Os ícones têm se tornado cada
vez mais familiares para nós no Ocidente, mas quase sempre são assimilados à
nossa própria tradição relativa às imagens religiosas e aos piedosos retratos
de santos. O que precisamos urgentemente entender é sua tradição espiritual e
também aquilo que podemos chamar de contexto ontológico da iconografia. O Irmão
Aidan se converteu à Ortodoxia, provindo do Cristianismo Evangélico. Ele viveu
no Monte Athos, e atualmente vive no Eremitério de Saint Antony & Cuthbert,
perto de Shrewsbury em Shropshire, na Inglaterra. Ele foi um artista, no
sentido ocidental do termo, antes de se tornar monge e iconógrafo; dessa forma,
ele está bem capacitado para entender as profundas diferenças que existem entre
as duas atitudes: o individualismo artístico do Ocidente com sua ânsia pela
novidade, e o espírito profundamente contemplativo do iconógrafo, com seu amor
pelo anonimato e a continuidade de uma tradição viva e presente de arte sacra.
“Quando a luz se torna seu caminho, o homem verdadeiro se eleva às
alturas eternas; ele contempla as realidades metacósmicas sem se separar da
matéria que é parte de seu ser desde o princípio. Por intermédio de si mesmo, o
homem conduz toda a criação para Deus[1]”.
Os humanos verdadeiros são pequenos deuses; em Cristo, eles são
cogestores do universo. O universo está contido no homem: quando o homem cai,
toda a criação cai com ele e nele; quando o homem se eleva em Cristo, toda a
criação se eleva, e se assenta com ele nos planos celestiais. O homem está para
o cosmo assim como seu coração está para seu próprio corpo; por meio dele o
universo é ofertado como um hino para louvar a Deus, do mesmo modo como os
santos oferecem a Deus a totalidade de seu ser – corpo, alma e espírito – sobre
o altar de seus corações. Através dessa transformação e da oferenda do mundo
físico (as uvas são transformadas em vinho, o trigo se transforma em pão), o
homem, este microtheos, torna o bom
ainda melhor, torna o belo maravilhoso. Em sua humildade, o Deus imenso quis
que o homem fosse seu parceiro, e ordenou o universo de tal maneira a que este
necessitasse da obra sacerdotal do homem, como um dos meios pelos quais a
Igreja resgata e oferece o mundo material. Dessa maneira, a pintura de ícones é
hoje, como foi em outras épocas, algo criativo e dinâmico. Ela deve certamente
ser resguardada contra mudanças de estilo, tais como o sentimentalismo e o
naturalismo, que não correspondem às realidades espirituais representadas no
ícone. Mas ela deve igualmente ser resguardada contra um conservadorismo
legalista que iguala a tradição com uma prática de cópia inconsciente. Hoje em
dia, o este último perigo é maior do que o primeiro. A Iconografia estende suas
raízes no passado, mas também lança seus ramos no presente e no futuro, porque
ela é parte da missão da Igreja de “pregar o Evangelho a toda a criação”.
Ícones: a matéria transfigurada
A carne do homem é uma epifania de sua pessoa, assim como sua alma.
Quando a graça incriada diminui na alma humana em razão de sua fuga em relação
a Deus, ela se encolhe também no seu corpo, o qual, por consequência, se torna
ressequido e turvo. Por outro lado, quando a alma do homem é insaciavelmente
saturada com a crescente luz do Espírito, seu corpo brilha junto com sua alma.
Quando o homem, que é a alma e o santuário do cosmo, é transfigurado, também o
cosmo se transfigura, da mesma forma como as vestes de Cristo brilharam mais
alvas do que a neve no momento de sua transfiguração. Às vezes estamos
inclinados a encarar o homem como sendo inferior aos anjos, por causa de sua
realidade corporal. Mas na verdade, é precisamente essa materialidade do homem
que, quando ele vive de acordo com sua natureza, o torna mais alto do que os
anjos. São Gregório de Nyssa escreveu: “Nos tempos primitivos as autoridades
transcendentes só conheciam as obras simples e uniformes da sabedoria de Deus
que operava maravilhas. Por outro lado, a evidente qualidade da sabedoria que
nasce da união dos opostos se tornou manifestamente clara através de Cristo: o
Verbo se tornou carne”. Um importante ministério da Igreja, portanto,
consistirá em participar do plano do Pai, “para a plenitude dos tempos, para
unir todas as coisas nos céus e todas as coisas na terra[2]”.
O ícone talvez seja a expressão mais imediata e gráfica dessa união, em
primeiro lugar porque ele representa a Deus feito carne – Cristo – e a carne
fazendo-se deus – os santos – e, secundariamente, porque o ícone é em si um
suporte material da graça incriada.
O cosmo não brilha por si, mas precisamente enquanto cosmo, enquanto
adorno do homem, como as vestes sacerdotais do homem, como um imenso templo
para a Igreja que celebra o Deus vivo. O que São João de Damasco escreveu sobre
o tabernáculo no Antigo Testamento se aplica ainda mais a respeito do templo no
Novo testamento, que naturalmente inclui os ícones: “Porque o povo de Moisés
celebrava ao redor do Tabernáculo, que continha a imagem e o padrão das coisas
celestiais, ou antes, de toda a criação?”. As imagens ao redor do Tabernáculo
representavam a totalidade do cosmo tal como era em seu estado paradisíaco. Na
Nova Aliança, os ícones, a arquitetura litúrgica e os recipientes, a salmodia –
todas essas expressões materiais da vida da Igreja em Cristo – são como
epifanias do Paraíso, pois apenas agora o Paraíso se abriu e começou a se
manifestar diretamente na Igreja.
Os ícones declaram a nossa salvação. Mas eles também partilham conosco
desse êxodo da morte para a vida, dessa purificação das águas estagnadas de um
mundo decaído para as águas correntes de um mundo físico ofertado, mas não
celebrado. O ícone não apenas declara que Deus se fez carne, como ele próprio
constitui um meio de prolongar essa descida mística do Um Eterno ao tempo e ao
espaço criados. O que São João Crisóstomo diz dos corpos dos santos aplica-se
igualmente aos ícones dos santos: a luz de Deus, diz ele, “flutua do corpo para
as roupas, e das roupas para as sandálias, e das sandálias para as sombras”.
Assim como o Espírito Santo movia-se sobre a superfície das águas no
primeiro dia da criação e efetivou o Verbo do Pai em obras criadas, assim como
ele trouxe o que era informal no mundo primevo criado para a plenitude do
sétimo dia, também agora, por intermédio do Corpo de Cristo, ele transforma a
mera vida biológica numa vida pessoal, espiritual e comunitária. A vida
sacramental da Igreja, que quase sempre envolve a santificação da matéria, não
se resume a um meio de salvação para o homem, mas também a um meio de redenção
da matéria. O ouro contido num veio é bom. Mas ele é levado a um nível mais
elevado e se torna ótimo quando é extraído e transformado num anel de noivado,
numa coroa ou numa folha de ouro colocada sobre um ícone. A simples matéria é
abençoada e sacramentalmente “devorada” para Igreja, que a transforma então
numa parte de sua própria existência. A iconografia é assim uma dessas
atividades sacramentais do Corpo de Cristo.
