O nome de “Jesus” foi dado por revelação do Alto. Ele proveio da
esfera divina, eterna, e de modo algum representa o produto da inteligência
humana, apesar de ser expresso por uma palavra criada. A revelação é um ato,
uma energia da Divindade; como tal, ela pertence a outro plano e transcende as
energias cósmicas. Em sua glória supraterrestre, o Nome de “Jesus” é
metacósmico. Quando pronunciamos o Nome de Cristo, pedindo a ele que entre em
relação conosco, a ele que a tudo preenche, ele presta atenção às nossas
palavras, em entramos em contato vivo com ele. Como Logos eterno do Pai, Cristo
permanece com ele numa unidade indivisível, e assim Deus Pai, por intermédio de
seu Verbo, entra em relação conosco. Cristo é o Filho único e coeterno do Pai,
e é por isso que ele pôde dizer: “Ninguém chega ao Pai se não for por mim[1]”.
O Nome “Jesus” significa “Deus Salvador”; neste sentido, ele pode ser atribuído
a toda a Santíssima Trindade, e também a cada uma das Hipóstases separadamente.
Mas, em nossa prece, utilizamos o Nome de “Jesus” exclusivamente como nome
próprio do Deus Homem, e é para ele que se dirige a atenção de nosso intelecto.
“Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade[2]”,
disse o apóstolo Paulo. Nele se encontra não apenas Deus, mas todo o gênero
humano. Ao chamarmos pelo Nome de Jesus Cristo, nós nos colocamos diante da
plenitude absoluta, do Ser primeiro e incriado e do ser criado. Para podermos
penetrar no domínio dessa plenitude do Ser, devemos recebê-lo em nós de tal
maneira que sua vida se torne também a nossa, e isso pela invocação de seu Nome
em conformidade com seu mandamento.
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador.
Aquele que se une ao
Senhor forma com ele um só espírito[3].
***
Não será inútil precisar que orar por intermédio do Nome de Jesus nada
tem de automático, nem de mágico. Se não fizermos esforços para observar seus
mandamentos, será em vão que invocamos seu Nome. Ele próprio nos adverte:
“Naquele dia, muitos dirão: ‘Senhor! Senhor!, não foi por intermédio de seu
Nome que profetizamos, por seu Nome que expulsamos os demônios, por seu Nome
que fizemos numerosos milagres?’. E então eu lhes direi: “Não os conheço;
afastem-se de mim, vocês que cometeram iniquidades[4]”.
É essencial para nós que nos mostremos firmes e pacientes nas dificuldades,
como Moisés[5]
que parecia ver o invisível, e invocá-Lo com a consciência da ligação
ontológica que une o Nome ao Nomeado, com a Pessoa de Cristo. Nosso amor por
ele crescerá e se tornará perfeito na medida em que aumentar e se aprofundar no
conhecimento relativo à vida do Deus amado. Enquanto estamos no plano humano,
amamos a qualquer um, mencionamos seu nome com prazer e não deixamos de
repeti-lo. Isso é incomparavelmente mais verdadeiro com o Nome do Senhor.
Quando uma pessoa a quem amamos se abre progressivamente para nós com
todos os seus dons, ela se nos torna cada vez mais preciosa, e é com alegria
que nela discernimos a cada instante novas qualidades. O mesmo se passa com o
Nome de Jesus Cristo. Com interesse crescente descobrimos nesse Nome novos
mistérios dos caminhos de Deus, e nós mesmos nos tornamos portadores da
realidade que está contido ali. Graças a esse conhecimento vivo, adquirido pela
própria experiência de nossa vida, entramos em comunicação com a eternidade: “A
vida eterna é que eles O conheçam, a você o único e verdadeiro Deus, e que
conheçam aquele que você enviou, Jesus Cristo[6]”.
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.
***
O homem que verdadeiramente crê que os mandamentos evangélicos nos
foram dados pelo Deus único e verdadeiro, extrai dessa fé as forças necessárias
para levar uma vida à imagem de Cristo. O fiel não se permite aproximar da
palavra do Senhor com um espírito crítico; ao contrário, ele submete a si
próprio ao seu julgamento. Nesse caminho, ele se reconhecerá como pecador e se
afligirá por seu estado lamentável. Se ele não sentir contrição por seus
pecados, este é um sinal de que ele não alcançou ainda a visão do modelo
segundo o qual o homem foi concebido desde antes da criação do mundo. Quem quer
que experimente um real e profundo arrependimento não buscará as contemplações
sublimes, mas estará inteiramente absorvido pela luta contra o pecado e as
paixões. Uma vez que se liberte das paixões, ainda que parcialmente, horizontes
espirituais banhados de luz, de cuja existência ele sequer suspeitava, se
revelarão naturalmente e sem dificuldade aos seus olhos; seu intelecto e seus
olhos serão elevados pelo amor divino. Então nossa natureza. Ferida pela queda,
se renovará e diante de nós se entreabrirão as ´portas da imortalidade.
A via que conduz à verdadeira contemplação passa pelo arrependimento.
Enquanto formos dominados pelas trevas do orgulho – orgulho que se opõe a Deus,
que se opõe à Luz na qual não existe mais trevas – não seremos admitidos em sua
eternidade. Ora, essa paixão é extremamente sutil e, por nós mesmos, não temos
poder para denunciar sua presença em nós até o fim. Daí provém nossa ardente
oração: “Seus pecados, quem os conhece? Dos que se ocultam em mim,
purifique-me, e dos que me são estranhos, preserve seu servidor; se eles não
prevalecerem sobre mim, então nada me reprovará, e estarei puro do grande
pecado. Então as palavras de minha boca lhe serão agradáveis, e a meditação de
meu coração estará sempre diante do meu Senhor, meu amparo e meu Redentor![7]”.
