João Damasceno - A Fé Ortodoxa - Livro I
1 (I, 1)
Que o divino é incompreensível e que é preciso renunciar a se informar
e a inquirir com curiosidade sobre coisas que não nos foram
transmitidas
pelos santos profetas, apóstolos e evangelistas.
“Ninguém jamais viu a Deus. O Filho unigênito que está no seio do Pai
no-lo revelou[1]”.
Assim, o divino é indizível e incompreensível. “Pois ninguém conhece o Pai a
não ser o Filho, e ninguém conhece o Filho senão o Pai[2]”.
E o Espírito Santo conhece as coisas de Deus como o homem conhece as coisas do
homem[3].
Segundo sua natureza primigênia e bem-aventurada, ninguém jamais conheceu a
Deus, senão aqueles a quem ele próprio se revelou, não apenas dentre os homens,
mas mesmo dentre as potências hipercósmicas, dentre elas os querubins e os
serafins.
E entretanto Deus não nos deixou na total ignorância; pois o
conhecimento de que Deus existe foi naturalmente semeado por ele em todos.
Ademais, a própria criação, sua coesão e sua governança proclamam a
magnificência da natureza divina. E pela lei e os profetas, primeiro, e depois
por seu Filho único, nosso Deus e nosso Salvador Jesus Cristo, segundo aquilo
que nos é acessível, Deus deixou claro o conhecimento de si mesmo. Assim é que
nós aceitamos, conhecemos e veneramos – sem tentar conhecer mais além – tudo o
que nos foi transmitido pela lei, pelos profetas, pelos apóstolos e pelos
evangelistas. Pois, sendo bom, Deus é o doador de todo bem, isento de
necessidade e de qualquer paixão que seja, pois “a necessidade está
incomensuravelmente afastada da natureza divina, que é impassível e a única
boa”. Em conclusão, como ele sabe tudo e toma o cuidado de buscar para cada um
aquilo que lhe é mais benéfico, ele nos revelou tudo o que é útil que
conheçamos, mas não o que somos incapazes de entender. Quanto a nós,
contentemo-nos com essas coisas, e conservemo-nos assim, sem tentar franquear
os limites eternos[4]
nem transgredir a tradição divina.
2 (I, 2)
O dizível e o indizível, o conhecível e o incognoscível.
Assim, quem quiser falar ou ouvir a respeito de Deus, deve saber com
clareza que nem todas as coisas são indizíveis, nem todas são dizíveis, tanto
as que dizem respeito à teologia como as que se referem à Economia; que nem
todas as coisas são incognoscíveis e nem todas são conhecíveis; que o
conhecível é uma coisa e o dizível é outra, assim como falar é uma coisa e
conhecer é outra. Desta forma, muitas concepções que formamos obscuramente a
respeito de Deus não podem ser explicadas convenientemente, mas somos
constrangidos a enunciar de nossa maneira aquilo que nos ultrapassa, como
quando, por exemplo, atribuímos a Deus sono, cólera, indiferença, mãos, pés e
outras coisas do gênero.
Que Deus não tem começo nem fim, que ele é eterno e perpétuo,
incriado, imutável, inalterável, simples, não composto, incorpóreo, invisível,
impalpável, incircunscritível, ilimitado, inapreensível, incompreensível,
impensável, bom, justo, todo-poderoso, criador de todas as criaturas, mestre de
tudo, dotado de uma visão universal, previdente de todas as coisas, soberano,
juiz, tudo isso bem sabemos e, mais do que isso, confessamos. Da mesma forma,
que Deus é um, vale dizer, uma essência única, que ele se dê a conhecer e
exista em três hipóstases, Pai, Filho e Espírito Santo; que o Pai, o Filho e o
Espírito Santo são um sob todos os aspectos, exceto quanto à ausência de
geração, à geração e à processão; que o Filho único, Verbo de Deus e Deus, por
causa da profundidade de sua misericórdia e com vistas à nossa salvação, com a
aquiescência do Pai e a cooperação do Espírito Santo, foi concebido sem semente
e que, sem corrupção, nasceu da Virgem e Mãe de Deus, Maria, por intermédio do
Espírito Santo e que, saindo dela, se fez um homem perfeito; que ele é Deus
perfeito, ao mesmo tempo que é homem perfeito, formado de duas naturezas, a
saber, a divindade e a humanidade, que ele se encontra em duas naturezas
dotadas de inteligência, de vontade, de atividade, de liberdade, numa palavra,
que existem de modo perfeito dentro dos limites e da medida que cabe a cada
qual, a divina e a humana, mas numa hipóstase única e composta, que ele teve
fome e sede, que enfrentou a fadiga, que foi crucificado e que aceitou a
provação da morte e do túmulo, que ele ressuscitou ao terceiro dia e que subiu
aos céus, de onde retornou a nós e de onde virá um dia novamente, disso tudo
dão testemunho a Escritura divina e todo o coro dos santos[5].
Mas no que consiste a essência de Deus, ou de que maneira ela se
encontra em todas as coisas, ou de que modo Deus nasceu de Deus ou dele
procede, ou como, tendo se esvaziado de si[6],
o Filho único e Deus se tornou homem ao sair de um sangue virginal, tendo sido
conformado segundo outra lei do que a lei da natureza, e como, sem molhar seus
pés ele caminhou sobre as águas[7]
– essas coisas nós ignoramos e somos incapazes de dizer. Em conclusão, fora
aquilo que de modo divino nos foi manifestado, anunciado ou revelado pelas
santas Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos, é impossível, a respeito de
Deus, dizer ou compreender seja lá o que for.
3 (I, 3)
Demonstração de que Deus existe
Que Deus existe, aqueles que creem nas santas Escrituras – ou seja, no
Antigo e no Novo Testamentos – não o contestam, assim como a maior parte dos
gregos: como dissemos, com efeito, o conhecimento da existência de Deus está
semeada em nós naturalmente. Mas a maldade do maligno se impôs à natureza
humana, a ponto de fazer alguns descerem ao abismo da perdição, o mais absurdo
e pior dos males, que consiste em dizer que Deus não existe. É a respeito
desses que o hierofante Davi declarou, denunciando sua loucura: “O insensato
diz em seu coração: Deus não existe[8]”.
Assim, de início, os discípulos e os apóstolos do Senhor, instruídos pelo
Espírito Santíssimo, e operando os sinais divinos pelo poder de sua graça,
conduziram os homens, capturando-os nas redes de seus milagres, para a luz do
conhecimento de Deus, para fora do abismo do desconhecimento. Depois, do mesmo
modo, seus sucessores na ordem da graça e da dignidade, pastores e doutores,
depois de haver recebido a graça luminosa do Espírito, tanto pelo poder dos
milagres como pela palavra da graça, iluminaram os que estavam nas trevas e
converteram os que estavam perdidos. Quanto a nós, que não recebemos nem o
carisma dos milagres nem o do ensinamento, por nos termos tornado indignos
devido à nossa ligação passional com os prazeres, tentaremos expor algumas das
coisas que nos foram transmitidas a esse respeito pelos porta-vozes da graça,
depois de termos invocado o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Todos os seres são ou criados ou incriados. Os que são criados são sem
dúvida mutantes: pois aqueles cujo ser começou a partir de uma mudança estarão
também, sem dúvida, submetidos à mudança, quer sejam tocados pela corrupção,
quer alterados por uma escolha deliberada. Ao contrário, os que são incriados,
por uma razão corolária, são sem dúvida alguma imutáveis: pois os seres cujo
ser é o contrário daqueles (os criados), também definirão seu modo de ser, ou
seja, suas características próprias, de modo contrário. Quem, então, não
concordará que todos os seres, na medida em que caem sob nossos sentidos – mas
também os anjos – mudam, se alteram, evoluem de múltiplas maneiras e sofrem
transformações? Os seres inteligíveis, ou seja, os anjos, as almas e os
demônios, mudam por uma escolha deliberada, por uma progressão em direção ao
bem ou por um afastamento do bem, nisso se aplicando ou relaxando. Quanto aos
demais seres, eles mudam por geração ou corrupção, por crescimento ou declínio,
por transformação qualitativa ou por alteração local. Sem dúvida, se eles
mudam, é porque necessariamente foram criados. Se foram criados, são
necessariamente obra de alguém. Por sua vez, é preciso que o criador seja
incriado: pois se este for também criado, ele terá sido necessariamente criado
por alguém, e assim até que cheguemos a algo que seja incriado. E se ele é
incriado, o criador será também necessariamente imutável. Este algo, seria ele
outra coisa senão Deus?
E a própria coesão da criação, sua conservação e seu governo nos
ensinam que aquele que constituiu o universo e que o mantém em sua coesão[9],
que o conserva e o provê de tudo todo o tempo, é Deus. Pois como as naturezas
opostas, como as do fogo, da água, do ar e da terra, podem estar reunidas umas
às outras e permanecer inseparáveis para compor um único mundo, se algum poder todo-poderoso
não as aproximar e as conservar sempre inseparáveis?
O que introduz ordem entre os seres celestes e terrestres, todos os
que vivem no ar e todos os que vivem na água, ou melhor, os elementos
anteriores a esses seres, o céu, a terra, o ar e a natureza do fogo e da água?
