quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

João Damasceno - A Fé Ortodoxa - Livro I

João Damasceno - A Fé Ortodoxa - Livro I


1 (I, 1)

Que o divino é incompreensível e que é preciso renunciar a se informar
e a inquirir com curiosidade sobre coisas que não nos foram transmitidas
pelos santos profetas, apóstolos e evangelistas.

“Ninguém jamais viu a Deus. O Filho unigênito que está no seio do Pai no-lo revelou[1]”. Assim, o divino é indizível e incompreensível. “Pois ninguém conhece o Pai a não ser o Filho, e ninguém conhece o Filho senão o Pai[2]”. E o Espírito Santo conhece as coisas de Deus como o homem conhece as coisas do homem[3]. Segundo sua natureza primigênia e bem-aventurada, ninguém jamais conheceu a Deus, senão aqueles a quem ele próprio se revelou, não apenas dentre os homens, mas mesmo dentre as potências hipercósmicas, dentre elas os querubins e os serafins.

E entretanto Deus não nos deixou na total ignorância; pois o conhecimento de que Deus existe foi naturalmente semeado por ele em todos. Ademais, a própria criação, sua coesão e sua governança proclamam a magnificência da natureza divina. E pela lei e os profetas, primeiro, e depois por seu Filho único, nosso Deus e nosso Salvador Jesus Cristo, segundo aquilo que nos é acessível, Deus deixou claro o conhecimento de si mesmo. Assim é que nós aceitamos, conhecemos e veneramos – sem tentar conhecer mais além – tudo o que nos foi transmitido pela lei, pelos profetas, pelos apóstolos e pelos evangelistas. Pois, sendo bom, Deus é o doador de todo bem, isento de necessidade e de qualquer paixão que seja, pois “a necessidade está incomensuravelmente afastada da natureza divina, que é impassível e a única boa”. Em conclusão, como ele sabe tudo e toma o cuidado de buscar para cada um aquilo que lhe é mais benéfico, ele nos revelou tudo o que é útil que conheçamos, mas não o que somos incapazes de entender. Quanto a nós, contentemo-nos com essas coisas, e conservemo-nos assim, sem tentar franquear os limites eternos[4] nem transgredir a tradição divina.

2 (I, 2)

O dizível e o indizível, o conhecível e o incognoscível.

Assim, quem quiser falar ou ouvir a respeito de Deus, deve saber com clareza que nem todas as coisas são indizíveis, nem todas são dizíveis, tanto as que dizem respeito à teologia como as que se referem à Economia; que nem todas as coisas são incognoscíveis e nem todas são conhecíveis; que o conhecível é uma coisa e o dizível é outra, assim como falar é uma coisa e conhecer é outra. Desta forma, muitas concepções que formamos obscuramente a respeito de Deus não podem ser explicadas convenientemente, mas somos constrangidos a enunciar de nossa maneira aquilo que nos ultrapassa, como quando, por exemplo, atribuímos a Deus sono, cólera, indiferença, mãos, pés e outras coisas do gênero.

Que Deus não tem começo nem fim, que ele é eterno e perpétuo, incriado, imutável, inalterável, simples, não composto, incorpóreo, invisível, impalpável, incircunscritível, ilimitado, inapreensível, incompreensível, impensável, bom, justo, todo-poderoso, criador de todas as criaturas, mestre de tudo, dotado de uma visão universal, previdente de todas as coisas, soberano, juiz, tudo isso bem sabemos e, mais do que isso, confessamos. Da mesma forma, que Deus é um, vale dizer, uma essência única, que ele se dê a conhecer e exista em três hipóstases, Pai, Filho e Espírito Santo; que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um sob todos os aspectos, exceto quanto à ausência de geração, à geração e à processão; que o Filho único, Verbo de Deus e Deus, por causa da profundidade de sua misericórdia e com vistas à nossa salvação, com a aquiescência do Pai e a cooperação do Espírito Santo, foi concebido sem semente e que, sem corrupção, nasceu da Virgem e Mãe de Deus, Maria, por intermédio do Espírito Santo e que, saindo dela, se fez um homem perfeito; que ele é Deus perfeito, ao mesmo tempo que é homem perfeito, formado de duas naturezas, a saber, a divindade e a humanidade, que ele se encontra em duas naturezas dotadas de inteligência, de vontade, de atividade, de liberdade, numa palavra, que existem de modo perfeito dentro dos limites e da medida que cabe a cada qual, a divina e a humana, mas numa hipóstase única e composta, que ele teve fome e sede, que enfrentou a fadiga, que foi crucificado e que aceitou a provação da morte e do túmulo, que ele ressuscitou ao terceiro dia e que subiu aos céus, de onde retornou a nós e de onde virá um dia novamente, disso tudo dão testemunho a Escritura divina e todo o coro dos santos[5].

Mas no que consiste a essência de Deus, ou de que maneira ela se encontra em todas as coisas, ou de que modo Deus nasceu de Deus ou dele procede, ou como, tendo se esvaziado de si[6], o Filho único e Deus se tornou homem ao sair de um sangue virginal, tendo sido conformado segundo outra lei do que a lei da natureza, e como, sem molhar seus pés ele caminhou sobre as águas[7] – essas coisas nós ignoramos e somos incapazes de dizer. Em conclusão, fora aquilo que de modo divino nos foi manifestado, anunciado ou revelado pelas santas Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos, é impossível, a respeito de Deus, dizer ou compreender seja lá o que for.

3 (I, 3)

Demonstração de que Deus existe

Que Deus existe, aqueles que creem nas santas Escrituras – ou seja, no Antigo e no Novo Testamentos – não o contestam, assim como a maior parte dos gregos: como dissemos, com efeito, o conhecimento da existência de Deus está semeada em nós naturalmente. Mas a maldade do maligno se impôs à natureza humana, a ponto de fazer alguns descerem ao abismo da perdição, o mais absurdo e pior dos males, que consiste em dizer que Deus não existe. É a respeito desses que o hierofante Davi declarou, denunciando sua loucura: “O insensato diz em seu coração: Deus não existe[8]”. Assim, de início, os discípulos e os apóstolos do Senhor, instruídos pelo Espírito Santíssimo, e operando os sinais divinos pelo poder de sua graça, conduziram os homens, capturando-os nas redes de seus milagres, para a luz do conhecimento de Deus, para fora do abismo do desconhecimento. Depois, do mesmo modo, seus sucessores na ordem da graça e da dignidade, pastores e doutores, depois de haver recebido a graça luminosa do Espírito, tanto pelo poder dos milagres como pela palavra da graça, iluminaram os que estavam nas trevas e converteram os que estavam perdidos. Quanto a nós, que não recebemos nem o carisma dos milagres nem o do ensinamento, por nos termos tornado indignos devido à nossa ligação passional com os prazeres, tentaremos expor algumas das coisas que nos foram transmitidas a esse respeito pelos porta-vozes da graça, depois de termos invocado o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Todos os seres são ou criados ou incriados. Os que são criados são sem dúvida mutantes: pois aqueles cujo ser começou a partir de uma mudança estarão também, sem dúvida, submetidos à mudança, quer sejam tocados pela corrupção, quer alterados por uma escolha deliberada. Ao contrário, os que são incriados, por uma razão corolária, são sem dúvida alguma imutáveis: pois os seres cujo ser é o contrário daqueles (os criados), também definirão seu modo de ser, ou seja, suas características próprias, de modo contrário. Quem, então, não concordará que todos os seres, na medida em que caem sob nossos sentidos – mas também os anjos – mudam, se alteram, evoluem de múltiplas maneiras e sofrem transformações? Os seres inteligíveis, ou seja, os anjos, as almas e os demônios, mudam por uma escolha deliberada, por uma progressão em direção ao bem ou por um afastamento do bem, nisso se aplicando ou relaxando. Quanto aos demais seres, eles mudam por geração ou corrupção, por crescimento ou declínio, por transformação qualitativa ou por alteração local. Sem dúvida, se eles mudam, é porque necessariamente foram criados. Se foram criados, são necessariamente obra de alguém. Por sua vez, é preciso que o criador seja incriado: pois se este for também criado, ele terá sido necessariamente criado por alguém, e assim até que cheguemos a algo que seja incriado. E se ele é incriado, o criador será também necessariamente imutável. Este algo, seria ele outra coisa senão Deus?

E a própria coesão da criação, sua conservação e seu governo nos ensinam que aquele que constituiu o universo e que o mantém em sua coesão[9], que o conserva e o provê de tudo todo o tempo, é Deus. Pois como as naturezas opostas, como as do fogo, da água, do ar e da terra, podem estar reunidas umas às outras e permanecer inseparáveis para compor um único mundo, se algum poder todo-poderoso não as aproximar e as conservar sempre inseparáveis?