Nenhum de nós, nenhum dos filhos de Adão é capaz de ver distintamente
seus pecados. Somente quando somos iluminados pela Luz divina podemos nos
libertar dessas terríveis correntes. E enquanto isso não acontece, devemos
gritar entre lágrimas:
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador.
***
No início de nossa ascese, não chegamos a captar os caminhos indicados
por Deus; tentamos evitar o penoso enfrentamento com a fornalha da prova[8].
Podemos permanecer num lancinante estado de incompreensão, perguntando-nos
então porque Deus, que é um Amor absolutamente perfeito, quis que o caminho que
nos leva a ele seja tão terrível em dados momentos. Nós lhe suplicamos que nos
revele o segredo dos caminhos da salvação. Pouco a pouco nosso intelecto se
ilumina e nosso coração reúne as forças necessárias para seguir a Cristo e, por
meio de nossos pequenos sofrimentos, nos associarmos aos seus. É-nos
indispensável viver a dor e o medo, se quisermos descobrir as profundezas do
ser e nos tornarmos capazes do amor que nos é ordenado: fora da experiência do
sofrimento o homem permanece espiritualmente preguiçoso, meio adormecido,
estranho ao amor de Cristo. Sabendo disso, quando nosso coração parece um
vulcão extinto, devemos reaquecê-lo por meio da invo0cação do Nome de Cristo:
Senhor Jesus Cristo,
Filho do Deus vivo, tem piedade de mim.
E a chama do amor divino tocará nosso coração.
***
Adquirir a Prece de Jesus implica adquirir a eternidade. Nos
instantes, dentre todos, solenes e penosos, em que nosso organismo físico se
desintegra, a prece “Jesus Cristo” se torna as vestes da alma; quando nossa
atividade cerebral se interromper e se tornar difícil lembrar e pronunciar
qualquer outra oração, o luminoso conhecimento de Deus, procedendo do Nome e
intimamente assimilado por nós será apagado de nosso espírito. Depois de
assistir ao fim de nossos pais, mortos em oração, temos a firme esperança de
que a paz celeste que ultrapassa toda inteligência nos envolverá, a nós também,
por todos os séculos.
Jesus, salve-me,
Jesus, tem piedade e me salve, Jesus, salve-me, Jesus, meu Deus.
***
O triunfo – silencioso e santo – de conhecer o Deus de amor desperta
na alma uma profunda compaixão pelo conjunto da humanidade. Este “homem total”
é minha própria natureza, meu corpo, minha vida e meu amor. Eu já não posso me
despojar de minha “natureza”, me arrancar de meu “corpo” continuamente
dilacerado pela violência que opõem, umas contra as outras, as “células” que na
realidade formam um organismo único. Esse imenso corpo do “homem total” se
encontra permanentemente em estado de doloroso desmembramento. O mal parece ser
incurável. Mas também isso faz parte de nosso destino sobre a terra. Na oração,
a alma chora até o esgotamento; e, no entanto, a salvação não virá senão
quando, em sua liberdade, os próprios homens a desejarem. Amem seus inimigos:
eis onde reside a cura da vida histórica e a salvação por toda a eternidade.
Quem conheceu a força do amor por seus inimigos, este conheceu o Senhor Jesus,
crucificado por seus inimigos; desde logo ele se apodera de sua ressurreição e
Reino de Cristo Vencedor[9].
Senhor Todo Poderoso,
Jesus Cristo, tem piedade de nós e deste mundo que é seu.
***
Quando oramos num lugar silencioso e solitário, costuma acontecer de
toda sorte de pensamentos inoportunos virem solicitar nosso intelecto,
desviando sua atenção do coração. A prece parece estéril, porque o intelecto
não participa da invocação do Nome de Jesus, e somente os lábios continuam a
repetir mecanicamente as palavras. Mas quando terminamos nossa oração,
habitualmente os pensamentos se afastam e reencontramos a calma. Esse cansativo
fenômeno pode se explicar da seguinte maneira: pela invocação do Nome de Jesus
nós colocamos em movimento todo um mundo secreto que se esconde em nós; podemos
comparar a prece a um facho luminoso dirigido às regiões escuras de nossa vida
interior e que nos revela as paixões ou as inclinações que pavimentam nossas
profundezas secretas. Em tais casos, é preciso pronunciar o santo Nome com mais
intensidade, para que o sentimento de arrependimento cresça em nossa alma.
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador.
***
Incorruptível, segundo o desígnio de Deus a nosso respeito, nosso
espírito fenece na estreita prisão das paixões pecaminosas. Quanto mais
profunda é a dor provocada em nós pela consciência de nosso afastamento de Deus
em razão de nosso pecado, mais intenso será o impulso de nossa alma para Deus,
e ela rezará com grande desejo e numerosas lágrimas, buscando ardentemente se
unir a ele. Deus não despreza o coração contrito e vem a nós, fazendo com que o
coração “profundo” do homem tome consciência de nossa afinidade para com ele,
“sensivelmente” presente em nós e agindo em nosso interior. Isso mostra que
também nosso corpo é capaz de perceber, da maneira que lhe é própria, o sopro
do Deus Vivo.
Jesus, Filho do Deus
Vivo, tem piedade de mim.