Quem os misturou e separou? O que os pôs em movimento e que conduz seu curso
contínuo que ninguém pode deter? Não é o artesão de todas as coisas, aquele que
depositou em todas uma razão de ser segundo a qual o universo percorre seu
curso e se desloca? Mas quem é esse artesão? Não é aquele que os fez e que
produziu sua existência? Pois não podemos atribuir tal poder ao acaso. Mesmo se
admitirmos que o fato de produzir seja um atributo do acaso, de quem partiu a
ordem? A quem cabe conservar e guardar as razões segundo as quais as coisas
existiram pela primeira vez? É evidente que se trata de algo bem diferente do
acaso. Este princípio, o que será ele, senão Deus?
4 (I, 4)
O que é Deus: que ele é incompreensível
Assim, fica evidente que Deus existe; mas aquilo que ele é por
essência e por natureza escapa completamente à compreensão e se torna
incognoscível. Que ele seja incorpóreo, é evidente. Pois como o infinito, o
indeterminável, o que é impossível figurar, o impalpável, o invisível, o
simples, o não composto, poderia ser um corpo? Como poderá ele ser adorado se
for circunscrito e capaz de experimentar sentimentos de prazer e de dor? E como
seria ele impassível se fosse composto de elementos e se dissolvesse neles em
seguida? Pois a composição é o princípio da luta, a luta é o princípio da
divisão, a divisão o princípio da desaparição; mas a desaparição é algo
totalmente estranho a Deus.
Como então poderá se conservar em toda sua integridade a afirmação de
que Deus penetra todas as coisas e preenche o universo, como afirma a
Escritura: “Não fui eu que preenchi o céu e a terra?, declarou o Senhor[10]”.
Pois é impossível que um corpo passe através dos corpos sem cortar ou ser
cortado, sem se entrelaçar ou se opor, como acontece com os líquidos que são
mesclados ou misturados.
Alguns, entretanto, afirmam a existência de um corpo imaterial, algo
como o que os sábios gregos chamavam de “quinto elemento”, mas isso é
impossível: esse corpo seria necessariamente movido, como o céu, pois é a este
que eles chamavam de quinto corpo. Mas então quem o move? Pois todo ser que é
movido é movido por outro. E a este, quem o move? Isso continua até o infinito,
até que se chegue a algo que é imóvel; pois o primeiro motor é imóvel, e isso é
precisamente o divino. E como o que é movido não seria ele circunscrito a um
lugar? Portanto, somente o divino é imóvel, e graças à sua imobilidade ele move
o universo. Por conseguinte, é necessário entender o divino como incorpóreo.
Mas isso tampouco consiste numa elucidação de sua essência, assim como
não o são os predicados de não gerado, de sem começo, de inalterável, de
incorruptível e todos os que são enunciados relativamente a Deus ou que se
referem a Deus; pois esses predicados não significam o que ele é, mas o que ele
não é. E quem pretende falar da essência de uma coisa deve explicar o que é
essa coisa, não o que ela não é; a propósito de Deus, no entanto, é impossível
dizer o que ele é em essência. É mais apropriado compor o discurso a partir da
supressão de todas as coisas: pois Deus não tem nada dos seres, não por não
ser, mas por estar acima de todos os seres e do próprio ser. Então, se os
conhecimentos são relativos aos seres, o que está acima do conhecimento estará
também necessariamente acima da essência, e inversamente aquilo que está acima
da essência estará igualmente acima do conhecimento.
Portanto, o divino é ilimitado e incompreensível; e dele apenas isso
pode ser captado: sua ilimitação e sua incompreensibilidade. Tudo o que dizemos
de Deus de uma maneira afirmativa mostra não sua natureza, mas aquilo que está
ao redor de sua natureza. Mesmo quando declaramos que ele é bom, justo, sábio
ou o que for, não estamos falando de sua natureza, mas daquilo que envolve sua
natureza. Encontramos ainda alguns enunciados afirmativos relativos a Deus que
são dotados de um alto grau de poder de negação: por exemplo, quando atribuímos
as trevas a Deus, não pensamos que ele seja a treva, pensamos que ele não é
propriamente a luz, mas que está acima da luz.
5 (I, 5)
Demonstração de que existe um só Deus e não muitos.
Que Deus existe e que sua essência é incompreensível, isto já
demonstramos o suficiente. Que, de outro lado, exista apenas um único Deus e
não muitos, isso não é contestado por aqueles que creem nas Escrituras. Com
efeito, o Senhor, ao começar a editar a lei, declarou: “Eu sou o Senhor seu
Deus, que te tirou do Egito. Não terás outros deuses diante de mim[11]”.
E mais: “Escuta, Israel: o Senhor teu Deus é único[12]”.
Depois, por intermédio do profeta Isaías: “Eu sou o Deus primeiro e depois que
passem as coisas eu ainda serei, e não existe outro Deus senão eu. Antes de mim
nenhum deus existiu e depois de mim não existirá nenhum, e não existe outro
Deus senão eu[13]”.
Depois, o Senhor, nos santos Evangelhos, declarou assim ao Pai: “A vida eterna
é que eles o conheçam, a ti, o único e verdadeiro Deus[14]”.
Mas para aqueles que não creem na Santa Escritura, raciocinaremos
assim. O divino é perfeito e nada lhe falta em relação à bondade, sabedoria e
poder, e ele é sem começo nem fim, eterno, incircunscrito, numa palavra: ele é
perfeito em tudo. Assim, se dissermos que existem muitos outros deuses, é
forçoso considerarmos uma diferença na pluralidade. Pois, se entre eles não
houver nenhuma diferença, antes haverá um Deus único do que muitos deuses. Mas
se dentre eles houver diferença, onde estará então a perfeição? Que lhe falte a
perfeição segundo a bondade, segundo a sabedoria, segundo o poder, segundo o
tempo ou segundo o lugar, já não será mais Deus. Por outro lado, a identidade
em tudo mostra que existe apenas um Deus e não muitos. E ademais, como se
poderá conservar o incircunscrito, se forem muitos? Com efeito, onde houver um,
o outro não poderá existir. Como poderá o mundo ser governado por muitos, e,
sobretudo, como escaparia ele da destruição e da corrupção, por pequena que
fosse a desavença entre seus governantes? Com efeito, a diferença conduz à
oposição. Podemos sugerir então que cada um governe uma parte, mas nesse caso
quem regraria entre eles a ordem e a partilha? Esse “quem” seria, antes de
qualquer coisa, Deus. Deus é, portanto, único, perfeito, incircusncrito, autor
do universo que ele mantém e governa, acima do perfeito e origem do perfeito.
Enfim, que a mônada seja o princípio da díade é uma necessidade de
natureza.
6 (I, 6)
O Verbo de Deus
Certamente, esse Deus só e único não é desprovido de Verbo. Mas se ele
é provido de Verbo, não haverá um verbo sem subsistência, que comece e cesse de
existir. Pois nunca houve um tempo em que Deus tenha existido sem Verbo. Desde
sempre, ele está de posse de seu próprio Verbo, saído dele por geração, de
maneira tal que não pode ser redutível à do nosso verbo, o qual é sem
subsistência e que escapa no ar, mas, ao contrário, ele é subsistente, vivo,
perfeito, não se separando dele, mas sempre se encontrando nele: com efeito,
onde poderia ele se encontrar, caso se separasse dele? Pois, assim como a nossa
natureza é perecível e se dissolve facilmente, eis porque nosso verbo é sem
subsistência. Mas Deus, que existe desde sempre, que é perfeito, deve possuir
seu próprio Verbo, perfeito e subsistente, existindo desde sempre, vivo, e
possuindo tudo o que possui aquele que o gerou. Pois, assim como o verbo saído
de nosso intelecto não é nem totalmente idêntico ao intelecto, nem
absolutamente diferente – pois, saído do intelecto, ele difere deste, mas, por
levar o intelecto a se manifestar, ele tampouco é de fato diferente dele; mas
ele forma uma unidade com ele por natureza e difere dele pelo suporte – da
mesma forma o Verbo de Deus, na medida em que existe por si mesmo, se distingue
em relação àquele junto do qual ele tem sua hipóstase; mas na medida em que ele
mostra em si todos os caracteres que constatamos em Deus, ele é idêntico a este
pela natureza. Com efeito, assim como contemplamos no caso do Pai aquilo que é
perfeito em todos os pontos, também o contemplaremos no caso do Verbo que foi
gerado a partir dele.
