domingo, 27 de março de 2016

Johanis Romanides - Cristo, Vida do Mundo




INTRODUÇÃO


A fé em Cristo, a teologia e os dogmas sobre Cristo e suas relações com o Pai e o Espírito Santo, se propõem essencialmente a conduzir a humanidade:

1.       À purificação e à iluminação do coração, ou seja, à cura do próprio centro da personalidade do homem; e
2.       À glorificação ou theosis (deificação), que é a perfeição da personalidade na visão de glória e do reino (basileia) incriado de Cristo com os santos do Senhor, membros de seu Corpo que é a Igreja.

A fé, a prece, a teologia e o dogma são métodos terapêuticos e como que sinais indicadores sobre o caminho da iluminação e até da perfeição, a qual, uma vez atingida, abole a fé, a prece, a teologia e os dogmas, pois seu objetivo é precisamente em sua própria abolição, na glorificação e no amor desinteressado[1]. É pelo fato de que este tema, “Cristo, vida do mundo”, é centrado sobre o que contribui para curar e aperfeiçoar autenticamente, que ele é eclesiológico: com efeito, somente os iluminados e os glorificados são membros do Corpo de Cristo e templos do Espírito Santo.

Desse ponto de vista, podemos discernir um certo paralelismo entre a purificação e a iluminação e as ciências da medicina, notadamente a psiquiatria, mas a glorificação ou theosis é conhecida e preservada apenas no coração da tradição cristã, assim como, talvez, no Judaísmo. A ligação com as ciências humanas não se refere aqui aos princípios éticos ou morais comuns, mas na ascese terapêutica. Assim como não se pode separar, na psiquiatria, o saber teórico da prática médica, também a fé, a prece, a teologia e os dogmas são inseparáveis de sua aplicação terapêutica. Do mesmo modo como não podemos transformar o conhecimento psiquiátrico em um sistema abstrato e metafísico, também a tradição ortodoxa não se deixa reduzir. Assim, a relação entre conhecimento e a terapia nas ciências médicas é idêntico ao que encontramos na teologia patrística. A verdade aí é medida pelo sucesso da terapia e o sucesso da terapia permite por sua vez estabelecer a análise descritiva dos meios que a tornaram e que continuam a torná-la possível.


A.      CRISTO NO ANTIGO TESTAMENTO E NOS CONCÍLIOS ECUMÊNICOS


Um aspecto essencial dos pressupostos teológicos que todos os Concílios Ecumênicos sustentaram sobre a pessoa de Cristo acha-se, seja ausente, seja completamente rejeitado por todos os seguidores de Agostinho. Esta constatação nos leva a perguntar se estes últimos aceitam realmente os Concílios.

Com efeito, à exceção do próprio Agostinho, todos os Padres afirmam que Jesus Cristo, antes de seu nascimento da Virgem e Mãe de Deus, é, em Sua Pessoa incriada de Anjo de Deus, de Anjo do Grande Conselho, de Senhor da Glória, Aquele que revelou a Deus em si próprio aos patriarcas e aos profetas do Antigo Testamento. Da mesma forma, tanto os arianos como os eunomistas concordam com os ortodoxos na ideia de que Cristo, que na sua pessoa ou hipóstase existia antes da criação dos tempos, revelou a Deus, mas aqueles sustentam, ao contrário dos ortodoxos, que Cristo teria sido criado a partir do não-ser e que, desde então, ele não teria mais a mesma natureza de Deus, que seria o único verdadeiramente Deus por natureza; assim, ele não lhe seria nem consubstancial nem coessencial.

Na tentativa de demonstrar isso, os arianos e os eunomistas pretendia, como fizera o judeu Tryphon diante de Justino o Mártir, que não teria sido o Anjo do Senhor que dissera a Moisés na sarça ardente: “Eu sou Aquele que é[2]”, mas o próprio Deus por intermédio do Anjo, o logos criado. Os Padres, ao contrário, afirmam que essa revelação do Logos-anjo se referia igualmente a Si mesmo, e não somente a Deus Pai. O Anjo pode assim dizer de si mesmo a Moisés: “Eu sou o Deus de seu pai, o Deus de Abrahão e o Deus de Isaac e de Jacó[3]”.

