regiões e 350 cidades.
Quanto aos povos que habitam os confins: do lado do apeliotes, os
Bactrianos, do lado do euros, os Indianos, do lado da Fenícia, Mar Vermelho e
Etiópia, do lado do notos branco, os Garamantes que estão acima da Scirta, do
lado do lips, os Etíopes e os Mauros ulteriores do ocidente, do lado do zéfiro
as Colunas e o começo da Líbia e da Europa, do lado do argestes a Ibéria, hoje
em dia Espanha, do lado do trácias, os Celtas e seus vizinhos, do lado do
norte, os Scitas de além da Trácia, do lado do bóreas, o Ponto Meótidae os
Sarmates, do lado do caekias, o mar Cáspio e os Saces.
25 (II, 11)
O paraíso
Um vez que Deus estava a ponto de criar o homem a partir da criação
visível e da invisível, e de criá-lo à sua imagem e semelhança[56],
como um rei e um mestre de toda a terra e de tudo o que ela encerra, ele
preparou para esse homem uma espécie de reino onde ele pudesse viver uma vida
de alegria e prosperidade. Esse foi o jardim divino plantado no Éden[57]
pelas mãos de Deus, tesouro de toda felicidade do espírito e do coração.
Situado a oriente, mais elevado do que toda a terra, temperado e iluminado por
um ar sutil e puríssimo, plantado com plantas sempre em flor, saturado de
perfumes exóticos, ultrapassando todo sentimento de graça e de beleza que se
possa conceber, lugar verdadeiramente divino, moradia digna de uma imagem de
Deus, onde nenhum ser dotado de razão habitaria senão o homem, obra realizada
pelas mãos divinas.
No seu centro, Deus havia plantado uma “árvore da vida[58]”
e uma “árvore do conhecimento[59]”.
A árvore do conhecimento, como uma prova, um exame, um exercício[60]
para a obediência ou a desobediência do homem. Por essa razão ela também foi
chamada de “árvore do discernimento dobem e do mal[61]”;
fosse porque ela dava aos que dela se alimentavam uma capacidade de conhecer
sua própria natureza, o que é um bem para os perfeitos[62],
fosse porque ela constituía um mal para os menos perfeitos, aqueles cuja
sensibilidade era por demais ávida, como acontece com os alimentos sólidos em
relação àqueles que ainda têm necessidade de leite. Com efeito, Deus, nosso criador não desejava
que fôssemos atormentados e agitados por mil objetos e que desde o começo não
nos preocupássemos em sustentar a nossa vida. Ora, isso foi o que se passou com
Adão: depois de haver provado o fruto, ele reconheceu que estava nu e que
precisava procurar algo para se cobrir. Então ele se vestiu com folhas de
figueira. Ao contrário, antes de provar, “Adão e Eva estavam ambos nus e não
sentiam vergonha[63]”.
Ora, Deus desejava que fôssemos assim isentos de paixão (pois esse é o ápice da
impassibilidade[64]),
e que, ademais, tivéssemos como única atividade aquela mesma dos anjos: cantar
sem cessar e sem interrupção ao criador, nos abandonarmos à sua contemplação e
entregar a ele nossas próprias inquietudes. É o que ele proclamou em nossa
intenção por intermédio do profeta Davi: “Entregue ao Senhor toda a tua
inquietação, e ele te nutrirá[65]”.
E nos santos Evangelhos, ensinando aos seus discípulos, ele disse: “Não se
preocupem por vossa própria vida sobre o que haverão de comer, nem para vossos
corpos sobre o que haverão de vestir[66]”.
Ou ainda: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça, e todo o resto vos será
acrescentado[67]”.
E ao se dirigir a Marta: “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas a respeito
de muitas coisas, quando só uma é necessária; mas Maria escolheu a melhor
parte, e esta não lhe será tirada[68]”.
Esta parte consistia em estar sentada a seus pés e escutar suas palavras[69].
Quanto à “árvore da vida[70]”,
tratava-se, seja de uma árvore que possuía uma energia que dava a vida, seja de
uma árvores boa para alimentar aqueles que mereciam a vida e que não estavam
submetidos à morte. Hoje em dia, algumas pessoas representam o paraíso como uma
realidade sensível, outras como uma realidade inteligível. Na minha opinião,
porém, assim como o home foi criado com sensibilidade e inteligência, também
esse domínio[71]
santíssimo do homem era a um tempo sensível e inteligível e possuía uma dupla forma.
Por intermédio de seu corpo, de fato, o homem habitava num lugar plenamente
divino e maravilhoso, como reportamos; por sua alma, ele vivia num lugar
sublime, incomparável, feito só de beleza, onde Deus habitava nele e ele em
Deus, que o envolvia como uma vestimenta de glória; e ele estava envolvido pela
graça de Deus, como se fosse ele também um anjo, e desfrutava do fruto único, o
mais suave, da contemplação de Deus, e dele se alimentava. Eis porque essa
árvore foi chamada de “árvore da vida”: a suavidade da participação divina
comunica aos que tomam parte dela uma vida que a morte não pode interromper.
Essa árvore é a que foi chamada por Deus de “todas as árvores”: “Comereis o
fruto de todas as árvores do paraíso[72]”.
Ela é o todo no qual e pelo qual tudo existe.
Quanto à “árvore do conhecimento do bem e do mal”, ela representa o
discernimento da contemplação penetrante. Esse discernimento é o reconhecimento
da natureza própria; ela é boa para os perfeitos e para aqueles que vivem na
contemplação de Deus – ela proclama por si só a grandeza da obra do criador –
ela é boa para aqueles que não temem a queda por terem progredido com o tempo
até se habituar a essa contemplação. Mas esse reconhecimento não é bom para os
que ainda são noviços e demasiado ávidos em seu desejo. Quanto àqueles cuja
perseverança ainda não é sólida e que ainda não estão suficientemente
estabelecidos na busca assídua do bem e de nada além do bem, o cuidado com seu
próprio corpo pode atirá-los no sentido inverso dessa contemplação e fazer com
que se percam.
Assim, acredito eu, o divino paraíso apresentava um aspecto duplo. E,
de fato, alguns dos Padres divinamente inspirados nos transmitiram esse
ensinamento, outros outro. Além disso, podemos pensar que a expressão “todas as
árvores” significa o reconhecimento do poder divino a partir de todas as
criaturas, como disse o divino Apóstolo: “Desde a criação do mundo, com efeito,
seus atributos invisíveis se tornaram visíveis à inteligência por intermédio de
suas obras[73]”.
Dentre todas essas concepções e especulações, a que nos concerne, vale dizer, a
que se refere à nossa constituição, é a mais elevada, como disse o divino Davi:
“O conhecimento que tenho de ti a partir de mim (ou seja, a partir de minha
constituição) me encheu de espanto[74]”.
Pelas razões que apresentamos, esse conhecimento era perigoso para uma Adão
recentemente criado – e então a árvore da vida poderia representar o pensamento
mais divino gerado a partir de todas as realidades sensíveis, a retomada da
ascensão por meio delas, em direção ao autor, criador e causa de tudo. Por essa razão ela teria sido chamada de
“todas as árvores”, plena e indivisível, trazendo em si apenas a participação
no bem. Pelo contrário, a árvores do conhecimento do bem e do mal designaria o
alimento sensível e deleitável, que é doce na aparência, mas que na verdade faz
com que aquele que o tome participe do mal. Com efeito, Deus disse: “Que ele
coma de todas as árvores do paraíso[75]”,
querendo dizer, na minha opinião: “suba até mim, seu criador, graças a todas as
criaturas e recolha dentre todas um fruto único, ou seja, eu, a verdadeira vida[76].
Assim, que tudo, para você, lhe traga o
fruto da vida e faça de sua participação em minha vida o sustento de sua
própria existência. Assim, você será imortal”. “Mas não comei da árvore do
conhecimento do bem e do mal. No dia em que comerdes dela, morrereis[77]”.
Com efeito, segundo a natureza, o alimento sensível toma o lugar daquilo que é
consumido, e depois passa aos lugares de satisfação e daí à corrupção[78]:
é impossível que aquele que toma parte da alimentação sensível permaneça
incorruptível.
Ou ainda: a árvore da vida consiste na participação em Deus, da qual
se nutrem os anjos, e da qual deveríamos receber a incorruptibilidade. Com
efeito, seria preciso antes de tudo nos submetermos sem fazermos juízo da lei
de Deus, até que alcancemos a plena posse da virtude, e depois receber de Deus,
como um dom, a faculdade de discernir o bem do mal – que é precisamente a
árvore do conhecimento do bem e do mal. Com efeito, para quem acabou de se
formar, o discernimento dos raciocínios e de sua refutação ainda não estão
assegurados, por causa dos elementos afetivos e sensuais que se juntam ao
raciocínio. Por conseguinte, a árvore da vida, em minha opinião, é o mandamento
dado por Deus – pois a justiça é a árvore da vida para os que se ligam a ela.
