domingo, 24 de abril de 2016

Vladimir Lossky - O dogma da Imaculada Concepção





A Virgem real, revestida dos verdadeiros títulos
De glória e de dignidades,
Não necessita de uma falsa glória.
(Bernard de Clairvaux)


Certas pessoas que se deixam enganar por uma semelhança de expressões verbais ou por uma falsa associação de ideias, são levadas a confundir o ensinamento da Igreja romana sobre a Imaculada Concepção de Maria com o dogma da concepção virginal de nosso Senhor Jesus Cristo. O primeiro desses ensinamentos, que representa uma inovação do catolicismo romano, se refere ao nascimento da própria Virgem, enquanto que o segundo, tesouro comum da fé cristã, diz respeito à Natividade de nosso Senhor Jesus Cristo, “que, por nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo na Virgem Maria, e se fez homem[1]”.

A doutrina da Imaculada Concepção tem sua origem na devoção específica que alguns meios espirituais do Ocidente separado dedicavam à Virgem desde o fim do século XIII. Ela foi proclamada como “verdade revelada” em 8 de Dezembro de 1854 pelo Papa Pio IX, sem convocação de concílio (moto proprio). Esse novo dogma foi promulgado com a intenção de glorificar a Santa Virgem, que, como instrumento da Encarnação de nosso Senhor, se tornou Cooperadora de nossa redenção. Segundo essa doutrina, ela desfrutaria de um privilégio especial, o de ter sido isenta do pecado original desde o momento de sua concepção por seus pais Joaquim e Ana. Esta graça especial que a tornaria, por assim dizer, resgatada antes ainda da obra da Redenção, lhe teria sido concedida em previsão do mérito futuro de seu Filho. Para se encarnar e se tornar “Homem perfeito”, o Verbo divino teria necessidade de uma natureza humana não contaminada pelo pecado: seria preciso assim que o vaso no qual ele assumisse sua humanidade fosse puro de toda mancha, previamente purificado. Daí, segundo os teólogos romanos, a necessidade de conceder à Virgem, embora tendo ela sido concebida naturalmente e do mesmo modo como toda criatura humana, um privilégio especial, colocando-a fora da posteridade de Adão e liberando-a da falta original comum ao ser humano. Com efeito, segundo o novo dogma romano, a Santa Virgem teria participado, desde o seio de sua mãe, do estado primigênio do homem antes do pecado.

A Igreja ortodoxa, que sempre rendeu um culto especial à Mãe de Deus, exaltada acima dos espíritos celestes, “mais venerável que os querubins e incomparavelmente mais gloriosa do que os serafins[2]”, jamais admitiu – ao menos no sentido como o entende a Igreja de Roma – o dogma da Imaculada Concepção. A definição de “privilégio concedido à Virgem em vista do mérito futuro de seu Filho” repugna ao espirito da ortodoxia cristã; ela não pode aceitar esse formalismo exagerado que apaga o caráter real da obra de nossa Redenção, vendo aí não mais do que um mérito abstrato de Cristo, imputável a uma pessoa humana antes da Paixão e da Ressurreição, antes mesmo da Encarnação de Cristo – tudo por um decreto especial de Deus. Se a Santa Virgem pudesse desfrutar dos efeitos da Redenção antes da obra redentora de Cristo, não vemos porque esse privilégio não poderia se estender a outras pessoas, a toda a linhagem de Cristo, por exemplo, a toda esta posteridade de Adão, que contribuiu de geração em geração para preparar a natureza humana assumida pelo Verbo no seio de Maria. Com efeito, isso seria lógico e conforme a ideia que temos da bondade de Deus, e, no entanto, o absurdo de tal conjectura é chocante, de uma humanidade que desfrutasse de um “não-lugar” malgrado sua queda, salva previamente e que aguardasse, entretanto, a obra de sua salvação por Cristo! O que parece absurdo quando aplicado a toda a humanidade anterior a Cristo, não deixa de sê-lo quando se trata de um único ser humano. O contrassenso não faz senão aparecer mais claramente: a fim de a obra da Redenção pudesse se realizar para toda a humanidade, seria preciso que ela se realizasse previamente para um de seus membros. Dito de outra forma, para que acontecesse a Redenção, seria preciso que ela já existisse, e que alguém já usufruísse previamente de seus frutos.

