A Virgem real, revestida dos verdadeiros títulos
De glória e de dignidades,
Não necessita de uma falsa glória.
(Bernard de Clairvaux)
Certas pessoas que se deixam enganar por uma semelhança de expressões verbais
ou por uma falsa associação de ideias, são levadas a confundir o ensinamento da
Igreja romana sobre a Imaculada Concepção de Maria com o dogma da concepção
virginal de nosso Senhor Jesus Cristo. O primeiro desses ensinamentos, que
representa uma inovação do catolicismo romano, se refere ao nascimento da
própria Virgem, enquanto que o segundo, tesouro comum da fé cristã, diz
respeito à Natividade de nosso Senhor Jesus Cristo, “que, por nós homens e para
nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo na Virgem
Maria, e se fez homem[1]”.
A doutrina da Imaculada Concepção tem sua origem na devoção específica
que alguns meios espirituais do Ocidente separado dedicavam à Virgem desde o
fim do século XIII. Ela foi proclamada como “verdade revelada” em 8 de Dezembro
de 1854 pelo Papa Pio IX, sem convocação de concílio (moto proprio). Esse novo dogma foi promulgado com a intenção de
glorificar a Santa Virgem, que, como instrumento da Encarnação de nosso Senhor,
se tornou Cooperadora de nossa redenção. Segundo essa doutrina, ela desfrutaria
de um privilégio especial, o de ter sido isenta do pecado original desde o
momento de sua concepção por seus pais Joaquim e Ana. Esta graça especial que a
tornaria, por assim dizer, resgatada antes ainda da obra da Redenção, lhe teria
sido concedida em previsão do mérito futuro de seu Filho. Para se encarnar e se
tornar “Homem perfeito”, o Verbo divino teria necessidade de uma natureza
humana não contaminada pelo pecado: seria preciso assim que o vaso no qual ele
assumisse sua humanidade fosse puro de toda mancha, previamente purificado.
Daí, segundo os teólogos romanos, a necessidade de conceder à Virgem, embora
tendo ela sido concebida naturalmente e do mesmo modo como toda criatura
humana, um privilégio especial, colocando-a fora da posteridade de Adão e
liberando-a da falta original comum ao ser humano. Com efeito, segundo o novo
dogma romano, a Santa Virgem teria participado, desde o seio de sua mãe, do
estado primigênio do homem antes do pecado.
A Igreja ortodoxa, que sempre rendeu um culto especial à Mãe de Deus,
exaltada acima dos espíritos celestes, “mais venerável que os querubins e
incomparavelmente mais gloriosa do que os serafins[2]”,
jamais admitiu – ao menos no sentido como o entende a Igreja de Roma – o dogma
da Imaculada Concepção. A definição de “privilégio concedido à Virgem em vista
do mérito futuro de seu Filho” repugna ao espirito da ortodoxia cristã; ela não
pode aceitar esse formalismo exagerado que apaga o caráter real da obra de
nossa Redenção, vendo aí não mais do que um mérito abstrato de Cristo,
imputável a uma pessoa humana antes da Paixão e da Ressurreição, antes mesmo da
Encarnação de Cristo – tudo por um decreto especial de Deus. Se a Santa Virgem
pudesse desfrutar dos efeitos da Redenção antes da obra redentora de Cristo,
não vemos porque esse privilégio não poderia se estender a outras pessoas, a
toda a linhagem de Cristo, por exemplo, a toda esta posteridade de Adão, que
contribuiu de geração em geração para preparar a natureza humana assumida pelo
Verbo no seio de Maria. Com efeito, isso seria lógico e conforme a ideia que
temos da bondade de Deus, e, no entanto, o absurdo de tal conjectura é
chocante, de uma humanidade que desfrutasse de um “não-lugar” malgrado sua
queda, salva previamente e que aguardasse, entretanto, a obra de sua salvação
por Cristo! O que parece absurdo quando aplicado a toda a humanidade anterior a
Cristo, não deixa de sê-lo quando se trata de um único ser humano. O
contrassenso não faz senão aparecer mais claramente: a fim de a obra da
Redenção pudesse se realizar para toda a humanidade, seria preciso que ela se
realizasse previamente para um de seus membros. Dito de outra forma, para que
acontecesse a Redenção, seria preciso que ela já existisse, e que alguém já
usufruísse previamente de seus frutos.