7 (I, 7)
O Espírito Santo
É preciso que o Verbo possua também um Espírito: e da mesma forma
nosso próprio verbo também não deixa de participar de um espírito. Mas em nós o
sopro do espírito é estranho à nossa própria substância; pois ele consiste na
aspiração e expiração do ar inalado e exalado em relação à constituição própria
de nosso corpo. E, no instante em que se dá a emissão da voz, esse fenômeno é a
expressão do verbo e manifesta em si mesmo o valor que tem o verbo. Mas no caso
da natureza divina, que é simples e não composta, devemos, com respeito
religioso, confessar que existe um Espírito de Deus, porque o Verbo de Deus não
falta em relação ao nosso verbo e, de resto, não é religioso pensar que o
Espírito é um elemento exterior que se introduz em Deus desde fora, como
acontece conosco que somos compostos. Mas, assim como aprendemos que existia um
Verbo de Deus e não o consideramos como desprovido de substância, nem como
sendo resultante de um conhecimento adquirido, nem como se manifestando por
meio da voz, nem se derramando no espaço e se dissolvendo, mas o vimos como um
ser dotado de substancialidade, capaz de livre escolha, ativo e todo-poderoso;
da mesma forma, instruídos sobre a existência de um Espírito de Deus, que anda
em par com o Verbo e que manifesta sua atividade, não o concebemos como um
hálito desprovido de substância. Se é assim que acontece, equivaleria a
rebaixar até nossa baixeza a grandeza da natureza divina supor como sendo à
semelhança de nosso próprio sopro o Espírito que está em Deus. Mas o concebemos
como uma potência substancial, considerada em si numa hipóstase própria, procedente
do Pai e repousando no Verbo, ao qual ele revela. Não podemos separá-lo de Deus
em quem ele existe, nem de seu Verbo, que ele acompanha; ele não se esvazia ao
se dissipar, mas existe segundo a hipóstase e à semelhança do Verbo, ele vive,
ele escolhe, ele se move por si sé, ele age, ele quer o bem em toda
circunstância e, para realizar seus desejos, ele possui um poder correspondente
à sua vontade, e ele não tem começo nem fim. Com efeito, jamais o Verbo faltou
ao Pai, nem o Espírito ao Verbo.
Assim, pela unidade segundo a natureza, a crença errônea dos gregos em
muitos deuses é aniquilada, enquanto que, pela aceitação do Verbo e do
Espírito, a crença dos judeus é derrubada. E de cada uma dessas heresias
persiste o elemento útil, a saber, a concepção judaica da unidade de natureza,
enquanto que da concepção grega persiste a distinção referente às hipóstases –
mas apenas ela. Se o judeu vem a se opor à aceitação do Verbo e do Espírito,
que seja ele confundido e reduzido ao silêncio pela divina Escritura. Pois, a
respeito do Verbo, Davi declara: “Por toda a eternidade, Senhor, teu Verbo
habitará no céu[15]”,
ou ainda: “Envia tua palavra e ela os há de curar[16]”.
Uma palavra proferida[17]
não é cheia de justiça e de verdade, e tampouco dura através dos séculos. A propósito
do Espírito, o mesmo Davi declara: “Tu enviarás teu Espírito e tudo será criado[18]”,
ou ainda: “Pela palavra do Senhor foram fixados os céus e pelo sopro de sua
boca todo o seu poder[19]”;
da mesma forma, Jó declara: “Foi o sopro de Deus que me criou, o hálito do
Todo-Poderoso que me conserva[20]”.
Mas um Espírito que é enviado, criador, capaz de fixar e de conservar,
não é um sopro que se dispersa, assim como precisamente a boca de Deus não é um
órgão corporal: é preciso certamente conceber cada uma dessas afirmações como
convém à divindade.
8 (I, 8)
A santa Trindade
Assim é que cremos em um só Deus, princípio único sem princípio,
incriado, não gerado, indestrutível e imortal, eterno, infinito, ilimitado,
incircusncrito, com um poder infinito, simples, excluindo toda e qualquer
composição, incorpóreo, inexpansível, impassível, imutável, inalterável,
invisível, fonte de bondade e de justiça, luz inteligível, inacessível, poder
que não conhece medida alguma, que é medido exclusivamente por sua própria
vontade – pois tudo o que ele quer ele quer – autor de todas as criaturas
visíveis e invisíveis, guardião de tudo, provedor de tudo, dominando e
comandando todas as coisas, e cujo reino é sem fim e imortal; nada se opõe a
ele, ele preenche tudo, ela não é contido por nada, antes abarca, mantém e
sobrepassa a tudo; sem mancha, ele penetra as essências inteiras e se situa
além de todas as coisas, separado de toda essência (por ser supra-essencial),
acima dos seres, acima do divino, acima do bem, acima da plenitude. Ele definiu
todos os princípios e todas as ordens e se situa acima da essência da vida, da
palavra, do pensamento de todo princípio e ordem; ele é luz por si só, bondade
por si só, vida em si, existência em si, porque não recebeu de outro a
existência nem nada de tudo o que é, enquanto que ele próprio é a fonte da existência
de todos os seres, da vida para os vivos, da razão para os que participam da
razão; para todos ele é a causa de todos os bens, ele conhece a todas as coisas
antes de seu nascimento, essência única, divindade única, potência única,
vontade única, atividade única, princípio único, poder único, senhoria única,
realeza única, conhecida em três hipóstases e adorada numa adoração única. Toda
criatura racional crê nessas três pessoas e as venera, unidas que estão sem
confusão e distintas de modo indiviso, ainda que isso seja extraordinário. Nós
cremos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, nos quais fomos batizados; pois é
assim que o Senhor prescreveu aos Apóstolos que batizassem: “Batizai-os, disse
ele, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo[21]”.
Cremos em um único Pai, princípio e causa universal, que não tirou de
ninguém sua existência, mas que é o único sem causa e não gerado. Autor de
todas as coisas, ele não é Pai por natureza senão de seu Filho único,
monogênio, nosso senhor, Deus e salvador, Jesus Cristo, e é dele que procede o
Espírito Santo. Cremos igualmente em um Filho único de Deus, monogênio, nosso
senhor Jesus Cristo, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, luz de luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai,
por quem tudo foi feito. Ao dizermos “antes de todos os séculos”, mostramos que
sua geração é intemporal e sem começo. Pois não foi da não-existência à
existência que foi trazido o Filho de Deus, a irradiação de sua glória, a marca
da hipóstase do Pai, a sabedoria e a potência divina, o Verbo subsistente, a
imagem substancial, perfeita e viva do Deus invisível, mas ele esteve sempre
com o Pai e nele eternamente, gerado por ele sem começo; pois não existiu um
dia em que o Pai existisse sem que existisse o Filho, mas sempre houve ao mesmo
tempo um Pai e ao mesmo tempo um Filho gerado a partir dele: com efeito, sem o
Filho, não poderíamos chamá-lo de Pai. Se ele existisse sem que houvesse um
Filho, ele teria se tornado um Pai em seguida sem ter sido Pai anteriormente e
teria passado de um estado de não-pai ao estado de Pai, o que é a mais grave de
todas as blasfêmias. Pois é impossível dizer que Deus seja desprovido de
fecundidade natural; a fecundidade consiste em gerar a partir de si, ou de sua
própria substância, uma realidade semelhante por natureza.
Sobre a geração do Filho, é ímpio dizer que uma duração se interpôs,
ou que o Filho veio à existência depois do Pai: pois foi deste, ou seja, da
natureza mesma do Pai, que o Filho foi gerado. E, se não concordarmos que desde
o princípio o Filho existe com o Pai que o gerou, estaremos introduzindo desde
fora uma alteração na hipóstase do Pai, pois, não sendo antes Pai, ele teria se
tornado Pai ulteriormente. Pois a criação, embora tenha sobrevindo a seguir,
mas em que tenha saído da essência de Deus, foi trazida da não-existência à
existência por sua vontade e seu poder, e essa alteração não atingiu a natureza
de Deus. Pois se o ato de gerar consiste em que da substância geradora procede
o gerado, que é de essência semelhante, o ato de criar e de fabricar consiste
em trazer de fora, e não da essência do criador que fabrica, aquilo que é
criado ou fabricado, e que é absolutamente dessemelhante.
Por conseguinte, no caso do Deus único, impassível, sem alteração,
imutável e sempre idêntico a si mesmo, gerar e criar não o afetam: pois, sendo
impassível por natureza e sem expansão, por ser simples e sem composição, por
natureza ele não sofreu paixão ou expansão nem no ato de gerar, nem no ato de
criar, nem teve necessidade de cooperação alguma; mas o ato de gerar sem princípio e eterno é uma obra de sua natureza
e no seu ponto de partida a partir de sua substância, de tal modo que o gerador
não sofreu alteração, e que não existe um Deus antes e um Deus depois, e que
não cabe admitir um complemento. Quanto à criação, obra da vontade divina, ela
não é co-eterna a Deus, porque o que foi trazido da não-existência à existência
não é por natureza co-eterno àquele que é sem começo e que existe desde sempre.
Do mesmo modo, o homem e Deus não produzem da mesma maneira: o homem, de fato,
não traz nada da não-existência à existência, mas aquilo que ele fabrica, ele o
faz a partir de uma matéria pré-existente, depois de haver não apenas desejado,
mas também refletido, imaginado em seu intelecto o que iria nascer dali, e
depois de haver trabalhado com as mãos e suportado fadiga e pena, tendo falhado
mais de uma vez com seu objetivo, por falta de habilidade em relação ao seu
desejo; mas Deus, por sua simples vontade, trouxe todas as coisas da
não-existência para a existência. E também não é de modo semelhante que Deus e
o homem geram. Com efeito, Deus, por ser intemporal, sem começo, impassível,
sem efusão, incorpóreo, único e sem fim, gera de modo intemporal, sem começo,
sem paixão e sem associação, e sua geração incompreensível não tem começo nem
fim. Ela é sem começo porque ela exclui a mudança, sem efusão por causa de seu
caráter impassível e incorpóreo, ela é sem associação ainda por seu caráter
incorpóreo e porque Deus é só e único, sem necessidade de um outro; ela é sem
fim nem descanso, porque é sem começo, intemporal e sem fim e sempre idêntica a
si mesma. Pois o que é sem começo é sem fim, mas o que é sem fim por um
favorecimento não é necessariamente sem começo, como os anjos.