O que introduz ordem entre os seres celestes e terrestres, todos os que vivem no ar e todos os que vivem na água, ou melhor, os elementos anteriores a esses seres, o céu, a terra, o ar e a natureza do fogo e da água? Quem os misturou e separou? O que os pôs em movimento e que conduz seu curso contínuo que ninguém pode deter? Não é o artesão de todas as coisas, aquele que depositou em todas uma razão de ser segundo a qual o universo percorre seu curso e se desloca? Mas quem é esse artesão? Não é aquele que os fez e que produziu sua existência? Pois não podemos atribuir tal poder ao acaso. Mesmo se admitirmos que o fato de produzir seja um atributo do acaso, de quem partiu a ordem? A quem cabe conservar e guardar as razões segundo as quais as coisas existiram pela primeira vez? É evidente que se trata de algo bem diferente do acaso. Este princípio, o que será ele, senão Deus?

4 (I, 4)

O que é Deus: que ele é incompreensível

Assim, fica evidente que Deus existe; mas aquilo que ele é por essência e por natureza escapa completamente à compreensão e se torna incognoscível. Que ele seja incorpóreo, é evidente. Pois como o infinito, o indeterminável, o que é impossível figurar, o impalpável, o invisível, o simples, o não composto, poderia ser um corpo? Como poderá ele ser adorado se for circunscrito e capaz de experimentar sentimentos de prazer e de dor? E como seria ele impassível se fosse composto de elementos e se dissolvesse neles em seguida? Pois a composição é o princípio da luta, a luta é o princípio da divisão, a divisão o princípio da desaparição; mas a desaparição é algo totalmente estranho a Deus.

Como então poderá se conservar em toda sua integridade a afirmação de que Deus penetra todas as coisas e preenche o universo, como afirma a Escritura: “Não fui eu que preenchi o céu e a terra?, declarou o Senhor[10]”. Pois é impossível que um corpo passe através dos corpos sem cortar ou ser cortado, sem se entrelaçar ou se opor, como acontece com os líquidos que são mesclados ou misturados.

Alguns, entretanto, afirmam a existência de um corpo imaterial, algo como o que os sábios gregos chamavam de “quinto elemento”, mas isso é impossível: esse corpo seria necessariamente movido, como o céu, pois é a este que eles chamavam de quinto corpo. Mas então quem o move? Pois todo ser que é movido é movido por outro. E a este, quem o move? Isso continua até o infinito, até que se chegue a algo que é imóvel; pois o primeiro motor é imóvel, e isso é precisamente o divino. E como o que é movido não seria ele circunscrito a um lugar? Portanto, somente o divino é imóvel, e graças à sua imobilidade ele move o universo. Por conseguinte, é necessário entender o divino como incorpóreo.

Mas isso tampouco consiste numa elucidação de sua essência, assim como não o são os predicados de não gerado, de sem começo, de inalterável, de incorruptível e todos os que são enunciados relativamente a Deus ou que se referem a Deus; pois esses predicados não significam o que ele é, mas o que ele não é. E quem pretende falar da essência de uma coisa deve explicar o que é essa coisa, não o que ela não é; a propósito de Deus, no entanto, é impossível dizer o que ele é em essência. É mais apropriado compor o discurso a partir da supressão de todas as coisas: pois Deus não tem nada dos seres, não por não ser, mas por estar acima de todos os seres e do próprio ser. Então, se os conhecimentos são relativos aos seres, o que está acima do conhecimento estará também necessariamente acima da essência, e inversamente aquilo que está acima da essência estará igualmente acima do conhecimento.

Portanto, o divino é ilimitado e incompreensível; e dele apenas isso pode ser captado: sua ilimitação e sua incompreensibilidade. Tudo o que dizemos de Deus de uma maneira afirmativa mostra não sua natureza, mas aquilo que está ao redor de sua natureza. Mesmo quando declaramos que ele é bom, justo, sábio ou o que for, não estamos falando de sua natureza, mas daquilo que envolve sua natureza. Encontramos ainda alguns enunciados afirmativos relativos a Deus que são dotados de um alto grau de poder de negação: por exemplo, quando atribuímos as trevas a Deus, não pensamos que ele seja a treva, pensamos que ele não é propriamente a luz, mas que está acima da luz.

5 (I, 5)

Demonstração de que existe um só Deus e não muitos.

Que Deus existe e que sua essência é incompreensível, isto já demonstramos o suficiente. Que, de outro lado, exista apenas um único Deus e não muitos, isso não é contestado por aqueles que creem nas Escrituras. Com efeito, o Senhor, ao começar a editar a lei, declarou: “Eu sou o Senhor seu Deus, que te tirou do Egito. Não terás outros deuses diante de mim[11]”. E mais: “Escuta, Israel: o Senhor teu Deus é único[12]”. Depois, por intermédio do profeta Isaías: “Eu sou o Deus primeiro e depois que passem as coisas eu ainda serei, e não existe outro Deus senão eu. Antes de mim nenhum deus existiu e depois de mim não existirá nenhum, e não existe outro Deus senão eu[13]”. Depois, o Senhor, nos santos Evangelhos, declarou assim ao Pai: “A vida eterna é que eles o conheçam, a ti, o único e verdadeiro Deus[14]”.

Mas para aqueles que não creem na Santa Escritura, raciocinaremos assim. O divino é perfeito e nada lhe falta em relação à bondade, sabedoria e poder, e ele é sem começo nem fim, eterno, incircunscrito, numa palavra: ele é perfeito em tudo. Assim, se dissermos que existem muitos outros deuses, é forçoso considerarmos uma diferença na pluralidade. Pois, se entre eles não houver nenhuma diferença, antes haverá um Deus único do que muitos deuses. Mas se dentre eles houver diferença, onde estará então a perfeição? Que lhe falte a perfeição segundo a bondade, segundo a sabedoria, segundo o poder, segundo o tempo ou segundo o lugar, já não será mais Deus. Por outro lado, a identidade em tudo mostra que existe apenas um Deus e não muitos. E ademais, como se poderá conservar o incircunscrito, se forem muitos? Com efeito, onde houver um, o outro não poderá existir. Como poderá o mundo ser governado por muitos, e, sobretudo, como escaparia ele da destruição e da corrupção, por pequena que fosse a desavença entre seus governantes? Com efeito, a diferença conduz à oposição. Podemos sugerir então que cada um governe uma parte, mas nesse caso quem regraria entre eles a ordem e a partilha? Esse “quem” seria, antes de qualquer coisa, Deus. Deus é, portanto, único, perfeito, incircusncrito, autor do universo que ele mantém e governa, acima do perfeito e origem do perfeito.

Enfim, que a mônada seja o princípio da díade é uma necessidade de natureza.

6 (I, 6)

O Verbo de Deus

Certamente, esse Deus só e único não é desprovido de Verbo. Mas se ele é provido de Verbo, não haverá um verbo sem subsistência, que comece e cesse de existir. Pois nunca houve um tempo em que Deus tenha existido sem Verbo. Desde sempre, ele está de posse de seu próprio Verbo, saído dele por geração, de maneira tal que não pode ser redutível à do nosso verbo, o qual é sem subsistência e que escapa no ar, mas, ao contrário, ele é subsistente, vivo, perfeito, não se separando dele, mas sempre se encontrando nele: com efeito, onde poderia ele se encontrar, caso se separasse dele? Pois, assim como a nossa natureza é perecível e se dissolve facilmente, eis porque nosso verbo é sem subsistência. Mas Deus, que existe desde sempre, que é perfeito, deve possuir seu próprio Verbo, perfeito e subsistente, existindo desde sempre, vivo, e possuindo tudo o que possui aquele que o gerou. Pois, assim como o verbo saído de nosso intelecto não é nem totalmente idêntico ao intelecto, nem absolutamente diferente – pois, saído do intelecto, ele difere deste, mas, por levar o intelecto a se manifestar, ele tampouco é de fato diferente dele; mas ele forma uma unidade com ele por natureza e difere dele pelo suporte – da mesma forma o Verbo de Deus, na medida em que existe por si mesmo, se distingue em relação àquele junto do qual ele tem sua hipóstase; mas na medida em que ele mostra em si todos os caracteres que constatamos em Deus, ele é idêntico a este pela natureza. Com efeito, assim como contemplamos no caso do Pai aquilo que é perfeito em todos os pontos, também o contemplaremos no caso do Verbo que foi gerado a partir dele.