“É bendita a árvore por cujo intermédio a justiça desabrocha[79]”,
diz Salomão. Quanto à árvore do conhecimento, trata-se do discernimento do bem
e do mal. Adão devia assim, por sua obediência sem discriminação, estar unido a
Deus e, por meio dessa união, adquirir, no momento em que o Deus por natureza
julgasse bom, tanto a divinização como o conhecimento verdadeiro, o
discernimento de todas as coisas e a vida sem limites. Mas era preciso que ele
fizesse a experiência de obedecer sem discriminar. Para isso Deus lhe dera seu mandamento: não
provar da árvore do conhecimento[80],
não confiar em seu próprio discernimento, não comer do fruto de uma árvore cuja
ação natural lhe traria o conhecimento de si próprio, ou seja, de sua própria
natureza. Ora, o maligno, tendo abordado o homem por intermédio da serpente,
disse-lhe: “Vocês serão como deuses, conhecedores do bem e do mal[81]”;
Adão confiou em seu próprio discernimento, e lhe pareceu bom se tornar um deus
e conhecer. Ele sequer sonhou que no tempo oportuno tudo seria bom para ele,
que o bem não é um bem se não se produz adequadamente, e que não devemos nos
apropriar antecipadamente daquilo que nos será dado, indo contra o sentimento
daquele que dá a existência e o bem ser. E ele viu que isso era bom, comeu o
fruto e foi despojado de sua atração por Deus; os olhos de seus corpos se
abriram, suas paixões se puseram em movimento, eles conheceram que estavam nus
e tiveram vergonha[82].
E eles se afastaram de Deus e, como crianças, precipitaram-se para o prazer e
foram afastados da árvore da vida e se tornaram mortais. O inimigo, por sua
experiência, sabia que se manter ao lado de Deus traz o privilégio da
divinização e da vida eterna.
26 (II, 12)
O homem
Assim, pois, Deus estabeleceu a substância intelectiva, pela qual eu
entendo os anjos e todas as ordens celestes – pois sua natureza é evidentemente
intelectiva e incorpórea; digo “incorpórea” por oposição à matéria grosseira,
pois somente a divindade é realmente sem matéria e incorpórea. Depois ele
estabeleceu também a substância sensível, céu, terra e tudo o mais que tem
lugar nesse intervalo; enfim, a substância que lhe é própria (pois a substância
racional é própria a Deus e só pode ser captada pelo intelecto), mas que de
certo modo é extremamente afastada dele, uma vez que se encontra no domínio dos
sentidos. Era preciso que, a partir das duas nascesse uma mistura que fosse o
símbolo “da maior sabedoria e munificência em relação às naturezas”, segundo a
expressão de Gregório o Teólogo, uma espécie de lugar “entre a natureza visível
e a natureza invisível”. Eu digo “seria preciso”, subentendendo aí o desígnio
do criador. Pois esse desígnio é a regra e a lei mais adequada e, e porque
ninguém dirá àquele que o modelou: “Porque me fizeste assim?[83]”.
O oleiro tem todo o direito, ao usar a argila de que dispõe, de fabricar
diferentes modelos de vasos, para demonstrar sua habilidade.
Isto posto, foi a partir de uma natureza visível e de uma natureza
invisível que Deus criou o homem com suas próprias mãos, à sua imagem e
semelhança[84]:
ele modelou o corpo a partir da terra e deu a esse corpo uma alma racional e
intelectiva por intermédio de seu próprio sopro, que é precisamente o que
dizemos ser a imagem de Deus. Com efeito, a expressão “à sua imagem” designa o
aspecto intelectivo e o livre arbítrio, e “à sua semelhança”, a semelhança na
ordem da virtude, no limite do possível.
O corpo e a alma foram modelados ao mesmo tempo, não um primeiro e
depois o outro, como tolamente afirma Orígenes.
Portanto, Deus criou o homem inocente, reto, virtuoso, sem cuidados
nem inquietações, resplendente de toda virtude, adornado com todos os bens,
como um segundo mundo, um pequeno mundo dentro do grande, um outro anjo, um
adorador misto[85],
um contemplador da criação visível, um iniciado à criação pensante, um rei dos
seres terrestres, mas um rei governado desde o alto, terrestre e celeste,
temporário e imortal, visível e intelectivo, intermediário entre a grandeza e a
pequenez, a um tempo espírito e carne, carne por seu orgulho, espírito pela
graça, sendo o primeiro aspecto para que sofra as paixões e para que,
sofrendo-as, se recorde e aprenda, e o segundo para que ele persista e
glorifique seu benfeitor que o honrou com tal grandeza, vivendo com aquilo com
que se ocupa aqui em baixo, ou seja, na vida presente e que se transfere para
outra parte no século futuro e – cúmulo do mistério – divinizado por sua
inclinação para Deus e também pela participação e iluminação divina, sem que no
entanto seja transferido para a substância divina.
Ele criou o homem como uma natureza sem pecado e uma vontade dotada de
livre arbítrio. Digo “sem pecado”, não porque o homem seja incapaz de pecar
(somente a divindade não é susceptível ao pecado), mas porque ele não possui o
pecado em sua natureza; isso depende apenas de sua escolha; dito de outra
forma, ele tem pleno poder de permanecer no bem e nele progredir cooperando com
a graça divina, e também de se desviar do bem e se engajar no mal, com a permissão
de Deus, por causa do seu livre arbítrio. Pois não é virtude o que acontece sob
violência.
Portanto, a alma é uma substância viva, simples, incorruptível,
invisível aos olhos do corpo segundo a natureza que lhe é própria, racional e
intelectiva, sem forma, que utiliza um corpo organizado ao qual ela dá vida,
crescimento, sensibilidade e poder gerador. Ela não tem junto a si o intelecto
como algo outro, mas como sua parte mais pura: o que o olho representa para o
corpo, o intelecto representa para a alma. Dotada de livre arbítrio, capaz de
querer e de agir, ela é susceptível de mudança, ou seja, ela muda à vontade,
porque ela é uma criatura. Tudo isso ela recebeu em virtude da sua natureza
pela graça daquele que a criou, graça pela qual ela recebeu sua existência e
seu ser por natureza.
Entendemos os seres incorpóreos, invisíveis e sem forma de suas
maneiras: alguns o são segundo sua substância, outros pela graça, uns por sua
natureza, outros em relação à matéria grosseira. Deus é chamado assim em virtude
de sua natureza, enquanto que os anjos, os demônios e as almas, pela graça e em
relação à matéria grosseira.
O corpo se estende por três dimensões, ou seja, ele possui
comprimento, largura e profundidade, também chamada de espessura. Todo corpo é
constituído pelos quatro elementos, e os corpos dos seres vivos, também pelos
quatro humores.
Devemos saber que existem quatro elementos: a terra seca e fria, a
água fria e úmida, o ar quente e úmido e o fogo quente e seco. Da mesma forma,
existem quatro humores, que correspondem aos quatro elementos: a bile negra
corresponde à terra, ela é seca e fria; a fleuma corresponde à agua, é fria e
úmida; o sanguíneo corresponde ao ar, é úmido e quente; a bile amarela
corresponde ao fogo, é seca e quente. Os frutos se constituem a partir dos
quatro elementos, os humores a partir dos frutos, os corpos do seres vivos a
partir dos humores, e eles se dissolvem nos mesmos humores. Pois todo composto
se dissolve nos mesmos elementos de que é composto.
Devemos reconhecer que o homem possui ao mesmo tempo características
comuns com os seres inanimados, que ele participa da vida dos seres desprovidos
de razão e que recebeu sua parte do pensamento dos seres racionais. Ele tem
características comuns com os seres inanimados por seu corpo e pela mistura que
há nele dos quatro elementos, com as plantas segundo esses elementos e pelas
faculdades da nutrição, do crescimento da reprodução (também chamada de
geração), e com os seres desprovidos de razão tanto por esses aspectos, como
também, em acréscimo, pelo apetite, também chamado de paixão, e pelo desejo,
pela sensibilidade e pelo movimento conforme o impulso.
Ele possui cinco sentidos: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o
toque. Do movimento conforme o impulso decorre sua capacidade de se deslocar de
um lugar a outro, bem como a mobilidade de todo o corpo, a voz e a respiração;
esses são atos que cabe a nós fazer ou não fazer.
Por outro lado, sua razão liga o homem às naturezas incorpóreas e
intelectivas; ele raciocina, concebe, julga cada coisa, busca as virtudes, ama
a piedade, esse ápice das virtudes. Eis porque o homem é um pequeno mundo.
Devemos saber que as seguintes coisas são próprias apenas ao corpo: a
divisão, a efusão e a mudança. A mudança se faz segundo a qualidade, como o
resfriamento, o aquecimento, etc. a efusão se faz por evacuação: esvaziamo-nos
do seco, do úmido, do vento, coisas das quais temos necessidade de nos
enchermos novamente; são afecções naturais, como a fome e a sede.
São próprias à alma a piedade e o pensamento. São comuns à alma e ao
corpo as virtudes, que encontram uma referência na alma na medida em que esta
se serve do corpo.
Devemos reconhecer que, por natureza, o racional comanda o irracional.
Com efeito, as faculdades da alma se dividem em racionais e irracionais. Na
parte irracional cabem duas partes, uma que é indócil à razão, ou seja, que não
obedece à razão, e outra que é dócil e obediente em relação à razão. São
indóceis à razão e não a obedecem: a faculdade vital a que chamamos também de
pulsante, a faculdade espermática ou geradora, a faculdade vegetativa, também
chamada de nutritiva; a esta última pertence também a faculdade aumentativa,
que modela os corpos. Eis o que não é governado pela razão, mas pela natureza.
Quanto ao que é dócil e submetido à razão, podemos dividi-lo em apetite
concupiscente e apetite irascível. A parte irracional da alma é comumente
chamada de parte passional ou impulsiva. Devemos saber que o movimento por
impulsão também faz parte daquilo que obedece à razão.
É preciso reconhecer que dentre os objetos alguns são bons e outros
são ruins. Um objeto bom esperamos que suscite um desejo, um bem presente, um
prazer; um objeto mau esperamos que suscite medo, um mau presente, uma
tristeza. Registre-se que nesta passagem, quando falamos de “bem”, falamos de
um bem real ou de um bem aparente, e que o mesmo vale para o mal.