Poder-se-ia sem dúvida responder a isso argumentando que é legítimo
esse privilégio, uma vez que se trata de um ser excepcional como a Santa
Virgem, predestinada a servir de instrumento para a Encarnação, e, por isso
mesmo, para a Redenção. Numa certa medida isso é verdade: a Virgem que
engravidou sem mácula do Verbo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não foi um
ser comum. Mas podemos separá-la assim de modo
tão absoluto, desde o momento de sua concepção por Joaquim e Ana, do
resto da posteridade de Adão? Isolando-a assim, não corremos o risco de
depreciar toda a história da humanidade antes de Cristo, de abolir o próprio
sentido do Antigo testamento, que foi uma espera messiânica, uma preparação
progressiva da humanidade para a Encarnação do Verbo? Com efeito, se a
Encarnação não fosse condicionada senão pelo privilégio concedido à Virgem, “em
vista do mérito de seu Filho”, a vinda do Messias ao mundo poderia ter se
cumprido em qualquer outro momento da história; poderia Deus em qualquer
momento, a partir de um decreto especial que só dependesse do arbítrio divino,
criar o instrumento imaculado de sua Encarnação, sem levar em conta a liberdade
humana nos destinos do mundo decaído? No entanto, a história do Antigo
testamento nos ensina outra coisa: o sacrifício voluntário de Abrahão, os
sofrimentos de Jó, a obra dos profetas, enfim, toda a história do povo eleito
com suas ascensões e quedas, não constituem simplesmente um arranjo da
prefiguração de Cristo, mas também uma prova incessante da liberdade humana que
respondesse a um chamado divino, fornecendo a Deus, nesse encaminhamento lento
e trabalhoso, as condições humanas necessárias à realização da promessa.
Toda a história bíblica se revela assim como uma preparação da
humanidade para a Encarnação, para essa “plenitude dos tempos”, quando o anjo
foi enviado para saudar Maria e recolher de seus lábios as palavras de
consentimento da humanidade para que o Verbo se fizesse carne: “Eis a serva de
Deus, faça-se em mim segundo a sua palavra[3]”.
Nicolas Cabasilas, um teólogo bizantino do século XIV, diz na sua
homilia sobre a Anunciação: “A Encarnação foi não apenas obre do Pai, de sua
Virtude e de seu Espírito, mas também obra da vontade e da fé da Virgem. Sem o
consentimento da Imaculada, sem o concurso da fé, esse desígnio teria sido tão
irrealizável como sem a intervenção das próprias três Pessoas divinas. Foi
somente depois de havê-la instruído e persuadido, que Deus a tomou por Mãe, e
dela emprestou a carne que ela concordou em emprestar. Do mesmo modo como ele
encarnou voluntariamente, também quis ele que sua Mãe engravidasse livremente e
de sua plena vontade[4]”.
SE a Santa Virgem tivesse sido isolada da humanidade por um privilégio
de Deus que lhe conferisse previamente o estado do homem antes do pecado, então
seu consentimento livre perante a vontade divina, sua resposta ao arcanjo
Gabriela, perderia a ligação de solidariedade histórica com todos os demais
atos que contribuíram para preparar, ao longo de séculos, a vinda do Messias:
ter-se-ia rompido a continuidade com a santidade do Antigo Testamento, que se
acumulou de geração em geração para cumprir-se finalmente na pessoa de Maria,
Virgem toda pura cuja humilde obediência deveria constituir o último passo que,
do lado humano, tornou possível a obra de nossa salvação. O dogma da Imaculada
Concepção, tal como foi formulado pela Igreja romana, rasga essa santa
continuidade dos justos ancestrais de Deus, que encontra seu termo final no ecce ancila Domini[5].
A história de Israel perde seu sentido intrínseco, a liberdade humana fica
privada de todo seu valor e a própria vinda de Cristo, efetuando-se em virtude
de um decreto arbitrário de Deus, recebe o caráter de uma aparição de deus ex machina[6],
irrompendo na história humana. Tais são os frutos de uma doutrina artificial e
abstrata que, pretendendo glorificar a Virgem, a priva de sua ligação íntima,
profunda, com a humanidade e, conferindo a ela o privilégio de ser isenta do
pecado original desde o momento de sua concepção, diminui singularmente o valor
de sua obediência à mensagem divina no dia da Anunciação.