***
Para o fiel, o Nome de Jesus Cristo é semelhante à alta muralha de uma
fortaleza. Não será fácil para o inimigo penetrar aí com truques ou
atravessando as pesadas portas de ferro, desde que nossa atenção não seja
distraída por objetos exteriores. Orar por esse Nome dá à alma não apenas a
força para resistir às influências perniciosas provenientes do exterior, mas
ainda mais: a possibilidade de influenciar o meio no qual vivemos, saindo do
fundo de nosso coração e reencontrando nossos irmãos em paz e com amor. Quando
a paz e o amor comandados por Deus se aprofundam, eles se tornam a fonte de uma
prece ardente pelo mundo inteiro. O Espírito de Cristo nos conduz pelos vastos
espaços de amor que abarcam toda a criação. Nesse estado, a alma ora com grande
emoção.
Senhor Jesus Cristo,
nosso Deus e Salvador, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.
***
Deus jamais constrange a vontade do homem, mas, por outro lado,
tampouco o homem pode obrigá-lo a fazer seja lá o que for. Em nossa prece,
aspiramos a nos colocarmos diante de Deus na unidade e na integridade de nosso
ser, e em especial com o intelecto unido ao coração. Para realizar essa
bem-aventurada união das duas principais potências de nossa personalidade, não
recorremos a nenhum procedimento artificial do tipo psicotécnico. De início
habituamos nosso intelecto a perseverar atentamente na oração, como nos
ensinaram os Padres, ou seja, a pronunciar o Nome de Jesus Cristo e as demais
palavras da prece com grande atenção. Invocar com concentração o Nome divino e
se esforçar a cada dia para viver de acordo com os mandamentos do Evangelho têm
como efeito produzir a fusão do intelecto e do coração numa única atividade.
Em nossa ascese, jamais devemos nos apressar. É preciso absolutamente
descartar a ideia de fazer o máximo nos menores intervalos de tempo. A
experiência secular mostra que a união do intelecto com o coração, realizada
por meio de uma psicotécnica, nunca dura muito tempo; e, o que é mais grave,
ela não une nosso espírito ao Espírito do Deus Vivo. Ora, estamos diante do
problema da salvação eterna, no seu sentido mais profundo. Para tanto, toda
nossa natureza deve ser renovada: de carnal, ela deve se tornar espiritual. E
quando o Senhor nos considerar capazes de receber sua graça, ele não tardará em
vir em resposta à nossa humilde invocação. Talvez sua vinda nos absorva de tal
maneira que nosso coração e nosso intelecto fiquem inteiramente ocupados apenas
com Ele: então, esse mundo visível dará lugar a uma realidade de outra ordem,
superior. O intelecto cessa de pensar de modo discursivo: ele se torna inteiro
atenção. O coração entra num estado difícil de descrever: ele se vê penetrado
pelo temor, mas por um temos reverente, vivificante. Simultaneamente, retemos
seu sopro. Deus preenche tudo, e o home inteiro – o espirito-intelecto, o
coração-sentimento, e o próprio corpo – não mais vivem senão por Deus.
Senhor Jesus Cristo
nosso Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.
***
O Nome divino, revelado aos homens, serviu de ligação entre Deus e
nós. É através do Nome de Deus, ou, melhor dizendo, pelos Nomes divinos, que se
realizam na Igreja todos os sacramentos. Toda atividade deve ser cumprida ”em
Nome de Deus”. Pela invocação do Nome Altíssimo, sua presença se torna viva,
continuamente perceptível; enquanto nossa obra se faz segundo a vontade do
Senhor, nosso coração está em paz, mas todas as vezes que nos desviamos da
verdade, ele experimenta uma certa angústia. Assim, portanto, por meio da
prece, operamos um vigilante controle interior sobre cada movimento de nosso
espírito; nenhum pensamento, nenhuma palavra lhe escapa. Essa consequência da
prece incessante permite reduzir nossos pecados ao mínimo.
Senhor Jesus Cristo,
Filho e Verbo do Deus Vivo, tem piedade de nós.
***
“Queira, Senhor, nesse dia guardar-nos sem pecado”. É assim que oramos
pela manhã. Mas somente a sutil presença em nós do Espírito divino dá ao nosso
espírito a possibilidade de permanecer numa vigilante sobriedade interior.
“Ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Senhor’, se não for pelo Espírito Santo[10]”.
Mais uma vez nos damos conta de que é pela invocação mental do Nome do Senhor
que nos protegemos do pecado em nossas palavras e em nossas ações: “Senhor
Jesus, você que é a Luz que veio para salvar o mundo, ilumine os olhos
espirituais de meu coração, para que eu seja digno de caminhar diante de sua
Face sem vacilar, como à luz do dia[11]”.
Para que a prática da oração alcance os resultados de que falam com
tanto entusiasmo nossos pais e nossos mestres, é indispensável seguirmos seus
ensinamentos. A primeira condição consiste em crer em Cristo como Deus e
Salvador; a segunda, de se reconhecer como pecador em vias de perdição. Essa
consciência pode atingir tamanha profundidade que o homem chega a se sentir
pior do que todos os outros; e isso lhe aparece como uma evidência, não em
razão de seus atos exteriores, mas ao constatar seu afastamento de Deus e ao se
ver como portador potencial do mal sob todas as suas formas.
Quanto mais nos humilhamos num doloroso arrependimento, mais
rapidamente nossa prece alcançará a Deus. Mas quando perdemos a humildade,
nenhuma ascese poderá nos ajudar. A presença do orgulho em nós, e do julgamento
de nossos irmãos, o desprezo e a raiva de nosso próximo nos projetam para longe
do Senhor.
Nós nos aproximamos de Deus como os últimos dentre os pecadores. Nós
nos condenamos sinceramente em tudo. Não imaginamos nada, não buscamos nada
senão o perdão e a misericórdia. Esse é o nosso constante estado interior.