7 (I, 7)

O Espírito Santo

É preciso que o Verbo possua também um Espírito: e da mesma forma nosso próprio verbo também não deixa de participar de um espírito. Mas em nós o sopro do espírito é estranho à nossa própria substância; pois ele consiste na aspiração e expiração do ar inalado e exalado em relação à constituição própria de nosso corpo. E, no instante em que se dá a emissão da voz, esse fenômeno é a expressão do verbo e manifesta em si mesmo o valor que tem o verbo. Mas no caso da natureza divina, que é simples e não composta, devemos, com respeito religioso, confessar que existe um Espírito de Deus, porque o Verbo de Deus não falta em relação ao nosso verbo e, de resto, não é religioso pensar que o Espírito é um elemento exterior que se introduz em Deus desde fora, como acontece conosco que somos compostos. Mas, assim como aprendemos que existia um Verbo de Deus e não o consideramos como desprovido de substância, nem como sendo resultante de um conhecimento adquirido, nem como se manifestando por meio da voz, nem se derramando no espaço e se dissolvendo, mas o vimos como um ser dotado de substancialidade, capaz de livre escolha, ativo e todo-poderoso; da mesma forma, instruídos sobre a existência de um Espírito de Deus, que anda em par com o Verbo e que manifesta sua atividade, não o concebemos como um hálito desprovido de substância. Se é assim que acontece, equivaleria a rebaixar até nossa baixeza a grandeza da natureza divina supor como sendo à semelhança de nosso próprio sopro o Espírito que está em Deus. Mas o concebemos como uma potência substancial, considerada em si numa hipóstase própria, procedente do Pai e repousando no Verbo, ao qual ele revela. Não podemos separá-lo de Deus em quem ele existe, nem de seu Verbo, que ele acompanha; ele não se esvazia ao se dissipar, mas existe segundo a hipóstase e à semelhança do Verbo, ele vive, ele escolhe, ele se move por si sé, ele age, ele quer o bem em toda circunstância e, para realizar seus desejos, ele possui um poder correspondente à sua vontade, e ele não tem começo nem fim. Com efeito, jamais o Verbo faltou ao Pai, nem o Espírito ao Verbo.

Assim, pela unidade segundo a natureza, a crença errônea dos gregos em muitos deuses é aniquilada, enquanto que, pela aceitação do Verbo e do Espírito, a crença dos judeus é derrubada. E de cada uma dessas heresias persiste o elemento útil, a saber, a concepção judaica da unidade de natureza, enquanto que da concepção grega persiste a distinção referente às hipóstases – mas apenas ela. Se o judeu vem a se opor à aceitação do Verbo e do Espírito, que seja ele confundido e reduzido ao silêncio pela divina Escritura. Pois, a respeito do Verbo, Davi declara: “Por toda a eternidade, Senhor, teu Verbo habitará no céu[15]”, ou ainda: “Envia tua palavra e ela os há de curar[16]”. Uma palavra proferida[17] não é cheia de justiça e de verdade, e tampouco dura através dos séculos. A propósito do Espírito, o mesmo Davi declara: “Tu enviarás teu Espírito e tudo será criado[18]”, ou ainda: “Pela palavra do Senhor foram fixados os céus e pelo sopro de sua boca todo o seu poder[19]”; da mesma forma, Jó declara: “Foi o sopro de Deus que me criou, o hálito do Todo-Poderoso que me conserva[20]”.

Mas um Espírito que é enviado, criador, capaz de fixar e de conservar, não é um sopro que se dispersa, assim como precisamente a boca de Deus não é um órgão corporal: é preciso certamente conceber cada uma dessas afirmações como convém à divindade.

8 (I, 8)

A santa Trindade

Assim é que cremos em um só Deus, princípio único sem princípio, incriado, não gerado, indestrutível e imortal, eterno, infinito, ilimitado, incircusncrito, com um poder infinito, simples, excluindo toda e qualquer composição, incorpóreo, inexpansível, impassível, imutável, inalterável, invisível, fonte de bondade e de justiça, luz inteligível, inacessível, poder que não conhece medida alguma, que é medido exclusivamente por sua própria vontade – pois tudo o que ele quer ele quer – autor de todas as criaturas visíveis e invisíveis, guardião de tudo, provedor de tudo, dominando e comandando todas as coisas, e cujo reino é sem fim e imortal; nada se opõe a ele, ele preenche tudo, ela não é contido por nada, antes abarca, mantém e sobrepassa a tudo; sem mancha, ele penetra as essências inteiras e se situa além de todas as coisas, separado de toda essência (por ser supra-essencial), acima dos seres, acima do divino, acima do bem, acima da plenitude. Ele definiu todos os princípios e todas as ordens e se situa acima da essência da vida, da palavra, do pensamento de todo princípio e ordem; ele é luz por si só, bondade por si só, vida em si, existência em si, porque não recebeu de outro a existência nem nada de tudo o que é, enquanto que ele próprio é a fonte da existência de todos os seres, da vida para os vivos, da razão para os que participam da razão; para todos ele é a causa de todos os bens, ele conhece a todas as coisas antes de seu nascimento, essência única, divindade única, potência única, vontade única, atividade única, princípio único, poder único, senhoria única, realeza única, conhecida em três hipóstases e adorada numa adoração única. Toda criatura racional crê nessas três pessoas e as venera, unidas que estão sem confusão e distintas de modo indiviso, ainda que isso seja extraordinário. Nós cremos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, nos quais fomos batizados; pois é assim que o Senhor prescreveu aos Apóstolos que batizassem: “Batizai-os, disse ele, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo[21]”.

Cremos em um único Pai, princípio e causa universal, que não tirou de ninguém sua existência, mas que é o único sem causa e não gerado. Autor de todas as coisas, ele não é Pai por natureza senão de seu Filho único, monogênio, nosso senhor, Deus e salvador, Jesus Cristo, e é dele que procede o Espírito Santo. Cremos igualmente em um Filho único de Deus, monogênio, nosso senhor Jesus Cristo, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai, por quem tudo foi feito. Ao dizermos “antes de todos os séculos”, mostramos que sua geração é intemporal e sem começo. Pois não foi da não-existência à existência que foi trazido o Filho de Deus, a irradiação de sua glória, a marca da hipóstase do Pai, a sabedoria e a potência divina, o Verbo subsistente, a imagem substancial, perfeita e viva do Deus invisível, mas ele esteve sempre com o Pai e nele eternamente, gerado por ele sem começo; pois não existiu um dia em que o Pai existisse sem que existisse o Filho, mas sempre houve ao mesmo tempo um Pai e ao mesmo tempo um Filho gerado a partir dele: com efeito, sem o Filho, não poderíamos chamá-lo de Pai. Se ele existisse sem que houvesse um Filho, ele teria se tornado um Pai em seguida sem ter sido Pai anteriormente e teria passado de um estado de não-pai ao estado de Pai, o que é a mais grave de todas as blasfêmias. Pois é impossível dizer que Deus seja desprovido de fecundidade natural; a fecundidade consiste em gerar a partir de si, ou de sua própria substância, uma realidade semelhante por natureza.

Sobre a geração do Filho, é ímpio dizer que uma duração se interpôs, ou que o Filho veio à existência depois do Pai: pois foi deste, ou seja, da natureza mesma do Pai, que o Filho foi gerado. E, se não concordarmos que desde o princípio o Filho existe com o Pai que o gerou, estaremos introduzindo desde fora uma alteração na hipóstase do Pai, pois, não sendo antes Pai, ele teria se tornado Pai ulteriormente. Pois a criação, embora tenha sobrevindo a seguir, mas em que tenha saído da essência de Deus, foi trazida da não-existência à existência por sua vontade e seu poder, e essa alteração não atingiu a natureza de Deus. Pois se o ato de gerar consiste em que da substância geradora procede o gerado, que é de essência semelhante, o ato de criar e de fabricar consiste em trazer de fora, e não da essência do criador que fabrica, aquilo que é criado ou fabricado, e que é absolutamente dessemelhante.

Por conseguinte, no caso do Deus único, impassível, sem alteração, imutável e sempre idêntico a si mesmo, gerar e criar não o afetam: pois, sendo impassível por natureza e sem expansão, por ser simples e sem composição, por natureza ele não sofreu paixão ou expansão nem no ato de gerar, nem no ato de criar, nem teve necessidade de cooperação alguma; mas o ato de gerar sem  princípio e eterno é uma obra de sua natureza e no seu ponto de partida a partir de sua substância, de tal modo que o gerador não sofreu alteração, e que não existe um Deus antes e um Deus depois, e que não cabe admitir um complemento. Quanto à criação, obra da vontade divina, ela não é co-eterna a Deus, porque o que foi trazido da não-existência à existência não é por natureza co-eterno àquele que é sem começo e que existe desde sempre. Do mesmo modo, o homem e Deus não produzem da mesma maneira: o homem, de fato, não traz nada da não-existência à existência, mas aquilo que ele fabrica, ele o faz a partir de uma matéria pré-existente, depois de haver não apenas desejado, mas também refletido, imaginado em seu intelecto o que iria nascer dali, e depois de haver trabalhado com as mãos e suportado fadiga e pena, tendo falhado mais de uma vez com seu objetivo, por falta de habilidade em relação ao seu desejo; mas Deus, por sua simples vontade, trouxe todas as coisas da não-existência para a existência. E também não é de modo semelhante que Deus e o homem geram. Com efeito, Deus, por ser intemporal, sem começo, impassível, sem efusão, incorpóreo, único e sem fim, gera de modo intemporal, sem começo, sem paixão e sem associação, e sua geração incompreensível não tem começo nem fim. Ela é sem começo porque ela exclui a mudança, sem efusão por causa de seu caráter impassível e incorpóreo, ela é sem associação ainda por seu caráter incorpóreo e porque Deus é só e único, sem necessidade de um outro; ela é sem fim nem descanso, porque é sem começo, intemporal e sem fim e sempre idêntica a si mesma. Pois o que é sem começo é sem fim, mas o que é sem fim por um favorecimento não é necessariamente sem começo, como os anjos.