27 (II, 13)
Os prazeres
Dentre os prazeres, alguns são espirituais, outros são corporais. São
espirituais todos aqueles que procedem da alma, tais como os que se referem à
ciência e à contemplação. Os prazeres corporais provêm tanto da alma como do
corpo, e por esse motivo tomam o nome de corporais; são por exemplo os que se
referem à alimentação, às relações sexuais e outras coisas do gênero. Mas não
existem prazeres exclusivamente corporais.
Dentre os prazeres, alguns são verdadeiros e outros falsos; os
primeiros estão relacionados apenas com a inteligência, vinculando-se à ciência
e à contemplação; os outros, que dependem do corpo, relacionam-se às sensações.
Dentre os prazeres do corpo, alguns são naturais e necessários – viver sem eles
seria impossível –, como os alimentos para matar e a fome e as vestes
indispensáveis. Outros, naturais, não são necessários, como as relações sexuais
segundo a natureza e a lei. Pois essas relações contribuem para a conservação
da espécie como um todo, mas também é possível viver sem eles na virgindade.
Outros prazeres, por fim, não são nem naturais nem necessários, como a
embriaguez, a luxúria e os excessos à mesa. Com efeito, longe de contribuir
para a manutenção de nossa vida ou para a continuação da espécie, eles são
nocivos. Quem vive segundo Deus deve desde o início buscar os prazeres
necessários e naturais, colocando em segundo lugar os prazeres naturais mas não
necessários (no momento), da maneira e na medida convenientes. Os demais devem
ser absolutamente proscritos.
É preciso ver como sendo bons prazeres aqueles que não vêm mesclados
de tristeza, nem seguidos de arrependimento, nem são causa de qualquer
prejuízo, que não passam dos limites da moderação, que não nos tiram além da
medida das ocupações sérias, ou que não nos sujeitam.
28 (II, 14)
A tristeza
A tristeza adquire quatro formas: a aflição, o tédio, a inveja, a pena.
A aflição é uma tristeza que nos deixa sem voz, o tédio, uma tristeza que nos
oprime, a inveja, uma tristeza que nos toma diante da prosperidade de outrem, a
pena, uma tristeza que nos toma diante da infelicidade de alguém.
29 (II, 15)
O temor
O temor se apresenta sob seis aspectos: a indecisão, o pudor, a
vergonha, o medo, o terror e a angústia. A indecisão é o temor de ter que agir.
O pudor, o temor de incorrer em censura, e é uma excelente paixão. A vergonha é
o temor de uma ação desonrosa; ela também não é irrecuperável perante a
salvação. O medo é o temor produzido por uma grande imaginação. O terror é um
temor produzido por uma imaginação desordenada. a angústia é um temor do erro,
ou seja, do fracasso: por medo de fracassarmos, o agir nos angustia.
30 (II, 16)
O furor
O furor é uma fervura do sangue que envolve o coração devido a um
aquecimento ou de uma turbulência da bile. Eis porque ele também é chamado de
“bile” ou de “humor bilioso”. Também pode acontecer que o furor seja um apetite
por vingança; quando alguém nos prejudicou, ou achamos que nos prejudicou,
ficamos enfurecidos e nossa paixão de se torna uma mistura de desejo e fúria.
Existem três tipos de furor: a cólera (também chamada de bile), o
ressentimento e a raiva. A furor, em seu princípio e seu movimento, se chama
cólera, assim como bile ou humor bilioso. O ressentimento é uma bile que
persiste ou um rancor enraizado; seu nome contém uma referência à persistência
e à sua transmissão pela memória. A raiva é uma cólera que espera pela ocasião
de se vingar; seu nome contém uma referência à sua obstinação.
O furor é o lanceiro do raciocínio, o justiceiro do desejo. Com
efeito, quando desejamos alguma coisa e alguém nos impede, enfurecemo-nos
contra isso como se estivéssemos sendo lesados; nosso raciocínio, evidentemente,
julga que o que aconteceu merece a indignação em relação aos que mantém sua
própria posição, de acordo com a natureza.
As faculdades nutritiva, geradora e pulsativa não obedecem à razão. As
faculdades nutritiva e geradora são também chamadas de faculdades aumentativas,
e a faculdade pulsativa, de faculdade vital
A faculdade nutritiva possui quatro aptidões: a absorção, por absorver
o alimento; a de retenção, por reter o alimento e impedir que ele seja
eliminado imediatamente; a de transformação, por transformar o alimento em
humores; e a de triagem, por separar e rejeitar os resíduos nos lugares
convenientes.
Devemos saber que dentre as faculdades que servem aos seres vivos,
algumas são espirituais, outras naturais, outras vitais. São espirituais as que
implicam uma escolha deliberada, também chamada de movimento por impulso, e a
sensibilidade. Procedem do movimento por impulso a mudança de lugar, os
movimentos do corpo, a voz e a respiração; pois está em nosso poder executar ou
não esses atos. As faculdades naturais e vitais excluem a livre escolha. São
naturais as faculdades de nutrição, de crescimento e de reprodução, e a
faculdade pulsativa é vital; todas elas operam, quer queiramos, quer não.
31 (II, 17)
A imaginação
A imaginação é uma faculdade da alma irracional que opera por meio dos
órgãos sensoriais, aquilo a que chamamos de sensibilidade. É imaginável e
sensível tudo o que cai no domínio da imaginação e da sensibilidade; da mesma
forma, a faculdade visual em si é a vista, enquanto que o que é visto é o
visível, como por exemplo uma pedra ou qualquer coisa do gênero. A imagem é um
estado modificado da alma não racional, produzido por qualquer objeto
imaginável; o fantasma é um estado modificado da alma sem conteúdo nas partes
não racionais da alma produzido sem a presença de qualquer objeto imaginável. O
órgão da imaginação é a cavidade anterior do encéfalo.
32 (II, 18)
A percepção sensorial
A percepção sensorial é a faculdade da alma capaz de captar as realidades
materiais, ou seja, de discerni-las. Os órgãos sensoriais são os instrumentos
ou membros por meio dos quais percebemos. Sensíveis são as coisas que cabem em
nossos sentidos. O que sente é o ser vivo que possui a faculdade de sentir.
Existem cinco sentidos e, por conseguinte, cinco órgãos sensoriais.
O primeiro sentido é a visão; os órgãos sensoriais da visão são os
nervos que partem do encéfalo e os olhos. A visão percebe diretamente as cores
e reconhece, ao mesmo tempo que a cor do corpo colorido, seu talhe, sua forma, o
lugar em que ele se encontra, o espaço intermediário, seu número, mais o
movimento e o repouso, a rugosidade e o polimento, o liso e o saliente, mais a
rapidez e a lentidão, assim como a consistência, se aquosa ou terrosa, ou seja,
se úmida ou seca.
O segundo sentido é a audição, capaz de perceber os sons e os ruídos.
Ela distingue se são agudos ou graves, suaves, rudes, e também sua intensidade.
Seus órgãos são os sutis nervos que saem do cérebro e da estrutura auricular.
Somente o homem e os macacos não possuem orelhas móveis.
O terceiro sentido é o olfato: pelas narinas os vapores sobem até o
cérebro e penetram até o fundo de suas cavidades anteriores. O olfato é capaz
de perceber e captar os vapores. Dentre estes, a distinção genérica se
estabelece entre os odores bons, ruins e intermediários, que não são nem bons
nem ruins. O odor agradável provém dos líquidos perfeitamente cozidos
existentes nos corpos; no meio está o cozimento mediano; enfim, um cozimento
insuficiente ou inexistente produz o mau odor.
O quarto sentido é o paladar. Ele é capaz de perceber e sentir os
sabores. Seus órgãos são a língua, particularmente sua extremidade, e o palato,
que alguns denominam “véu”. É lá que terminam os nervos que provêm do cérebro,
lá que eles percebem e transmitem à faculdade mestra a percepção ou a sensação
produzida. Eis o que chamamos de qualidades do gosto nos humores: a doçura, a
pungência, a acidez, a aspereza, o azedume, o amargor, a salinidade, a
untuosidade, a viscosidade; o paladar é capaz de distinguir todas essas coisas.
Em relação a isso, a água é sem qualidades: ela não possui nenhuma delas. A
aspereza é uma intensificação, uma superabundância do azedume.
O quinto sentido é o tato, comum a todos os seres vivos. Sua origem
está nos nervos presentes em todo o corpo que enviam sinais ao cérebro. Eis
porque todo o corpo, incluindo aí os outros órgãos sensoriais, possuem a
sensação do tato. Estão submetidos ao tato o frio e o calor, o mole e o duro, o
viscoso e o friável, o pesado e o leve; essas são, com efeito, coisas que
reconhecemos unicamente pelo tato. São comuns ao toque e à visão o rugoso e o
polido, o seco e o úmido, o grosseiro e o fino, o alto e o baixo, a localização
e o talhe, quando é tal que um único toque é capaz de o reconhecer; depois
também o compacto e o inconsistente, também chamado de suave, o redondo, desde
que seja pequeno, e mais ainda do que outras formas. Da mesma forma, com a ajuda
da memória e do raciocínio, o tato percebe um corpo que se aproxima, bem como o
número, até dois ou três, se esses corpos são pequenos e fáceis de abraçar.
Nesses casos, porém, a vista percebe melhor do que o tato.