A Igreja ortodoxa rejeita a interpretação católica romana da Imaculada
Concepção. No entanto, ela honra a Santa Virgem com os designativos de
“imaculada”, “sem mancha”, “toda pura”. Santo Efrém o Sírio (século IV) chega a
dizer: “Você, Senhor, assim como sua Mãe, são perfeitamente santos, pois você
não possui nenhuma mancha, Senhor, e sua Mãe nenhum pecado”. Como será isso
possível fora do enquadre jurídico (privilégio de isenção) do dogma da
Imaculada Concepção?
Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre o pecado original,
enquanto falta cometida contra Deus e comum a toda humanidade desde Adão, e o
próprio pecado, força do mal que opera na natureza da humanidade decaída; da
mesma forma, é preciso distinguir entre a natureza comum a toda a humanidade e
a pessoa própria a cada qual em particular. Pessoalmente, a Virgem foi estranha
a toda mácula, a todo pecado, mas, me virtude de sua natureza, ela trazia com
todos os descendentes de Adão a responsabilidade pela falta original. Isso pressupõe
que o pecado, enquanto força do mal, não agia na natureza da Virgem eleita e
progressivamente purificada pelas gerações de seus justos ancestrais e
protegida nela pela graça, desde o momento de sua concepção.
A Virgem foi protegida de toda mancha, mas não isenta da
responsabilidade pela falta de Adão, falta que não poderia ser abolida na
humanidade decaída senão pela Pessoa divina do Verbo.
A Escritura nos fornece outros exemplos de assistência divina e de
santificação no seio da mãe: Davi[7],
Jeremias[8]
e João Batista[9]. É
neste sentido que a Igreja ortodoxa festeja, desde a antiguidade, o dia da
Concepção da Santa Virgem (8 de Dezembro), assim como a festa da Concepção de
São João Batista (24 de Setembro). É preciso notar, a esse respeito, que o
dogma romano estabelece, no que se refere à concepção da Virgem por Joaquim e
Ana, uma distinção entre “concepção ativa” e “concepção passiva”, sendo aquela
obra natural da carne, ato dos pais geradores, e esta se referindo apenas ao
efeito da união conjugal; o caráter de “Imaculada Concepção” só se aplica ao
aspecto passivo da concepção da Virgem.
A Igreja ortodoxa, estranha a essa aversão diante de tudo o que se
refere à natureza carnal, não conhece a distinção artificial entre “concepção
ativa” e “concepção passiva”. Ao celebrar a concepção da natividade da Santa
Virgem e de São João Batista, ela dá testemunho do caráter milagroso desses
nascimentos, ela venera a casta união dos pais, e ao mesmo tempo a santidade de
seus frutos. Tanto para a Virgem como para João Batista, essa santidade não
reside num privilégio abstrato de não-culpabilidade, mas numa mudança real da
natureza humana progressivamente purificada e reforçada pela graça nas gerações
precedentes. Essa ascensão constante de nossa natureza, destinada a se tornar a
natureza do Filho de Deus encarnado, prossegue na vida de Maria: através da
festa da sua Apresentação no Templo (21 de Novembro) a Tradição testemunha essa
santificação contínua, essa proteção exercida pela graça divina contra toda
mancha do pecado. A santificação da Virgem é consumada no momento da
Anunciação, quando o Espírito Santo a torna apta a uma Concepção imaculada, no
sentido pleno da palavra: a Concepção virginal do Filho de Deus feito Filho do
homem.
Nota que acompanhou a publicação
do artigo – “Do dogma da Imaculada Concepção”.
Escritas há mais de doze anos
(c. 1942) essas precisões a respeito do dogma romano da Imaculada Concepção
deverão ainda ser modificadas e consideravelmente desenvolvidas. Esperando
fazê-lo um dia, nos contentaremos neste momento, a fim de não retardar sua
publicação neste ano, complementar o texto com um rápido esboço de dois aspectos
que devem afastar certos mal-entendidos.
1)
Alguns ortodoxos, animados por um zelo pela
verdade bastante compreensível, se veem na obrigação de negar a autenticidade
da aparição da Mãe de Deus a Bernadette e se recusam a reconhecer as
manifestações da graça em Lourdes, sob o pretexto de que esses fenômenos
espirituais servem para confirmar o dogma mariológico estranho à tradição
cristã. Essa atitude, acreditamos, não tem justificativa, porque provém de uma
falta de discernimento entre um fato de ordem religiosa e sua utilização
doutrinal pela Igreja romana. Antes de aplicar um julgamento negativo sobre a
aparição de Nossa Senhora em Lourdes, e correr o risco de cometer um pecado
contra a graça ilimitada do Espírito Santo, seria mais prudente (e mais justo)
examinar com sobriedade de espírito e atenção religiosa as palavras escutadas
pela jovem Bernadette, bem coo as circunstâncias nas quais essas palavras lhe
foram dirigidas. Durante todo o período de suas quinze aparições em Lourdes, a
Santa Virgem falou uma única vez para se apresentar. Ela disse: “Eu sou a
Imaculada Concepção”. Ora, essas palavras foram pronunciadas no dia 25 de Março
de 1858, na festa da Anunciação. O sentido direto fica claro para quem não está
obrigado a interpretá-lo contra a sã teologia e as regras da gramática: a
Concepção imaculada do Filho de Deus e o supremo título de glória da Virgem sem
mácula.