Assim é que Deus, que existe desde sempre, gerou seu próprio Verbo, que é perfeito por ser sem começo nem fim, a menos que se diga que Deus procriou no tempo, ele cuja natureza e existência estão acima do tempo. Mas o homem manifestamente gera de modo completamente oposto, ele que é tributário do nascimento, da destruição, do fluxo, da multiplicação, que é dotado de um corpo e que em sua natureza possui o macho e a fêmea: pois o macho precisa da ajuda da fêmea – e que nos seja propício aquele que está além de todas as coisas e que ultrapassa toda inteligência e toda compreensão.

A santa Igreja católica e apostólica nos ensina assim o Pai e seu Filho monogênio, gerado por ele de maneira intemporal, sem efusão, de modo impassível e incompreensível, como só o sabe o Deus do universo. Assim como o fogo existe ao mesmo tempo que a luz que provém dele, não havendo aí anterioridade, mas simultaneidade da luz e do fogo, também a luz perpetuamente gerada pelo fogo se encontra sempre nele, sem nenhuma separação, e, da mesma forma, o Filho é gerado pelo Pai sem que haja a menor separatividade entre eles; ele está sempre no Pai. Porém, a luz gerada pelo fogo inseparavelmente, e que permanece sempre nele, não possui uma hipóstase própria fora do fogo – pois ela é uma qualidade natural do fogo – enquanto que o Filho de Deus, o monogênio, saiu do Pai sem separação nem divisão e permanece sempre nele, mas ao mesmo tempo possui sua própria hipóstase fora da hipóstase do Pai.

Assim é que damos a ele o nome de Verbo e de irradiação do Pai, porque ele foi gerado pelo Pai à exclusão de conjunção, paixão, temporalidade, efusão e separação; Filho e marca da hipóstase do Pai, por ser perfeito, dotado de uma hipóstase e igual ao Pai sob todos os aspectos, salvo o fato de que o Pai não é gerado; monogênio, por ser o único do único e unicamente gerado por Deus o Pai. Pois nenhuma outra geração se parece com a geração do Filho de Deus, e não existe nenhum outro Filho de Deus; e se, com efeito, o Espírito Santo procede também do Pai, não foi, entretanto, por geração, mas por processão. Essa outra modalidade de existência é incompreensível e incognoscível, tanto quanto a geração do Filho. É também por isso que tudo o que possui o Pai pertence a ele também, salvo o fato de não ter sido o Pai gerado, e esse fato não implica uma diferença de essência, nem mesmo de dignidade, mas uma modalidade de vinda à existência, como, por exemplo, Adão, que não foi gerado (por ter sido modelado por Deus), enquanto que Seth foi gerado (por ser Filho de Adão), ou como Eva procedeu do flanco de Adão (e portanto ela não foi gerada), e entre eles a diferença não é de natureza (porque são todos seres humanos), mas do modo como vieram à existência.

É preciso atentar para o fato de que o termo ageneton, com um só n designa o que é incriado, ou o que não tem começo. O termo agenneton, escrito com dos n, indica o que não foi gerado. Assim, do ponto de vista do primeiro significado, a essência difere da essência: uma é a essência que é incriada que é incriada e livre do devir (com um só n), e a outra é a essência trazida à existência ou criada. Do ponto de vista do segundo significado, a essência não difere da essência: pois a primeira hipóstase de cada espécie de seres vivos não foi gerada, mas também não foi sem começo; as espécies vivas foram criadas pelo demiurgo, trazidas à vida por seu Verbo, mas mesmo assim elas não foram geradas, visto que nenhum ser da mesma espécie que elas existia antes delas.

Assim, portanto, do ponto de vista do primeiro significado, as três hipóstases supra divinas da santa Trindade estão em comunhão (porque elas são consubstanciais e incriadas), mas não do ponto de vista do segundo significado (somente o Pai não é gerado: de fato, ele não extrai sua existência de outra hipóstase). Somente o Filho é gerado (pois ele é gerado a partir do Pai, eterna e intemporalmente), e somente o Espírito Santo procede da essência do Pai, não por geração, mas por processão. Esse é o ensinamento da divina Escritura, embora os modos de geração e de processão sejam impossíveis de serem captados e compreendidos.

Também devemos saber que os termos de paternidade, filiação e processão não foram transferidos ao nosso bel prazer à bem-aventurada divindade, mas que, ao contrário, é do alto que nos foi dado partilhá-los, como disse o divino apóstolo: “Eis porque eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem toda paternidade no céu e sobre a terra tira seu nome[22]”.

Quando dizemos que o Pai é o princípio do Filho e maior do que ele[23], não pretendemos mostrar que ele o preceda na duração e por sua natureza o Filho, por meio do qual ele fez os séculos[24], nem que ele o preceda em nada senão a título de causalidade, ou seja, que o Filho foi engendrado pelo Pai e não o Pai pelo Filho, e que o Pai é naturalmente causa do Filho, do mesmo modo como dizemos que o fogo não provém da luz, mas que a luz provém do fogo. Quando colocamos que o Pai é o princípio do Filho e maior do que ele, estamos pensando na causa. Também não dizemos que o fogo possui uma essência e a luz outra, e assim também é impossível afirmar que o Pai seja de uma essência e o Filho de outra: não, ambos são da mesma e única essência. Por outro lado, assim como afirmamos que o fogo brilha graças à luz que dele escapa, e não postulamos que a luz que provém do fogo seja um instrumento auxiliar, mas sim uma propriedade natural, também afirmamos que o Pai faz tudo o que faz por intermédio de seu Filho monogênio, não como um instrumento exterior, mas como uma potência natural e dotada de hipóstase. E assim como dizemos que o fogo ilumina e afirmamos igualmente que a luz do fogo ilumina, também dizemos que tudo o que faz o Pai, também o Filho o faz[25]. Mas enquanto que a luz não possui uma hipóstase distinta independente do fogo, o Filho, ao contrário, é uma hipóstase perfeita, inseparável da hipóstase paterna, conforme dissemos anteriormente. Com efeito, não é possível encontrar na criação uma imagem que ilustre por si só de maneira adequada a expressão figurada da santa Trindade. Pois aquilo que é criado, composto, sujeito ao devir, móvel, circunscrito, dotado de forma, corruptível, como poderá manifestar com evidência a essência supra-essencial de Deus, que é separada de todas as coisas? Evidentemente, toda a criação está ligada a essas coisas e, conforme sua própria natureza, toda ela está submetida à corrupção.

Do mesmo modo cremos também num único Espírito Santo, Senhor vivificante, que procede do Pai e repousa no Filho, ele que juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, sendo coeterno e consubstancial, o Espírito de Deus, que é o reto, o guia, a fonte da vida e da santificação, proclamado Deus juntamente com o Pai e o Filho, incriado, perfeito, criador, dominador, ativo, todo-poderoso, de um poder sem limites, governante e mestre de toda criação, nunca governado, que preenche tudo e que nada pode conter, participado, mas nunca participante, santificante e não santificado, consolador por acolher as preces de todos, em tudo semelhante ao Pai e ao Filho, procedente do Pai, comunicado por intermédio do Filho e do qual participa toda a criação, criando por si mesmo e dando existência substancial, santidade e coesão ao conjunto das coisas, subsistindo em sua própria hipóstase, inseparável e indivisível do Pai e do Filho, possuindo tudo o que possuem o Pai e o Filho, salvo o fato de não ser gerado e de ser gerado. Pois o Pai é sem causa e não gerado (porque não saiu de ninguém, nem extraiu sua existência de ninguém); ao contrário, ele é ao mesmo tempo princípio e causa do ser e da existência própria de cada ser segundo sua natureza. O Filho é nascido do Pai por via de geração; o Espírito Santo também é nascido do Pai, mas não por geração, mas por processão. Sabemos, por um lado, que existe uma diferença entre geração e processão; mas de que modo se dá essa diferenciação, nós o ignoramos. Mas é de forma simultânea que se dá a geração do Filho a partir do Pai e a processão do Espírito Santo.

Assim é que tudo o que o Filho possui, também o Espírito recebe do Pai, em especial seu próprio ser. Da mesma forma, se não existe o Pai, tampouco existem o Filho e o Espírito. E se acaso o Pai não possuir alguma coisa, tampouco o Filho e o Espírito a possuirão. E é por causa do Pai, ou, dito de outro modo, por causa da existência do Pai, que existem o Filho e o Espírito. E é por causa do Pai que o Filho e o Espírito possuem tudo o que possuem, ou seja, porque o Pai o possui, com exceção do fato de não ter sido gerado, a geração e a processão: somente em suas propriedades hipostáticas as três santas hipóstases podem ser distintas umas das outras, não sem sua essência, mas inseparavelmente distintas pela característica de sua própria hipóstase.