Devemos reconhecer que o criador dotou cada um dos outros sentidos de
um órgão duplo, a fim de que, caso um seja prejudicado, o outro possa preencher
sua função; dois olhos, duas orelhas, duas vias nasais e duas línguas, ainda
que estas, distintas em certos animais como a serpente, se encontrem reunidas
em outros, como no homem. Quanto ao tato, ele se acha espalhado por todo o
corpo, com exceção dos ossos, dos nervos, das unhas, dos chifres dos animais,
dos pelos, dos ligamentos e de algumas outras partes.
Devemos saber que a visão enxerga em linha reta, e que o olfato e a
audição funcionam não somente para a frente, mas em todos os sentidos. O tato e
o paladar não se exercem nem para frente nem em sentido algum, mas apenas
quando entram em contato com seus próprios objetos sensíveis.
33 (II, 19)
O pensamento discursivo
Do pensamento discursivo provêm os julgamentos, os consentimentos, o
impulso que leva à ação, as aversões em relação a esta e a rejeição à ação, e,
em especial, as concepções dos inteligíveis, as virtudes, as ciências, os
princípios das artes, as faculdades de deliberar e de escolher. A ele pertencem
ainda a faculdade de prever por sonhos o que deve acontecer, que é a única
adivinhação verdadeira de acordo com os pitagóricos, que nisto seguem os
hebreus. Seu órgão é a cavidade mediana do cérebro e o sopro vital que está
contido aí.
34 (II, 20)
A memória
A memória é a causa e o receptáculo da lembrança e da rememoração. De
fato, a lembrança é a imagem deixada por uma percepção sensorial que se segue a
um ato, ou ainda a conservação de uma percepção ou de uma intelecção. A alma
capta ou sente os objetos sensíveis por meio dos órgãos dos sentidos e assim
forma a opinião; ela percebe os objetos inteligíveis por meio do intelecto e
assim forma os conceitos. Quando ela conserva as marcas, tanto de opiniões,
como de conceitos, que ela formou, nós dizemos que ela se lembra.
É preciso saber que a captura dos inteligíveis não acontece senão a
partir de um saber ou de uma intuição da natureza, não a partir de uma
sensação; pois enquanto que os objetos sensíveis se tornam por si próprios objetos
da memória, só guardamos uma lembrança dos objetos inteligíveis se os tivermos
estudado de alguma forma; mas de sua substância, não possuímos lembrança.
A rememoração é a recuperação de uma lembrança que desapareceu por
causa do esquecimento; o esquecimento é a perda da lembrança. Com efeito, a
imaginação percebe os objetos materiais por intermédio das sensações e os transmite
à inteligência e ao raciocínio (pois essas duas coisas não são idênticas);
estes acolhem e julgam os objetos, e depois os transmitem à memória. O órgão da
memória é a cavidade posterior do cérebro, a que chamamos cerebelo, bem como o
sopro vital que se encontra aí.
35 (II, 21)
O verbo interior e o verbo proferido
Por sua vez, a função racional da alma se divide em verbo interior e
verbo proferido. O verbo interior é um movimento da alma que se produz na parte
racional sem nenhum som distinto; por esse motivo às vezes desenvolvemos dentro
de nós silenciosamente todo um discurso, e também mantemos conversações em
nossos sonhos. É principalmente sob este aspecto que somos seres racionais: com
efeito, os surdos de nascença ou os que perderam a palavra por qualquer
enfermidade não são menos racionais. O verbo proferido revela sua atividade pela
palavra e nas discussões; em outras palavras, trata-se do verbo emitido pela língua
e pela boca. Eis porque ele é chamado “proferido”. Ele é o mensageiro do
pensamento. Sob esse aspecto, somos chamados de “seres falantes”.
36 (II, 22)
A paixão e o ato
O termo “paixão” costuma ser empregado de modo equívoco. Com efeito,
chamamos de “paixão” uma realidade corporal, como as enfermidades e os
ferimentos, e também uma realidade espiritual, como o desejo ou o
enfurecimento. Por outro lado, existe,
de maneira comum e genérica, uma paixão do animal, da qual provêm o prazer e a
tristeza; de fato, a tristeza advém da paixão, mas ela não é em si uma paixão:
os seres insensíveis podem sofrer uma paixão, sem que experimentem qualquer
tristeza. Por conseguinte, a paixão não é o sofrimento, que é assim a percepção
sensível da paixão. É preciso que esta última tenha uma certa intensidade, que
seja grande o suficiente para atingir a sensibilidade.
Quanto às paixões da alma, eis aqui sua definição: a paixão é um
movimento da faculdade concupiscente que torna sensível a representação de um
bem ou de um mal. Outra definição: a paixão é um movimento irracional da alma
devido à concepção de um bem ou de um mal. A concepção do bem provoca o desejo,
a concepção do mal, o furor. Quanto à paixão genérica, ou comum, assim a
definimos: a paixão é um movimento no interior de um ser a partir de um outro
ser. Quanto à ação, ela é um movimento eficaz: por “eficaz”, entendemos algo
que se move por si próprio. Assim, o furor é uma ação da irascível, mas para as
outras duas partes da alma ele é uma paixão, e também para o resto do corpo,
quando faz violência a este para levá-lo ao ato; o movimento acontece a partir
de um ser no interior de outro ser, e é justamente a isso que damos o nome de “paixão”.
Mas de outro ponto de vista a ação é chamada também de paixão: com efeito, é
ação um movimento conforme à natureza, e paixão um movimento contrário à
natureza. Desse ponto de vista a ação é chamada de “paixão” quando ela não se
move em conformidade com a natureza, venha ela desse ser ou do outro. Assim, os
batimentos do coração são uma ação, porque constituem um movimento natural; mas
as palpitações, por serem exageradas e não conformes com a natureza, são uma paixão
e não uma ação.
Nem todo movimento da parte afetiva é chamado de paixão, mas apenas os
mais violentos e que atingem a sensibilidade. Os movimentos fracos e que
escapam à sensibilidade não chegam a ser paixões. Com efeito, a paixão precisa
ter uma força suficientemente intensa. Eis porque acrescentamos à definição de
paixão o “movimento perceptível”: os movimentos fracos que escapam à
sensibilidade não criam paixões.
Devemos saber que nossa alma possui dois jogos de faculdades, um de
ordem cognitiva, outro de ordem vital. As faculdades cognitivas são o
intelecto, o pensamento discursivo, a opinião, a imaginação, a sensibilidade;
as faculdades vitais, também chamadas de apetites, são a vontade e a livre
escolha. Para tornar mais clara nossa afirmação, vamos examinar em detalhe o
que diz respeito a elas, começando pelas faculdades cognitivas.
Sobre a imaginação e a sensibilidade, basta o que foi exposto acima.
Ora, é por intermédio da sensibilidade que uma paixão se estabelece na alma,
paixão a que chamamos de “imaginação”; a partir da imaginação nasce a opinião.
Depois o pensamento discursivo exerce um juízo sobre a opinião: será ela
verdadeira ou falsa? Ele de fato julga, e é por isso que o chamamos de “pensamento
discursivo” (dianoia), porque esse
pensamento distingue e julga. Aquilo que foi julgado e definido como verdadeiro
se chama intelecto.
Em outros termos: é preciso saber que o primeiro movimento do
intelecto (nous) é chamado de
“intelecção” (noesis). A intelecção
relativa a qualquer coisa é chamada de “concepção” (ennoia). Esta, depois de amadurecer e de haver modelado a alma em
relação ao que foi concebido, toma o nome de “reflexão”. Esta, depois de se
ligar à mesma coisa, depois de ter sido experimentada e julgada por si mesma,
toma o nome de “pensamento”. O pensamento se alastra e produz o raciocínio, que
tem o nome de “verbo interior”. Ele pode ser definido assim: um movimento
completamente realizado da alma, que se produz em sua parte discursiva, sem
nenhuma expressão vocal; é dele que provém o verbo proferido, expresso pela
língua. Depois de termos tratado das faculdades cognitivas, falemos agora das
faculdades vitais, também chamadas de apetites.
Devemos ter em mente que na alma foi semeada naturalmente uma
faculdade apetitiva daquilo que está em conformidade com sua natureza e agora
de tudo o que é apanágio essencial dessa natureza. Nós a chamamos de “vontade”.
Com efeito, a substância possui, segundo o intelecto e segundo a sensibilidade,
um apetite de ser, de viver, de se mover; ela deseja sua própria plenitude
natural de ser. É por isso que definimos assim esse querer natural: um desejo
racional e vital ligado unicamente aos objetos naturais. De tal forma que é
esse apetite natural e racional no estado simples de faculdade. Pois entre os
seres desprovidos de razão, esse apetite, por não ser racional, não é chamado
de vontade.
A intenção é uma vontade natural qualificada, vale dizer, um apetite
natural e racional por um dado objeto. Efetivamente, reside na alma humana uma
faculdade de apetite racional. Assim, quando essa faculdade racional se coloca
em movimento, em virtude de sua natureza, na direção de qualquer objeto,
falamos de intenção; a intenção é assim um apetite e um desejo racional por
algum objeto.
Falamos de intenção tanto a respeito de coisas que dependem de nós,
como de coisas que não dependem de nós, ou seja, tanto do possível como do
impossível. Muitas vezes, por exemplo, temos a intenção de nos distrairmos, ou
de sermos temperantes, ou de dormimos ou de outras coisas do mesmo gênero, que
dependem de nós e pertencem ao domínio do possível. Mas também podemos querer
ser reis, coisa que não depende de nós. E podemos também querer não morrer, e
isso já pertence ao domínio do impossível.