Um ícone é feito de madeira, terra, minerais, ovos – ou seja, de
representantes de todos os reinos deste mundo: mineral, vegetal e animal. Essas
coisas boas, como as notas individuais da música que, colocadas juntas pelo
compositor, se santificam numa sinfonia de louvor, são habilmente manejadas,
como as palavras por um poeta, e profeticamente declaram as palavras de Deus.
A criação que o primeiro Adão e seus filhos celebraram agora se volta
para o segundo Adão e seus filhos, num hino cósmico. Um mundo decaído é um
mundo fragmentado, um cosmo partido que, por estar em pedaços já não constitui
o adorno que é sua verdadeira natureza. Mas a Encarnação restaura a unidade
imaculada de todas as coisas, e as conduz para além de onde se encontravam
antes, para uma união íntima com Deus através da carne assumida por seu Filho.
São Máximo o Confessor expressou maravilhosamente o mistério da recapitulação
na seguinte passagem: “Conosco e por nós Cristo abraçou toda a criação através
daquilo que está no centro, e os extremos como sendo parte de si mesmo, e
envolveu tudo ao seu redor, unindo insoluvelmente cada coisa com as demais: o
Paraíso e o mundo habitado, os céus e a terra, o sensível e o inteligível,
pois, como nós, ele possuía um corpo, uma sensibilidade, uma alma e um
intelecto (...) Ele recapitulou em si todas as coisas, mostrando a criação como
uma única coisa, como se ela fosse um homem”.
A terra chorou quando o homem confeccionou ídolos com suas joias e se
prosternou diante deles. A terra se regozijou quando os Magos ofertaram seus
tesouros de ouro, incenso e mirra, pois através deles ela se curvou diante de
seu Criador. A terra se regozijou quando o primeiro ícone foi produzido e
venerado, pois através dele criou-se um meio para conduzir a humanidade pródiga
de volta ao seu Pai celestial.
Sem o homem como seu sacerdote, profeta e rei, o cosmo emudece,
decapitado. Mas com sua cabeça, com a humanidade celebrante, o cosmo se torna
articulado e presta ação de graças ao seu Criador. O ouro se regozijou ao ser
fundido, purificado e batido, para ser oferecido pelos Magos naqueles tempos
antigos. A árvore de incenso se alegrou ao ser cortada para poder oferecer sua
seiva aromática ao Um que a trouxera da não existência para a existência, e que
a plantara no Paraíso. A mirra estava feliz em ser triturada para poder
profetizar a morte vivificante que dava a Vida.
Na antiga tradição Russa o iconógrafo pintava com o ícone deitado horizontalmente
enquanto o iconógrafo permanecia em pé. O ícone se regozijava por ser desta
maneira, por ser o servo de um sábio senhor. Mas quando o ícone ficava pronto a
ordem se invertia: o ícone era colocado na vertical, e o iconógrafo e os fieis
se prostravam diante dele. E novamente o ícone se regozijava, porque, por sua
semelhança com o protótipo, a simples matéria havia se transformado num suporte
para a graça incriada. Ele foi confeccionado por um novo Noé como uma arca para
salvar a criação. Por sua participação na graça incriada e na salvação do
homem, a matéria inicia assim sua passagem deste mundo mau para o século
futuro. No mundo decaído, os toscos materiais do ícone – ouro, madeira, pedras
preciosas, terra – são tolamente celebradas por causa de qualidades materiais
que eles possuem por natureza. Dentro da Igreja, esses materiais, como partes
do ícone, são sabiamente honrados por causa das qualidades incriadas que eles
possuem, ou melhor, que eles expressam, não por natureza, mas pela graça. Como
disse São João de Damasco, “não deixem de venerar a matéria por meio da qual se
efetivou nossa salvação”.
Tradição e Criatividade
A partir do que vimos acima, fica evidente que os ícones são
importantes não apenas por aquilo que são, mas também por causa do modo como
são confeccionados; o processo de fazer um ícone possui um significado
teológico, tanto quanto o produto. Para apreender esse significado cósmico e
sacramental da pintura do ícone é preciso uma verdadeira percepção da Tradição,
porque é através da Tradição que a Igreja escreve os ícones que são as
verdadeiras imagens das realidades espirituais, e não meras ficções da
imaginação decaída de alguém, ou os desalmados produtos dinheiristas do
comércio. Note-se que o que se entende aqui como Tradição, com “T” maiúsculo, não
se refere a costumes locais secundários – as muitas tradições com “t” minúsculo
– que legitimamente variam de uma localidade a outra dentro da Igreja, mas
àqueles elementos da vida da Igreja que coletivamente são essenciais e universalmente
presentes nela.
Então, o que é a Tradição? Ou, mais precisamente, o que significa
fazer hoje um ícone que esteja dentro da Tradição da Igreja? Tradição significa
literalmente “algo transmitido”. Mas o que é transmitido num ícone? A semelhança
daquele que é retratado, certamente, porque, por meio dessa representação da
semelhança do santo o ícone participa de sua hipóstase, de sua pessoalidade.
Mas talvez a descrição mais católica da Tradição seja “a vida do Espírito no
seio da Igreja”. Nesse caso, a “coisa” transmitida é nada menos do que a
Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, o Espírito Santo. Isso foi dado à
Tradição da Igreja no Pentecostes, porque foi no Pentecostes que a Igreja
recebeu o Espírito. Os Concílios Ecumênicos, os dogmas, os escritos
patrísticos, a sabedoria patrística não escrita, os esquemas iconográficos –
tudo isso, e outras expressões doutrinais da Igreja constituem tradições
precisamente porque correspondem ao Espírito de Verdade que opera no seio do
Corpo de Cristo, revelando o Verbo Encarnado de Deus ao homem. No seu sentido
mais preciso e verdadeiro, a fidelidade à tradição iconográfica não é,
portanto, uma questão de seguir regras ou de fazer réplicas de outros ícones,
por mais que isso seja útil para estudantes que estão começando; antes, é uma
questão de fidelidade à realidade, a uma realidade que só é inteiramente
revelada dentro da Igreja. A iconografia tradicional é mais do que a cópia
inconsciente de modelos de alguma escola de iconografia mais antiga, assim como
orar é mais do que uma desatenta repetição de palavras escritas, e como a
teologia é mais do que copiar os escritos dos Padres.