Contra os arianos, Santo Atanásio afirma que o nome de Anjo aplica-se tanto ao Logos incriado como a um anjo criado. Ele insiste sobre o fato de que é impossível confundir a visão de um anjo criado com a do Filho incriado de Deus, que a Escritura chama eventualmente de “Anjo”. Ele diz claramente que “quando o Filho é visto, o Pai também é visto, pois o Filho é a luz do Pai; e assim Pai e Filho são um. Aquilo que Deus disse, é claro e evidente que disse por intermédio do Logos e por nenhum outro. E aquele que viu o Filho sabia bem que vendo-o não havia visto nem um anjo, nem o maior dentre os anjos, nem, numa palavra, qualquer ser criado, mas o próprio Pai. E aquele que escuta o Logos sabe que escuta o Pai, assim como quem é inundado pela luz sensível, sabe estar recebendo essa luz do sol[4]”. Santo Atanásio fornece assim a chave para a compreensão do Antigo e do Novo Testamento, pois “nada existe que o Pai não faça senão pelo Filho[5]”.

Isto implica que o Antigo Testamento é cristocêntrico, pois Cristo é, antes da Encarnação, Anjo do Senhor, Anjo do Grande Conselho, Senhor da Glória e Senhor de Sabaó, em quem os patriarcas e os profetas viram e ouviram a Deus e por meio de quem receberam a graça, o socorro e a misericórdia.

Se quisermos encontrar a chave para a compreensão do Primeiro Concílio Ecumênico e de todos os que o seguiram, é preciso levar muito a sério o fato de que ortodoxos e arianos concordaram em dizer que o Anjo e o Verbo (Logos) que apareceram aos profetas e que lhes revelou Deus é a mesma pessoa que se tornou homem e Cristo. É preciso compreender aqui que tanto ortodoxos como arianos não argumentaram especulativamente sobre uma Segunda Pessoa da Trindade concebida abstratamente e cuja identidade e natureza teriam que ser decifradas por uma ruminação de textos escriturários apoiados sobre a filosofia helenística e sustentada pelo Espírito Santo. É a experiência espiritual dos profetas e dos Apóstolos que era objeto de sua discussão, e em especial o fato de saber se foi um Logos criado ou incriado que apareceu em glória aos profetas e aos Apóstolos e que revelou em Si ser a Imagem, Deus Pai que é o Modelo arquetipal.

Mas como os eunomistas defendiam as mesmas posições que os arianos sobre as manifestações aos profetas do pretenso Logos-Anjo criado, a mesma discussão ressurgiu no Segundo Concílio Ecumênico. São Basílio o Grande, perdendo um pouco a paciência, dirigiu-se a Eunomo nos seguintes termos: “Você que é verdadeiramente ateu, não irá parar de tratar Aquele que É verdadeiramente – Ele que é a fonte da vida e que dá a existência a tudo o que existe – como um não-ser? Pois foi ele próprio, quando veio voluntariamente ao encontro de seu servidor Moisés, que lhe forneceu Seu próprio e justo título para Sua eternidade, e nomeou a si mesmo como ‘Aquele que É’. Pois ele disse: ‘Eu sou Aquele que É’. E que isso tenha sido dito pela própria pessoa do Senhor, ninguém o contestará, quero dizer, nenhum que tenha um véu judaico cobrindo seu coração ao ler Moisés[6]. Pois está escrito que um Anjo do Senhor apareceu a Moisés no fogo da chama que brotava da sarça[7]. E onde a Escritura apresenta um anjo em seu relato, a voz de Deus continua: “Ele disse a Moisés: ‘Eu sou o Deus de seu pai Abrahão’[8]”, e acrescentou adiante: ‘Eu sou Aquele que É’. E quem é Aquele que ao mesmo tempo é Anjo e Deus? Não é Aquele do qual aprendemos ser chamado de ‘Anjo do Grande Conselho’?[9]”.

Da mesma forma, depois de haver resumido observações similares que se encontram em Santo Atanásio e nos Padres anteriores, a propósito do encontro entre o Anjo-Logos e Jacó, São Basílio coloca claramente o mesmo princípio hermenêutico que encontramos no Bispo de Alexandria: “É evidente a todos, que, onde a mesma pessoa é chamada a um tempo de Anjo e de Deus, trata-se do Filho único que manifesta a si mesmo aos seres humanos de geração em geração e que anuncia a vontade do Pai aos seus santos. Da mesma forma aquele que, falando a Moisés, deu a si próprio o nome de “Aquele que É”, deve ser identificado apenas a Deus e nenhum outro[10]”.