Suplicamos ao próprio Deus que nos ajude a não contristarmos o Espírito Santo
com nossas miseráveis paixões, a não causar nenhum mal a nosso irmão nem a
qualquer homem que seja. Nós nos condenamos como indignos de Deus aos tormentos
do inferno. Não esperamos nenhum dom particular do Alto, e só aspiramos com
todas as nossas forças a captar o sentido dos mandamentos de Cristo e viver de
acordo com eles. Nós imploramos:
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.
***
E Deus nos escuta, e a salvação se aproxima de nós. “Então, quem quer
que invoque o Nome do Senhor [num estado de espírito semelhante ao seu] será
salvo[12]”.
“Arrependam-se[13]”.
Devemos levar muito a sério esse apelo de Cristo, mudar radicalmente nosso modo
de vida interior e nossa visão do mundo, nossa atitude para com os homens e
para com todo fenômeno que surge no ser criado: não matar nossos inimigos, mas
vencê-los por meio do amor. Lembrarmo-nos de que o mal absoluto não existe; o
único absoluto é o Bem sem origem. E esse Bem nos ordenou: “Amem a seus
inimigos (...) façam o bem a quem os odeia (...) sejam perfeitos, como seu Pai
celeste é perfeito[14]”.
Deixar-se imolar por seus irmãos é o melhor modo de arrancá-los da escravidão
do mentiroso – o Diabo – e de preparar sias almas para acolherem a Deus que
deseja que todos os homens sejam salvos. Não existe homem em quem não esteja
presente, numa ou noutra medida, a luz, pois Deus iluminou “todos os homens que
vieram ao mundo[15]”.
O mandamento de não resistir a quem faz o mal[16]
é a forma mais eficaz da luta contra o mesmo mal. Quando opomos à violência os
mesmos meios que utiliza aquele que comete a injustiça, o dinamismo do mal
aumenta no mundo. O assassinato dos inocentes desloca, muitas vezes de maneira
imperceptível, as forças morais da humanidade do lado do bem pelo qual morreu o
inocente. Não é esse o caso quando de dois lados intervém a mesma tendência má
em dominar. A vitória obtida pela força física não dura eternamente. Luz santa
e pura, Deus se retira dos criminosos; estes se separam da única fonte de vida,
e morrem: “Não se vinguem por si próprios, bem amados, mas deixem agir a cólera
de Deus, pois está escrito: ‘Minha é a vingança, minha é a retribuição, diz o
Senhor’ (...) Assim, não se deixe vencer pelo mal, mas supere o mal com o bem[17]”.
Os homens portadores de uma verdade apenas relativa lutam muitas vezes
com fanatismo para assegurar o triunfo de suas ideias; dessa forma eles
destroem a integridade do ser e, no fina de contas, levam tudo à ruína. Em sua
cegueira, eles absolutizam o aspecto positivo de suas doutrinas políticas e
estão prontos a eliminar todos os que gostariam de ver o mundo se edificar
sobre princípios melhores, mais humanos e, certamente e acima de tudo, sobre os
mandamentos de Cristo, levado à morte por causa de sua predicação de amor. No
mundo contemporâneo, as palavras evangélicas de Cristo se revestem de uma
atualidade especial: “Ouvirão falar de guerra e de rumores de guerras; não
fiquem perturbados, pois é preciso que essas coisas aconteçam (...); vocês [os
cristãos] serão odiados por todas as nações, por causa do meu Nome (...). E
porque a iniquidade só fará crescer, a caridade da maioria esfriará (...) e
então chegará o fim[18]”.
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.
***
“Então o Senhor Deus modelou o homem com o barro do solo, e lhe
insuflou nas narinas um sopro de vida, e o home se tornou um ser vivo[19]”.
Nós somos atraídos a Ele, sedentos por estarmos eternamente unidos a Ele; e Ele
próprio nos aguarda com amor. A sede de Deus é uma nota permanente de nossa
existência terrestre; nós nos preparamos mesmo para morrer com ela. O próprio
Cristo, antes de morrer sobre a cruz, gritou: “Tenho sede[20]”.
Ele teve fome[21],
ele teve sede, ele sofreu angústia[22],
para que nós conhecêssemos o Pai. E nós languescemos sobre a terra, oprimidos
por esse interminável e monstruoso espetáculo de violências, assassinatos e
ódio; temos sede de nos dirigirmos ao Pai, e invocamos o Nome de seu Filho
único:
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de nós.
***
A grande desproporcionalidade da tarefa que nos aguarda nos inspira o
temor. Foi-nos dito: “O Reino dos céus sofre violência, e os violentos se
apropriam dele[23]”.
Uma ascese prolongada nos mostrará que na revelação evangélica tudo pertence a
um plano diferente, superior. A ofuscante Luz da Divindade se reflete em nosso
mundo sob a forma de mandamentos: “Amem seus inimigos (...). Sejam perfeitos
como seu Pai celeste é perfeito[24]”.
Somente a morada em nós Daquele que nos deu seus mandamentos nos ajudará a
realizar tudo o que nos foi ordenado. Daí vem nosso grito:
Senhor Jesus Cristo,
Filho do Deus Vivo, tem piedade de nós.
***
A invocação do Nome do Senhor nos une progressivamente a ele. Isso já
se realiza em parte quando aquele que ora ainda não compreende “quem é Ele[25]”
e ainda não percebe claramente o poder de santificação que emana do Nome. Todo
progresso ulterior, no entanto, está estreitamente ligado ao reconhecimento
cada vez mais lúcido de nosso estado de pecado, que chega até o desespero.