Tradição e Cultura
A primeira criação foi efetuada pelo Verbo de Deus por intermédio do
Espírito, operando de acordo com mo plano que o Pai tinha antes de todos os
séculos. Esse plano, esses logoi na
mente do Pai, são a fonte de toda a Tradição. De modo similar, a nova criação,
a nova cultura teoantrópica chamada Igreja, foi trazida à existência pelo Verbo
encarnado, por intermédio do Espírito Santo, de acordo com o plano do Pai.
Podemos mesmo denominar esse plano, que estava eternamente na mente do Pai, de
“arquitradição”, a Tradição originária do Pai que não foi recebida diretamente,
mas que foi transmitida através da revelação e dos sacramentos dentro da
Igreja. A adoração ou o culto da Igreja, por ser uma adoração em espírito e
verdade,, ou seja, por estar de acordo com a Tradição, produz uma cultura, uma
nova criação. A Igreja cultiva o mundo por intermédio de seu culto. E essa
cultura é uma cultura humano-divina, por ter sido criada pelo Corpo
divino-humano de Cristo. Operando em sinergia com Deus o homem cultiva o trigo
com o qual ele faz o pão, e o oferece liturgicamente; por sua vez, Deus oferece
a si próprio liturgicamente por intermédio da descida do Espírito, e transforma
esse pão no Corpo de Cristo. Similarmente, não são uvas que são oferecidas pelo
homem na Divina Liturgia, mas vinho; e por sua vez, Deus não oferece vinho ao
homem, mas seu próprio Sangue vivificante. Assim é que a Tradição é o fruto da
sinergia, da associação entre Deus e o homem; uma associação desigual,
certamente, mas genuína, não obstante, de Deus com “deuses”.
Existem, portanto, dois elementos complementares da Tradição, conforme
podemos experiênciá-los: de um lado ela é imutável, por ser completa, católica
e por abarcar a tudo; de outro lado, ela se exprime por meio de uma rica
variedade de caminhos não contraditórios das diferentes igrejas locais dentro
da única Igreja apostólica. Em seu aspecto essencial e imutável, a Tradição
consiste na luz incriada que irradia do túmulo de Cristo. Mas essa vida
incriada permanece jorrando através do tempo e do espaço criados, rompendo seus
diques e nutrindo as sementes ocultas debaixo das culturas ressequidas. A
Tradição é o único sol e o único céu que traz a luz, o calor e a água para uma
vasta variedade de sementes, para que elas possam se tornar aquilo que são. A
Tradição é a sinergia do Deus Triúno operando com as muitas tribos da terra,
“fazendo discípulos em todas as nações”. Os ícones são um dos frutos desse
discipulado de nações, pois, com o tempo, cada nação convertida principia a
produzir suas próprias e distintas imagens do único e imutável Cristo.
A sabedoria de Deus eleva aquilo que é parcial numa dada cultura
humana, ao nível em que essa cultura decide abraçar o Evangelho, e o conduz à
sua plenitude. João Evangelista fez isso quando ele tomou a palavra logos e a utilizou tão ricamente em seu
Evangelho. Ele trouxe essa palavra, com todo o seu significado filosófico
herdado da tradição Platônica, para a Igreja, afirmando seus significados que
concordavam com a verdade, deixando de lado aqueles que não concordavam, e
adicionando significados que lhe faltavam. São João nem utilizou a palavra
exatamente tal como se encontrava – mesmo que tal produto da filosofia humana
pudesse expressar plenamente aquilo que só poderia ser revelado – nem criou uma
nova palavra, desconhecida por qualquer cultura. Ao invés disso, ele cultivou
uma semente que já existia, expondo-a à luz e à agua do Espírito. É semelhante
à tarefa do iconógrafo que busca encontrar as sementes ou aproximações da
verdade na cultura dentro da qual trabalha, para trazê-las à plena luz do
Evangelho.
Essa natureza afirmativa da Igreja é exemplificada no ícone do
Pentecostes. Vemos no centro um rei idoso, envolto na escuridão. Ele segura um
pano no qual estão vários rolos de pergaminho. Acima, a luz flui de uma única
fonte celestial, dividindo-se e enchendo cada discípulo com luz, transformando-os
em suportes da luz, photophoroi. O
ícone representa cada discípulo como uma pessoa diferente, cada um com seu
próprio rosto, cada qual vestindo diferentes roupas coloridas, cada um sentado
numa posição própria, e, no entanto, todos estão reunidos num todo harmonioso,
uma família. Cada discípulo recebe uma língua diferente do Um que está além de
toda expressão, de modo a poder portar essa Luz para sai própria nação na
língua desta nação. Eles vão desenrolar e interpretar a autobiografia
parcialmente escrita de cada nação que espera a Boa Nova, para então conduzi-la
até sua consumação no Reino de Deus. Eles vão colocar em sinergia as obras
criadas do homem com a luz incriada e a água de Deus. Eles ensinarão a cada
nação o arrependimento e a fé, para que elas deixem de tentar extrair vida das
coisas mortas, e para que comecem a beber a água da Fonte da vida. Os apóstolos
ensinarão as nações a se purificar para que possam ser transformadas pelo
Espírito em ícones vivos de Cristo. Mas cada cultura se tornará um ícone único,
um ícone feito a partir de materiais indígenas de sua própria terra, ou seja,
de sua própria personalidade enquanto povo, de sua língua, do legado
arquitetônico, artístico e musical de seu passado (naquilo em que essas coisas
concordam com o protótipo celestial), e mesmo dos materiais rústicos da terra.
Isso não é por que se busca preservar e promover sua cultura num sentido
nacionalista, mas simplesmente porque ela é o que ela é: ela amará a Deus com
sua própria personalidade, não com a personalidade de outra cultura. O ícone
será o mesmo Cristo, mas, ao mesmo tempo, será distinto dos outros, autêntico e
não simplesmente copiado. Esse é o trabalho da Tradição. Em sua humildade a
Igreja mãe que traz o Evangelho para a nova cultura deseja que o recém-nascido
cresça com maturidade em Cristo, e que não se torne uma mera réplica dela
mesma.
Os puros de coração verão
O iconógrafo desempenha um papel integral nesse trabalho criativo de
restauração. De um lado ele é o receptor passivo da Tradição imutável; de
outro, ele é o cultivador ativo da mesma Tradição imutável, representando
criativamente Deus, a Mãe de Deus, os santos, como pessoas conhecidas e amadas,
e não como alguém de quem apenas se ouviu falar. O evangelista Marcos escreve que “as multidões
ficavam espantadas com o ensinamento de Cristo, porque este falava a eles como
alguém que possui autoridade, e não como os seus escribas[3]”.
Ele falava sobre o Pai com autoridade, porque ele conhecia o Pai, enquanto que
os escribas haviam lido a respeito dele. Os apóstolos falavam com a mesma
ousadia, por terem convivido com Cristo e porque, tendo recebido o Espírito
Santo que lhes fora dado no Pentecostes, o conheciam como alguém de quem davam
testemunho. Assim é que falavam dele naturalmente, sem artifícios. O objetivo
do iconógrafo é de testemunhar a Verdade do mesmo modo, pois o que é uma
testemunha senão alguém que relata o que viu, e não aquilo de que meramente
ouviu falar?