A intenção viso o fim, não os meios que conduzem ao fim. O fim é
aquilo que se deseja, como reinar ou ter boa saúde; refere-se ao fim aquilo que
é objeto da deliberação, ou seja, o meio pelo qual chegaremos a ter boa saúde
ou reinar. Depois da intenção vêm a pesquisa e o exame. Depois, se isso depende
de nós, vem o projeto, também chamado de deliberação. O projeto é o apetite que
se põe em busca de ações que dependem de nós fazer. Deliberamos se cabe ou não
a nós nos envolvermos com determinado assunto. Depois julgamos o que é
preferível, que é o que chamamos de julgamento. A seguir nos tomamos de afeição
por aquilo que foi julgado ao final da deliberação, e a isso chamamos de
resolução; nos casos em que, depois do julgamento, não sentimos afeição pelo
que foi julgado, não se pode falar em resolução. Depois de nos envolvermos
assim, chegamos à livre escolha ou à conclusão. A livre escolha consiste em,
diante de dois elementos dados, escolher e eleger a um de preferência ao outro.
A seguir lançamo-nos à ação, e então falamos de “impulso”. Depois nos pomos a
executar, e então falamos em “execução”. Depois da execução o apetite se
apazigua.
No caso dos seres desprovidos de razão, desde que se produz o apetite
por alguma coisa, segue-se imediatamente o impulso para a ação. O apetite, com
efeito, entre os seres desprovidos de razão, é irracional, e esses seres são
movidos por um apetite natural. Eis porque não podemos chamar de vontade nem de
intenção ao apetite dos seres desprovidos de razão; a vontade é um apetite
natural penetrado pela razão e pelo livre arbítrio. No caso do homem, devido à
presença da razão, o apetite natural é mais dirigido do que dirige. Pois ele
está sob o comando do livre arbítrio e da razão, visto que as faculdades
cognitivas e vitais se conjugam no homem. Seu apetite, seu projeto, sua
pesquisa, seu exame, sua deliberação, seu juízo, suas afeições, sua escolha,
seu impulso, sua ação referente aos seus objetivos naturais se desenvolvem
todos sob a influência do livre arbítrio.
Devemos saber que, a propósito de Deus, podemos falar em intenção, mas
não de livre escolha no sentido próprio do termo: Deus não delibera. Pois
deliberar é próprio da ignorância; a respeito do que é conhecido, ninguém
delibera. Ora, se a deliberação é própria da ignorância, não há dúvida de que
também o é a livre escolha. Deus, que sabe tudo, não tem sobre quê deliberar.
No caso da alma do Senhor, também não se pode falar de deliberação ou
livre escolha, pois ele era isento de ignorância. Apesar de que ela tinha uma
natureza que ignorava o futuro, por estar unida ao Deus Verbo segundo a
hipóstase, ela possuía o conhecimento de todas as coisas, não por graça, mas
como dissemos, ou seja, devido à sua união segundo a hipóstase. O Senhor, com
efeito, era Deus e homem. Por isso ele também não tinha querer por resolução. A
vontade natural, simples, aquela que podemos observar igual em todas as hipóstases
do homem, sim, esta ele possuía; mas a resolução, a saber, desejar
contrariamente ao seu querer divino, sua alma santa não possuía; ela também não
tinha querer que fosse de encontro ao seu querer divino. Pois a resolução é
distinta para cada hipóstase, salvo para a santa, simples, una e indivisível
divindade. Nela, como as hipóstases não se encontram em nada divididas nem
separadas, também o querer não é dividido. Nela, ademais, como a natureza é
única, única também é a vontade da natureza; visto, por outro lado, que as hipóstases
são inseparáveis, também é único o querer e único o movimento das três. Ao
contrário, no caso dos homens, como a natureza é única, única é também a
vontade natural; por outro lado, como as hipóstases são separadas e se
distinguem umas das outras pela localização e o tempo, bem como por sua
disposição diante das tarefas a cumprir e inúmeras outras coisas, os quereres e
as resoluções são, por isso, diferentes. No caso de nosso Senhor Jesus Cristo,
como as naturezas são diferentes, diferentes são também as vontades naturais,
ou faculdades volitivas, de sua divindade e de sua humanidade; mas, como sua
hipóstase é única e único é aquele que quer, único também é o que essa vontade
quer, vale dizer, o querer por resolução; com efeito, sua vontade humana segue
sua vontade divina e quer o que quer a vontade divina.
É preciso saber que uma coisa é a vontade, outra coisa a intenção,
outra o que se quer, outra ainda a capacidade de querer, e outra mais o sujeito
que quer. A vontade é a simples faculdade de querer tomada em si mesma; a
intenção é a vontade relativa a alguma coisa; o que se quer é a realidade que
se torna objeto da vontade, seja precisamente o que se quer (por exemplo, o
apetite é movido em direção ao alimento; o apetite em si é a vontade racional,
o apetite voltado para o alimento é a intenção, o alimento é em si mesmo o que
o apetite quer). Um ser volitivo é aquele que possui a faculdade de querer;
aquele que quer é aquele que utiliza essa vontade.
Devemos saber que o termo “querer” designa tanto a vontade, também
chamada de faculdade volitiva, a que chamamos de “querer natural”, como aquilo
que se quer, a que chamamos de “querer por resolução”.
37 (II, 23)
O ato
Devemos saber que todas as faculdades de que falamos, sejam elas
cognitivas, vitais, naturais ou fabricantes, são chamadas de “atos”. Com
efeito, são “ato” o poder e o movimento naturais de cada substância. Ou ainda:
é ato natural o movimento inato de toda substância. Segue-se daí que que, onde
a substância é idêntica, o ato é idêntico, e onde as naturezas são diferentes,
os atos são também diferentes. Pois é impossível que uma substância seja
desprovida de ato natural.
E também: que o ato natural é o poder indicativo de casa substância. É
ato natural, em primeiro lugar, a potência sempre em movimento da alma
intelectual, também chamada de seu verbo, sempre em movimento que brota
permanentemente por sua própria natureza. É ato natural a potência e o
movimento de cada substância, coisas das quais somente o nada é privado.
Também damos o nome de ato a atividades tais como falar, caminhar,
comer, beber e outras do gênero. Mesmo às paixões naturais, como a fome e a
sede, damos frequentemente o nome de ato. Também chamamos de ato a realização
da potência.
Falamos de potência e ato de duas maneiras. Com efeito, dizemos que o
bebê ainda no seio da mãe é gramático em potencial, pois ele possui a aptidão
para se tornar gramático por meio do estudo. Por sua vez, dizemos de um
gramático que ele o é em potência e em ato: em ato, porque ele possui o conhecimento
da gramática, e em potência, na medida em que ele pode expor esse conhecimento mas
não o está realizando num dado momento. E o chamamos de gramático em ato também
a partir do momento em que ele age, ou seja, quando ele expõe seu conhecimento.
O segundo modo é comum ao ato e à potência; mas ele é secundário em
relação à potência e primário em relação ao ato.
A vida da escolha espontânea, ou seja, aquela na qual se exerce a
razão e o livre arbítrio, a vida que dá consistência à nossa espécie, é um ato primeiro,
único e verdadeiro da natureza. Que o Senhor seja privado disso, nem por isso
deixa de se afirmar sua encarnação, não sei. O ato é um movimento operatório da
natureza; chamamos “operatório” aquilo que se move por si próprio.
38 (II, 24)
O voluntário e o involuntário
O que fazemos voluntariamente constitui uma ação e o que somos
obrigados a fazer contra nossa vontade constitui uma ação; por outro lado,
muitas pessoas classificam o que é realmente involuntário não apenas no domínio
da paixão, mas também no da ação; deve-se ter em mente que a ação é uma
operação racional. Das ações podem resultar a aprovação ou a reprovação;
algumas são feitas com prazer, outras com tristeza; algumas delas são
escolhidas pelo agente, outras são evitadas por ele; na primeira categoria,
existem as que escolhemos todo o tempo, e outras em determinado momento; e o
mesmo acontece com aquelas que são evitadas. E mais: dentre as ações, algumas
suscitam a piedade, outras são consideradas dignas de perdão, outras são
vergonhosas e castigadas. Assim sendo, as consequências constantes daquilo que
é voluntário são a aprovação ou a desaprovação, o fato de agir com prazer e o
fato de que essas ações constituem escolhas, sejam permanentes, sejam
ocasionais, dos agentes; quanto àquilo que é involuntário, ele traz em si um
veredito de perdão ou de piedade, a tristeza na ação, a ausência de uma escolha
deliberada e ainda o fato de que não se trata de uma ação cumprida por si
mesma, podendo inclusive que sejamos obrigados a fazê-la.
A ação involuntária acontece, seja por violência, seja por ignorância.
Pela violência, quando o princípio eficiente, também chamado de causa, provém
do exterior, ou seja, quando somos violentados por outrem, sem que consintamos
e sem que forneçamos a colaboração de nosso próprio impulso, sem nossa
cooperação e sem que fizéssemos por nós próprios aquilo que somos forçados a
fazer. Podemos expressar isso com uma definição: aquilo cujo princípio é exterior,
sem a colaboração de um impulso próprio do sujeito que recebe a violência. Como
“princípio”, entendemos a causa eficiente. Quanto ao que é involuntário por
ignorância, acontece quando não fornecemos por nós mesmos a causa de
ignorância, que é puro acidente. Com efeito, se um homem bêbado comete um assassinato,
ele o cometeu por ignorância, mas não o fez involuntariamente; pois ele é o
autor da embriaguez, que é a causa de sua ignorância. Ao contrário, se alguém
pratica tiro ao arco num lugar habitual e vem a matar seu pai que se encontra
ali, dizemos que ele cumpriu isso involuntariamente e por ignorância.