Então, com energia redobrada, invocamos o Nome maravilhoso:
Jesus, meu Salvador,
tem piedade de mim.
***
Em que angústia vivem as pessoas que se sabem mortalmente atingidas
por uma enfermidade incurável, como um câncer, por exemplo! É com o mesmo
horror, e talvez maior ainda, que alguns sentem a presença em si das paixões
pecaminosas que os afastam de Deus. Estes se reconhecem como sendo “os piores
dentre todos”; ele se veem realmente nas trevas do inferno. Então, neles se
concentra uma enorme energia de prece e arrependimento. Este último pode
atingir tamanho grau que seu intelecto se imobiliza e não consegue encontrar
outras palavras senão:
Jesus, salve a mim que
sou pecador.
***
É salutar que se desenvolva em
nós uma aversão ao pecado e que ela se transforme em raiva de si mesmo. De
outro modo, nós nos arriscamos a nos acomodar e nos habituar ao pecado; este
possui inúmeras facetas e, ao mesmo tempo, é tão sutil que na maior parte dos
casos sequer percebemos sua presença em tudo o que fazemos, mesmo naquelas
ações nossas que são boas em aparência. É uma ascese difícil, mas também bela,
a de mergulhar nosso intelecto soberano no centro invisível de nossa
personalidade com a invocação do Nome de Jesus Cristo. Sem fé nele, ninguém é
capaz de discernir o veneno mortal que opera em nós. Graças a essa luta contra
o pecado que vive em nós, descobrimos não apenas as profundezas de nosso
próprio ser, como ainda os misteriosos abismos da vida cósmica. Então nosso
espírito dará as costas aos eventos superficiais e sem importância da vida de
todos os dias, e, horrorizado consigo mesmo, reconhecerá a santa força de outra
oração, de outro plano, clamando:
Senhor Jesus, meu
Salvador, tem piedade, tem piedade de mim, o maldito.
***
Podemos falar da prece ao Nome de Jesus Cristo nos próprios termos da
Sagrada Escritura e das obras dos Santos Padres. Mais precisamente: ela é um
fogo que devora as paixões[26];
ela é uma luz que ilumina nosso intelecto, tornando-o perspicaz e capaz de
discernir aquilo que acontece ao longe e tudo o que se passa dentro de nós.
Podemos com justiça aplicar a ela as palavras da epístola aos Hebreus: “Ela é
mais eficaz e incisiva do que uma faca de dois gumes, ela penetra até o ponto
de divisão da alma e do espírito, das articulações e da medula, ela pode julgar
os sentimentos e os pensamentos do coração. Não existe nada nas profundezas de
nosso espírito que permaneça invisível diante dela, e à sua luz tudo está nu e
a descoberto[27]”.
A prática dessa oração nos faz encontrar várias potências escondidas no cosmos;
ela provoca contra nós uma luta encarniçada de parte dessas “potências
cósmicas”, ou melhor, desses “regentes do mundo das trevas, dos espíritos do
mal que habitam os espaços celestes[28]”.
A vitória, porém, pode ser conseguida por meio de um arrependimento que chega
até a “raiva de si mesmo[29]”.
O modelo dessa batalha está descrito no Apocalipse de São João: “Eles venceram
[o Diabo ou Satanás, o sedutor do mundo inteiro] pelo sangue do Cordeiro e pela
palavra da qual deram testemunho, porque eles desprezaram suas vidas até o
ponto de morrer[30]”.
Acompanhada de um ardente arrependimento, essa prece eleva o espírito
do homem às esferas situadas fora do alcance da “sabedoria dos sábios deste
século[31]”.
É temerário falar a seu respeito: fazendo-nos primeiro passar pelos abismos de
trevas ocultos em nós, ela a seguir une nosso espírito ao Espírito divino e nos
permite já aqui em baixo viver a santa eternidade. Em todos os séculos, os
Padres ficaram estupefatos com a grandeza desse dom concedido ao mundo decaído.
Senhor Jesus Cristo,
único Santo, único verdadeiro Salvador de todos nós,
tem piedade de nós e
desse mundo que é seu.
***
A majestade do mundo criado nos encanta, mas, ao mesmo tempo e com
mais força ainda, nosso espírito é atraído para a incorruptível beleza do Ser
divino e sem origem. Com uma clareza impressionante, o Senhor Jesus nos
permitiu entrever a luz supracósmica do Reino. A contemplação desse esplendor
nos liberta das consequências da queda, e a graça do Espírito Santo restaura em
nós a imagem original e a semelhança de Deus, manifestadas em nossa carne por
Cristo. Assim é que agora a invocação de seu Nome se torna nossa prece
perpétua:
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.
***
Em seu último florescimento, essa prece nos une inteiramente a Cristo.
Não obstante, a hipóstase humana não é destruída, não se dissolve no Ser divino
como uma gota d’água no oceano. A pessoa humana é indestrutível por toda a
eternidade. “Eu sou (...) a verdade e a vida, Eu sou a Luz do mundo[32]”.
O Ser, a Verdade, a Luz não são conceitos abstratos, essências impessoais, “o
que”, mas “quem”. Onde não existe um modo pessoal de ser, tampouco existem
vivos; e menos ainda poderá existir aí bem ou mal, luz ou trevas. Lá, de modo
geral, nada pode existir: “Nada do que existe foi feito sem ele, pois nele
estava a vida[33]”.
Senhor Jesus Cristo,
Filho do Deus Vivo, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.
***
“Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão o
Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aqueles a quem o Filho quiser
revelá-Lo[34]”.