Ao se preparar para essa exigente tarefa de testemunhar o Reino dos Céus,
o iconógrafo, assim como os primeiros discípulos “aguarda em Jerusalém até
receber o poder do alto”. Ele espera no aposento do andar superior em jejum e
oração, juntamente com toda a Igreja: “Numa só harmonia eles todos se dedicavam
à oração”. Ele ama estar “em um lugar” junto com os santos, na Liturgia, no
Aposento Superior. Mas ele não apenas aguarda, mas clama dia e noite para que a
graça do Senhor venha para purificá-lo e preenche-lo. Ele derrama doces
lágrimas de desejo pelo Bem Amado, e amargas lágrimas de remorso por haver
expulsado o Bem Amado do Paraíso de seu coração por causa de seu desleixo. Ele
não se contenta em apenas copiar as imagens que outros pintaram de seu Bem
Amado, mas deseja encontrá-Lo para pintar ícones que sejam vivos, reais,
marcados com uma sobriedade que é fruto de um encontro verdadeiro.
Quando o Espírito veio como fogo sobre os discípulos que aguardavam,
eles foram purificados; seus sentidos físicos e espirituais ficaram limpos.
Quando o Espírito chegou como vento e luz eles viram os logoi das coisas criadas; eles entenderam sua linguagem; eles se
viram no Paraíso. Simultaneamente eles se tornaram mais preocupados com o
sofrimento dos demais, pois puderam experimentar mais agudamente em que
consiste a verdadeira vida. Eles se encheram de compaixão. No meio deles, o
iconógrafo, assim como o Apóstolo Paulo em Atenas[4],
vê os inúmeros ídolos pagãos, “e seu espírito se sente atiçado no meio deles”.
Mas, como Paulo, estando cheio do espírito de amor, ele busca ao seu redor pelo
que existe de melhor nessa cultura, e encontra o altar “ao Deus desconhecido”.
Ali ele encontra uma semente de verdade, uma semente de humildade que reconhece
que existe algo além, algo desconhecido, Alguém que ainda não foi ouvido. O
iconógrafo coloca sua semente de verdade no contexto da economia universal de
Deus: a criação, o momento em que Deus se revela para a nação Hebraica, a
encarnação do Verbo, sua morte, ressurreição e ascensão, e a descida do
Espírito. Se sua plateia se arrepende e crê, ela se torna co-operadores,
juntamente com os santos, no hino de louvor da Igreja.
Os primeiros iconógrafos Bizantinos desenharam elementos de sua
tradição mais antiga da cultura Grega – em particular, talvez, os retratos
funerários de Fayum – e os transfiguraram. Coptas, Georgianos e Celtas fizeram
o mesmo. Os ícones do período dourado da Rússia – de século XII até o XVI –
foram frutos da tradição Bizantina recebida, com uma fertilização cruzada de
elementos autóctones. Assim como os Padres da Igreja deram testemunho da
verdade perante as heresias e as necessidades pastorais através do uso criativo
e inspirado da linguagem corrente, não se contentando com apenas citar
passagens prontas, também os iconógrafos responderam ao estado da arte do povo
no momento de pintar. Eles estavam no mundo, ainda que não pertencessem a ele.
Além das evidentes diferenças estilísticas entre as culturas
principais, existem também variações nos estilos iconográficos no interior de
cada uma dessas culturas. Épocas diferentes apresentaram diferentes ênfases, e
essas variações não devem ser vistas apenas como concessões à fraqueza humana,
mas antes, quando autênticas e espiritualmente inspiradas, como extensões da
manifestação do Deus vivo pela Igreja universal. Os quatro Evangelhos são a
evidência disto. No cânon da pintura mural, o Pantocrator é retratado no domo,
e nos quatro apoios que unem esse domo único às quatro paredes da nave ficam os
quatro evangelistas. O Evangelho uno e único é pregado aos quatro cantos do
mundo por intermédio de quatro livros evangélicos distintos. O ouro – vale
dizer, a luz incriada – que irradia do Pantocrator, é idêntico nas auréolas dos
santos, mas seus rostos são diferentes. O dogma da Igreja é sempre o mesmo
universalmente, mas é vivido e, por conseguinte, expresso, de forma única por
cada povo, época s cultura diferentes.
Dentro de Bizâncio, por exemplo, podemos mencionar o período Comeniano
(1081-1185), cujos ícones são caracterizados por grandes olhos, com figuras
visivelmente imóveis, monumentais, silenciosas e dignificadas. A escola
Paleológica que se segue a esse período é, por contraste, cheia de movimento
dinâmico, multiplicando as figuras e utilizando mais profundidades. Segue-se
então a predominância da escola Cretense, com seus rostos austeros e
iluminados.
Dentre os reinos Russos, encontramos a primeira escola da Kiev, que
corresponde bastante ao período Comeniano Bizantino. Em seguida as figuras
dinâmicas de Teófano o Grego chegam a Novgorod e Moscou, retratando em seus
afrescos figuras incendiadas pela luz. Em continuação a Teófano temos seu
discípulo Andrei Rublev. Ele é o fundador da escola de Moscou, caracterizada
pela sutileza. Suas cores luzentes e transparentes, epifanias da matéria
mergulhada na luz incriada, suas linhas tranquilas, são inspiradas pelo
Hesiquiasmo de São Sérgio de Radozneh e seus discípulos. Os ícones de Novgorod,
pragmáticos e comerciais, se mostram mais ondulados e graficamente
esquematizados.
As igrejas locais dessas culturas ofereceram a Deus seus dons
iconográficos autênticos: o que poderá o século XX oferecer a Deus neste hino
de Tradição?
Os ícones revelam os logoi
Os ícones são como os nomes que
os filhos do segundo Adão dão às criaturas terrestres. Cada nome revela a
verdadeira identidade da coisa nomeada. Os nomes são a revelação do logos único de cada coisa individual,
das pedras e árvores até os seres humanos. O que é um santo, que, depois de
Cristo e da Mãe de Deus, é o principal tema dos ícones? Um santo é alguém que
se tornou aquilo que ele já era na mente de Deus, que se tornou o nome que Deus
lhe deu; ele constitui um logos
realizado, um pequeno logos unido ao
grande Logos.