Poder-se-ia sem dúvida responder a isso argumentando que é legítimo esse privilégio, uma vez que se trata de um ser excepcional como a Santa Virgem, predestinada a servir de instrumento para a Encarnação, e, por isso mesmo, para a Redenção. Numa certa medida isso é verdade: a Virgem que engravidou sem mácula do Verbo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não foi um ser comum. Mas podemos separá-la assim de modo  tão absoluto, desde o momento de sua concepção por Joaquim e Ana, do resto da posteridade de Adão? Isolando-a assim, não corremos o risco de depreciar toda a história da humanidade antes de Cristo, de abolir o próprio sentido do Antigo testamento, que foi uma espera messiânica, uma preparação progressiva da humanidade para a Encarnação do Verbo? Com efeito, se a Encarnação não fosse condicionada senão pelo privilégio concedido à Virgem, “em vista do mérito de seu Filho”, a vinda do Messias ao mundo poderia ter se cumprido em qualquer outro momento da história; poderia Deus em qualquer momento, a partir de um decreto especial que só dependesse do arbítrio divino, criar o instrumento imaculado de sua Encarnação, sem levar em conta a liberdade humana nos destinos do mundo decaído? No entanto, a história do Antigo testamento nos ensina outra coisa: o sacrifício voluntário de Abrahão, os sofrimentos de Jó, a obra dos profetas, enfim, toda a história do povo eleito com suas ascensões e quedas, não constituem simplesmente um arranjo da prefiguração de Cristo, mas também uma prova incessante da liberdade humana que respondesse a um chamado divino, fornecendo a Deus, nesse encaminhamento lento e trabalhoso, as condições humanas necessárias à realização da promessa.

Toda a história bíblica se revela assim como uma preparação da humanidade para a Encarnação, para essa “plenitude dos tempos”, quando o anjo foi enviado para saudar Maria e recolher de seus lábios as palavras de consentimento da humanidade para que o Verbo se fizesse carne: “Eis a serva de Deus, faça-se em mim segundo a sua palavra[3]”.

Nicolas Cabasilas, um teólogo bizantino do século XIV, diz na sua homilia sobre a Anunciação: “A Encarnação foi não apenas obre do Pai, de sua Virtude e de seu Espírito, mas também obra da vontade e da fé da Virgem. Sem o consentimento da Imaculada, sem o concurso da fé, esse desígnio teria sido tão irrealizável como sem a intervenção das próprias três Pessoas divinas. Foi somente depois de havê-la instruído e persuadido, que Deus a tomou por Mãe, e dela emprestou a carne que ela concordou em emprestar. Do mesmo modo como ele encarnou voluntariamente, também quis ele que sua Mãe engravidasse livremente e de sua plena vontade[4]”.

SE a Santa Virgem tivesse sido isolada da humanidade por um privilégio de Deus que lhe conferisse previamente o estado do homem antes do pecado, então seu consentimento livre perante a vontade divina, sua resposta ao arcanjo Gabriela, perderia a ligação de solidariedade histórica com todos os demais atos que contribuíram para preparar, ao longo de séculos, a vinda do Messias: ter-se-ia rompido a continuidade com a santidade do Antigo Testamento, que se acumulou de geração em geração para cumprir-se finalmente na pessoa de Maria, Virgem toda pura cuja humilde obediência deveria constituir o último passo que, do lado humano, tornou possível a obra de nossa salvação. O dogma da Imaculada Concepção, tal como foi formulado pela Igreja romana, rasga essa santa continuidade dos justos ancestrais de Deus, que encontra seu termo final no ecce ancila Domini[5]. A história de Israel perde seu sentido intrínseco, a liberdade humana fica privada de todo seu valor e a própria vinda de Cristo, efetuando-se em virtude de um decreto arbitrário de Deus, recebe o caráter de uma aparição de deus ex machina[6], irrompendo na história humana. Tais são os frutos de uma doutrina artificial e abstrata que, pretendendo glorificar a Virgem, a priva de sua ligação íntima, profunda, com a humanidade e, conferindo a ela o privilégio de ser isenta do pecado original desde o momento de sua concepção, diminui singularmente o valor de sua obediência à mensagem divina no dia da Anunciação.