Assim é que Deus, que existe desde sempre, gerou seu próprio Verbo,
que é perfeito por ser sem começo nem fim, a menos que se diga que Deus
procriou no tempo, ele cuja natureza e existência estão acima do tempo. Mas o
homem manifestamente gera de modo completamente oposto, ele que é tributário do
nascimento, da destruição, do fluxo, da multiplicação, que é dotado de um corpo
e que em sua natureza possui o macho e a fêmea: pois o macho precisa da ajuda
da fêmea – e que nos seja propício aquele que está além de todas as coisas e
que ultrapassa toda inteligência e toda compreensão.
A santa Igreja católica e apostólica nos ensina assim o Pai e seu
Filho monogênio, gerado por ele de maneira intemporal, sem efusão, de modo
impassível e incompreensível, como só o sabe o Deus do universo. Assim como o
fogo existe ao mesmo tempo que a luz que provém dele, não havendo aí
anterioridade, mas simultaneidade da luz e do fogo, também a luz perpetuamente gerada
pelo fogo se encontra sempre nele, sem nenhuma separação, e, da mesma forma, o
Filho é gerado pelo Pai sem que haja a menor separatividade entre eles; ele
está sempre no Pai. Porém, a luz gerada pelo fogo inseparavelmente, e que
permanece sempre nele, não possui uma hipóstase própria fora do fogo – pois ela
é uma qualidade natural do fogo – enquanto que o Filho de Deus, o monogênio,
saiu do Pai sem separação nem divisão e permanece sempre nele, mas ao mesmo
tempo possui sua própria hipóstase fora da hipóstase do Pai.
Assim é que damos a ele o nome de Verbo e de irradiação do Pai, porque
ele foi gerado pelo Pai à exclusão de conjunção, paixão, temporalidade, efusão
e separação; Filho e marca da hipóstase do Pai, por ser perfeito, dotado de uma
hipóstase e igual ao Pai sob todos os aspectos, salvo o fato de que o Pai não é
gerado; monogênio, por ser o único do único e unicamente gerado por Deus o Pai.
Pois nenhuma outra geração se parece com a geração do Filho de Deus, e não
existe nenhum outro Filho de Deus; e se, com efeito, o Espírito Santo procede
também do Pai, não foi, entretanto, por geração, mas por processão. Essa outra
modalidade de existência é incompreensível e incognoscível, tanto quanto a
geração do Filho. É também por isso que tudo o que possui o Pai pertence a ele
também, salvo o fato de não ter sido o Pai gerado, e esse fato não implica uma
diferença de essência, nem mesmo de dignidade, mas uma modalidade de vinda à
existência, como, por exemplo, Adão, que não foi gerado (por ter sido modelado
por Deus), enquanto que Seth foi gerado (por ser Filho de Adão), ou como Eva
procedeu do flanco de Adão (e portanto ela não foi gerada), e entre eles a
diferença não é de natureza (porque são todos seres humanos), mas do modo como
vieram à existência.
É preciso atentar para o fato de que o termo ageneton, com um só n
designa o que é incriado, ou o que não tem começo. O termo agenneton, escrito com dos n,
indica o que não foi gerado. Assim, do ponto de vista do primeiro significado,
a essência difere da essência: uma é a essência que é incriada que é incriada e
livre do devir (com um só n),
e a outra é a essência trazida à existência ou criada. Do ponto de vista do
segundo significado, a essência não difere da essência: pois a primeira
hipóstase de cada espécie de seres vivos não foi gerada, mas também não foi sem
começo; as espécies vivas foram criadas pelo demiurgo, trazidas à vida por seu
Verbo, mas mesmo assim elas não foram geradas, visto que nenhum ser da mesma
espécie que elas existia antes delas.
Assim, portanto, do ponto de vista do primeiro significado, as três
hipóstases supra divinas da santa Trindade estão em comunhão (porque elas são
consubstanciais e incriadas), mas não do ponto de vista do segundo significado
(somente o Pai não é gerado: de fato, ele não extrai sua existência de outra
hipóstase). Somente o Filho é gerado (pois ele é gerado a partir do Pai, eterna
e intemporalmente), e somente o Espírito Santo procede da essência do Pai, não
por geração, mas por processão. Esse é o ensinamento da divina Escritura,
embora os modos de geração e de processão sejam impossíveis de serem captados e
compreendidos.
Também devemos saber que os termos de paternidade, filiação e processão
não foram transferidos ao nosso bel prazer à bem-aventurada divindade, mas que,
ao contrário, é do alto que nos foi dado partilhá-los, como disse o divino
apóstolo: “Eis porque eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem toda
paternidade no céu e sobre a terra tira seu nome[22]”.
Quando dizemos que o Pai é o princípio do Filho e maior do que ele[23],
não pretendemos mostrar que ele o preceda na duração e por sua natureza o
Filho, por meio do qual ele fez os séculos[24],
nem que ele o preceda em nada senão a título de causalidade, ou seja, que o
Filho foi engendrado pelo Pai e não o Pai pelo Filho, e que o Pai é
naturalmente causa do Filho, do mesmo modo como dizemos que o fogo não provém
da luz, mas que a luz provém do fogo. Quando colocamos que o Pai é o princípio
do Filho e maior do que ele, estamos pensando na causa. Também não dizemos que
o fogo possui uma essência e a luz outra, e assim também é impossível afirmar
que o Pai seja de uma essência e o Filho de outra: não, ambos são da mesma e
única essência. Por outro lado, assim como afirmamos que o fogo brilha graças à
luz que dele escapa, e não postulamos que a luz que provém do fogo seja um
instrumento auxiliar, mas sim uma propriedade natural, também afirmamos que o
Pai faz tudo o que faz por intermédio de seu Filho monogênio, não como um
instrumento exterior, mas como uma potência natural e dotada de hipóstase. E
assim como dizemos que o fogo ilumina e afirmamos igualmente que a luz do fogo
ilumina, também dizemos que tudo o que faz o Pai, também o Filho o faz[25].
Mas enquanto que a luz não possui uma hipóstase distinta independente do fogo,
o Filho, ao contrário, é uma hipóstase perfeita, inseparável da hipóstase
paterna, conforme dissemos anteriormente. Com efeito, não é possível encontrar
na criação uma imagem que ilustre por si só de maneira adequada a expressão
figurada da santa Trindade. Pois aquilo que é criado, composto, sujeito ao
devir, móvel, circunscrito, dotado de forma, corruptível, como poderá
manifestar com evidência a essência supra-essencial de Deus, que é separada de
todas as coisas? Evidentemente, toda a criação está ligada a essas coisas e,
conforme sua própria natureza, toda ela está submetida à corrupção.
Do mesmo modo cremos também num único Espírito Santo, Senhor
vivificante, que procede do Pai e repousa no Filho, ele que juntamente com o
Pai e o Filho é adorado e glorificado, sendo coeterno e consubstancial, o
Espírito de Deus, que é o reto, o guia, a fonte da vida e da santificação,
proclamado Deus juntamente com o Pai e o Filho, incriado, perfeito, criador,
dominador, ativo, todo-poderoso, de um poder sem limites, governante e mestre
de toda criação, nunca governado, que preenche tudo e que nada pode conter,
participado, mas nunca participante, santificante e não santificado, consolador
por acolher as preces de todos, em tudo semelhante ao Pai e ao Filho,
procedente do Pai, comunicado por intermédio do Filho e do qual participa toda
a criação, criando por si mesmo e dando existência substancial, santidade e
coesão ao conjunto das coisas, subsistindo em sua própria hipóstase,
inseparável e indivisível do Pai e do Filho, possuindo tudo o que possuem o Pai
e o Filho, salvo o fato de não ser gerado e de ser gerado. Pois o Pai é sem
causa e não gerado (porque não saiu de ninguém, nem extraiu sua existência de
ninguém); ao contrário, ele é ao mesmo tempo princípio e causa do ser e da
existência própria de cada ser segundo sua natureza. O Filho é nascido do Pai
por via de geração; o Espírito Santo também é nascido do Pai, mas não por
geração, mas por processão. Sabemos, por um lado, que existe uma diferença
entre geração e processão; mas de que modo se dá essa diferenciação, nós o
ignoramos. Mas é de forma simultânea que se dá a geração do Filho a partir do
Pai e a processão do Espírito Santo.
Assim é que tudo o que o Filho possui, também o Espírito recebe do
Pai, em especial seu próprio ser. Da mesma forma, se não existe o Pai, tampouco
existem o Filho e o Espírito. E se acaso o Pai não possuir alguma coisa,
tampouco o Filho e o Espírito a possuirão. E é por causa do Pai, ou, dito de
outro modo, por causa da existência do Pai, que existem o Filho e o Espírito. E
é por causa do Pai que o Filho e o Espírito possuem tudo o que possuem, ou
seja, porque o Pai o possui, com exceção do fato de não ter sido gerado, a
geração e a processão: somente em suas propriedades hipostáticas as três santas
hipóstases podem ser distintas umas das outras, não sem sua essência, mas
inseparavelmente distintas pela característica de sua própria hipóstase.