O santo é carne, fenômeno, que irradia desde dentro pela união do Logos Criador com seu próprio logos criado ou hipóstase. É por isso
que as sombras são ausentes nos ícones: a luz incriada que irradia do interior
do santo vence as sombras, que são causadas pela predominância da luz exterior
criada. Quando se emprega o preto, como a gruta da natividade de Cristo ou na
tumba de Lázaro, ele significa explicitamente o estado do mundo decaído. E
quando uma cor escura é utilizada positivamente, para descrever alguma coisa
das realidades celestiais, ela significa paradoxalmente uma presença profunda,
mais do que uma ausência. Veja-se, por exemplo, o centro das nuvens que cercam
a transfiguração de Cristo, que costumam ser pintadas de azul escuro; elas
representam a escuridão da presença divina incompreensível, desconhecida e
incompreensível pelo homem, a essência divina a partir da qual brilham com
esplendor as energias divinas incriadas
e cognoscíveis.
Os ícones mostram as árvores inclinadas, como que prostradas diante
das pessoas sagradas. As rochas se partem como ondas para permitir ao Salvador
penetrar no Hades. Os rios correm a partir do Criador batizado. Os ícones representam
um cosmo que retorna ao seu estado paradisíaco.
Uma vez que “o amor dá esperança a todas as coisas”, a sabedoria
divina inspirou os iconógrafos a pintar os edifícios de maneira a que nós, os
espectadores, somos convidados a ir além dos confins dos espaços criados para a
vida além do espaço do Espírito; os edifícios são pintados como se víssemos
simultaneamente ambos os lados, de baixo e de cima. Dessa maneira o ícone
espera quebrar os limites de um orgulhoso racionalismo que insiste em que vemos
o mundo apenas através do cérebro, apenas porque ele aparece aos nossos
sentidos como um objeto que diminui na medida em que se afasta, e que por isso
deveríamos pintá-lo assim. Os ícones nos convidam a ver o mundo de outra forma,
vale dizer, tal como Deus o vê, ao menos na medida em que isso é possível ao
homem. Se a perspectiva multivisual do
ícone inicialmente nos confunde, é precisamente porque ela transmuta nosso
racionalismo de modo a que possamos nos tornar verdadeiramente racionais, para
que possamos ir além dos conceitos meramente mentais e da percepção sensorial
para penetrarmos no Paraíso de Deus. Nesse jardim, as coisas são vistas de
dentro para fora, não de fora para dentro.
Os ícones revelam os logoi
da criação. Mas é perigoso para uma pessoa passional procurar pelas razões dos logoi na natureza. A pessoa que escreve
ícones sem primeiro ter purificado seu intelecto, ou, para sermos talvez mais
realistas, que não está se esforçando para viver humildemente e com
arrependimento no seio da Igreja, acabará por produzir ícones distorcidos,
longe da verdadeira imagem do protótipo inspirado. Essa pessoa poderá fazer
coisas semelhantes aos modelos tradicionais, mas elas não terão alma, não terão
a liberdade que caracteriza os modelos iconográficos inspirados. Seus ícones
serão a imagem de seu próprio estado decaído. Quando isso acontece, o que deve
fazer o iconógrafo? Em primeiro lugar, ele deve se tornar um membro da família
de Deus; através do batismo e da crisma ele entra para a ekklesia, a assembleia dos santos. Então, fazendo parte da família,
ele pode crescer em maturidade por meio da participação na sua vida, em
especial através da Santa Comunhão, da confissão, dos serviços, do jejum e de
sua adoção por um pai espiritual. “Devemos nos recolher ao nosso interior”,
aconselha São Nicodemo o Hagiorita, “através de nosso retiro junto a Deus,
através da prece e por nosso clamor ao seu Nome”. Aquele que busca conhecer o
mundo e, por meio dele, a Deus, deve conhecer a si mesmo. Quem deseja encontrar
os santos deve primeiro conhecer a si próprio em toda sua fraqueza. É dentro de
nós, diz Santo Isaac o Sírio, que encontraremos a Deus, mas também o céu, o
inferno, os demônios e os anjos, todas as pessoas e toda a criação.
Quando a pessoa batizada penetra a aparentemente insignificante porta
de seu coração, ela se encontra no Paraíso, no espaço aberto onde Cristo
conversa com seus discípulos. Ela se encontra transfigurada e vê coisas que
antes eram invisíveis. Como escreve São Máximo, a pessoa pura de coração experimenta
“uma alteração dos sentidos e passa da alma para o Espírito; o Espírito traz
consigo uma transformação das energias sensíveis e rasga o véu das paixões que
encobria a faculdade intelectual”. Ele prossegue: “Em Cristo, aqueles que foram
batizados se tornam luz de luz, e então conhecem aquele que os gerou, pois
agora são capazes de vê-lo”. Assim é que o iconógrafo pinta aqueles a quem ele
viu com seus próprios olhos espirituais. Ele não pinta a imagem de uma imagem,
mas a imagem tirada de um protótipo vivo. Ele certamente recebe a semelhança
física do santo a partir de ícones existentes, mas ele percebe esses ícones sacramentalmente,
não como uma substituição da coisa real, mas como um suporte sacramental da
própria pessoa retratada. Ele encontra o santo pessoalmente em Cristo através
do Espírito Santo, assim como Pedro, Tiago e João encontraram Moisés e Elias no
Monte Tabor. Ele recebe a semelhança externa do Espírito por intermédio dos
ícones, e a semelhança “interna”, sua relação pessoal para com o santo, ele
recebe do mesmo Espírito Santo através da pureza do coração. Desse modo, a
semelhança física que o iconógrafo recebe por intermédio dos ícones não é algo
exterior à sua vida no Espírito, porque o Espírito que assegurou essa
semelhança através dos ícones é o mesmo Espírito que encheu seu coração de luz.
Devemos lembrar aqui que tal estado de pureza do coração descrito aqui
é raro, e que, sendo assim, muitos iconógrafos têm que se contentar em copiar
os trabalhos dos mestres. É claro que, como dissemos acima, a semelhança com o
santo é obtida copiando-se os ícones. Mas a questão que colocamos é de saber
até que medida o resto dos detalhes devem ser copiados. É infinitamente melhor
para alguém que ainda está sujeito às paixões fazer uma cópia fiel de um ícone
inspirado do que pintar as fantasias de um coração impuro. E naturalmente o que
torna um ícone sagrado basicamente não são os detalhes de estilo, mas o fato de
que ele representa um personagem sagrado. Como escreve São Simeão de
Tessalônica: “Represente com cores de acordo com a Tradição; essa pintura é tão
verdadeira quanto o que está escrito nos livros, e a graça de Deus habita nela,
porque o que está representado ali é sagrado[5]”.
E existe ainda uma diferença entre um iconógrafo que se limita a fazer cópias
com a consciência de que isso constitui uma concessão ao seu baixo nível
espiritual, e aquele que transforma isso numa norma, numa regra intransigente.
Ademais, aquilo que chamamos de cópias raramente são cópias genuínas: pesados
apliques mecanicamente executados, camadas opacas executadas com pigmentos
rústicos dificilmente constituem reproduções fiéis de obras primas clássicas.