Eunomo respondeu a esses argumentos de Basílio afirmando que o Filho é o anjo “Daquele que É”, mas não “Aquele que É” em si. Este anjo é chamado de Deus apenas para indicar sua superioridade sobre as outras coisas criadas por ele, mas isso não quer dizer que ele seja “Aquele que É”. Eunomo ainda afirmava que “Aquele que enviou a Moisés era o próprio ‘Aquele que É’, mas aquele por meio de quem ele encontrou a Moisés e lhe falou era o ‘Anjo Daquele que É’, e o Deus de todas as coisas[11]”.

Podemos achar estranho esse argumento sofístico, mas ele é importante como testemunho do fato de que a identidade entre o Anjo chamado de Deus no Antigo Testamento e Cristo, o Filho único de Deus e Criador, estava tão enraizada na tradição que Eunomo não podia sequer imaginar rejeitá-la, como, aliás, apressou-se a fazê-lo seu jovem contemporâneo Agostinho na África do Norte – e isso apesar de que seu suposto mestre, Ambrósio, bem como os outros Padres latinos, concordassem perfeitamente com a tradição que acabamos de descrever.

Como São Basílio deixou esta vida antes de replicar as respostas de Eunomo com sua própria refutação, foi seu irmão Gregório de Nisse que se encarregou disso em seus doze livros Contra Eunomo, que ele comunicou a São Jerônimo durante o Segundo Concílio Ecumênico de 381.

São Gregório de Nisse respondeu dentre outras coisas que “se Moisés pediu que o povo não fosse conduzido por um anjo[12], pois Deus havia lhe anunciado que enviaria um para conduzir seu povo à liberdade[13], e se Aquele que falou com ele aceitou se tornar seu companheiro de viagem e guia de seu exército[14], fica aqui demonstrado que Aquele que se fez conhecer pelo nome de “Aquele que É” é o Filho único de Deus. Se alguém contradisser esse fato, estará se declarando defensor da crença judaica que também não associa o Filho à libertação do povo. Pois se, de um lado, está dito que não foi um anjo que avançou com o povo, e que, de outro, como sustentava Eunomo, aquele que se manifestou como “Aquele que É” não é o Filho Único, isto equivale pura e simplesmente a importar para a Igreja de Deus a doutrina da Sinagoga. Por conseguinte, eles devem necessariamente admitir uma das seguintes hipóteses: ou bem o Deus Monogeno (o Filho Único) jamais apareceu a Moisés, ou então o Filho é o próprio “Aquele que É”, de quem proveio estas palavras dirigidas ao seu servidor. Mas ele rejeita o que dissemos acima, alegando que a própria Escritura[15] que nos ensina que a voz de um anjo se interpôs e que foi assim que as palavras “Aquele que é” foram transmitidas. Mas essa citação, longe de contradizer nossa opinião, a confirma. Pois nós ensinamos sem desvios que o profeta, em seu desejo de manifestar aos homens o mistério de Cristo , deu o nome de “Anjo” a “Aquele que É”, para que o significado dessas palavras não se referisse ao Pai, como poderia ter acontecido, se o nome de “Aquele que É” estivesse isolado ao longo do discurso[16]”.

Esses extratos dos principais Padres dos dois primeiros Concílios Ecumênicos indicam de forma mais do que suficiente que para os padres conciliares a doutrina da Santa Trindade se identificava exatamente com as manifestações de Cristo, que aparecera como Logos sem carne aos Profetas e em sua natureza humana aos Apóstolos.

Ninguém, na Tradição, salvo Agostinho, jamais duvidou que o Logos não fosse idêntico a esse indivíduo concreto que revelou a si mesmo como o Deus Invisível do Antigo Testamento aos Profetas e que se tornou homem e continuou essa mesma revelação da glória de Deus na e pela sua própria natureza humana tomada da Virgem.

A controvérsia entre os ortodoxos e os arianos e eunomistas não recaía sobre a questão de saber quem era o Logos no Antigo e Novo Testamentos, mas sobre o que é o Logos em sua relação com Deus Pai. Os ortodoxos sustentaram que o Logos é incriado e imutável, tendo sempre existido em essência ou hipóstase do Pai que, por natureza, causou a existência do Filho antes de todos os tempos. Os arianos e os eunomistas insistiam sobre o fato de que esse mesmo Anjo-Logos era uma criação mutável de Deus que veio à existência antes de todos os tempos pela vontade de Deus e não por sua natureza.