A Igreja ortodoxa rejeita a interpretação católica romana da Imaculada Concepção. No entanto, ela honra a Santa Virgem com os designativos de “imaculada”, “sem mancha”, “toda pura”. Santo Efrém o Sírio (século IV) chega a dizer: “Você, Senhor, assim como sua Mãe, são perfeitamente santos, pois você não possui nenhuma mancha, Senhor, e sua Mãe nenhum pecado”. Como será isso possível fora do enquadre jurídico (privilégio de isenção) do dogma da Imaculada Concepção?

Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre o pecado original, enquanto falta cometida contra Deus e comum a toda humanidade desde Adão, e o próprio pecado, força do mal que opera na natureza da humanidade decaída; da mesma forma, é preciso distinguir entre a natureza comum a toda a humanidade e a pessoa própria a cada qual em particular. Pessoalmente, a Virgem foi estranha a toda mácula, a todo pecado, mas, me virtude de sua natureza, ela trazia com todos os descendentes de Adão a responsabilidade pela falta original. Isso pressupõe que o pecado, enquanto força do mal, não agia na natureza da Virgem eleita e progressivamente purificada pelas gerações de seus justos ancestrais e protegida nela pela graça, desde o momento de sua concepção.

A Virgem foi protegida de toda mancha, mas não isenta da responsabilidade pela falta de Adão, falta que não poderia ser abolida na humanidade decaída senão pela Pessoa divina do Verbo.

A Escritura nos fornece outros exemplos de assistência divina e de santificação no seio da mãe: Davi[7], Jeremias[8] e João Batista[9]. É neste sentido que a Igreja ortodoxa festeja, desde a antiguidade, o dia da Concepção da Santa Virgem (8 de Dezembro), assim como a festa da Concepção de São João Batista (24 de Setembro). É preciso notar, a esse respeito, que o dogma romano estabelece, no que se refere à concepção da Virgem por Joaquim e Ana, uma distinção entre “concepção ativa” e “concepção passiva”, sendo aquela obra natural da carne, ato dos pais geradores, e esta se referindo apenas ao efeito da união conjugal; o caráter de “Imaculada Concepção” só se aplica ao aspecto passivo da concepção da Virgem.

A Igreja ortodoxa, estranha a essa aversão diante de tudo o que se refere à natureza carnal, não conhece a distinção artificial entre “concepção ativa” e “concepção passiva”. Ao celebrar a concepção da natividade da Santa Virgem e de São João Batista, ela dá testemunho do caráter milagroso desses nascimentos, ela venera a casta união dos pais, e ao mesmo tempo a santidade de seus frutos. Tanto para a Virgem como para João Batista, essa santidade não reside num privilégio abstrato de não-culpabilidade, mas numa mudança real da natureza humana progressivamente purificada e reforçada pela graça nas gerações precedentes. Essa ascensão constante de nossa natureza, destinada a se tornar a natureza do Filho de Deus encarnado, prossegue na vida de Maria: através da festa da sua Apresentação no Templo (21 de Novembro) a Tradição testemunha essa santificação contínua, essa proteção exercida pela graça divina contra toda mancha do pecado. A santificação da Virgem é consumada no momento da Anunciação, quando o Espírito Santo a torna apta a uma Concepção imaculada, no sentido pleno da palavra: a Concepção virginal do Filho de Deus feito Filho do homem.

Nota que acompanhou a publicação do artigo – “Do dogma da Imaculada Concepção”.

Escritas há mais de doze anos (c. 1942) essas precisões a respeito do dogma romano da Imaculada Concepção deverão ainda ser modificadas e consideravelmente desenvolvidas. Esperando fazê-lo um dia, nos contentaremos neste momento, a fim de não retardar sua publicação neste ano, complementar o texto com um rápido esboço de dois aspectos que devem afastar certos mal-entendidos.