2)
Os autores católicos romanos costumam insistir
no fato de que a doutrina da Imaculada Concepção foi reconhecida, explícita ou
implicitamente, por muitos teólogos ortodoxos, sobretudo nos séculos XVII e
XVIII. As listas impressionantes dos manuais de teologia redigidos nessa época,
a maior parte proveniente do sul da Rússia, testemunham de fato até que ponto o
ensinamento teológico da Academia de Kiev e de outras escolas da Ucrânia, da
Galícia, da Lituânia e da Bielorrússia foram afetados pelos temas doutrinais e
devocionais próprios da Igreja de Roma. Ainda que defendendo heroicamente sua
fé, os ortodoxos dessas regiões limítrofes sofreram inevitavelmente a
influência de seus adversários católicos romanos, pois eles pertenciam ao mesmo
mundo de civilização barroca, com suas formas particulares de piedade.
Sabemos que a teologia “latinizada” dos Ucranianos provocou um
escândalo dogmático em Moscou pelo fim do século XVII a respeito da epiclese. O
tema da Imaculada Concepção seria tanto mais assimilável na medida em que se
exprimia mais pela devoção do que por uma doutrina teológica definida. É sob
essa forma devocional que encontramos alguns traços da mariologia romana nos
escritos de São Dimitri de Rostiv, prelado russo de origem e educação
ucraniana. É o único nome de importância dentre as “autoridades” teológicas que
são citadas habitualmente para mostrar que o dogma da Imaculada Concepção de
Maria era aceito pelos ortodoxos. Não vamos aqui colocar, de nossa parte, uma
lista (bem mais extensa, aliás) dos teólogos da Igreja de Roma, cujo pensamento
mariológico se opunha resolutamente à doutrina transformada em artigo de fé há
[mais de] um século. Basta citar um único nome, o de São Tomás de Aquino, para
constatar que o dogma de 1854 vai contra tudo o que existe de mais são na
tradição teológica do Ocidente separado. Devemos reler as passagens dos
Comentários às Sentenças (I, 111, 3, I, art. 1 e 2; 4, I) e da Suma Teológica
(IIIa, 27), bem como de outros textos nos quais o Doutor angélico trata da questão
da Imaculada Concepção da Virgem: encontraremos ali exemplos de um juízo
teológico sóbrio e preciso, de uma pensamento claro, que sabe utilizar os
textos dos Padres ocidentais (Santo Agostinho) e orientais (São João Damasceno)
para mostrar o verdadeiro título de glória da Santíssima Virgem e Mãe de nosso
Deus Passados cem anos, essas páginas mariológicas de São Tomás de Aquino
parecem seladas para os teólogos católicos romanos, obrigados a se conformar
com a “linha geral”; ,mas elas não deixarão de ser um testemunho da tradição
comum para aqueles ortodoxos que sabem apreciar o tesouro teológico de seus
irmãos separados.
Vladimir Lossky – Em la fête de
la Conception de la três Sainte Vierge Marie
Artigo publicado no:
Messager de l’Exarcat di
Patriarcat Russe em Europe Occidentale, no. 20, Dez. 1954
[1]
Símbolo da fé Niceno-constantinopolitano.
[2]
Hino do rito bizantino.
[3]
Lucas 1: 38.
[4]
Patrologia Orientalis, XIX, 2.
[5]
“Eis a serva do Senhor”.
[6]
“Deus surgido da máquina”. Refere-se essa expressão ao recurso empregado no
antigo teatro Grego para justificar a aparição de um deus no decurso de uma
peça, cuja função seria a de dar uma solução arbitrária a algum impasse vivido
pelos personagens.
[7]
Cf. I Samuel, 16.
[8]
Jeremias 1: 5.
[9]
Lucas 1: 41.
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