A partir daí, a questão fundamental é a seguinte: os Profetas e os Apóstolos viram na glória incriada de Deus (posição dos ortodoxos e dos arianos) ou numa energia criada (posição dos eunomistas), um Logos incriado ou um Logos criado? Um Logos que é Deus por natureza e que possui, por isso, todas as energias e os poderes de Deus por natureza, ou antes, um Deus pela graça, que teria algumas das energias de Deus Pai, mas não todas, e que, a partir daí, seria um Logos pela graça, mas não por natureza? Tanto os ortodoxos como os arianos e eunomistas estavam de acordo com que se o Logos possui por natureza todas as forças e energias do Pai, então ele é incriado; e que, do contrário, ele será uma criatura.

O ponto de discussão recaía assim sobre as experiências de revelação ou de glorificação ou de theosis que Deus concede em Seu Espírito por seu Logos-Anjo-Cristo aos Profetas, Apóstolos e Santos. Essas experiências ou essas vidas de santos são reportada em primeiro lugar na Bíblia, mas também na continuação pós-bíblica do Pentecostes, no Corpo de Cristo, a Igreja. Por isso os dois lados apelavam para os Padres dos tempos antigos, tanto quanto aos modernos, desde as vidas reportadas no Genesis até seus contemporâneos. É claro que não poderia haver um acordo sobre os testemunhos contemporâneos, mas havia uma base comum de discussão, tanto no Antigo como no Novo Testamento, e na tradição patrística anterior.

Dessa forma, tanto ortodoxos como heréticos se serviam tanto do Antigo como do Novo Testamento para determinar se os Profetas e os Apóstolos haviam visto uma hipóstase ou pessoa divina de Cristo criada ou incriada. A argumentação era simples. Cada campo efetuava uma lista de todas as forças ou energias de Deus mencionadas na Bíblia, e depois faziam o mesmo com o Logos-Anjo-Filho Único. Depois, comparavam as duas listas para ver se elas eram idêntica ou não. Elas não deveriam ser semelhantes, mas rigorosamente idênticas.

Os ortodoxos e os arianos concordavam plenamente com a tradição herdada do Antigo Testamento e confirmada pelo testemunho dos Apóstolos e dos santos aos quais Deus revelou sua glória no Filho encarnado, tradição segundo a qual a criatura não pode conhecer a essência incriada de Deus; eles concordavam também sobre o fato de que entre o incriado e o criado ex nihilo, não existe semelhança de espécie alguma.

Ademais, com o objetivo de provar que o Logos era uma criatura, os arianos afirmavam que ele não conhecia a essência de Deus nem sua própria essência, e que ele não era totalmente semelhante a Deus.

Os ortodoxos diziam ao contrário que o Logos conhecia a essência do Pai e que ele é em tudo semelhante ao Pai, tendo por natureza tudo o que o Pai possui, salvo a Paternidade ou o fato de ser causa de existência do Filho e do Espírito Santo.

Os ortodoxos e os arianos concordavam sobre a distinção daquilo que Deus é em si mesmo por natureza e daquilo que ele é ou faz por sua vontade; mas eles divergiam claramente na repartição dos elementos dessa distinção entre a essência divina e a vontade ou energia. Também os ortodoxos afirmavam que Deus causou a existência do Logos por natureza e a existência das criaturas por vontade, enquanto que os arianos sustentavam que tanto o Logos como todas as outras criaturas eram produto da vontade divina.

Contra essas posições, os eunomistas sustentavam que a essência e a energia incriada de Deus são idênticas, que o Logos é um produto da energia criada de Deus, que o Espírito Santo é um produto da energia criada do Logos e que cada espécie criada é o produto de uma energia criada específica do Espírito Santo. Para Eunomo, portanto, se cada espécie não tivesse sua energia individual, uma energia do Espírito Santo, não existiriam muitas espécies criadas, mas apenas uma.