1)      Alguns ortodoxos, animados por um zelo pela verdade bastante compreensível, se veem na obrigação de negar a autenticidade da aparição da Mãe de Deus a Bernadette e se recusam a reconhecer as manifestações da graça em Lourdes, sob o pretexto de que esses fenômenos espirituais servem para confirmar o dogma mariológico estranho à tradição cristã. Essa atitude, acreditamos, não tem justificativa, porque provém de uma falta de discernimento entre um fato de ordem religiosa e sua utilização doutrinal pela Igreja romana. Antes de aplicar um julgamento negativo sobre a aparição de Nossa Senhora em Lourdes, e correr o risco de cometer um pecado contra a graça ilimitada do Espírito Santo, seria mais prudente (e mais justo) examinar com sobriedade de espírito e atenção religiosa as palavras escutadas pela jovem Bernadette, bem coo as circunstâncias nas quais essas palavras lhe foram dirigidas. Durante todo o período de suas quinze aparições em Lourdes, a Santa Virgem falou uma única vez para se apresentar. Ela disse: “Eu sou a Imaculada Concepção”. Ora, essas palavras foram pronunciadas no dia 25 de Março de 1858, na festa da Anunciação. O sentido direto fica claro para quem não está obrigado a interpretá-lo contra a sã teologia e as regras da gramática: a Concepção imaculada do Filho de Deus e o supremo título de glória da Virgem sem mácula.

2)      Os autores católicos romanos costumam insistir no fato de que a doutrina da Imaculada Concepção foi reconhecida, explícita ou implicitamente, por muitos teólogos ortodoxos, sobretudo nos séculos XVII e XVIII. As listas impressionantes dos manuais de teologia redigidos nessa época, a maior parte proveniente do sul da Rússia, testemunham de fato até que ponto o ensinamento teológico da Academia de Kiev e de outras escolas da Ucrânia, da Galícia, da Lituânia e da Bielorrússia foram afetados pelos temas doutrinais e devocionais próprios da Igreja de Roma. Ainda que defendendo heroicamente sua fé, os ortodoxos dessas regiões limítrofes sofreram inevitavelmente a influência de seus adversários católicos romanos, pois eles pertenciam ao mesmo mundo de civilização barroca, com suas formas particulares de piedade.

Sabemos que a teologia “latinizada” dos Ucranianos provocou um escândalo dogmático em Moscou pelo fim do século XVII a respeito da epiclese. O tema da Imaculada Concepção seria tanto mais assimilável na medida em que se exprimia mais pela devoção do que por uma doutrina teológica definida. É sob essa forma devocional que encontramos alguns traços da mariologia romana nos escritos de São Dimitri de Rostiv, prelado russo de origem e educação ucraniana. É o único nome de importância dentre as “autoridades” teológicas que são citadas habitualmente para mostrar que o dogma da Imaculada Concepção de Maria era aceito pelos ortodoxos. Não vamos aqui colocar, de nossa parte, uma lista (bem mais extensa, aliás) dos teólogos da Igreja de Roma, cujo pensamento mariológico se opunha resolutamente à doutrina transformada em artigo de fé há [mais de] um século. Basta citar um único nome, o de São Tomás de Aquino, para constatar que o dogma de 1854 vai contra tudo o que existe de mais são na tradição teológica do Ocidente separado. Devemos reler as passagens dos Comentários às Sentenças (I, 111, 3, I, art. 1 e 2; 4, I) e da Suma Teológica (IIIa, 27), bem como de outros textos nos quais o Doutor angélico trata da questão da Imaculada Concepção da Virgem: encontraremos ali exemplos de um juízo teológico sóbrio e preciso, de uma pensamento claro, que sabe utilizar os textos dos Padres ocidentais (Santo Agostinho) e orientais (São João Damasceno) para mostrar o verdadeiro título de glória da Santíssima Virgem e Mãe de nosso Deus Passados cem anos, essas páginas mariológicas de São Tomás de Aquino parecem seladas para os teólogos católicos romanos, obrigados a se conformar com a “linha geral”; ,mas elas não deixarão de ser um testemunho da tradição comum para aqueles ortodoxos que sabem apreciar o tesouro teológico de seus irmãos separados.


Vladimir Lossky – Em la fête de la Conception de la três Sainte Vierge Marie
Artigo publicado no:
Messager de l’Exarcat di Patriarcat Russe em Europe Occidentale, no. 20, Dez. 1954




[1] Símbolo da fé Niceno-constantinopolitano.
[2] Hino do rito bizantino.
[3] Lucas 1: 38.
[4] Patrologia Orientalis, XIX, 2.
[5] “Eis a serva do Senhor”.
[6] “Deus surgido da máquina”. Refere-se essa expressão ao recurso empregado no antigo teatro Grego para justificar a aparição de um deus no decurso de uma peça, cuja função seria a de dar uma solução arbitrária a algum impasse vivido pelos personagens.
[7] Cf. I Samuel, 16.
[8] Jeremias 1: 5.
[9] Lucas 1: 41.

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