Dizemos que cada um dos três possui uma hipóstase perfeita, evitando a
interpretação de que de três hipóstases imperfeitas possa resultar uma única
natureza perfeita composta. Não, em três hipóstases perfeitas se encontra uma
única essência simples, superior e anterior à perfeição: pois toda coisa
constituída por elementos imperfeitos é sem dúvida composta, enquanto que de
hipóstases perfeitas não pode provir uma composição. Daí resulta que também não
afirmamos que a forma resulta das hipóstases, mas sim que ela está nas
hipóstases: dissemos que seriam hipóstases imperfeitas se elas não conservassem
a forma do objeto feito a partir delas. Pois, de um lado, a pedra, a madeira e
o ferro são cada um deles perfeito em si mesmo, conforme suas próprias
naturezas, mas, por outro lado, em função do edifício que graças a esses
materiais pode ser construído, cada um deles é imperfeito: cada um deles em si
não é uma edificação.
As três hipóstases são perfeitas, dizemos, para que não se pense na
natureza divina como uma composição: “A composição é certamente um princípio de
divisão[26]”.
Portanto, novamente afirmamos que as três hipóstases estão umas nas outras, a
fim de evitar introduzir uma pluralidade ou uma comunidade de deuses. Pelas
três hipóstases, nós conhecemos o não composto e o não confundido; pela
consubstancialidade, pelo fato de que as hipóstases estão umas nas outras e
pela identidade de vontade, de atividade, de poder, de liberdade e de
movimento, nós conhecemos, por assim dizer, a indivisibilidade e a unidade de
Deus. Pois Deus, seu Verbo e seu Espírito são na realidade um só e mesmo Deus.
É preciso saber que uma coisa é a observação empírica e outra coisa é
a consideração racional e especulativa. Sendo assim, para todas as criaturas, a
distinção das hipóstases é objeto de uma investigação empírica: observamos
empiricamente que Pedro se encontra separado de Paulo. Mas a comunidade, a
conjunção e a unidade são objeto de uma consideração racional e especulativa.
Pois concebemos pelo intelecto que Pedro e Paulo pertencem à mesma natureza e
possuem em comum uma natureza única: cada qual é um animal mortal dotado de
razão, e também cada qual é uma carne animada por uma alma racional e
intelectiva. Essa comunidade de natureza é uma evidência racional. Com efeito,
as hipóstases não se encontram uma dentro da outra, mas cada qual existe por
sua própria conta e separadamente, vale dizer, ela é constituída por si mesma
com numerosos traços que a distinguem das outras: o lugar as separa, o momento
no tempo as distingue; uma escolha de vida as separa, assim como a força, a
forma ou o aspecto. As disposições, o temperamento, o mérito, o modo de vida,
em resumo, todos os traços propriamente característicos, e, sobretudo, o fato
de que elas não existem umas dentro das outras, mas separadamente. É por isso
que dizemos que são dois, ou três, ou muitos homens.
Podemos estender essa constatação a toda a criação. Mas no que diz
respeito à santa, supra-essencial, transcendente e incompreensível Trindade,
ocorre o inverso: pois aqui a comunidade e a unidade de natureza são
contempladas na realidade graças à coeternidade das hipóstases, à identidade de
sua essência, de sua operação e de sua vontade, ao acordo de seu pensamento, à
identidade de sua liberdade, de seu poder e de sua bondade – e eu não me refiro
à similaridade, mas à identidade mesmo – e graças ao impulso único de seu
movimento. Pois existe uma única essência, uma só bondade, um único poder, uma
só vontade, uma única operação, uma só liberdade: um único e idêntico – um
único, não três semelhantes entre si –, um único e idêntico movimento das três
hipóstases. “Cada um dos três não possui menos unidade em relação ao outro do
que possui em relação a si mesmo[27]”;
vale dizer, que sob todos os aspectos são um, o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, exceto pelo fato de que o Pai não é gerado, e que o Filho e o Espírito
Santo apresentam respectivamente a geração e a processão: é apenas
especulativamente que se pode conceber a distinção. Pois nós reconhecemos um
Deus único e concebemos a diferença unicamente nas propriedades da paternidade,
da filiação e da processão. Segundo a causa, o causado e a perfeição da
hipóstase, ou seja, o modo de existência. Certamente não podemos atribuir à
divindade incircunscrita nem uma divisão local, como aquela que nos concerne,
porque as hipóstases estão umas nas outras, não de maneira a serem confundidas,
mas de modo a não ter (segundo a palavra do Senhor, que disse: “Eu estou no Pai
e o Pai está em mim[28]”)
nenhuma diferença de vontade, de pensamento, de operação, de poder ou de
qualquer outra perfeição, coisas que em nós produzem uma divisão real e total. É
por isso que não dizemos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três deuses,
mas antes afirmamos um Deus único, a Santíssima Trindade, sendo que o Filho e o
Espírito Santo se reportam à causa unida sem que estejam misturados ou
confundidos como pretendia a heresia de Sabélio. Pois eles estão unidos, como
dissemos, não de maneira a serem confundidos, mas de modo a estarem um dentro
do outro. Ademais, eles vivem uns dentro dos outros em pericorese, à exclusão
de toda mistura ou confusão. E eles não estão isolados ou divididos segundo a
essência, como pretendia Arius. A divindade, para nos expressarmos
resumidamente, é indivisa entre aqueles que são distintos; ela é assim
comparável a três sóis que se interpenetram de modo indiviso, numa única
combinação e união de luz. Assim, portanto, quando nos voltamos para a
divindade, a causa primeira e a monarquia, a unidade e a identidade da
divindade, por assim dizer, o movimento, o desígnio, a identidade de essência e
de poder, de operação e de autoridade, é a unidade que aparece. E quando nos
voltamos para aqueles nos quais reside a divindade, ou, para sermos mais
precisos, para aqueles que são a divindade e os que provêm da causa primeira
sem intervalo de tempo, com igualdade de glória e sem separação – ou seja, as
hipóstases – são esses os três que adoramos. O Pai é o único Pai, sem princípio,
sem causa, pois não saiu de parte alguma. O Filho é o único Filho, que não é
sem princípio, ou seja, sem causa, porque saiu do Pai. Mas se nos referirmos a
um princípio de ordem temporal, ele será igualmente sem princípio, pois o autor
do tempo não está submetido ao tempo. O Espírito é o único Espírito Santo, que
provém do Pai, não por modo de filiação, mas por modo de processão: sem que o
Pai seja diminuído de seu caráter não gerado pelo fato de gerar, sem que o
Filho seja privado de sua geração, pelo fato de provir do que não foi gerado (e
como poderia ser de outro modo?), sem que o Espírito se transforme em Pai ou em
Filho, porque ele procede e porque ele é Deus, pois a propriedade exclui a
mudança. Senão, como poderia uma propriedade característica subsistir, se ela
fosse mutante e transformável? Pois se o Pai fosse Filho, ele não seria Pai no
sentido próprio, pois neste sentido existe um único Pai. Se o Filho fosse Pai,
ele não seria Filho no sentido próprio, pois neste sentido existe apenas um
único Filho e um único Espírito Santo.
É preciso ter em mente que não dizemos que o Pai tenha saído de
qualquer um, mas dizemos que ele é o Pai do Filho; do Filho, ao contrário,
dizemos que ele não é causa nem Pai, mas que ele saiu do Pai e que ele é Filho
do Pai. Dizemos também que o Espírito Santo procede do Pai e nós o chamamos de
Espírito do Pai; entretanto, não dizemos que o Espírito procede do Filho, mas o
chamamos de Espírito do Filho (“...pois se alguém não possui o Espírito do
Filho”, declara o divino Apóstolo[29])
e confessamos que por intermédio do Filho ele nos foi transmitido e manifestado
(pois ele “soprou e disse” aos seus discípulos: “Recebei o Espírito Santo[30]”);
do mesmo modo o raio e a iluminação provêm do sol (porque ele mesmo é a fonte
da irradiação e da iluminação), é pelo raio que a iluminação nos é transmitida
e é ele mesmo que nos ilumina e é dele que participamos. Enfim, não chamamos o
Filho, nem de Espírito, nem, certamente, saído do Espírito.
9 (I, 9)
O que anunciamos a respeito de Deus
O divino é simples e sem composição. Aquilo que é constituído por
muitos elementos diferentes é composto. Então, se falarmos de distinções na
essência de Deus pelo fato de ele ser incriado, sem começo, incorpóreo,
imortal, eterno, bom, criador e outras coisas semelhantes, e se dissermos que
ele é constituído de muitas coisas, ele já não será simples, mas composto, o
que é a maior das impiedades. Poderemos a partir daí representarmos cada coisa
que enunciamos a propósito de Deus como não significando o que ela é por
essência, mas mostrando o que ela não é, ou então uma dada relação para com
aquilo que dela se distingue, ou ainda daquilo que dela decorre, derivando dela
por natureza, ou uma potência ativa.
Dentre todos os nomes atribuídos a Deus, parece que o de “aquele que
é” constitui o mais apropriado, na medida em que ele o utilizou para descrever
a si mesmo, declarando a Moisés sobre a montanha[31]:
“Diga aos filhos de Israel: aquele que é me enviou”. Pois ele retém em si o ser
na sua totalidade, tal como um oceano de substância infinita e ilimitada.