Dado que a ação involuntária se revestes dos dois aspectos da
violência e da ignorância, a ação voluntária irá se colocar oposta tanto a um
como a outro. É voluntário aquilo que se produz tanto sem violência quanto sem
ignorância. Assim sendo, é voluntário aquilo cujo princípio, ou causa, reside
naquele que conhece em detalhe os motivos e o meio em que acontece sua ação.
Esses detalhes são aqueles que os mestres de retórica chamam de “circunstâncias
parciais”, como “quem?”, ou seja, o agente; “sobre quem?”, ou seja, o paciente;
“o que?”, ou seja, o objeto da ação (por exemplo, um assassinato); “com que?”,
ou seja, o instrumento; “onde?”, ou seja, o lugar; “quando?”, ou seja, em que
momento; “como?”, ou seja, o modo da ação; “por que?”, ou seja, por qual
motivo.
Devemos ter em mente que existem certos intermediários entre o
voluntário e o involuntário, e casos em que aceitamos contrariedades e
tristezas por causa de um mal maior; é como no caso de um naufrágio, quando
atiramos a carga ao mar.
Devemos ter em mente que as crianças e os seres desprovidos de razão
agem voluntariamente, e, não obstante, sem escolha prévia; também as ações que
executamos por enfurecimento, as fazemos sem deliberação prévia,
voluntariamente, mas também sem livre escolha. Às vezes um amigo chega de
improviso; isso agrada à nossa vontade, mas não existiu livre escolha. E que,
de modo inesperado, descobre um tesouro, o faz alegrando sua vontade, mas não
por sua livre escolha. Tudo isso é voluntário porque encontramos o
consentimento nessas coisas, mas não em virtude de uma livre escolha, porque
nada disso é resultado de uma deliberação. Ora, para que existe escolha, é
absolutamente necessário que tenha havido antes uma deliberação.
39 (II, 25)
O que depende de nós, ou seja, o livre arbítrio
O discurso relativo ao livre arbítrio, ou seja, sobre o que depende de
nós, comporta como primeiro item de pesquisa a seguinte questão: alguma coisa
depende de nós? Pois muitos o contestam. Como segundo item: o que depende de nós, e sobre o que se exerce
nosso libre arbítrio? E em terceiro lugar é preciso examinarmos o porquê de
Deus, nosso criador, nos ter dotado de livre arbítrio. Voltemos ao primeiro
ponto e comecemos por fornecer a demonstração de que algumas coisas dependem de
nós, partindo daquilo a respeito de que nossos adversários estão de acordo.
Digamos, portanto, o seguinte:
De todos os acontecimentos que se produzem, Deus é a causa, segundo
essas pessoas, ou a necessidade, o destino, a natureza, a sorte ou o azar. Mas
a obra de Deus é a existência e a providência; a da necessidade, o movimento
dos seres que existem sempre da mesma maneira; a do destino consiste no
cumprimento necessário daquilo que se realiza por ele (de fato, ele depende da
necessidade); a obra da natureza é o nascimento, o crescimento, a corrupção, as
plantas e os animais; a da sorte, aquilo que é raro e inesperado (com efeito,
eles definem a sorte como o encontro ou a conjunção de duas causas que têm sua
origem numa escolha e que produzem algo diferente do que seria natural; como
descobrir um tesouro ao cavar uma fossa. Com efeito, nem aquele que depositou o
tesouro o fez para que este fosse descoberto, nem aquele que cavou o fez para
descobri-lo, mas o primeiro o fez para recuperar seu tesouro quando quisesse, e
o segundo para cavar uma fossa; então, aconteceu algo que nenhum dos dois havia
se proposto). Quanto ao azar, trata-se de coincidências relativas aos seres
desprovidos de alma ou de razão, nas quais não intervêm nem a natureza nem a
arte. Isso é o que dizem eles. Agora, a qual desses fatores iremos reportar a
atividade humana, se concordarmos que o homem não é nem causa nem princípio de
sua ação? pois não é legítimo atribuir a Deus ações que por vezes são
vergonhosas e injustas; isso também não pode ser atribuído à necessidade, pois
não se trata de seres sempre iguais a si mesmos; nem ao destino, pois, conforme
confessam essas pessoas, o que procede do destino não é o possível, mas o
necessário; nem à natureza, porque sua obra são os animais e as plantas; nem à
sorte, pois as ações dos homens não são nem raras, nem inesperadas; nem ao
azar, porque dissemos que dele dependem as coincidências entre seres sem alma e
sem razão. Resta, portanto, ser o homem que age e opera o princípio de suas
próprias obras, e que seja ele dotado de livre arbítrio.
A isso podemos acrescentar que se o homem não for o princípio de
nenhuma ação, será em vão que ele possui o poder de deliberar. Com efeito, de
que servirá deliberar, se não formos senhores de nenhuma ação? Toda deliberação
acontece tendo em vista uma ação. Ora, declarar como supérfluo o mais perfeito
e precioso dos dons do homem seria a maior dos absurdos. Portanto, se o home
delibera, é em vista de uma ação; pois toda deliberação acontece tendo em vista
uma ação, e para uma ação.
40 (II, 26)
Os acontecimentos
Dentre os acontecimentos, alguns dependem de nós, outros não. Dependem
de nós aqueles que temos livremente o poder de operar ou de não operar, ou
seja, tudo o que fazemos por nós mesmos por nossa própria vontade (pois não
diríamos ter sido feita por nossa vontade uma ação que não dependa de nós), e
também, simplesmente, tudo o que incorre em censura ou aprovação, tudo aquilo a
respeito de que exortamos ou legislamos. No sentido pleno, dependem de nós
todas as operações psíquicas e aquelas a respeito das quais deliberamos: a
deliberação se faz sobre possibilidades que se equilibram. Existe equilíbrio
entre possíveis sempre que podemos tanto fazer uma coisa quanto seu contrário.
A escolha sobre esse ponto é feita por nosso intelecto e constitui o princípio
da ação. Eis, por conseguinte, aquilo que depende de nós, onde os contrários se
equilibram; por exemplo, quando se trata de nos movermos ou de não nos movermos,
de nos lançarmos ou não nos lançarmos, de desejarmos ou não desejarmos o que
não é necessário, de mentir ou não mentir, dar ou não dar, de nos regozijarmos
nas ocasiões propícias e paralelamente não nos regozijarmos quando não couber o
regozijo. E em muitos outros casos semelhantes, onde estão em jogo a virtude e
o vício. Pois é sobre esses pontos que desfrutamos de nosso livre arbítrio.
Dentre as possibilidades de equilíbrio estão também as artes: depende de nós,
orientarmo-nos ou não para aquilo que queremos.
Devemos reconhecer que a escolha de nossas ações depende sempre de
nós; mas uma ação sempre pode ser impedida por alguma determinação da
Providência.
41 (II, 27)
Porque fomos nós dotados de livre arbítrio
Diremos agora que o livre arbítrio acompanha a racionalidade. Todo ser
que nasce, com efeito, é também sujeito à mudança. Pois tudo o que nasce por um
princípio de mudança, está necessariamente sujeito à mudança. A mudança
consiste em passar do nada à existência e em se tornar alguma coisa diferente a
partir de uma matéria pré-existente.
Assim é que os seres desprovidos de alma e aqueles desprovidos de razão
mudam segundo as alterações corporais que mencionamos; mas os seres racionais
mudam segundo sua livre escolha. De fato, o racional se divide em especulativo
e prático. Especulativa é a consideração dos seres tais como eles são em si
mesmos, e prática é a faculdade deliberativa, aquela que determina a justa
regra em relação às ações que deverão ser executadas. Também chamamos o
especulativo de “intelecto” e o prático de “razão”, o especulativo de
“sabedoria” e o prático de “prudência”. Assim, todo homem que delibera o faz
tendo em vista o pensamento de que a escolha de seus atos lhe cabe, de modo a
escolher aquilo ao que sua deliberação o induz e a executar aquilo que
escolheu; isto posto, necessariamente o libre arbítrio acompanha a razão; com
efeito, ou bem não se tratará de um ser racional, ou, sendo racional, ele será
mestre de seus atos e será dotado de livre arbítrio. Os seres desprovidos de
razão também são desprovidos de livre arbítrio. Sua natureza os conduz, mais do
que é conduzida por eles; por essa razão, eles não se opõem aos seus apetites
naturais; tão logo eles experimentam um apetite qualquer, se põem imediatamente
em ação. Ao contrário, o homem, que é racional, dirige sua natureza, mais do
que é dirigido por ela; eis porque, mesmo sendo presa de algum apetite, ele tem
o poder soberano, à sua vontade, de refrear esse apetite ou de segui-lo. Desse
modo, não podemos atribuir aos seres desprovidos de razão nem elogio nem
condenação, enquanto que podemos fazê-lo no caso do homem.
Devemos reconhecer que os anjos, sendo seres racionais, possuem o
livre arbítrio e que, na medida em que foram criados, eles são susceptíveis de
mudança. O diabo já demonstrou isso, ele a quem o criador fez bom, mas que, por
uma livre escolha, descobriu o mal, bem como as potência que, como ele, se
afastaram de Deus, ou seja, os demônios, enquanto que as demais ordens dos
anjos perseveraram no bem.
42 (II, 28)
O que não depende de nós
Dentre as coisas que não dependem de nós, algumas têm seus princípios
ou causas em coisas que dependem de nós; por exemplo, a retribuição de nossa
ações no século presente ou no século futuro. Todas as demais estão ligadas ao conselho
divino. Com efeito, a gênese de todas as coisas é de origem divina, enquanto
que a corrupção nos foi infligida por causa de nossa malignidade, para nos
castigar e nos socorrer. “Pois Deus não criou a morte e não sente prazer algum
em perder os vivos”[86].