Na realidade, Eunomo mistura aqui à sua maneira o testemunho bíblico e patrístico sobre a glorificação, na qual cada criatura participa, cada santo comunga o logos que se faz presente a cada um multiplicando de modo visível sua glória incriada: ela está presente em sua totalidade e em cada um, mas não como uma parte para cada um. É isso que Cristo ensinou[17] e que foi experienciado no dia de Pentecostes[18]. Esta é a glória que o Pai e o Espírito aportam ao Logos. Isso significa que não existem universais em Deus e que ele sustenta não apenas as espécies, mas cada porção singular da existência, em todas as suas múltiplas formas. Assim, o indivíduo jamais é sacrificado por Cristo para um pretenso bem comum, mas, ao mesmo tempo, o bem comum é o bem de cada qual em particular.

A consequência do mistério da ascensão de Cristo em sua própria Glória e de seu retorno para junto de seus discípulos no Espírito de glória, no dia de Pentecostes, consiste em que daí por diante ele está plenamente presente em cada etapa da iluminação e da glorificação (theosis). Assim, ao partilhar o pão eucarístico que é um, e o cálice que é um, cada membro do Corpo de Cristo recebe não uma parte de Cristo, mas Cristo por inteiro, e se torna aquilo que ele já é, uma templo (Naos) ou uma morada (Monê) do Pai e do Espírito Santo no Logos encarnado, em comum com os demais membros do Corpo de Cristo

B.      INICIAÇÃO À VIDA E À PLENITUDE DA VERDADE DE CRISTO PELO ESPÍRITO DE VERDADE NO DIA DE PENTECOSTES


Todas as distinções que foram desenvolvidas e especificadas durante as discussões que se desenrolaram em torno do Primeiro e Segundo Concílios Ecumênicos se encontram repetidas nos Concílios Ecumênicos seguintes, os quais, na realidade, foram apenas extensões do primeiro.

As expressões terminológicas dessas distinções não devem ser separadas de seus pressupostos terminológicos. Pode haver aí diversidade na expressão, mas não nos pressupostos da terminologia em questão.

Os pressupostos terminológicos da expressão da  teologia se encontram nos estados espirituais de purificação do coração, iluminação do coração e glorificação (ou theosis) do coração e de todo o ser daquele a quem o Logos aparece em Seu Espírito e revela o Pai em Si mesmo. Aquele que, no Espírito, vê a Cristo em glória, este vê o Pai. Essa experiência é a pedra angular das formulações doutrinais da tradição patrística.

Nós citamos alguns textos patrísticos que mostram claramente que os Padres do Primeiro e do Segundo Concílios Ecumênicos se serviram da tradição transmitida para mostrar que os Profetas, os Apóstolos e os Santos, em suas experiências de glorificação, tinham uma verdadeira visão de Deus em seu Anjo-Logos incriado, tanto antes como depois de sua Encarnação.

Quando Cristo revelou a glória incriada e o reino do Pai como sua própria glória natural quando de sua Transfiguração, ele repetiu em sua natureza humana a mesma manifestação que foi sua enquanto Senhor de glória no Antigo Testamento. A proposta de Pedro, de erguer tendas no local nessa ocasião – uma para Cristo, uma para Elias e uma para Moisés – por imitação da tenda do Testemunho dentro da qual Moisés participava da glória de Deus, constituiu um erro pelo fato de que a própria natureza humana de Cristo substituía a Tenda do testemunho de Moisés, do mesmo modo como o Templo de Salomão a havia tornado supérflua: o próprio Cristo revelava daqui para frente Sua glória recebida por natureza do Pai.

Segundo os Padres da Igreja, o sermão e a prece reportadas por João, e que contêm a promessa segundo a qual, quando vier o Espírito da Verdade “ele vos guiará à plenitude da verdade”, cumpriu-se no dia de Pentecostes e continuou como experiência de todos os que desfrutam da comunhão dos glorificados.

Isso não quer dizer que os Profetas não foram conduzidos à verdade, nem que os Apóstolos não tenham sido também conduzidos até ela, uns pela iluminação, outros pela glorificação; mas que os Apóstolos estava no ponto para serem conduzidos à plenitude da verdade na revelação do dia de Pentecostes.

A glorificação pentecostal seguiu as etapas da purificação e da iluminação dos discípulos de Cristo, como está claramente exposto nas tradições dos Evangelhos sinóticos e joanita. O estado de iluminação é aquele no qual o amor interessado se transforma em amor desinteressado, e esse estado prepara os discípulos para que vejam em Cristo a divindade da Santa Trindade como glória e não como fogo consumidor.