O segundo nome é o de “Deus”: ele é extraído de théein – porque ele cuida do universo, ou então de aithein, que significa “queimar”, pois
“Deus é um fogo devorador[32]”
de todo o mal, ou de “contemplar” todas as coisas, porque nada lhe escapa e ele
vela sobre todas as coisas. Com efeito, ele contemplou “todas as coisas antes
de seu nascimento”, porque ele as concebera intemporalmente, e cada uma nasceu
no momento fixado, segundo seu pensamento voluntário e intemporal, que é
predeterminação, imagem e paradigma.
Assim é que seu primeiro nome indica que ele é, e não o que ele é; e
seu segundo nome indica sua potência ativa; as expressões do tipo “sem começo”,
“incorruptível”, “sem origem”, “incriado”, “incorpóreo”, “invisível” e outras
semelhantes revelam aquilo que ele não é, ou seja, que ele não começou a ser,
que ele não se corrompe, que não é criado, nem corpóreo, nem visível. Nomes
como “bom”, “justo”, “santo” e outros decorrem de sua natureza, mas não revelam
sua essência. O Nome de “Senhor soberano” e outros do gênero revelam sua
relação para com os seres, dos quais ele se distingue por oposição; ele é
chamado de “soberano” daqueles sobre quem estende sua dominação, e de “rei”
daqueles aos quais impõe seu governo, de “criador” daqueles que ele criou e de
“pastor” daqueles a quem ele apascenta.
10 (I, 10)
Unidade e distinção em Deus
É preciso admitir tudo isso em comum para toda a divindade e numa
acepção idêntica, simples, indivisa e única, mas separadamente Pai, Filho e
Espírito Santo, o fato de ser sem causa, o fato de ser produzido por uma causa,
o não gerado, o gerado e o procedente. Esses enunciados não são de natureza tal
que possam mostrar a essência, mas a relação mútua e o modo de existência.
Sendo assim, conhecedores dessas coisas e conduzidos pela mão em
direção à essência divina, não atingiremos a essência em si, mas sim aquilo que
envolve a essência. Do mesmo modo, sabendo que a alma é incorpórea, sem
quantidade nem forma, não atingimos sua essência, assim como não atingimos a
essência do corpo, mesmo sabendo que ele é branco ou preto, e assim não
captamos sua essência, mas apenas o que está em volta dela. A verdadeira
doutrina ensina que o divino é simples e possui uma única operação simples e boa,
operando tudo em todos, como o raio do sol, que aquece todas as coisas e em
cada uma exerce uma influência na medida de sua aptidão natural e de sua
capacidade de receber, porque recebeu de Deus, que o criou, um poder ativo
deste tipo.
Por outro lado, também é distinto tudo o que diz respeito à divina
encarnação do Verbo de Deus por amor aos homens. Pois nem o Pai nem o Espírito
participaram disso sob nenhum aspecto, salvo o aspecto da benevolência e pelo
indizível milagre cumprido por Deus o Verbo, que se tornou homem como nós,
sendo também Deus imutável e Filho de Deus.
11 (I, 11)
O que dizemos corporalmente de Deus
Como encontramos nas divinas Escrituras inúmeras afirmações que
emprestam a Deus um aspecto quase corporal, é preciso saber que para nós, que
somo homens, e homens encerrados nesta carne grosseira, é impossível conceber e
expressar as divinas, sublimes e imateriais ações da divindade, sem utilizarmos
imagens, figuras e símbolos ao nosso alcance. Por isso, tudo o que anunciamos
de modo corporal a respeito de Deus é feito numa acepção simbólica, e ao mesmo
tempo possui um valor inteligível num grau mais elevado: pois o divino é
simples e não pode ser desenhado. Assim, por “olhos de Deus”, suas “pálpebras”,
seu “olhar”, entendemos seu poder que vela sobre o universo e seu saber
infalível, porque para nós é por meio dessa sensação que se produz um
conhecimento mais perfeito e uma certeza plena. Por “ouvido” e “sentido da
audição”, entendemos que ele é acessível à piedade e que ele acolhe nossa
oração; também nós, com efeito, em relação àqueles que nos dirigem suas
súplicas, é por meio desses sentidos que sentimos a benevolência, dando-lhes
ouvidos com a maior sinceridade. Por “boca” e “conversação”, entendemos aquilo
que coloca em evidência seu desígnio, porque para nós é por intermédio da boca
e das palavras que revelamos nossos pensamentos íntimos. Por “comida” e
“bebida”, entendemos nosso encontro com sua vontade; também para nós, é por
intermédio do sentido do paladar que satisfazemos o irresistível apetite da
natureza. Por “sentido do olfato”, entendemos o que mostra os pensamentos e os
sentimentos benevolentes que nos aproximam de Deus, porque para nós é graças a
esses sentidos que percebemos o odor agradável. Por “rosto” entendemos a
manifestação clara de suas obras, porque é também pelo rosto que nós mesmos nos
manifestamos. Por “mãos” entendemos a eficácia de sua ação, pois também para
nós, é com nossas próprias mãos que levamos a cabo as ações úteis e mais
importantes. Por “sua direita” entendemos o socorro que ele nos concede no
momento favorável, pois também nós utilizamos a mão direita nas circunstâncias
mais delicadas, mais importantes e naquelas que exigem mais força. Por “tocar”
entendemos seu poder de discernir e de perceber as coisas mais sutis e
escondidas; da mesma forma, quando nos apalpamos, não podemos ocultar nada de
nós mesmos. Por “pés” e “caminhada”, entendemos sua vinda e sua presença para
socorrer aqueles que pedem e ajudá-los contra os inimigos, ou ainda qualquer
outra ação do gênero, pois para nós, é com nossos pés que alcançamos nossas
metas. Por “juramento” entendemos o caráter irrevogável de suas decisões; pois
para nós, é por meio do juramento mútuo que garantimos nossas convenções. Por
“cólera” e “fúria”, entendemos o ódio e a aversão em relação ao mal; pois
também nós nos encolerizamos quando detestamos o que é contrário às nossas disposições.
Por “esquecimento”, “sono” ou “adormecimento”, entendemos a demora em nos
defender contra nossos inimigos e o atraso no socorro que ele presta
habitualmente aos seus. Numa palavra, tudo o que dizemos de Deus numa acepção
corporal possui um significado oculto que nos ensina, a partir de nossa
experiência, aquilo que nos ultrapassa, a menos que se refira à estadia
corporal do Verbo de Deus sobre a terra. Pois ele tomou sobre si nossa salvação
como homem completo, com uma alma intelectiva, um corpo, caracteres próprios à
natureza humana e paixões naturais, mas estas apenas na medida em que não
incluíam o pecado.
12 (I, 12)
Ainda sobre o mesmo tema
Segundo o divino Denis o Areopagita, “eis o que as santas Escrituras
nos ensinam: Deus é causa e princípio de todas as coisas, ele é a substância
dos seres, a vida dos vivos, a razão dos seres dotados de razão, o intelecto
dos seres dotados de intelecto, a chamada e a ressurreição para os seres
decaídos, a renovação e a transformação para os seres naturalmente
corruptíveis, o fortalecimento sagrado para aqueles que se deixam titubear por
uma agitação profana, a segurança para aqueles que se mantêm retos, e, para
aqueles que caminham na sua direção, ele é uma voz e uma mão segura.
Acrescentarei que ele é o Pai dos que foram criados (nosso Deus, que a tudo
trouxe do nada à existência, é um Pai num sentido mais apropriado do que
aqueles que geram, que dele receberam a existência e o poder de gerar). Ele é o
pastor daqueles que o seguem e que se protegem sob seu bastão; ele é a
iluminação dos que recebem a luz, o princípio da perfeição dos que buscam a
perfeição, a tearquias dos que são deificados, a paz dos que estavam desunidos,
a simplicidade dos que foram simplificados, a unidade dos que foram reunidos.
Ele é o princípio supra-essencial e transcendente de todo princípio e a doação
generosa para cada qual do segredo, ou seja, do conhecimento de si mesmo, na
medida em que isso é possível sem sacrilégio”.