Dizemos que cada um dos três possui uma hipóstase perfeita, evitando a interpretação de que de três hipóstases imperfeitas possa resultar uma única natureza perfeita composta. Não, em três hipóstases perfeitas se encontra uma única essência simples, superior e anterior à perfeição: pois toda coisa constituída por elementos imperfeitos é sem dúvida composta, enquanto que de hipóstases perfeitas não pode provir uma composição. Daí resulta que também não afirmamos que a forma resulta das hipóstases, mas sim que ela está nas hipóstases: dissemos que seriam hipóstases imperfeitas se elas não conservassem a forma do objeto feito a partir delas. Pois, de um lado, a pedra, a madeira e o ferro são cada um deles perfeito em si mesmo, conforme suas próprias naturezas, mas, por outro lado, em função do edifício que graças a esses materiais pode ser construído, cada um deles é imperfeito: cada um deles em si não é uma edificação.

As três hipóstases são perfeitas, dizemos, para que não se pense na natureza divina como uma composição: “A composição é certamente um princípio de divisão[26]”. Portanto, novamente afirmamos que as três hipóstases estão umas nas outras, a fim de evitar introduzir uma pluralidade ou uma comunidade de deuses. Pelas três hipóstases, nós conhecemos o não composto e o não confundido; pela consubstancialidade, pelo fato de que as hipóstases estão umas nas outras e pela identidade de vontade, de atividade, de poder, de liberdade e de movimento, nós conhecemos, por assim dizer, a indivisibilidade e a unidade de Deus. Pois Deus, seu Verbo e seu Espírito são na realidade um só e mesmo Deus.

É preciso saber que uma coisa é a observação empírica e outra coisa é a consideração racional e especulativa. Sendo assim, para todas as criaturas, a distinção das hipóstases é objeto de uma investigação empírica: observamos empiricamente que Pedro se encontra separado de Paulo. Mas a comunidade, a conjunção e a unidade são objeto de uma consideração racional e especulativa. Pois concebemos pelo intelecto que Pedro e Paulo pertencem à mesma natureza e possuem em comum uma natureza única: cada qual é um animal mortal dotado de razão, e também cada qual é uma carne animada por uma alma racional e intelectiva. Essa comunidade de natureza é uma evidência racional. Com efeito, as hipóstases não se encontram uma dentro da outra, mas cada qual existe por sua própria conta e separadamente, vale dizer, ela é constituída por si mesma com numerosos traços que a distinguem das outras: o lugar as separa, o momento no tempo as distingue; uma escolha de vida as separa, assim como a força, a forma ou o aspecto. As disposições, o temperamento, o mérito, o modo de vida, em resumo, todos os traços propriamente característicos, e, sobretudo, o fato de que elas não existem umas dentro das outras, mas separadamente. É por isso que dizemos que são dois, ou três, ou muitos homens.

Podemos estender essa constatação a toda a criação. Mas no que diz respeito à santa, supra-essencial, transcendente e incompreensível Trindade, ocorre o inverso: pois aqui a comunidade e a unidade de natureza são contempladas na realidade graças à coeternidade das hipóstases, à identidade de sua essência, de sua operação e de sua vontade, ao acordo de seu pensamento, à identidade de sua liberdade, de seu poder e de sua bondade – e eu não me refiro à similaridade, mas à identidade mesmo – e graças ao impulso único de seu movimento. Pois existe uma única essência, uma só bondade, um único poder, uma só vontade, uma única operação, uma só liberdade: um único e idêntico – um único, não três semelhantes entre si –, um único e idêntico movimento das três hipóstases. “Cada um dos três não possui menos unidade em relação ao outro do que possui em relação a si mesmo[27]”; vale dizer, que sob todos os aspectos são um, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, exceto pelo fato de que o Pai não é gerado, e que o Filho e o Espírito Santo apresentam respectivamente a geração e a processão: é apenas especulativamente que se pode conceber a distinção. Pois nós reconhecemos um Deus único e concebemos a diferença unicamente nas propriedades da paternidade, da filiação e da processão. Segundo a causa, o causado e a perfeição da hipóstase, ou seja, o modo de existência. Certamente não podemos atribuir à divindade incircunscrita nem uma divisão local, como aquela que nos concerne, porque as hipóstases estão umas nas outras, não de maneira a serem confundidas, mas de modo a não ter (segundo a palavra do Senhor, que disse: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim[28]”) nenhuma diferença de vontade, de pensamento, de operação, de poder ou de qualquer outra perfeição, coisas que em nós produzem uma divisão real e total. É por isso que não dizemos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três deuses, mas antes afirmamos um Deus único, a Santíssima Trindade, sendo que o Filho e o Espírito Santo se reportam à causa unida sem que estejam misturados ou confundidos como pretendia a heresia de Sabélio. Pois eles estão unidos, como dissemos, não de maneira a serem confundidos, mas de modo a estarem um dentro do outro. Ademais, eles vivem uns dentro dos outros em pericorese, à exclusão de toda mistura ou confusão. E eles não estão isolados ou divididos segundo a essência, como pretendia Arius. A divindade, para nos expressarmos resumidamente, é indivisa entre aqueles que são distintos; ela é assim comparável a três sóis que se interpenetram de modo indiviso, numa única combinação e união de luz. Assim, portanto, quando nos voltamos para a divindade, a causa primeira e a monarquia, a unidade e a identidade da divindade, por assim dizer, o movimento, o desígnio, a identidade de essência e de poder, de operação e de autoridade, é a unidade que aparece. E quando nos voltamos para aqueles nos quais reside a divindade, ou, para sermos mais precisos, para aqueles que são a divindade e os que provêm da causa primeira sem intervalo de tempo, com igualdade de glória e sem separação – ou seja, as hipóstases – são esses os três que adoramos. O Pai é o único Pai, sem princípio, sem causa, pois não saiu de parte alguma. O Filho é o único Filho, que não é sem princípio, ou seja, sem causa, porque saiu do Pai. Mas se nos referirmos a um princípio de ordem temporal, ele será igualmente sem princípio, pois o autor do tempo não está submetido ao tempo. O Espírito é o único Espírito Santo, que provém do Pai, não por modo de filiação, mas por modo de processão: sem que o Pai seja diminuído de seu caráter não gerado pelo fato de gerar, sem que o Filho seja privado de sua geração, pelo fato de provir do que não foi gerado (e como poderia ser de outro modo?), sem que o Espírito se transforme em Pai ou em Filho, porque ele procede e porque ele é Deus, pois a propriedade exclui a mudança. Senão, como poderia uma propriedade característica subsistir, se ela fosse mutante e transformável? Pois se o Pai fosse Filho, ele não seria Pai no sentido próprio, pois neste sentido existe um único Pai. Se o Filho fosse Pai, ele não seria Filho no sentido próprio, pois neste sentido existe apenas um único Filho e um único Espírito Santo.

É preciso ter em mente que não dizemos que o Pai tenha saído de qualquer um, mas dizemos que ele é o Pai do Filho; do Filho, ao contrário, dizemos que ele não é causa nem Pai, mas que ele saiu do Pai e que ele é Filho do Pai. Dizemos também que o Espírito Santo procede do Pai e nós o chamamos de Espírito do Pai; entretanto, não dizemos que o Espírito procede do Filho, mas o chamamos de Espírito do Filho (“...pois se alguém não possui o Espírito do Filho”, declara o divino Apóstolo[29]) e confessamos que por intermédio do Filho ele nos foi transmitido e manifestado (pois ele “soprou e disse” aos seus discípulos: “Recebei o Espírito Santo[30]”); do mesmo modo o raio e a iluminação provêm do sol (porque ele mesmo é a fonte da irradiação e da iluminação), é pelo raio que a iluminação nos é transmitida e é ele mesmo que nos ilumina e é dele que participamos. Enfim, não chamamos o Filho, nem de Espírito, nem, certamente, saído do Espírito.

 9 (I, 9)

O que anunciamos a respeito de Deus

O divino é simples e sem composição. Aquilo que é constituído por muitos elementos diferentes é composto. Então, se falarmos de distinções na essência de Deus pelo fato de ele ser incriado, sem começo, incorpóreo, imortal, eterno, bom, criador e outras coisas semelhantes, e se dissermos que ele é constituído de muitas coisas, ele já não será simples, mas composto, o que é a maior das impiedades. Poderemos a partir daí representarmos cada coisa que enunciamos a propósito de Deus como não significando o que ela é por essência, mas mostrando o que ela não é, ou então uma dada relação para com aquilo que dela se distingue, ou ainda daquilo que dela decorre, derivando dela por natureza, ou uma potência ativa.

Dentre todos os nomes atribuídos a Deus, parece que o de “aquele que é” constitui o mais apropriado, na medida em que ele o utilizou para descrever a si mesmo, declarando a Moisés sobre a montanha[31]: “Diga aos filhos de Israel: aquele que é me enviou”. Pois ele retém em si o ser na sua totalidade, tal como um oceano de substância infinita e ilimitada.