Realmente, executar uma cópia verdadeira dessas obras primas requer não poucas
doses de talento e humildade. Todavia, equiparar a cópia com a Tradição implica
mais um espírito de medo do que uma maturidade espiritual. São Simeão o Novo
Teólogo opôs-se a esse espírito derrotista, que estava muito presente em seus
dias – espírito este que reduzia o monaquismo e a vida Cristã em geral a uma
aderência legalista aos rituais e às ações exteriores – quando declarou
fortemente que todos os Cristãos, independente de seu modo de vida, eram
chamados à deificação por intermédio do arrependimento, e eram chamados a
conhecer a Deus experimentalmente: “Não digam que alguém O possui se não O
conhece. Não digam que Deus não se manifesta para o homem. Não digam que o
homem não pode perceber a luz divina, ou que isso é impossível na época atual!
Isso nunca foi impossível, meus amigos. Ao contrário, é perfeitamente possível
quando se deseja[6]”.
Estamos falando aqui de alguma espécie de expressionismo artístico? Se
por expressionismo artístico entendermos a exibição de um capricho
individualista, anárquico, ostentatório e sem amor, e as modas fugazes que
caracterizam a arte moderna, é claro que a iconografia não tem nada a ver com
isso. Se, por outro lado, entendemos como artístico que o pintor do ícone se
torna co-artista com o único e verdadeiro Artista, então, sim, a iconografia é
artística. Se por expressionismo entendemos uma manifestação de Deus, da Virgem
Maria e dos santos que são conhecidos pessoalmente, então, sim, a iconografia
madura é expressionista. Para ser exato e preciso na obtenção da semelhança
para com o Senhor, o iconógrafo deve expressar seu encontro pessoal com o
Senhor. A exatidão requer a inspiração. São Calixto Xanthopoulos escreveu no século
XIV sobre o famoso pintor Paleólogo Eulálio: “Ou o próprio Cristo desceu dos
céus e mostrou os traços exatos de sua
face a ele, que possuía mãos tão eloquentes, ou o próprio Eulálio subiu aos
céus para pintar com suas destras mãos a aparência exata de Cristo”.
Poderá alguém ser ousado a ponto de sugerir que as expressões francas
e honestas de angústia metafísica presentes em muitas louváveis obras da arte
moderna são menos agradáveis a Deus, como forma de oração, do que os ícones sem
alma feitos mecanicamente “em estilo Bizantino” apenas para benefícios
financeiros? Não subirão aquelas a Deus como os lamentos dos Hebreus no Egito,
enquanto as últimas cairão por terra como as murmurações Farisaicas?
Pode-se argumentar que uma vez que um ícone é um ícone em virtude de
constituir um suporte para o nome e a semelhança do protótipo, então o estilo
tem pouca ou nenhuma importância; os fiéis veneram o santo ao venerarem seu
ícone, de modo que as peculiaridades de estilo do ícone não são significativas.
Existe um elemento de verdade nisso: esse grande amigo da Virgem, São Serafim
de Sarov, venerava muito um ícone da Theotokos que fora pintado nesse estilo
naturalista e sentimental que estamos colocando agora como algo fora da
Tradição. Porém, esse argumento só se refere à virtude daquele que venera o
ícone: apesar das deficiências no estilo do ícone, o fiel ainda vê nele o santo
representado. Mas a questão que estamos considerando aqui não diz respeito à
tarefa de quem venera, mas ao trabalho do iconógrafo, e certamente seu trabalho
é o de fazer uma imagem cujo estilo apresente uma realidade espiritual tão
plena quanto possível. No caso de ícones corretamente executados, veneramos
aquele que está representado graças ao ícone, e não apesar dele.
Pigmentos
De acordo com São Gregório o Teólogo, a “parte de trás” de Deus que
foi concedido a Moisés ver no Sinai era a majestade de Deus, que São Gregório identifica
com os logoi da criação. Assim sendo,
para que alguém pinte a imagem de Cristo devidamente, para encarar a Deus face
a face, essa pessoa precisa primeiramente ver “a parte de trás” de Deus,
encontrá-Lo através de Suas palavras, de Seus logoi implantados no interior das coisas que Ele criou. Para o
iconógrafo, esse conhecimento dos logoi
no interior das coisas criadas significa antes de tudo os logoi dos próprios materiais com que ele realiza seus ícones: a
madeira, a folha de ouro, os pigmentos, o verniz, etc. Nunca é demais enfatizar
esse ponto nessa nossa era tecnológica, quando as máquinas nos separam dos materiais
rústicos da existência, alienando-nos da sutileza da criação de Deus.
Mas esse entendimento das características próprias de cada material, e
a habilidade em trabalhar com eles, demanda tempo e paciência para desenvolver
– e, principalmente, amor. O manejo desses materiais não consiste apenas em
meios para alcançar um fim, um processo sem significado teológico, algo a ser
terminado o mais rápido possível. Antes, trata-se de uma forma de celebração
litúrgica, uma oferenda sacerdotal em forma de prece por intermédio da matéria
transformada. Um iconógrafo que carinhosamente escreve seu ícone é como um
sacerdote que carinhosamente celebra a Divina Liturgia.
A importância desse conhecimento e o respeito pelos materiais
utilizados levanta a questão dos pigmentos artificiais e dos materiais
artificiais em geral. Antigamente era comum que os aprendizes de iconógrafo
passassem meses, senão anos, simplesmente aprendendo a triturar os pigmentos, e
também aprendendo a encontrá-los no solo. Através desse contato íntimo com os
diferentes pigmentos o aprendiz conheceria seus segredos, descobriria o logos único de cada mineral e de cada
terra. Ele aprenderia que o lápis é melhor quando esmagado do que quando moído,
e que ele produz uma cor mais rica quando queimado a 800o C, que
depois de lavado existem dois pigmentos, a cinza mais clara e o sedimento mais
escuro. Quando o iconógrafo trabalha dessa maneira, através do microcosmo do
ícone ele começa a enxergar toda a terra, o macrocosmo, de um modo diferente.
Pedras até então insignificantes e torrões de sujeira se tornam potenciais
participantes nos hinos e orações da Igreja. Será possível a um iconógrafo
desenvolver tamanha intimidade com seus pigmentos, se ele só utilizar pigmentos
preparados industrialmente? Certamente não, pois tal conhecimento íntimo só se
desenvolve se existir também um contato íntimo. Isso não significa que um
iconógrafo só pode utilizar pigmentos que ele próprio preparou; mas a verdade é
que apenas por meio de alguma experiência na preparação de seus próprios
pigmentos o iconógrafo sentirá um respeito por eles, que de outra maneira será
impossível. Ele se tornará capaz de extrair mais das qualidades inerentes de
cada cor, por causa desse respeito.