A aquisição do dom do amor desinteressado é a condição prévia para ser conduzido em toda verdade pelo espírito de Cristo. Isso quer dizer que doutrina e espiritualidade estão inseparavelmente unidas nos estágios de purificação e de iluminação. No estágio de glorificação, entretanto, a  doutrina ou o conhecimento sobre Deus são substituídos pela realidade incriada que podemos designar, mas de modo algum expressar.

São Gregório o Teólogo, que apela para sua própria experiência de glorificação quando refuta a afirmação de Eunômio segundo a qual o homem pode conceber a essência de Deus[19], coloca esse ponto claramente em evidência. Eunômio insiste sobre o fato de que Platão afirma ser difícil conceber a Deus, e que exprimir por palavras é impossível. Gregório desaprova vivamente essa opinião e especifica que, se de fato é impossível exprimir a Deus, concebê-lo é ainda mais impossível: “Pois o que pode ser concebido pode também ser declarado pela linguagem, senão adequadamente, ao menos imperfeitamente[20]”. Isso quer dizer que conceber e exprimir a Deus constitui uma impossibilidade não apenas para os não crentes, mas inclusive para os amigos de Deus que tenham atingido, seja a iluminação, seja a glorificação. Deus, mesmo quando visto, permanece um mistério.

Entretanto, aqueles que alcançaram a iluminação e a glorificação se servem de conceitos e de palavras, quando falam de Deus. Com efeito, essas palavras e esses conceitos são inspirados pela experiência da glorificação. Os Padres espirituais utilizam palavras e conceitos para conduzir os demais pela via da purificação até a iluminação, como o fizeram os Profetas, os Apóstolos e o próprio Cristo.

Mas se servir dessas palavras e conceitos como meios para especular filosoficamente sobre Deus, equivale a enganar uns aos outros e caminhar diretamente para o erro que corta toda possibilidade de purificar o coração e alcançar a iluminação. Essa má utilização dos conceitos e das palavras sobre Deus é a fonte de todas as heresias.

A meditação pietista e filosófica a respeito da Bíblia, assim como a crítica bíblica conduzida dentro de tais quadros de referência constituem vias sem saída, que não conduzem às realidades designadas por Cristo, tanto no Novo como no Antigo Testamento. A Bíblia não é a Revelação, ela não é a Palavra de Deus; mas ela trata dessas realidades. A Revelação e a Palavra de Deus são comunicadas aos humanos unicamente pela aquisição, por meio da purificação, do estado de iluminação e, a partir daí, do estado de glorificação ou theosis, que perpetua, de geração em geração, o Pentecostes, como fundamento e pivô da tradição e da sucessão apostólicas.

No Antigo Testamento se encontram as manifestações de Deus aos Profetas, através de seu Anjo-Logos, o qual continuou, em sua Encarnação, a aparecer em glória aos Seus Apóstolos, como no momento de Sua Transfiguração. Ele explicou aos Seus discípulos que em pouco tempo eles já não o veriam, pois ele deveria ir para o Pai, mas que pouco adiante eles O veriam novamente[21]. Essa promessa se cumpriu em primeiro lugar quando das aparições de Cristos aos Seus discípulos no  tempo logo após a Ressurreição, aparições às quais o conjunto do mundo não pôde participar. Em seguida aconteceu Sua desaparição final no instante de Sua Ascensão e de Sua reaparição no dia de Pentecostes por intermédio do Espírito Santo, que, desde então, formou a plenitude de Cristo em cada um dos discípulos e dos fiéis  que vieram e se tornaram reconciliados com Cristo e amigos de Deus[22], depois de haverem ultrapassado o estado de servidores e escravos[23].

A designação paulina da Igreja como Corpo de Cristo é o resultado da nova maneira como a natureza humana de Cristo comunica, no mistério da presença de Deus em seu Anjo-Logos, sua glória aos iluminados e aos glorificados, multiplicando a Si mesmo indivisivelmente nesta glória. Assim, desde o Pentecostes, a natureza humana de Cristo também se multiplicou indivisivelmente, de tal sorte que ela existe em sua totalidade em cada um dos reconciliados, dos amigos de Deus, e isso é exatamente aquilo cuja realização predisse Cristo em são João 14: 23.