O segundo nome é o de “Deus”: ele é extraído de théein – porque ele cuida do universo, ou então de aithein, que significa “queimar”, pois “Deus é um fogo devorador[32]” de todo o mal, ou de “contemplar” todas as coisas, porque nada lhe escapa e ele vela sobre todas as coisas. Com efeito, ele contemplou “todas as coisas antes de seu nascimento”, porque ele as concebera intemporalmente, e cada uma nasceu no momento fixado, segundo seu pensamento voluntário e intemporal, que é predeterminação, imagem e paradigma.

Assim é que seu primeiro nome indica que ele é, e não o que ele é; e seu segundo nome indica sua potência ativa; as expressões do tipo “sem começo”, “incorruptível”, “sem origem”, “incriado”, “incorpóreo”, “invisível” e outras semelhantes revelam aquilo que ele não é, ou seja, que ele não começou a ser, que ele não se corrompe, que não é criado, nem corpóreo, nem visível. Nomes como “bom”, “justo”, “santo” e outros decorrem de sua natureza, mas não revelam sua essência. O Nome de “Senhor soberano” e outros do gênero revelam sua relação para com os seres, dos quais ele se distingue por oposição; ele é chamado de “soberano” daqueles sobre quem estende sua dominação, e de “rei” daqueles aos quais impõe seu governo, de “criador” daqueles que ele criou e de “pastor” daqueles a quem ele apascenta.

 10 (I, 10)

Unidade e distinção em Deus

É preciso admitir tudo isso em comum para toda a divindade e numa acepção idêntica, simples, indivisa e única, mas separadamente Pai, Filho e Espírito Santo, o fato de ser sem causa, o fato de ser produzido por uma causa, o não gerado, o gerado e o procedente. Esses enunciados não são de natureza tal que possam mostrar a essência, mas a relação mútua e o modo de existência.

Sendo assim, conhecedores dessas coisas e conduzidos pela mão em direção à essência divina, não atingiremos a essência em si, mas sim aquilo que envolve a essência. Do mesmo modo, sabendo que a alma é incorpórea, sem quantidade nem forma, não atingimos sua essência, assim como não atingimos a essência do corpo, mesmo sabendo que ele é branco ou preto, e assim não captamos sua essência, mas apenas o que está em volta dela. A verdadeira doutrina ensina que o divino é simples e possui uma única operação simples e boa, operando tudo em todos, como o raio do sol, que aquece todas as coisas e em cada uma exerce uma influência na medida de sua aptidão natural e de sua capacidade de receber, porque recebeu de Deus, que o criou, um poder ativo deste tipo.

Por outro lado, também é distinto tudo o que diz respeito à divina encarnação do Verbo de Deus por amor aos homens. Pois nem o Pai nem o Espírito participaram disso sob nenhum aspecto, salvo o aspecto da benevolência e pelo indizível milagre cumprido por Deus o Verbo, que se tornou homem como nós, sendo também Deus imutável e Filho de Deus.

11 (I, 11)

O que dizemos corporalmente de Deus

Como encontramos nas divinas Escrituras inúmeras afirmações que emprestam a Deus um aspecto quase corporal, é preciso saber que para nós, que somo homens, e homens encerrados nesta carne grosseira, é impossível conceber e expressar as divinas, sublimes e imateriais ações da divindade, sem utilizarmos imagens, figuras e símbolos ao nosso alcance. Por isso, tudo o que anunciamos de modo corporal a respeito de Deus é feito numa acepção simbólica, e ao mesmo tempo possui um valor inteligível num grau mais elevado: pois o divino é simples e não pode ser desenhado. Assim, por “olhos de Deus”, suas “pálpebras”, seu “olhar”, entendemos seu poder que vela sobre o universo e seu saber infalível, porque para nós é por meio dessa sensação que se produz um conhecimento mais perfeito e uma certeza plena. Por “ouvido” e “sentido da audição”, entendemos que ele é acessível à piedade e que ele acolhe nossa oração; também nós, com efeito, em relação àqueles que nos dirigem suas súplicas, é por meio desses sentidos que sentimos a benevolência, dando-lhes ouvidos com a maior sinceridade. Por “boca” e “conversação”, entendemos aquilo que coloca em evidência seu desígnio, porque para nós é por intermédio da boca e das palavras que revelamos nossos pensamentos íntimos. Por “comida” e “bebida”, entendemos nosso encontro com sua vontade; também para nós, é por intermédio do sentido do paladar que satisfazemos o irresistível apetite da natureza. Por “sentido do olfato”, entendemos o que mostra os pensamentos e os sentimentos benevolentes que nos aproximam de Deus, porque para nós é graças a esses sentidos que percebemos o odor agradável. Por “rosto” entendemos a manifestação clara de suas obras, porque é também pelo rosto que nós mesmos nos manifestamos. Por “mãos” entendemos a eficácia de sua ação, pois também para nós, é com nossas próprias mãos que levamos a cabo as ações úteis e mais importantes. Por “sua direita” entendemos o socorro que ele nos concede no momento favorável, pois também nós utilizamos a mão direita nas circunstâncias mais delicadas, mais importantes e naquelas que exigem mais força. Por “tocar” entendemos seu poder de discernir e de perceber as coisas mais sutis e escondidas; da mesma forma, quando nos apalpamos, não podemos ocultar nada de nós mesmos. Por “pés” e “caminhada”, entendemos sua vinda e sua presença para socorrer aqueles que pedem e ajudá-los contra os inimigos, ou ainda qualquer outra ação do gênero, pois para nós, é com nossos pés que alcançamos nossas metas. Por “juramento” entendemos o caráter irrevogável de suas decisões; pois para nós, é por meio do juramento mútuo que garantimos nossas convenções. Por “cólera” e “fúria”, entendemos o ódio e a aversão em relação ao mal; pois também nós nos encolerizamos quando detestamos o que é contrário às nossas disposições. Por “esquecimento”, “sono” ou “adormecimento”, entendemos a demora em nos defender contra nossos inimigos e o atraso no socorro que ele presta habitualmente aos seus. Numa palavra, tudo o que dizemos de Deus numa acepção corporal possui um significado oculto que nos ensina, a partir de nossa experiência, aquilo que nos ultrapassa, a menos que se refira à estadia corporal do Verbo de Deus sobre a terra. Pois ele tomou sobre si nossa salvação como homem completo, com uma alma intelectiva, um corpo, caracteres próprios à natureza humana e paixões naturais, mas estas apenas na medida em que não incluíam o pecado.

12 (I, 12)

Ainda sobre o mesmo tema

Segundo o divino Denis o Areopagita, “eis o que as santas Escrituras nos ensinam: Deus é causa e princípio de todas as coisas, ele é a substância dos seres, a vida dos vivos, a razão dos seres dotados de razão, o intelecto dos seres dotados de intelecto, a chamada e a ressurreição para os seres decaídos, a renovação e a transformação para os seres naturalmente corruptíveis, o fortalecimento sagrado para aqueles que se deixam titubear por uma agitação profana, a segurança para aqueles que se mantêm retos, e, para aqueles que caminham na sua direção, ele é uma voz e uma mão segura. Acrescentarei que ele é o Pai dos que foram criados (nosso Deus, que a tudo trouxe do nada à existência, é um Pai num sentido mais apropriado do que aqueles que geram, que dele receberam a existência e o poder de gerar). Ele é o pastor daqueles que o seguem e que se protegem sob seu bastão; ele é a iluminação dos que recebem a luz, o princípio da perfeição dos que buscam a perfeição, a tearquias dos que são deificados, a paz dos que estavam desunidos, a simplicidade dos que foram simplificados, a unidade dos que foram reunidos. Ele é o princípio supra-essencial e transcendente de todo princípio e a doação generosa para cada qual do segredo, ou seja, do conhecimento de si mesmo, na medida em que isso é possível sem sacrilégio”.