12b (I, 12)
Novo exame mais preciso dos nomes divinos
Impossível de ser captado, o divino não pode ter nome algum, de
nenhuma maneira. Sendo assim, uma vez que ignoramos sua essência, renunciaremos
a buscar o nome de sua essência: pois o nome é a expressão das realidades. Mas
o Deus que é bom, e que, para nos fazer participar de sua bondade, nos trouxe
do nada à existência, e que fez de nós seres capazes de conhecer, do mesmo modo
como não nos dez participar de sua essência, tampouco nos permitiu participar
do conhecimento de sua essência, pois é impossível que uma natureza conheça
perfeitamente a natureza transcendente. Ademais, se os conhecimentos dizem
respeito aos seres, como poderia o supra-essencial ser conhecido? Portanto,
como consequência de sua indizível bondade, ele consentiu a nós seres nomearmos
a partir daquilo que podemos conhecer, a fim de que, sem sermos inteiramente
privados de conhecê-lo, possamos formar dele uma mínima noção, ainda que
obscura. Assim, na medida em que ele não pode ser captado, ele também não
possui nome. Mas como ele é causa de todas as coisas e contém previamente em si
as razões e as causas de todos os seres, nós o denominamos a partir de todos os
seres e de seus contrários, tais como luz e trevas, água e fogo, para nos
convencermos de que, em sua essência, ele não é nada disso; ele é, ao
contrário, supra-essencial e sem nome, e, como causa de todos os seres, ele é
nomeado segundo todos os efeitos de sua causalidade. Eis porque, dentre os
nomes divinos, alguns enunciados por negação, para mostrar o supra-essencial,
tais como “sem essência”, “intemporal”, “sem começo”, “invisível”; não que ele
seja inferior a qualquer deles ou seja privado de algum (pois tudo a ele
pertence, tudo vem dele e por ele e se mantém nele), mas porque ele é, por sua
superioridade, separado de todos os seres (ele não é nenhum dos seres, mas está
acima de todos). Os outros nomes são nomes afirmativos, porque Deus é afirmado
como causa de todas as coisas; enquanto causa de toda essência e de todos os
seres, nós o chamamos de ser e de essência; enquanto causa de toda razão, saber
racional e sabedoria, o chamamos de razão e de racional, de sabedoria e de
sábio, e igualmente de intelecto e intelectivo, vida e vivo, poder e poderoso,
e assim por diante, e o denominaremos de modo mais apropriado a partir das realidades
mais altas e mais próximas dele. As realidades imateriais têm mais valor do que
as realidades materiais, o puro tem mais valor do que o impuro e o sagrado tem
mais valor do que o profano, e essas realidades se aproximam tanto mais de Deus
quanto mais participam dele. Sol e luz são termos mais apropriados para
nomeá-lo do que trevas, dia mais do que noite, vida mais do que morte, fogo,
espírito e água (por serem vivificantes) mais do que terra, e acima de todas as
coisas a bondade, mais do que o mal e – o que equivale à mesma coisa – o ser
mais do que a não-existência. Pois o bem é existência e causa da existência,
enquanto que o mal é a privação do bem, ou seja, da existência. Isso quanto às
negações. Mas saborosa é a combinação que resulta das afirmações e negações,
como a essência supra-essencial, a divindade supradivina, o princípio além de
todo princípio, e assim por diante. E existem também coisas que atribuímos
afirmativamente a Deus e que possuem uma forma negativa por superabundância,
como “treva”. Não significa que Deus seja uma treva; significa que ele não é
luz, mas que está além da luz. Também chamamos a Deus intelecto, razão,
espírito, saber e poder, porque ele é a causa de tudo isso, na medida em que é
imaterial, superagente e todo-poderoso. Todas essas expressões, tanto negativas
quanto afirmativas, são empregadas conjuntamente para toda a divindade.
Ademais, elas são empregadas de modo semelhante, idêntico e sem exceção, para
cada uma das hipóstases da santíssima Trindade. Com efeito, quando eu concebo
uma das três hipóstases, eu sei que ela é Deus perfeito, substância perfeita.
Quando eu reúno e enumero das três, eu sei que se trata do Deus único que é
perfeito: a divindade não é composta, mas ela é perfeição única nos três
perfeitos, sendo indivisa e simples. E quando eu concebo em espírito a relação
mútua das hipóstases, eu sei que o Pai é o sol supra-essencial, fonte da
bondade, abismo do ser, da razão, da sabedoria, do poder, da luz, da divindade,
fonte produtora e geradora do bem que se esconde nela. Deste modo ele próprio é
intelecto, abismo de razão, gerador do Verbo e por mediação do Verbo produtor
do Espírito revelador, e para resumir, em relação ao Pai não existe razão,
sabedoria, poder ou querer fora do Filho, que é o poder único do Pai, causa
primeira e fundadora de toda a criação. Este, perfeita hipóstase gerada de um
modo que só ele sabe, é de fato e de nome o Filho. O Espírito Santo é uma
potência do Pai, revelador do segredo da divindade, que procede do Pai pelo
Filho do modo como só ele sabe, sem geração. Assim, tudo o que corresponde ao
Pai em sua qualidade de causa, fonte e princípio gerador deve se referir
somente ao Pai; tudo o que corresponde ao causado, filho gerado, Verbo, poder
fundador, vontade, sabedoria, convém ao Filho; tudo o que corresponde ao
causado, procedente, revelador, poder perfeccionante, convém ao Espírito Santo.
O Pai é fonte e causa do Filho e do Espírito, Pai do Filho único e emissor do
Espírito; o Filho é Filho, Verbo, sabedoria e poder, imagem, reflexo, efígie do
Pai, nascido do Pai mas não Filho do Espírito. O Espírito é o Espírito santo do
Pai porque ele procede do Pai (pois não há impulsão sem espírito) e Espírito do
Filho, não por proceder do Filho, mas por proceder do Pai através do Filho; pois
somente o Pai é causa.
13 (I, 13)
O lugar de Deus e que somente o divino não pode ser circunscrito
O lugar é o limite corporal daquilo que envolve, na medida em que o
que é envolvido é envolvido por ele; assim o ar envolve os corpos. Mas a
totalidade do ar que envolve não é o lugar do corpo envolvido; apenas a parte
extrema do ar envolvente toca o corpo envolvido; e isso necessariamente, porque
o envolvente não se acha dentro do envolvido.
Mas existe também um lugar inteligível, onde pensa e se encontra a
natureza dotada de inteligência e incorpórea, onde ela está presente e age, e
onde ela é envolvida não de modo corporal, mas inteligível. Pois ela é
desprovida de um contorno por meio do qual poderia ser envolvida, não de modo
corporal, mas inteligível. Nessas condições, Deus, que é imaterial e
incircunscrito, não se encontra em um lugar; com efeito, ele é seu próprio
lugar, preenchendo tudo, estando acima de tudo e a tudo mantendo. E, no entanto,
dizemos que ele está em um lugar. Aquilo a que chamamos de “lugar de Deus” é na
verdade o lugar onde se exerce sua ação. De fato, ele se estende através de todas
as coisas sem se misturar com elas, e faz com que todas as coisas participem de
sua atividade segundo a aptidão de cada qual e de sua capacidade receptiva,
vale dizer, de sua pureza natural e de sua capacidade de escolher. Os seres
libertos da matéria são mais ouros do que os seres materiais, e os seres virtuosos
são mais puros do que os seres submetidos ao mal. Assim, portanto, chamamos de “lugar
de Deus” a quem, primeiramente, participa de sua atividade e de sua graça. Eis porque
o céu é o seu trono (ali, onde se encontram os anjos que fazem sua vontade e o
glorificam eternamente; com efeito, aí é seu lugar de repouso); e a terra é o
escabelo de seus pés (pois foi sobre ela, graças à carne, que ele viveu entre
os homens). E sua carne sagrada excelentemente foi chamada de “pé de Deus”. Também
a Igreja é chamada de “lugar de Deus”: pois em vista de sua glorificação,
delimitamos, por assim dizer, um local reservado onde podemos nos encontrar com
ele. Do mesmo modo, nos lugares onde sua ação se torna manifesta para nós, seja
ela produzida por meio da carne ou sem um corpo, também a esses lugares chamamos
de “lugares de Deus”.
Devemos ter em mente, por outro lado, que Deus é sem partes, que ele
está inteiro em toda parte, longe de ser corporalmente dividido em partes,
estando inteiro em todas as coisas e inteiro acima de tudo.
O anjo não está corporalmente envolto num lugar a ponto de ter figura
e forma. No entanto, dizemos que ele está num lugar porque ele está presente em
espírito, que ele opera segundo sua natureza própria e que não está em outra
parte, mas que ele se deixa circunscrever de forma inteligível aonde ele age. E
ele não pode agir ao mesmo tempo em lugares diferentes: somente Deus pode agir
em toda parte e no mesmo instante. Certamente, o anjo, por sua rapidez natural
e sua capacidade de deslocamento, pode operar em diversos lugares, enquanto que
Deus, estando em toda parte e acima de tudo, pode agir instantaneamente e
diferentemente em toda parte por uma ação única e simples.
A alma está inteiramente ligada ao corpo inteiro, não parte por parte,
e longe de estar envolvida por ele, ela o envolve como o fogo envolve o ferro,
e, por estar nele, ela realiza suas operações próprias.
É circunscrito aquilo que o lugar, o tempo e a compreensão abarcam,
mas não é circunscrito o que cada uma dessas coisas envolve. Nessas condições, somente
a divindade não é circunscrita, porque ela não tem começo nem fim, porque
contém todas as coisas e porque nenhuma compreensão a pode conter. Pois somente
ela está fora de toda compreensão e é sem delimitação, somente ela não é
contida por ninguém e somente ela pode contemplar a si mesma. Em revanche, o
anjo é circunscrito pelo tempo (pois ele começou a existir um dia), pelo lugar
(mesmo que seja um lugar intelectual) e pela compreensão (pois eles conhecem a
natureza uns dos outros, e em qual medida eles estão plenamente limitados pelo
Criador). Os seres corporais são igualmente circunscritos pelo começo, o fim, o
lugar corporal e a compreensão. A divindade é perfeitamente imutável e
inalterável. Com efeito, ela determinou, por sua presciência, tudo o que não
depende de nós, segundo cada coisa seu momento e seu lugar específico e
apropriado. É por isso, aliás, que “o Pai não julga a ninguém, mas ele entregou
todo julgamento do Filho[33]”,
a saber, é evidente que o Pai julgou, assim como o Filho na medida em que é
Deus e Espírito santo, mas o Filho, enquanto homem, descerá corporalmente e se
assentará[34]
sobre um trono de glória (pois descer e assentar-se são típicos de um corpo
circunscrito), e então ele julgará o mundo inteiro pela justiça[35].