Mas nós conhecemos o Filho na medida em que permanecemos no espírito de seus
mandamentos. Sem ele não temos forças para nos erguer à altura do que nos é
ordenado, pois nos mandamentos se manifesta a vida do próprio Deus. É daí que
vem o grito que lançamos ao alto para ele:
Senhor Jesus Cristo,
Filho coeterno do Pai, tem piedade de mim!
Vem e habita em mim
com o Pai e o Espírito Santo, segundo a sua promessa...
Senhor Jesus, tem
piedade de mim, pecador.
***
O Nome de “Pai” era conhecido no Velho Testamento, mas era contemplado
dentro das trevas do desconhecimento. Foi Cristo que, de modo extremamente
correto, nos fez conhecer nele o Pai; foi ele quem nos revelou as verdadeiras
dimensões de tudo o q eu havia sido dado antes dele por Moisés e os Profetas.
“Eu estou no Pai, e o Pai está em mim”; “Meu Pai e eu somos um”; “Eu os fiz
conhecer seu Nome, e os farei conhecê-Lo [até a plenitude], para que o amor com
o qual você me amou esteja neles, e eu neles”. O conhecimento do Nome de “Pai”
é também o conhecimento de seu amor paternal por nós. Quando invocamos o Nome
de Jesus, somos introduzidos no domínio da Vida divina, e o Pai, o Filho e o
Espírito Santo nos são dados neste Nome:
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de nós e deste mundo que é seu.
***
Invocar o Nome de Jesus, se possível com a plena consciência daquilo
que ele contém, significa que já estamos realmente unidos ao Deus Trinitário. Esse
Deus se revelou a nós em sua nova relação para com o homem: não mais como
Criador, mas como Salvador do mundo, como Luz da Verdade e da verdadeira
eternidade.
Senhor Jesus Cristo,
Filho do Pai eterno, tem piedade de nós.
***
As teologias do Nome e do ícone têm pontos comuns. Ao contemplarmos um
ícone de Cristo, entramos espiritualmente em contato pessoal com Ele. Nós
confessamos sua aparição na carne: ele é Deus e homem; inteiramente homem, e
perfeita semelhança com Deus. Vamos além das cores e das linhas, e penetramos
até o mundo do intelecto, do espírito. Da mesma forma, na invocação do Nome,
não nos detemos nos sons proferidos, mas vivemos o sentido. Os sons podem
variar em função da diversidade das línguas nas quais oramos, mas o conteúdo –
o conhecimento encerrado no Nome – permanece imutável.
Senhor Jesus Cristo, salve-nos.
***
Conscientes da adoção filial por Cristo que nos foi prometida, glorificamos
aquele que nos criou. Invocando o Nome de Jesus Cristo, deixamos ressoar em nos
o poder e a majestade que lhe são próprias; possa ele destruir as raízes do
pecado que vive em nós; que ele faça brotar a chama de seu amor em nossos
corações de pedra; que ele nos dê luz e inteligência; que ele nos faça comungar
de sua glória; que por intermédio de seu Nome, a paz que ultrapassa toda
inteligência permaneça em nós[35].
Quando houvermos passado longos anos a pedir por esse Nome, que Deus nos
conceda conhecer a plenitude da revelação contida nele: “Conselheiro maravilhoso,
Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz, Senhor de Sabaó[36]”.
Senhor Jesus Cristo,
Filho do Deus Vivo, tem piedade de nós e deste mundo que é seu.
***
Devemos invocar o Nome divino com humildade. Aqui, Cristo, Mestre do
mundo, se encarnou, e como homem ele se rebaixou até a morte na Cruz. É por
isso que seu nome foi exaltado mais acima de todo nome que se possa nomear, não
apenas neste mundo, mas ainda no mundo por vir. O Pai o fez sentar-se à sua
direita nos céus, e o constituiu como Cabeça da Igreja, que é seu Corpo, a
plenitude daquele que preenche tudo em todos[37].
Senhor Jesus Cristo,
nosso Deus, tem piedade de nós,
de sua Igreja e desse
mundo que é seu,
pelas preces de Mãe de
Deus, dos santos Apóstolos
e de todos os Santos
desde a origem dos séculos.
***
A verdadeira libertação começa quando aceitamos plenamente e sem
dúvidas a Revelação “Eu sou Aquele que é[38]”,
“Eu sou o alfa e o ômega, o Primeiro e o Último[39]”.
Deus é o Absoluto pessoal, Trindade consubstancial e indivisível. Sobre essa
Revelação se edifica toda nossa vida cristã. Esse Deus nos chamou do não-ser
para esta vida. O conhecimento do Deus Vivo e a penetração no mistério dos caminhos
da criação nos libertam da trevas de nossas próprias ideias (que vêm de baixo)
referentes ao Absoluto, e nos salvam da vertigem, inconsciente mas com certeza
fatal, de abandonar toda existência. Fomos criados com o objetivo de sermos
associados ao Ser divino, àquele que É verdadeiramente. Cristo nos indicou o
caminho: “A porta é estreita e apertado é o caminho que conduz à Vida[40]”.
Captando as profundidades da sabedoria do Criador, aceitamos os sofrimentos por
meio dos quais se adquire a eternidade divina. E quando sua Luz nos cobre com
sua sombra, unimos em nós a contemplação das duas extremidades do abismo: de um
lado as trevas do inferno e de outro o triunfo da vitória. Somos existencialmente
introduzidos no domínio da Vida incriada. O inferno perde seu império sobre
nós. Nos é dada uma graça: viver o estado do Logos incriado, de Cristo descendo
aos infernos como Vencedor. Então, pelo poder de seu amor, abraçamos a criatura
inteira em nossa prece:
Jesus, Mestre
Todo-Poderoso e Bom, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.