Antes foi pelo próprio homem que veio a morte[87],
ou seja, por intermédio da transgressão de Adão, assim como todos os demais
castigos. Mas todo o resto deve ser atribuído a Deus: seu poder criador nos fez
nascer, seu poder conservador nos faz durar, seu poder providencial nos
governa. Mas, como alguns negam a Providência, vamos acrescentar algumas
palavras a respeito dela.
43 (II, 29)
A Providência
A Providência é a solicitude que Deus exerce para com os seres. Ou
ainda: a Providência é a intenção divina em virtude da qual todos os seres
recebem a direção apropriada. Se a Providência é a intenção de Deus, é
absolutamente necessário que tudo o que é feito pela Providência o seja em
conformidade com a correta razão e de modo perfeito, convindo plenamente a
Deus, e de tal maneira que seria impossível fazer melhor. Com efeito,
necessariamente, aquele que é o autor dos seres é também sua Providência: não é
conveniente nem lógico que seja um o autor dos seres, e outro a Providência;
nessa hipótese, ambos seriam fracos, um para produzir, outro para governar.
Portanto, Deus é tanto o autor como Providência, e seu poder criador, tanto
quanto seu poder conservador e seu poder providencial estão no mesmo nível em
sua vontade excelente: “Tudo o que quis, o Senhor fez[88]”,
e ninguém se opõe à sua vontade[89].
Ele quis que tudo existisse[90],
e tudo existiu; ele quis que o mundo se formasse e este se formou, assim como
tudo existe porque ele o quis.
O modo correto de perceber é prever, e prever bem. Somente Deus é, por
natureza, bom e sábio; na medida em que ele é bom, ele prevê (de fato, quem não
prevê não pode ser bom, tanto os homens como os seres desprovidos de razão
exercem, por sua natureza, uma previsão em favor de sua progênie e aquele que
não o faz é condenado). Na medida em que é sábio, Deus cuida dos seres à
perfeição.
Tendo isso tudo em vista, devemos admirar tudo, a tudo louvar, devemos
acolher todas as obras da Providência sem prévio exame, mesmo que elas pareçam
injustas para a maioria, devido ao caráter incognoscível e impalpável da
providência divina. Por “tudo”, eu entendo aquilo que não depende de nós. Pois
o que depende de nós não é da esfera da Providência, mas do nosso livre
arbítrio.
Quando se trata da Providência, certas coisas estão relacionadas ao
bom prazer, outras à permissão. Procede do bom prazer tudo o que é
indiscutivelmente bom. Quanto à permissão, ela adquire múltiplas formas. Com
efeito, muitas vezes Deus permite que mesmo o justo caia na infelicidade, para
mostrar aos outros a justiça que esconde nele, como no caso de Jó[91].
Outras vezes ele permite que se realize alguma ação exorbitante, para que, por
meio dessa ação exorbitante se efetue alguma maravilha, como a salvação dos
homens pela cruz. De outra maneira ainda, ele permite que o homem piedoso sofra
um infortúnio, para que ele não se afaste da retidão de consciência, ou ainda
para que o poder e a graça que recebeu não o façam cair no orgulho[92],
como no caso de Paulo. Alguém pode ser abandonado por algum tempo a fim de
servir para que outro se emende, para que outros se instruam, como no caso de
Lázaro e do rico[93];
pois, por natureza, a visão de certos sofrimentos nos tornam conscientes de nós
mesmos. Outro é abandonado para glória de um terceiro, não por causa de seus
pecados ou dos de seus pais; é o que aconteceu ao cego de nascença, para a
glória do Filho do homem[94].
Ou ainda, é permitido que um outro sofra em vista da emulação de outro, a fim
de que, tendo crescido a glória da vítima por essa prova, ela sirva para dar
esperança aos demais para a glória que virá, e para que eles desejem os bens
futuros, como no caso dos mártires. A alguém é permitida uma queda num ato mau
para corrigir uma paixão ainda pior. É o caso de uma pessoa que se orgulha de
suas virtudes e de suas ações brilhantes, e que Deus deixa que caia em
lascívia, a fim de que essa queda lhe mostre o sentimento de sua própria
fraqueza, e para que ela se humilhe e venha a se confessar ao Senhor.
Devemos estar cientes de que a decisão sobre o que fazer depende de
nós, mas que a realização em matéria de bem provém da assistência divina, a
qual, em sua justiça, coopera com aqueles que devido à retidão de sua
consciência escolheram o bem, em conformidade com sua presciência. Ao
contrário, a realização em matéria de mal provém do abandono por Deus, que,
mais uma vez, em conformidade com sua presciência, abandona com justiça aquele
que escolheu o mal.
Existem duas formas de abandono: um abandono que entra no plano divino
e que tem fins pedagógicos e um abandono que é uma negação total. O abandono em
virtude do plano divino é aquele que visa à correção, à salvação e à glória do
paciente ou à emulação de outrem, à sua imitação ou à glória de Deus. A negação
total acontece quando Deus fez de tudo para a salvação de um homem que permanece
insensível, incurável, intratável, por sua própria escolha; então ele é
entregue à perdição definitiva, como Judas. Que Deus nos afaste de tal
abandono, e que nos preserve dele!
É preciso ter consciência de que são inúmeras as voltas que dá a
divina providência, e que somos incapazes tanto de explicá-las por palavras
quanto de captá-las pelo intelecto.
Devemos reconhecer que todas as sombrias provações conduzem à salvação
os que as acolhem com gratidão[95]
e que elas lhe trazem sem dúvida um grande benefício.
É preciso saber que primitivamente Deus quer que todos sejam salvos e
alcancem seu reino[96].
Ele não nos moldou para o castigo, mas para a participação à sua bondade,
porque ele é bom. Mas, como ele é justo, ele quer que os pecadores sejam
punidos.
Por conseguinte, dizemos que a vontade primeira e antecedente, assim
como o bom prazer, provêm dele, enquanto que da vontade segunda e consequente,
bem como da autorização, como nós os responsáveis. E essa autorização possui
dois aspectos, sendo que um entra no plano divino e em sua pedagogia para nossa
salvação, enquanto que o outro é uma negação que conduz ao castigo final, como
já dissemos. Isso em relação ao que não depende de nós.
Quanto ao que depende de nós, Deus quer originalmente o que é bom e
traz prazer; quanto ao que é perverso e mau, ele não o deseja, nem
primitivamente, nem por via de consequência. Essas ele remete ao livre
arbítrio; pois o que se produz por violência não é nem racional nem virtuoso.
Deus exerce sua providência sobre toda a criação, espalhando suas benesses e
seu ensinamento por meio de toda a criação, até mesmo por meio dos demônios,
como no caso de Jó[97]
e dos porcos[98].
44 (II, 30)
A presciência e a predeterminação
É preciso reconhecer que Deus conhece tudo previamente, mas que ele
não determina tudo previamente. Ele conhece previamente, de fato, mesmo aquilo
que depende de nós, sem no entanto predeterminá-lo. Pois ele não quer que o mal
aconteça, mas tampouco constrange a virtude. De sorte que a predeterminação é
obra do imperativo divino que conhece previamente. Assim é que ele predetermina
segundo seu conhecimento prévio aquilo que não depende de nós. Com efeito, Deus
distingue tudo previamente em virtude de sua bondade e de sua justiça.
É preciso reconhecer ainda que a virtude, provinda de Deus, foi
inserida na natureza, e que ele é o princípio e a causa de todo o bem, e que,
sem sua cooperação e sua ajuda, nos é impossível querer e fazer o bem. Por
outro lado, depende de nós, seja persistir na virtude e seguir a Deus que nos chama
para ela, seja nos afastarmos da virtude, o que equivale a mergulhar no mal e a
nos colocarmos sob o jugo do diabo, que nos chama para isso, mas sem nos
forçar. Pois o mal não é outra coisa senão a desaparição do bem, assim como a
escuridão é o desaparecimento da luz. Portanto, se nos mantivermos firmes
naquilo que é conforme à natureza, permaneceremos na virtude; mas se
abandonarmos o que é conforme à natureza, nos afastaremos dela e cairemos no
mal.
A conversão é um retorno para aquilo que é conforme à natureza a
partir do que lhe é contrário, assim como o retorno do diabo para Deus por meio
da ascese e das obras.
Assim é que o Criador formara o homem masculino, participante de sua
graça divina e por isso em comunhão com ele. Imediatamente esse homem procedeu
de modo soberano à denominação dos animais[99],
gesto que proclamava o dom que lhe fora dado e que fazia deles seus servidores.
Criado à imagem de Deus, racional, intelectivo e dotado de livre arbítrio, ele
se encarregou da direção dos seres sobre esta terra, sob a autoridade do
criador e mestre de todas as coisas.
Mas Deus sabia em sua presciência que o homem chegaria à transgressão
e ficaria sujeito à corrupção; sendo assim, ele extraiu dele a mulher, auxiliar
e semelhante a ele[100],
com vistas a permitir a subsistência da espécie por meio da geração, após a
transgressão. Com efeito, a primeira modelagem é denominada “gênese”, e não
“geração”. A gênese é a primeira modelagem feita por Deus, enquanto que a
geração é o modo de suceder uns aos outros a partir da condenação à morte por
causa da transgressão.
Este homem foi colocado por Deus no paraíso espiritual e sensível; com
efeito, vivendo corporalmente sobre a terra no paraíso sensível, ele estava
primitivamente em contato com os anjos, cultivando pensamentos divinos e deles
se alimentando, nu na simplicidade e na ausência de artifícios, que o elevavam através
de todas as criaturas à altura do único criador, arrebatado e maravilhado pela
contemplado deste.