Um segundo ponto a colocar a respeito dos pigmentos artificiais se
refere às cores em si. Uma característica comum aos pigmentos industriais é sua
pureza. Isso pode parecer atraente, mas é essa mesma pureza que os torna tão
ríspidos e prepotentes. Cores naturais raramente, ou antes, nunca, apresentam tal
pureza no sentido material. E é precisamente nisso que reside seu encanto e
sutileza. Basta compararmos um cinabre industrial com o cinabre da terra para
percebermos o quão pesado e desarmônico é o primeiro.
Muitos benefícios derivam da impureza das cores naturais. Em primeiro
lugar, é possível obter diversos matizes juntos no ícone com mais facilidade e
melhores resultados. Isso acontece porque cada pigmento contém minerais comuns
com seus vizinhos, criando uma espécie de interpenetração, ou pericorese, para
usarmos o termo teológico correspondente. Isso se deve também ao fato de que o
matiz predominante de cada pigmento é suavizado pela sua mescla com os demais
matizes presentes, mesmo que em quantidades insignificantes.
Uma segunda desvantagem comparativa das cores fabricadas
comercialmente é que elas são concebidas para produzir a cobertura mais forte e
opaca possível. Por essa razão, a menos que sejam controladas cuidadosamente
pelo pintor, elas acabam por produzir camadas pesadas e opacas que não permitem
interação nem com o luminoso gesso branco, nem com o proplasmos. Claro que isso pode ser compensado com a adição de mais
água ou de têmpera de ovo, mas trata-se sempre de uma luta contra as tendências
inerentes da química. Em contraste, as cores naturais são em geral mais
translúcidas. Essa característica, juntamente com a harmonia cromática que
mencionamos, cria uma comunhão de cores, mais do que uma difícil coexistência
de cores individuais, em que cada matiz impõe sua propriedade como um proprietário
ciumento.
Um terceiro efeito dos pigmentos naturais se refere às associações
subjetivas que eles evocam no iconógrafo. Quando eu utilizo uma cor extraída da
terra, os sentimentos associados à riqueza dada por Deus à terra brotam em mim;
quando eu uso as cores industriais, eu apenas evoco imagens industriais. É mais
ou menos a diferença que existe entre morar numa casa de pedras ou de madeira,
e morar numa casa de concreto.
Certamente as quase subconscientes associações evocadas pelo material
com o qual estamos trabalhando têm um efeito sobre a alma do iconógrafo; que
dizer então de seus ícones?
Ícones e talento artístico
É fato para nos regozijarmos, que o decadente e sentimental estilo dos
últimos dois séculos tenha hoje sido deixado de lado em favor do estilo
tradicional. Mas existem elementos de uma reação exagerada nesse renascimento.
Pelo fato de que a decadência se deveu em primeiro lugar aos iconógrafos que
decidiam por si próprios alterar os estilos de acordo com sua própria vontade ou
para atender a questões seculares (referimo-nos ao naturalismo renascentista e
ao posterior movimento barroco), a verdadeira pintura de ícones hoje
frequentemente se encontra justaposta à criação artística: é costume afirmar-se
que o ícone não é um trabalho de arte. Essa reação exagerada, que engessa a
iconografia, é às vezes reforçada pela presença no cenário da filosofia “arte
pela arte” do século XX, e do culto do esteticismo. O iconógrafo sagrado, dizem
os reacionistas, pinta apenas cópias fiéis, enquanto que o artista secular
pinta de acordo com sua visão pessoal. Ou então: um ícone é sagrado apenas em
virtude daquele a quem ele representa, enquanto que uma obra de arte é boa na
medida em que agrada ao olhar.
Que essa oposição entre iconografia e arte não é uma atitude
tradicional da Igreja será demonstrado a seguir por numerosos testemunhos de
contemporâneos de Bizâncio. Esses comentadores, naturalmente, viam os ícones
como algo mais elevado do que, por exemplo, as representações de caçadas no
palácio do imperador, mas eles não consideravam os ícones como não sendo arte.
Ao contrário, eles louvavam os grandes ícones como grandes obras de arte. Eles
louvavam a habilidade do artista em expressar fielmente a semelhança para com o
espírito do protótipo. A iconografia inclui e sublima a habilidade artística e
a inspiração – ela não os aniquila. A comparação pode ser colocada entre
salmodia e iconografia. O texto que o coro canta exprime uma força espiritual,
do mesmo modo como faz o tema em relação ao ícone. Quanto mais talentosamente
(embora não de forma ostensiva) e com maior compunção o coro cantar os textos,
mais prontamente esses textos sagrados penetrarão nos corações dos fiéis: a
beleza da melodia cria uma disposição do coração que prepara o ouvinte para uma
melhor recepção da semente do texto. Similarmente, quanto mais habilmente,
quanto mais amorosamente o iconógrafo pintar o santo que ele retrata, mais
prontamente será o fiel levado a amar aquele que está ali representado. Ícones
apressados e negligentes arranham a alma. E um ícone é belo porque é fruto do
amor, não apenas entre o pintor e o santo, mas também entre o pintor e seus
materiais.
Os extratos a seguir mostram que através de sua história a Igreja
valorizou certos ícones como grandes, não porque tenham sido reproduções
matematicamente acuradas de seus modelos, mas porque evocavam vividamente o
santo ou a cena retratada com profundidade espiritual e talento artístico.
São Nilo do Sinal (†430) escreveu que o Prefeito
Olimpiadouros, que buscava conselho sobre como decorar sua igreja, terminou
“enchendo a santa igreja de ambos os lados com pinturas do Antigo e do Novo
Testamento executadas por um excelente pintor”.
A sacralidade da cena não constituiria uma desculpa para permitir a
qualquer um pintar, ainda que a força do protótipo fosse suficiente em si,
independente da habilidade da execução. Ao contrário, para Nilo, quanto mais
sublime o protótipo, maior habilidade artística se esperava do artista para
fazer-lhe justiça.
São Gregório de Nissa (335-395) escreve a respeito de uma
representação de Abrahão oferecendo a Isaac: “eu vi muitas vezes esse trágico
evento representado em pinturas, e não nunca pude passar sem derramar lágrimas,
tal a maneira como a arte apresenta essa história aos nossos olhos”. O mesmo
santo, falando do martírio de São Teodoro, louva o pintor: “O pintor demonstrou
o florescimento de sua arte, representando numa imagem as bravas ações do
mártir (...) ele representou os feitos do mártir com toda clareza e adornou a
igreja como se fora uma campo florido”. A arte do pintor serviu para expressar
o tema “com toda clareza”. São Gregório via a habilidade artística como um
serviço, não como uma ameaça à vida espiritual.
Manuel Raoul, um autor do século XIV, escreveu ao iconógrafo Gastreas
para encomendar um ícone: “dado que a mão do pintor possui a sagacidade e o
talento para imitar a verdade, também eu, necessito de sua mão sagaz para um
ícone da venerável e gloriosa dormição da puríssima Mãe de Cristo nosso
Salvador. Assim sendo recordei-me de seu zelo considerável a esse respeito
quando (...) você viu uma pintura exata desse tema, e retornou muitas manhãs a
Tavia para reproduzir os antigos ícones que lá havia”. Esse é um comentário
interessante, porque mostra que Raoul considerava que mesmo a cópia de outros
ícones requeria percepção e talento artístico.