12b (I, 12)

Novo exame mais preciso dos nomes divinos

Impossível de ser captado, o divino não pode ter nome algum, de nenhuma maneira. Sendo assim, uma vez que ignoramos sua essência, renunciaremos a buscar o nome de sua essência: pois o nome é a expressão das realidades. Mas o Deus que é bom, e que, para nos fazer participar de sua bondade, nos trouxe do nada à existência, e que fez de nós seres capazes de conhecer, do mesmo modo como não nos dez participar de sua essência, tampouco nos permitiu participar do conhecimento de sua essência, pois é impossível que uma natureza conheça perfeitamente a natureza transcendente. Ademais, se os conhecimentos dizem respeito aos seres, como poderia o supra-essencial ser conhecido? Portanto, como consequência de sua indizível bondade, ele consentiu a nós seres nomearmos a partir daquilo que podemos conhecer, a fim de que, sem sermos inteiramente privados de conhecê-lo, possamos formar dele uma mínima noção, ainda que obscura. Assim, na medida em que ele não pode ser captado, ele também não possui nome. Mas como ele é causa de todas as coisas e contém previamente em si as razões e as causas de todos os seres, nós o denominamos a partir de todos os seres e de seus contrários, tais como luz e trevas, água e fogo, para nos convencermos de que, em sua essência, ele não é nada disso; ele é, ao contrário, supra-essencial e sem nome, e, como causa de todos os seres, ele é nomeado segundo todos os efeitos de sua causalidade. Eis porque, dentre os nomes divinos, alguns enunciados por negação, para mostrar o supra-essencial, tais como “sem essência”, “intemporal”, “sem começo”, “invisível”; não que ele seja inferior a qualquer deles ou seja privado de algum (pois tudo a ele pertence, tudo vem dele e por ele e se mantém nele), mas porque ele é, por sua superioridade, separado de todos os seres (ele não é nenhum dos seres, mas está acima de todos). Os outros nomes são nomes afirmativos, porque Deus é afirmado como causa de todas as coisas; enquanto causa de toda essência e de todos os seres, nós o chamamos de ser e de essência; enquanto causa de toda razão, saber racional e sabedoria, o chamamos de razão e de racional, de sabedoria e de sábio, e igualmente de intelecto e intelectivo, vida e vivo, poder e poderoso, e assim por diante, e o denominaremos de modo mais apropriado a partir das realidades mais altas e mais próximas dele. As realidades imateriais têm mais valor do que as realidades materiais, o puro tem mais valor do que o impuro e o sagrado tem mais valor do que o profano, e essas realidades se aproximam tanto mais de Deus quanto mais participam dele. Sol e luz são termos mais apropriados para nomeá-lo do que trevas, dia mais do que noite, vida mais do que morte, fogo, espírito e água (por serem vivificantes) mais do que terra, e acima de todas as coisas a bondade, mais do que o mal e – o que equivale à mesma coisa – o ser mais do que a não-existência. Pois o bem é existência e causa da existência, enquanto que o mal é a privação do bem, ou seja, da existência. Isso quanto às negações. Mas saborosa é a combinação que resulta das afirmações e negações, como a essência supra-essencial, a divindade supradivina, o princípio além de todo princípio, e assim por diante. E existem também coisas que atribuímos afirmativamente a Deus e que possuem uma forma negativa por superabundância, como “treva”. Não significa que Deus seja uma treva; significa que ele não é luz, mas que está além da luz. Também chamamos a Deus intelecto, razão, espírito, saber e poder, porque ele é a causa de tudo isso, na medida em que é imaterial, superagente e todo-poderoso. Todas essas expressões, tanto negativas quanto afirmativas, são empregadas conjuntamente para toda a divindade. Ademais, elas são empregadas de modo semelhante, idêntico e sem exceção, para cada uma das hipóstases da santíssima Trindade. Com efeito, quando eu concebo uma das três hipóstases, eu sei que ela é Deus perfeito, substância perfeita. Quando eu reúno e enumero das três, eu sei que se trata do Deus único que é perfeito: a divindade não é composta, mas ela é perfeição única nos três perfeitos, sendo indivisa e simples. E quando eu concebo em espírito a relação mútua das hipóstases, eu sei que o Pai é o sol supra-essencial, fonte da bondade, abismo do ser, da razão, da sabedoria, do poder, da luz, da divindade, fonte produtora e geradora do bem que se esconde nela. Deste modo ele próprio é intelecto, abismo de razão, gerador do Verbo e por mediação do Verbo produtor do Espírito revelador, e para resumir, em relação ao Pai não existe razão, sabedoria, poder ou querer fora do Filho, que é o poder único do Pai, causa primeira e fundadora de toda a criação. Este, perfeita hipóstase gerada de um modo que só ele sabe, é de fato e de nome o Filho. O Espírito Santo é uma potência do Pai, revelador do segredo da divindade, que procede do Pai pelo Filho do modo como só ele sabe, sem geração. Assim, tudo o que corresponde ao Pai em sua qualidade de causa, fonte e princípio gerador deve se referir somente ao Pai; tudo o que corresponde ao causado, filho gerado, Verbo, poder fundador, vontade, sabedoria, convém ao Filho; tudo o que corresponde ao causado, procedente, revelador, poder perfeccionante, convém ao Espírito Santo. O Pai é fonte e causa do Filho e do Espírito, Pai do Filho único e emissor do Espírito; o Filho é Filho, Verbo, sabedoria e poder, imagem, reflexo, efígie do Pai, nascido do Pai mas não Filho do Espírito. O Espírito é o Espírito santo do Pai porque ele procede do Pai (pois não há impulsão sem espírito) e Espírito do Filho, não por proceder do Filho, mas por proceder do Pai através do Filho; pois somente o Pai é causa.

13 (I, 13)

O lugar de Deus e que somente o divino não pode ser circunscrito

O lugar é o limite corporal daquilo que envolve, na medida em que o que é envolvido é envolvido por ele; assim o ar envolve os corpos. Mas a totalidade do ar que envolve não é o lugar do corpo envolvido; apenas a parte extrema do ar envolvente toca o corpo envolvido; e isso necessariamente, porque o envolvente não se acha dentro do envolvido.

Mas existe também um lugar inteligível, onde pensa e se encontra a natureza dotada de inteligência e incorpórea, onde ela está presente e age, e onde ela é envolvida não de modo corporal, mas inteligível. Pois ela é desprovida de um contorno por meio do qual poderia ser envolvida, não de modo corporal, mas inteligível. Nessas condições, Deus, que é imaterial e incircunscrito, não se encontra em um lugar; com efeito, ele é seu próprio lugar, preenchendo tudo, estando acima de tudo e a tudo mantendo. E, no entanto, dizemos que ele está em um lugar. Aquilo a que chamamos de “lugar de Deus” é na verdade o lugar onde se exerce sua ação. De fato, ele se estende através de todas as coisas sem se misturar com elas, e faz com que todas as coisas participem de sua atividade segundo a aptidão de cada qual e de sua capacidade receptiva, vale dizer, de sua pureza natural e de sua capacidade de escolher. Os seres libertos da matéria são mais ouros do que os seres materiais, e os seres virtuosos são mais puros do que os seres submetidos ao mal. Assim, portanto, chamamos de “lugar de Deus” a quem, primeiramente, participa de sua atividade e de sua graça. Eis porque o céu é o seu trono (ali, onde se encontram os anjos que fazem sua vontade e o glorificam eternamente; com efeito, aí é seu lugar de repouso); e a terra é o escabelo de seus pés (pois foi sobre ela, graças à carne, que ele viveu entre os homens). E sua carne sagrada excelentemente foi chamada de “pé de Deus”. Também a Igreja é chamada de “lugar de Deus”: pois em vista de sua glorificação, delimitamos, por assim dizer, um local reservado onde podemos nos encontrar com ele. Do mesmo modo, nos lugares onde sua ação se torna manifesta para nós, seja ela produzida por meio da carne ou sem um corpo, também a esses lugares chamamos de “lugares de Deus”.

Devemos ter em mente, por outro lado, que Deus é sem partes, que ele está inteiro em toda parte, longe de ser corporalmente dividido em partes, estando inteiro em todas as coisas e inteiro acima de tudo.

O anjo não está corporalmente envolto num lugar a ponto de ter figura e forma. No entanto, dizemos que ele está num lugar porque ele está presente em espírito, que ele opera segundo sua natureza própria e que não está em outra parte, mas que ele se deixa circunscrever de forma inteligível aonde ele age. E ele não pode agir ao mesmo tempo em lugares diferentes: somente Deus pode agir em toda parte e no mesmo instante. Certamente, o anjo, por sua rapidez natural e sua capacidade de deslocamento, pode operar em diversos lugares, enquanto que Deus, estando em toda parte e acima de tudo, pode agir instantaneamente e diferentemente em toda parte por uma ação única e simples.

A alma está inteiramente ligada ao corpo inteiro, não parte por parte, e longe de estar envolvida por ele, ela o envolve como o fogo envolve o ferro, e, por estar nele, ela realiza suas operações próprias.

É circunscrito aquilo que o lugar, o tempo e a compreensão abarcam, mas não é circunscrito o que cada uma dessas coisas envolve. Nessas condições, somente a divindade não é circunscrita, porque ela não tem começo nem fim, porque contém todas as coisas e porque nenhuma compreensão a pode conter. Pois somente ela está fora de toda compreensão e é sem delimitação, somente ela não é contida por ninguém e somente ela pode contemplar a si mesma. Em revanche, o anjo é circunscrito pelo tempo (pois ele começou a existir um dia), pelo lugar (mesmo que seja um lugar intelectual) e pela compreensão (pois eles conhecem a natureza uns dos outros, e em qual medida eles estão plenamente limitados pelo Criador). Os seres corporais são igualmente circunscritos pelo começo, o fim, o lugar corporal e a compreensão. A divindade é perfeitamente imutável e inalterável. Com efeito, ela determinou, por sua presciência, tudo o que não depende de nós, segundo cada coisa seu momento e seu lugar específico e apropriado. É por isso, aliás, que “o Pai não julga a ninguém, mas ele entregou todo julgamento do Filho[33]”, a saber, é evidente que o Pai julgou, assim como o Filho na medida em que é Deus e Espírito santo, mas o Filho, enquanto homem, descerá corporalmente e se assentará[34] sobre um trono de glória (pois descer e assentar-se são típicos de um corpo circunscrito), e então ele julgará o mundo inteiro pela justiça[35].