Todas as coisas se situam a uma distância de Deus, não pelo lugar, mas
pela natureza. No que nos cabe, o pensamento, a sabedoria e a vontade, enquanto
aptidões adquiridas, se juntam e se dispersam, mas isso não acontece em relação
a Deus. No que lhe concerne, com efeito, nada aparece ou desaparece; pois ele é
inalterável, imutável, e não seria possível falar em acidente a ser respeito. Em
Deus o bem coincide com a essência. Quem aspira sempre a Deus, este vê; de
fato, Deus está todo em todos; os seres dependem daquele que é[36]
e nada existe se não existir naquele que é, pois Deus está presente e misturado
a todas as coisas, como agora a natureza, e, por outro lado, o Verbo de Deus se
acha unido em hipóstase à sua carne sagrada, misturado, sem confusão, à nossa. “Ninguém
vê o Pai[37]”,
se não for por intermédio do Filho e do Espírito.
O Filho é a vontade, a sabedoria e o poder do Pai. Com efeito, devemos
nos proibir de falar em qualidades a propósito de Deus, para não afirmarmos que
ele é composto de essência e de qualidade. O Filho nasceu do Pai e possui do
Pai tudo o que este possui. É por isso que ele não pode fazer nada por si mesmo[38]:
pois não existe nenhuma operação que lhe caiba propriamente fora do Pai.
Como Deus é invisível[39]
por natureza, é por meio de suas operações que ele se torna visível, e a ordem
e o governo do mundo o dão a conhecer.
O Filho é a imagem do Pai[40]
e o Espírito é a imagem do Filho; é pelo Espírito que Cristo, habitando no homem,
concede a este ser à sua imagem.
O Espírito santo é Deus, intermediário entre o não gerado e o gerado,
e se encontra ligado ao Pai pelo Filho; nós o chamamos de Espírito de Deus[41],
Espírito de Cristo, intelecto de Cristo, Espírito do Senhor[42],
ele próprio senhor, Espírito de adoção filial[43],
de verdade[44],
de liberdade[45],
de sabedoria[46]. Pois
ele é o criador de todas as coisas; preenchendo a tudo com sua essência, a tudo
ele mantém, ele preenche[47]
o mundo conforme a sua essência, e não é limitado pelo mundo segundo seu poder.
Deus é a essência eterna e imutável, criadora dos seres e objeto de
adoração por uma consciência piedosa.
Aquele que existe desde sempre não tendo sido gerado é Deus e Pai[48];
ele não nasceu de ninguém por geração e ele gerou a seu Filho coeterno. Aquele
que existe eternamente com o Pai é Filho e Deus, gerado do Pai antes do tempo,
eternamente, sem perda de substância, sem paixão e sem separação. O Espírito
Santo é Deus, força santificante, dotado de hipóstase, procedente do Pai sem
separação e repousando no Filho, consubstancial ao Pai e ao Filho.
O Verbo é aquele que essencialmente e para sempre está ao lado do Pai.
É verbo ainda o movimento natural do intelecto em virtude do qual ele se move,
pensa e raciocina, como se fosse sua luz e sua irradiação. É verbo ainda aquilo
que é imanente, aquilo que fala em nosso coração. é verbo também o mensageiro
do pensamento. Deus o Verbo é, entretanto, em si, essencial e dotado de uma
existência pessoal, enquanto que os demais verbos são potências da alma que não
podem ser consideradas numa hipóstase própria. O primeiro dentre eles é o produto
natural da inteligência, que brota natural e constantemente dela, o segundo é o
verbo imanente, o terceiro é o verbo proferido.
O termo “espírito” pode ser entendido em diversas acepções: existe o
Espírito Santo, e também chamamos de espíritos as potências do Espírito Santo.
Acrescentemos que o anjo bom é espírito, que é espírito também o demônio, e espírito
também a alma; e podemos também chamar o intelecto de espírito, como igualmente
o vento e o ar.
14 (I, 14)
Propriedades da natureza divina
O incriado, o que não teve começo, o imortal, o infinito e eterno, o
imaterial, a bondade, o poder de criar, a justiça, o poder iluminador, o imutável,
o impassível, o incircunscrito, o não localizável, o indefinido, o ilimitado, o
incorpóreo, o invisível, o incompreensível, a perfeição, o autocrata e o livre
arbítrio, a dominação do mundo, a vivificação, a onipotência sem limites,
santificadora e dispensadora, que contém e mantém o universo, a providência de
todas as coisas: todas essas propriedades e outras semelhantes, a divindade as
possui por natureza sem que as tenha recebido de parte alguma, sendo ao
contrário ela que dispensa todo o bem às suas próprias obras segundo a
capacidade receptiva de cada qual.
As hipóstases divinas têm sua morada e seu fundamento umas nas outras.
Elas são em si mesmas inseparáveis e indivisíveis uma da outra, existindo entre
si sem confusão numa situação de pericorese mútua, não de modo a se destruir ou
a se confundir, mas de maneira a se possuírem mutuamente. O Filho está no Pai e
no Espírito, o Espírito está no Pai e no Filho, o Pai no Filho e no Espírito,
sem que se produza destruição alguma, nem mistura, nem confusão. E seu
movimento é único e idêntico, pois existe um impulso único e um único movimento
das três hipóstases, coisa que não podemos afirmar sobre a natureza criada.
E, por ser a iluminação e a operação de Deus única, simples,
indivisível, benevolamente diversificada pelos seres divisíveis, por repartir
entre todos esses seres aquilo que mantém sua própria natureza, ela permanece
simples. Ela se multiplica pelos seres divisíveis sem se dividir, ela ajunta e
reúne o divisível para sua própria simplicidade (pois todas as coisas tendem
para ela e nela têm sua existência). É também ela que comunica o ser a todas as
coisas segundo as exigências de cada natureza; ela é em si mesma o ser dos
seres, a vida dos vivos, a razão dos seres racionais e a inteligência dos seres
dotados de inteligência, situando-se ela própria além da inteligência, além da
razão, além da vida e além da essência.
Cabe a ela ainda atravessar todas as coisas sem nelas se misturar, e
sem que algo a atravesse; cabe a ela conhecer todas as coisas por um
conhecimento simples, ver com a simplicidade do olhar divino onipresente e
imaterial, todas as coisas, presentes, passadas e futuras, antes de sua efetiva
produção; cabe a ela afastar o pecado do inocente e salvá-lo; e poder tudo o
que quiser, mas não querer tudo o que pode, pois ela pode destruir o mundo, mas
não o quer.
[1]
João 1: 18.
[2]
Mateus 11: 27.
[3]
Cf. I Coríntios 2: 11.
[4]
Cf. Provérbios 22: 28.
[5] O
Coro dos Santos é a Igreja. Cf. I Pedro 2: 9.
[6]
Cf. Filipenses 2: 7.
[7]
Cf. Mateus 5: 37.
[8]
Salmo 13: 1.
[9]
Esse argumento, relativamente fraco em si adquire todo seu valor se o ligarmos
à ideia – fundamental para os Padres – da bondade divina, ordenadora e
conservadora do mundo.
[10]
Jeremias 23: 24.
[11]
Êxodo 20: 2-3.
[12]
Deuteronômio 6: 4.
[13]
Isaías 44: 6.
[14]
João 17: 3.
[15]
Salmo 118, 89.
[16]
Salmo 106, 20.
[17]
Sobre o sentido de “proferida”, cf. Pseudo-Denis: “Nosso Verbo proferido é
transitivo, ele passa daquele que fala àquele que escuta; ademais, ele é
material, por oposição ao verbo interior – pois este não é nem material nem
transitivo”. (PG 3, 144 B 21-22).
[18]
Salmo 103, 30.
[19]
Salmo 32, 6.
[20] Jó
33, 4.
[21]
Mateus 28: 19.
[22]
Efésios 3: 14.
[23]
Cf. João 14: 28.
[24]
Hebreus 1: 2.
[25]
Cf. João 5: 19.
[26]
Cf. Gregório de Nazianze, Orat. 40,
7.
[27]
Gregório de Nazianze, Orat. 31, 16.
[28]
João 14: 10.
[29]
Romanos 8: 9.
[30]
João 20: 22.
[31]
Êxodo 3: 14.
[32]
Deuteronômio 4: 24.
[33]
João 5: 22.
[34] Cf.
Mateus 25: 31.
[35] Cf.
Salmo 9: 9.
[36] Cf.
Êxodo 3: 14.
[37] Cf.
João 6: 46.
[38]
Cf. João 5: 30.
[39]
Cf. Sabedoria 13: 1.5.
[40]
Cf. II Coríntios 4: 4.
[41] Romanos
8: 9.
[42] Sabedoria
1: 7.
[43] Romanos
8: 15.
[44] João
14: 17.
[45] Cf.
Romanos 8: 2.
[46] Cf.
Sabedoria 1: 6.
[47] Cf.
Sabedoria 1: 7.
[48]
Cf. II Coríntios 11: 31.
Maravilhoso, muito grato!
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