Escrevendo no começo do século XIV, Calixto Xanthopoulos atribui o
sucesso de um ícone do Arcanjo Miguel ao “ardente amor” do pintor por sua obra:
“Como é possível que a matéria possa conduzir o espírito e circunscrever o
imaterial por meio de cores? Esse é um trabalho do amor ardente, como nos
mostram os fatos, e aviva o coração”.
Sabemos pelas obras remanescentes e pelos mosaicos das épocas
mencionadas acima, que o realismo ao qual se referem esses testemunhos não é o
naturalismo da Renascença secular (hoje em dia somos inclinados a associar a
boa semelhança com a reprodução fotográfica da fisionomia). Apesar de serem
fiéis a algumas características físicas, esses ícones são “abstratos” se
comparados com a semelhança fotográfica, pois neles se apresentam muitas
liberdades em relação a proporções, cores, perspectivas e outras. A Igreja vê
as pessoas espiritualmente, e como tais inspira os ícones que, por meios
abstratos, são fiéis a essas realidades espirituais que de outro modo
permaneceriam invisíveis. São João de Damasco alude a isso quando escreve em
seu Tratado sobre os Ícones: “Em segundo lugar, qual é o propósito de uma
imagem? Toda imagem é uma declaração e uma indicação de algo que está oculto.
Eu quero dizer o seguinte: na medida em que o homem não possui um conhecimento
direto do invisível (pois sua alma está encoberta por um corpo), ou do futuro,
ou de coisas que estão separadas e distantes dele no espaço, porque ele está
circunscrito a um tempo e um espaço, a imagem foi inventada com o objetivo de
ser uma guia de conhecimento e para manifestar publicamente aquilo que está
oculto”. Para que o iconógrafo traduza essas realidades espirituais em matéria
visível, ele necessita não apenas da visão espiritual para perceber essas
realidades, mas também do talento artístico para traduzi-las. Nem um santo sem
habilidade artística, nem um artista limitado pelas paixões podem pintar um bom
ícone; tanto a santidade quanto o dom artístico são necessários.
Talvez o relato mais vívido que possuímos sobre um antigo mestre que
possuía essas duas virtudes, nos é fornecido pelo Russo Epifânio o Sábio a
respeito de Teófano o Grego (†420), de quem era amigo pessoal:
“Enquanto ele delineava e pintava todas essas coisas ninguém jamais o viu olhar
para modelos como o fazem alguns de nossos pintores, os quais, cheios de
dúvidas, voltam-se constantemente para eles olhando aqui e ali, e, ao invés de
pintar com suas próprias cores, olham os modelos a cada vez que precisam colocar cada uma. Ele,
ao contrário, parecia pintar com suas mãos, enquanto seus pés se moviam sem
parar, sua língua conversava com visitantes, sua mente adorava alguma coisa
elevada e cheia de sabedoria, e seus olhos racionais contemplavam essa beleza
que é racional”.
Teófano estava evidentemente tão embebido da Tradição que ela estava
em cada fibra de seu ser. É claro pelos afrescos remanescentes e pelos ícones
que ele conhecia os antigos modelos iconográficos muito bem; mas também é claro
por seu estilo que ele não se considerava como um escravo dos detalhes
secundários desses modelos. Um devoto frequentador da igreja reconheceria
facilmente os santos representados nos afrescos de Teófano em Novgorod, mas
também reconheceria que o modo como ele retratava era único, embora totalmente
dentro da Tradição. Essas figuras eram claramente pintadas por alguém que
estava no Espírito Santo: “Agora o Senhor é o Espírito, e onde estiver o
Espírito do Senhor haverá liberdade[7]”.
Teófano e outros mestres estão na Tradição, não sob ela. Ao invés
de tornar o talento natural e adquirido de Teófano algo redundante, a Igreja o
levou ao seu limite. Do mesmo modo como a Igreja pediu aos Padres que usassem o
melhor de si e de sua inteligência, e que aprendessem a humildemente expor a
verdade, também ela pediu aos iconógrafos que usassem seus talentos artísticos
para representar os santos. Claro que isso não permite o orgulho de parte dos
iconógrafos. A resposta de Teófano a um pedido de Epifânio para que pintasse
vários edifícios em Constantinopla mostra o quão humildemente ele considerava
seu talento dado por Deus: “É tão impossível a você conseguir isso quanto é
para mim fazê-lo; todavia, em atenção à sua insistência, poderei desenhar para
você uma pequena parte (...) de modo a que por intermédio dessa miserável
representação você possa imaginar e compreender o resto, tão magnífico quanto
puder”.
Teófano desejava que seus
discípulos, enquanto indivíduos e como Russos, amadurecessem sua própria
iconografia, mais do que fossem meros imitadores do seu método. Isso é claro a
partir de uma comparação de seu trabalho com o de seu maior discípulo, Santo
Andrei Rublev. Santo Andrei era um monge conhecido por sua gentileza e
docilidade, e isso se torna manifesto nos seus ícones. Enquanto os afrescos de
Teófano são dinâmicos, incendiados, os de Rublev são silenciosos, quietos,
mergulhados em luzidias, mas gentis e translúcidas cores; ambos estavam dentro
da Tradição, mas cada qual enfatizou diferentes elementos dessa mesma e única
Tradição.
O que significa ser um pintor de ícones nos dias de hoje? Significa
ser alguém que ama a beleza, um “filocalos”.
Sentir em si a sede pela beleza divina como se sua vida dependesse disso.
Rasgar o véu das paixões e da pretensão, para que, com a face livre seja capaz
de contemplar a glória do Senhor, e ser transformado em Sua semelhança de um
degrau de glória a outro. Amar o Senhor, a Mãe de Deus e os santos que pintar.
Amar o povo para quem pinta seus ícones. Amar o próprio ícone, bem como o ato
de pintar, e os materiais com os quais pinta. Ser genuíno, natural. Estar
disposto a se tornar nada, a permanecer desconhecido, a deixar seus ícones sem
assinatura porque tudo o que deseja é ser um servidor que conduz os fiéis a
chegarem mais perto dos santos que pinta. Buscar incansavelmente os segredos
dos grandes mestres. Ter a humildade de copiar as obras dos mestres entendendo
que é com eles que se aprende, e, no tempo devido, ter a coragem de ir além da
cópia e pintar com o mesmo espírito, mas como uma mão diferente. Ter a fé para
acreditar que, na medida em que vive na Igreja, ele é um suporte do Espírito
Santo, e que “onde estiver o Espírito do Senhor, ali estará a liberdade”.
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