***
A revelação do Deus pessoal confere a tudo esse caráter admirável. A vida
não é um processo cósmico qualquer submetido ao determinismo, mas Luz do
indescritível amor das Pessoas divinas e das pessoas criadas, movimento livre
dos espíritos pessoais cheios da consciência lúcida de tudo o que existe e de
si próprios. Fora disso, nada tem sentido, tudo está morto. Mas nossa prece se
torna o encontro vivo de nossa pessoa criada com a Pessoa divina, ou seja,
absoluta, e esse encontro se expressa pela nossa invocação do Verbo do Pai:
Senhor Jesus Cristo,
Verbo coeterno do Pai sem começo, tem piedade de nós,
habita em nós e nos
salve, assim como todo esse mundo que é seu.
***
Quando começamos a compreender o sábio desígnio concebido para nós por
nosso Deus e Criador, nosso amor por ele é estimulado, e quando oramos sentimos
uma inspiração nova. A contemplação da Sabedoria divina que se reflete na
beleza do mundo dá ao nosso espírito um novo impulso que nos desenraiza de todo
o criado. Esse rapto não é um voo filosófico no domínio das ideias puras, por
cativantes que estas possam nos parecer, nem uma criação artística no domínio
da poesia, mas sim o esvaziamento de todo o nosso ser pela energia de uma vida
até então desconhecida. A leitura do Evangelho, na qual começamos a discernir o
Ato da auto-revelação de Deus, eleva nosso espírito acima de tudo o que foi
criado. Nisso consiste a entrada na graça da teologia, concebida não como uma
ciência humana, mas como um estado de comunhão com Deus. Não submetemos a
palavra de Deus ao julgamento de nosso limitado entendimento, mas julgamos a
nós mesmos à luz do conhecimento que ela nos concede. Depois disso, é natural
que aspiremos a fazer da palavra evangélica o conteúdo de toda nossa
existência; isso nos ajuda a nos libertarmos do império das paixões, e, com a
força do Deus-Jesus, obtermos a vitória sobre o mal cósmico dissimulado nas
profundidades do nosso ser. Então reconhecemos realmente que ele, Jesus, é, no
sentido próprio, o único Deus Salvador, e que a prece cristã se realiza pela
incessante invocação de seu nome:
Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.
***
Em nosso estado de morte espiritual, perdemos o sentido do pecado, e
agora, sem Cristo e a graça do Espírito Santo, não podemos mais enxergá-lo em
nós. Ora, em sua essência, o pecado é sempre uma transgressão contra o amor
divino. Tal transgressão não é possível a menos que o “Eu sou”, ou seja, a
menos que o Deus absoluto seja pessoal e que nossas relações com ele sejam
também profundamente pessoais. Não existe outra fé ou religião na qual o mistério
do pecado seja revelado dessa maneira. Eis como, cheio do Espírito Santo, orava
São Efrém o Sírio: “Permita-me ver meus pecados”. Todos os Padres disseram que
ver seus pecados é algo maior do que ver as aparições dos Anjos. Portanto,
também nós, conhecendo o que está oculto desde a origem dos séculos, oramos com
humilde enternecimento do coração:
Senhor Jesus Cristo,
tem piedade do pecador que eu sou, pois eu caí.
***
“Grande é o mistério da piedade: [Deus] se manifestou na carne,
justificado no Espírito, visto pelos Anjos, proclamado entre os pagãos, crido
no mundo, e levantado em glória[41]”.
Somos todos herdeiros de Adão, que se deixou arrastar por Lúcifer em sua queda.
A ideia da deificação é própria ao ser criado à imagem de Deus, mas toda a
questão se resume em saber por quais meios é possível alcançar esse objetivo,
realizar essa tarefa. Se somos seres criados e não o Ser em si e sem origem, é
absurdo supor que poderemos nos tornar “iguais a Deus” evitando-o. “A
manifestação de Deus na carne”, tal é o sentido de nossa vida. Se a esperança
da deificação está enraizada no mais profundo de nós, a via que conduz até aí
consiste em tornar nossa a vida do Deus que se mostrou a nós na nossa forma de
existência; sim, devemos assimilar sua palavra, seu Espírito, nos tornarmos semelhantes
a ele em todo o nosso comportamento. Quanto mais semelhantes a ele formos neste
mundo, mais completa e perfeita será a nossa deificação. Novamente, é o
apóstolo Paulo quem diz: “Aquele que se une [pela prece e a comunhão] ao
Senhor, forma com ele um só espírito[42]”.
E assim clamamos:
Senhor Jesus Cristo,
Filho único do Pai, nossa única esperança,
conduze-nos consigo e
por você ao Pai...
tem piedade de mim,
pecador.
***
Viver eternamente no seio da Trindade, este é o sentido do chamado
evangélico. Mas esse Reino “sofre violência, e são os violentos que se apoderam
dele[43]”.
É preciso se obrigar, pois “a porta é estreita e apertado é o caminho que
conduz à Vida[44]”.
Desde que nós, cristãos, não estamos de acordo em seguir “aqueles que não
encontram” porque não procuram[45],
produzem-se inevitavelmente conflitos: tornamo-nos indesejáveis para os filhos
deste mundo – esta é a sorte daqueles que amam a Cristo. Quando o Senhor está
conosco, todos os sofrimentos da terra não nos parecem terríveis, porque com
ele passamos da morte para a vida. Mas não podemos evitar passar horas ou
períodos em que nos sentimos abandonados por Deus: “Meu Deus, meu Deus, porque
me abandonastes?[46]”.