E como ele havia sido dotado por natureza de livre arbítrio sem sua
vontade, Deus lhe deu como regra não provar da árvore do conhecimento[101].
Já falamos suficientemente dessa árvore, na medida de nossas forças, no
capítulo sobre o paraíso. Deus deu ao homem esse preceito prometendo-lhe que se
ele preservasse a dignidade de sua alma, dando a vitória à razão, reconhecendo
aquele que o havia criado e guardando seu mandamento, ele participaria da
eterna beatitude e viveria para sempre, vitorioso sobre a morte. Mas se ele
submetesse a alma ao corpo, desconhecendo sua própria dignidade, assimilando-se
aos animais sem inteligência[102],
desembaraçando-se de seu autor e desdenhando sua prescrição divina, ele estaria
exposto à morte e à corrupção, e seria submetido ao sofrimento depois de viver
uma vida miserável. Pois não era benéfico para o homem ser incorruptível, sendo
ele ainda sem experiência e sem mérito, e arriscando-se a cair no orgulho e na
condenação do diabo. Este, de fato, devido à sua incorruptibilidade, depois de
uma queda livremente escolhida, fixou-se no mal[103]
sem esperança de arrependimento ou mudança, ao oposto dos anjos que, depois de
sua livre escolha pela virtude, foram inquebrantavelmente fundados no bem sob o
efeito da graça.
Seria, portanto, necessário que o homem primeiramente sofresse um exame
e atingisse a perfeição por meio das provas de um mandamento a ser obedecido,
para depois receber a incorruptibilidade em recompensa por sua virtude. Pois ele
era um intermediário entre Deus e a matéria; de um lado, depois de se ter
liberado, pela observação do mandamento, de sua relação de natureza com os
seres criados, ele deveria alcançar um enraizamento indestrutível no bem; por
outro lado, devido à transgressão, ele se aproximou da matéria; ao destacar seu
intelecto de sua causa – a saber, Deus – ele adquiriu uma afinidade com a
corrupção; ele se tornou passional ao invés de impassível, mortal no lugar de
imortal; ele teve necessidade da cópula e da geração copulativa, e se ligou por
desejo de vida aos prazeres, como se estes favorecessem a vida, detestando, ao
contrário, aqueles que prudentemente tentassem privá-lo desses prazeres; ele
transferiu seu desejo por Deus por um desejo pela matéria, e sua hostilidade se
voltou contra os membros de sua espécie ao invés de contra o autêntico inimigo
de sua salvação. De fato, foi a inveja do diabo[104]
que levou à perdição do homem. Invejoso e inimigo do bem, o diabo não pôde
suportar, tendo ele próprio caído por causa de sua revolta, que os bens do alto
se tornassem nossa herança. Eis porque este mentiroso seduziu o pobre homem com
a promessa de que ele se tornaria um deus; ele o conduziu ao cume de sua
própria revolta e o precipitou no abismo de uma decadência semelhante à sua.
[1]
Cf. Provérbios 8: 22-23.
[2]
Salmo 89: 2.
[3]
Hebreus 1: 2.
[4]
Cf. Miquéias 3: 30.
[5] A
restauração final de todas as coisas em sua unidade absoluta com Deus.
[6]
Salmo 103: 4.
[7]
Gênese 1: 31.
[8]
Cf. Jó 1: 12.
[9]
Cf. Mateus 8: 31.
[10]
Cf. Mateus 25: 41.
[11]
Salmo 113: 24.
[12]
Salmo 148: 4.
[13]
II Coríntios 12: 2.
[14]
Cf. Gênese 1: 7-8.
[15]
Salmo 103: 2.
[16]
Isaías 40: 22.
[17]
Salmo 148: 5-6.
[18]
Gênese 1: 8.
[19]
Deuteronômio 3: 80.
[20]
Cf. Efésios 1: 13.
[21]
Salmo 113: 6.
[22]
Salmo 148: 4.
[23]
Salmo 101: 27.
[24]
Isaías 65: 17.
[25]
Salmo 95: 11.
[26]
Salmo 113: 3. 5-6.
[27]
Salmo 113: 5.
[28]
Salmo 18: 2.
[29]
Gênese 1: 3.
[30]
Gênese 1: 1.
[31]
Gênese 1: 5.
[32]
Idem.
[33]
Gênese 1: 16.
[34]
Salmo 8: 4.
[35]
Cf. Romanos 1: 25.
[36]
Gênese 1: 2.
[37]
Gênese 1: 2.
[38]
Cf. Gênese 1: 7.
[39]
Cf. Gênese 1: 6.
[40]
Cf. Gênese 1: 9. 19-20.
[41]
Gênese 1: 10.
[42]
Gênese 1: 9.
[43]
Considerado um fenômeno meteorológico em que a água do mar é aspirada para o
céu.
[44]
Cf. Gênese 2: 10-14.
[45]
Id.
[46]
Gênese 1: 1.
[47]
Salmo 135: 6.
[48]
Jó 26: 7.
[49]
Salmo 74: 4.
[50]
Salmo 23: 2.
[51]
Deuteronômio 13: 42.
[52]
Salmo 48: 13.
[53]
Cf. Gênese 3: 19.
[54]
Gênese 1: 28.
[56]
Cf. Gênese 1: 26.
[57]
Cf. Gênese 2: 8.
[58]
Cf. Gênese 2: 9.
[59]
Ibid.
[60]
Esses três termos evocam a pedagogia divina que não busca pegar em erro o homem
recentemente instalado sobre a terra, mas sim fazê-lo adquirir o pleno
exercício do seu livre arbítrio: apopeira
é um termo concreto (“tentar o combate”, por exemplo, que sublinha a
intervenção divina); docime possui um
valor jurídico (“indício comprobatório”; cf. II Cor. 2: 9; 8: 2; 13: 3); gymnasion possui um valor moral (exercício
para formar a alma). Deus quer que o homem, tomando consciência de suas
capacidades, chegue a utilizá-las e atinja por seu próprio movimento a
perfeição que lhe é oferecida. A “vida feliz” do Paraíso não é um mero
presente, ela exige a livre cooperação do homem. (N.T.)
[61]
Cf. Gênese 3: 7.
[62]
Cf. Gregório de Nazianze, Orat. 38,
12. À primeira vista, João parece se inspirar nessa passagem, mas, sem prevenir
o leitor, ele transforma o texto de Gregório e substitui efesin por aisqhsin
(sensibilidade). O que quer dizer João? Sem dúvida, o seguinte: para Adão,
“conhecer sua própria natureza” equivale a se colocar a meio caminho como um
ser intermediário, entre o visível e o invisível, feito de inteligência e
sensibilidade. (N.T.)
[63]
Gênese 2: 25.
[64]
A apaqeia é a marca da divinização do
cristão. O pensamento de Damasceno a esse respeito é perfeitamente coerente:
ser isento de paixão equivale a afastar a preponderância da sensibilidade em
proveito da parte superior (nous), sem,
no entanto, reduzir em nada a própria sensibilidade. (N.T.)
[65]
Salmo 54: 23.
[66]
Lucas 12: 22.
[67]
Mateus 6: 33.
[68]
Lucas 10: 41-42.
[69]
Por meio dessas citações, João sublinha a proeminência no homem da atividade
espiritual. (N.T.)
[70]
Cf. Gênese 2: 9.
[71]
Temenos é um termo que possui um
sentido mais forte do que “domínio”. Poderíamos empregar “apanágio”, para
frisar a continuidade do pensamento. Esse domínio terrestre é um dom gratuito
do Pai. Da mesma forma, efgasis poderia
ser traduzido por “aparência”, no sentido de que o ser humano por si mesmo se
manifesta na criação como um ser duplo. (N.T.)
[72]
Gênese 2: 16.
[73]
Romanos 1: 20.
[74]
Salmo 138: 6.
[75]
Gênese 2: 16.
[76]
Cf. I Timóteo 6: 19.
[77]
Gênese 2: 17.
[78]
Cf. Mateus 15: 17.
[79]
Provérbios 11: 30.
[80]
Gênese 2: 17.
[81]
Gênese 3: 5.
[82]
Cf. Gênese 3: 6-7.
[83]
Romanos 9: 20.
[84]
Gênese 1: 26.
[85]
Ou “formado por diversos elementos”.
[86]
Sabedoria 1: 13.
[87]
Cf. Romanos 5: 12.
[88]
Salmo 134: 6.
[89]
Cf. Romanos 9: 19.
[90]
Cf. Salmo 148: 5.
[91]
Cf. Jó 1: 12.
[92]
Cf. II Coríntios 12: 7.
[93]
Cf. Lucas 16: 19-31.
[94]
Cf. João 9: 2-3.
[95]
Cf. Romanos 8: 28.
[96]
Cf. I Timóteo 2: 4.
[97]
Cf. J[o 1: 12.
[98]
Cf. Mateus 8: 20-32.
[99]
Cf. Gênesis 2: 19.
[100]
Cf. Gênesis 2: 18.
[101]
Cf. Gênesis 2: 17.
[102]
Salmo 48: 3.
[103]
Cf. I Timóteo 3: 6.
[104]
Cf. Sabedoria 2: 24.
A Paz, Tito! Deus te abençoe por partilhar tão raro e maravilhoso material dos Santos Padres e da riqueza da Igreja.
ResponderExcluirVocê tem as Conferências de Cassiano para postar?
Um abraço em Cristo!
Roberto Del Moro