Todas as coisas se situam a uma distância de Deus, não pelo lugar, mas pela natureza. No que nos cabe, o pensamento, a sabedoria e a vontade, enquanto aptidões adquiridas, se juntam e se dispersam, mas isso não acontece em relação a Deus. No que lhe concerne, com efeito, nada aparece ou desaparece; pois ele é inalterável, imutável, e não seria possível falar em acidente a ser respeito. Em Deus o bem coincide com a essência. Quem aspira sempre a Deus, este vê; de fato, Deus está todo em todos; os seres dependem daquele que é[36] e nada existe se não existir naquele que é, pois Deus está presente e misturado a todas as coisas, como agora a natureza, e, por outro lado, o Verbo de Deus se acha unido em hipóstase à sua carne sagrada, misturado, sem confusão, à nossa. “Ninguém vê o Pai[37]”, se não for por intermédio do Filho e do Espírito.

O Filho é a vontade, a sabedoria e o poder do Pai. Com efeito, devemos nos proibir de falar em qualidades a propósito de Deus, para não afirmarmos que ele é composto de essência e de qualidade. O Filho nasceu do Pai e possui do Pai tudo o que este possui. É por isso que ele não pode fazer nada por si mesmo[38]: pois não existe nenhuma operação que lhe caiba propriamente fora do Pai.

Como Deus é invisível[39] por natureza, é por meio de suas operações que ele se torna visível, e a ordem e o governo do mundo o dão a conhecer.  
O Filho é a imagem do Pai[40] e o Espírito é a imagem do Filho; é pelo Espírito que Cristo, habitando no homem, concede a este ser à sua imagem.

O Espírito santo é Deus, intermediário entre o não gerado e o gerado, e se encontra ligado ao Pai pelo Filho; nós o chamamos de Espírito de Deus[41], Espírito de Cristo, intelecto de Cristo, Espírito do Senhor[42], ele próprio senhor, Espírito de adoção filial[43], de verdade[44], de liberdade[45], de sabedoria[46]. Pois ele é o criador de todas as coisas; preenchendo a tudo com sua essência, a tudo ele mantém, ele preenche[47] o mundo conforme a sua essência, e não é limitado pelo mundo segundo seu poder.

Deus é a essência eterna e imutável, criadora dos seres e objeto de adoração por uma consciência piedosa.

Aquele que existe desde sempre não tendo sido gerado é Deus e Pai[48]; ele não nasceu de ninguém por geração e ele gerou a seu Filho coeterno. Aquele que existe eternamente com o Pai é Filho e Deus, gerado do Pai antes do tempo, eternamente, sem perda de substância, sem paixão e sem separação. O Espírito Santo é Deus, força santificante, dotado de hipóstase, procedente do Pai sem separação e repousando no Filho, consubstancial ao Pai e ao Filho.

O Verbo é aquele que essencialmente e para sempre está ao lado do Pai. É verbo ainda o movimento natural do intelecto em virtude do qual ele se move, pensa e raciocina, como se fosse sua luz e sua irradiação. É verbo ainda aquilo que é imanente, aquilo que fala em nosso coração. é verbo também o mensageiro do pensamento. Deus o Verbo é, entretanto, em si, essencial e dotado de uma existência pessoal, enquanto que os demais verbos são potências da alma que não podem ser consideradas numa hipóstase própria. O primeiro dentre eles é o produto natural da inteligência, que brota natural e constantemente dela, o segundo é o verbo imanente, o terceiro é o verbo proferido.

O termo “espírito” pode ser entendido em diversas acepções: existe o Espírito Santo, e também chamamos de espíritos as potências do Espírito Santo. Acrescentemos que o anjo bom é espírito, que é espírito também o demônio, e espírito também a alma; e podemos também chamar o intelecto de espírito, como igualmente o vento e o ar.

 14 (I, 14)

Propriedades da natureza divina

O incriado, o que não teve começo, o imortal, o infinito e eterno, o imaterial, a bondade, o poder de criar, a justiça, o poder iluminador, o imutável, o impassível, o incircunscrito, o não localizável, o indefinido, o ilimitado, o incorpóreo, o invisível, o incompreensível, a perfeição, o autocrata e o livre arbítrio, a dominação do mundo, a vivificação, a onipotência sem limites, santificadora e dispensadora, que contém e mantém o universo, a providência de todas as coisas: todas essas propriedades e outras semelhantes, a divindade as possui por natureza sem que as tenha recebido de parte alguma, sendo ao contrário ela que dispensa todo o bem às suas próprias obras segundo a capacidade receptiva de cada qual.

As hipóstases divinas têm sua morada e seu fundamento umas nas outras. Elas são em si mesmas inseparáveis e indivisíveis uma da outra, existindo entre si sem confusão numa situação de pericorese mútua, não de modo a se destruir ou a se confundir, mas de maneira a se possuírem mutuamente. O Filho está no Pai e no Espírito, o Espírito está no Pai e no Filho, o Pai no Filho e no Espírito, sem que se produza destruição alguma, nem mistura, nem confusão. E seu movimento é único e idêntico, pois existe um impulso único e um único movimento das três hipóstases, coisa que não podemos afirmar sobre a natureza criada.

E, por ser a iluminação e a operação de Deus única, simples, indivisível, benevolamente diversificada pelos seres divisíveis, por repartir entre todos esses seres aquilo que mantém sua própria natureza, ela permanece simples. Ela se multiplica pelos seres divisíveis sem se dividir, ela ajunta e reúne o divisível para sua própria simplicidade (pois todas as coisas tendem para ela e nela têm sua existência). É também ela que comunica o ser a todas as coisas segundo as exigências de cada natureza; ela é em si mesma o ser dos seres, a vida dos vivos, a razão dos seres racionais e a inteligência dos seres dotados de inteligência, situando-se ela própria além da inteligência, além da razão, além da vida e além da essência.

Cabe a ela ainda atravessar todas as coisas sem nelas se misturar, e sem que algo a atravesse; cabe a ela conhecer todas as coisas por um conhecimento simples, ver com a simplicidade do olhar divino onipresente e imaterial, todas as coisas, presentes, passadas e futuras, antes de sua efetiva produção; cabe a ela afastar o pecado do inocente e salvá-lo; e poder tudo o que quiser, mas não querer tudo o que pode, pois ela pode destruir o mundo, mas não o quer.



[1] João 1: 18.
[2] Mateus 11: 27.
[3] Cf. I Coríntios 2: 11.
[4] Cf. Provérbios 22: 28.
[5] O Coro dos Santos é a Igreja. Cf. I Pedro 2: 9.
[6] Cf. Filipenses 2: 7.
[7] Cf. Mateus 5: 37.
[8] Salmo 13: 1.
[9] Esse argumento, relativamente fraco em si adquire todo seu valor se o ligarmos à ideia – fundamental para os Padres – da bondade divina, ordenadora e conservadora do mundo.
[10] Jeremias 23: 24.
[11] Êxodo 20: 2-3.
[12] Deuteronômio 6: 4.
[13] Isaías 44: 6.
[14] João 17: 3.
[15] Salmo 118, 89.
[16] Salmo 106, 20.
[17] Sobre o sentido de “proferida”, cf. Pseudo-Denis: “Nosso Verbo proferido é transitivo, ele passa daquele que fala àquele que escuta; ademais, ele é material, por oposição ao verbo interior – pois este não é nem material nem transitivo”. (PG 3, 144 B 21-22).
[18] Salmo 103, 30.
[19] Salmo 32, 6.
[20] Jó 33, 4.
[21] Mateus 28: 19.
[22] Efésios 3: 14.
[23] Cf. João 14: 28.
[24] Hebreus 1: 2.
[25] Cf. João 5: 19.
[26] Cf. Gregório de Nazianze, Orat. 40, 7.
[27] Gregório de Nazianze, Orat. 31, 16.
[28] João 14: 10.
[29] Romanos 8: 9.
[30] João 20: 22.
[31] Êxodo 3: 14.
[32] Deuteronômio 4: 24.
[33] João 5: 22.
[34] Cf. Mateus 25: 31.
[35] Cf. Salmo 9: 9.
[36] Cf. Êxodo 3: 14.
[37] Cf. João 6: 46.
[38] Cf. João 5: 30.
[39] Cf. Sabedoria 13: 1.5.
[40] Cf. II Coríntios 4: 4.
[41] Romanos 8: 9.
[42] Sabedoria 1: 7.
[43] Romanos 8: 15.
[44] João 14: 17.
[45] Cf. Romanos 8: 2.
[46] Cf. Sabedoria 1: 6.
[47] Cf. Sabedoria 1: 7.
[48] Cf. II Coríntios 11: 31.

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