E se, além disso, nos sentimos repudiados pelos homens, nosso desespero poder
tomar uma forma aguda; então é hora de invocarmos Aquele que passou, ele
próprio, por essas provas, e que pode, por conseguinte, vir em socorro daqueles
que estão sendo testados[47]:
Senhor Jesus, assim
como você salvou a Pedro, salva-me também, pois me afogo[48].
***
Na ascese da oração cada qual vai tão longe quanto suas capacidades o
permitem. Não é fácil encontrar por si só o limite das próprias forças. Os que
são guiados pelo Espírito Santo jamais cessam de se condenar, considerando-se
como indignos de Deus. Mas no momento em que o desespero se torna insuportável,
eles se afastam por um tempo da borda do precipício onde se mantinham
espiritualmente, para conceder algum repouso ao seu psiquismo e ao seu corpo. A
seguir eles retornam à beira do abismo. Porém, mesmo quando repousa, ou durante
seus períodos de calma, o asceta sempre sente nas profundezas de seu coração
uma chaga que o impede de se entregar a pensamentos de orgulho. A humildade
ascética se enraíza sempre primeiro na sua alma e se torna por assim dizer
parte de sua substância. As aflições e as enfermidades são características de
nossa peregrinação terrestre. Sem elas, nenhum filho de Adão poderia se manter
humilde. Mas aqueles que perseverarem até o fim serão considerados dignos de
receber o dom da “humildade de Cristo”, a respeito da qual o estaroste Silouane
disse ser “indescritível”, porque ela pertence a outro plano, mais elevado, do
ser. A aquisição deste dom é possível mediante a constante lembrança de Cristo,
e pela prece dirigida a ele:
Senhor Jesus Cristo,
Deus Santo e Grande, ensina-me você mesmo sua humildade...
escute minha prece e
tem piedade de mim, pecador.
***
Assim, é apenas através do fogo do arrependimento que nossa natureza é
reformulada, é pela prece acompanhada de lágrimas que são exterminadas as
raízes do pecado, é pela invocação do Nome de Jesus que nosso ser é purificado,
regenerado e santificado: “Agora vocês são puros, por causa da palavra que eu
lhes anunciei. Permaneçam em mim...”. Mas, como permanecer? Meu Nome lhes foi
dado e em meu Nome o Pai lhes dará tudo o que vocês pedirem: “Aquilo que
pedirem ao Pai em meu Nome, ele lhes concederá[49]”.
Senhor Jesus Cristo,
único verdadeiramente sem pecado, tem piedade de mim, pecador.
***
Nossos Pais nos ensinaram a orar pelo Nome de Jesus sem modificar com
frequência a fórmula da oração. Mas, por outro lado, de tempos em tempos precisamos
renovar nossa atenção e também intensificar nossa prece quando o intelecto se
eleva a contemplações teológicas, ou quando nosso coração se dilata, a fim de poder
abraçar o mundo inteiro. Isso nos permite recobrir com o Nome de Jesus Cristo
todos os eventos, interiores ou exteriores. E assim essa prece maravilhosa
engloba a tudo e se torna universal.
Extratos do livro do Arquimandrita Sofrônio,
Sua vida é a minha,
Éditions du Cerf, 1981.
[1]
João 14: 6.
[2]
Colossenses 2: 9.
[3] I
Coríntios 6: 17.
[4]
Mateus 7: 22-23.
[5]
Cf. Hebreus 11: 27.
[6]
João 17: 3.
[7]
Salmo 18: 13-15.
[8] I
Pedro 4: 12.
[9]
Cf. João 17: 21-23; 11: 51-52; Efésios 2: 14-17; I Coríntios 3: 22-23.
[10] I
Coríntios 12: 3.
[11]
Cf. João 11: 9-10.
[12]
Joel 3: 5.
[13]
Mateus 4: 17.
[14]
Mateus 5: 44 e 48.
[15]
João 1: 9.
[16]
Cf. Mateus 5: 39.
[17]
Romanos 12: 19 e 21.
[18]
Mateus 24: 6-14.
[19]
Gênesis 2: 7.
[20]
João 19: 28.
[21]
Mateus 21: 18.
[22]
Cf. Lucas 12: 50.
[23]
Mateus 11: 12.
[24]
Mateus 5: 44 e 48.
[25]
Mateus 21: 10.
[26]
Cf. Hebreus 12: 29.
[27]
Cf. Hebreus 4: 12-13.
[28]
Efésios 6: 12.
[29]
Cf. Lucas 14: 26.
[30]
Apocalipse 12: 11 e 9.
[31]
Cf. I Coríntios 1: 19-20.
[32]
João 8: 58; 14: 6; 9: 5.
[33]
João 1: 3-4.
[34]
Mateus 11: 27.
[35] Cf.
João 14: 27; Filipenses 4: 7.
[36]
Isaías 9: 5; 8: 18; cf. Atos 4: 12.
[37]
Cf. Efésios 1: 20-23.
[38]
Êxodo 3: 14.
[39] Apocalipse
1: 8.
[40]
Mateus 7: 14.
[41] I
Timóteo 3: 16.
[42] I
Coríntios 6: 17.
[43]
Mateus 11: 12.
[44]
Mateus 7: 14.
[45]
Cf. Mateus 7: 8.
[46]
Mateus 27: 46.
[47]
Cf. Hebreus 2: 18.
[48]
Cf. Mateus 14: 30.
[49]
João 15: 16.
Nenhum comentário:
Postar um comentário