Assim é que cada amigo de Deus traz em si o Corpo total de Cristo e, ao mesmo tempo, todos os amigos de Deus são um só Corpo de Cristo, reunidos num só lugar (epi to auto), dividindo um mesmo pão e um mesmo cálice. Esse é o mistério da Igreja estabelecida no dia de Pentecostes e toda a Verdade na qual Cristo havia prometido que o Espírito Santo conduziria Seus amigos. E ainda o Corpo de Cristo está em construção, erguido pela adição dos iluminados e os glorificados de cada geração, até sua culminação última no final dos tempos.

Antes da Morte e Ressurreição de Cristo, mesmo os glorificados, como os patriarcas e os profetas, estavam mortos tanto física como espiritualmente, aguardando sua ressurreição espiritual e física – aquilo que os Padres chamam de primeira e segunda ressurreição. A morte espiritual consiste, seja em não ver a glória de Deus, seja em ver esta mesma glória como um fogo devorador e como as trevas exteriores do inferno. A primeira ressurreição consiste em obter de modo permanente e ininterrupto a visão da criação na glória de Deus em Cristo, como outrora possuíram, desde a morte e ressurreição de Cristo, aqueles que se encontraram na comunhão dos santos do outro lado da morte. Eles realizaram seu casamento com Cristo, e esse casamento será completado pela ressurreição universal e a restauração de tudo.

Do lado de cá da morte, os fieis podem se unir de modo permanente à glória de Cristo. Eles possuem a arrabona tou Pneumatos, o penhor do Espírito Santo em seus corações[24].

Não pode existir nenhum tipo de reconciliação fora do Mistério da Cruz, que, por sua vez, é idêntico à glorificação. Ninguém pode se tornar amigo de Deus se não tomar voluntariamente sua própria cruz e não seguir a Cristo. Ser glorificado implica ser crucificado, o que significa, por outro lado, ter o poder em Deus  de transformar o amor próprio interessado num amor semelhante ao amor de Deus, que não busca seu próprio interesse. Essa reconciliação do  homem com Deus agia nos Patriarcas, os Profetas, nos Apóstolos antes da crucificação, porque eles participavam antecipadamente do Mistério da Cruz. Por essa razão eles se tornaram amigos de Deus e receberam o dom da audácia para discutir com Deus a salvação dos outros.

O Mistério da Cruz é o poder de reconciliação incriado que provém de Deus e que cura as enfermidades daqueles que aceitam fazer essa cura obedecendo, até a morte, a vontade de Deus o Verbo, aquele que deu a Lei a Moisés e as Beatitudes aos Apóstolos.

A crucificação voluntária do Senhor de Glória é a perfeita manifestação na História do poder do Mistério da Cruz, mas não a única. Cada glorificação de uma amigo de Deus, tanto antes como depois da crucificação de Cristo, constitui também uma manifestação do poder desse Mistério

C.      DIAGNÓSTICO E TERAPIA


A tradição patrística foi obrigada a utilizar a linguagem filosófica de seu tempo para poder ser compreendida e para poder combater as distorções heréticas da tradição da Igreja. É claro que isto não quer dizer que a filosofia foi usada para entender os ensinamentos de Cristo.

Definitivamente, os Padres rejeitaram as especulações abstratas a respeito de Deus e de sua relação com a criação, e insistiram numa perspectiva empírica da união com Deus por meio da purificação e da iluminação do coração.

É dentro deste contexto que seus termos praxis (ação, feito) e theoria (visão), devem ser entendidos. Não se trata aí da distinção medieval ocidental entre a vida ativa e a vida contemplativa. Praxis é a purificação do coração e theoria é a visão da glória que o coração recebe tanto pela iluminação interna pela fé como pela glorificação ou theosis. A theosis é a visão da glória de Deus em Cristo. A theosis não é a iluminação, nem simplesmente a participação na Sagrada Eucaristia, como alguns Ortodoxos de hoje pensam.

Essas distinções pressupõem o fato de que é o coração e não o intelecto o centro da espiritualidade e o lugar onde se forma o teólogo, e também do fato de que o coração normalmente não funciona como deveria.

Aqueles em quem o coração apenas bombeia o sangue pensam naturalmente que o cérebro e o sistema nervoso constituem o centro da consciência do homem e da sua capacidade de analisar as suas relações internas e externas com as diferentes realidades, de tal modo que quando eles leem o modo como no Velho e no Novo Testamento o coração é visto e considerado como um centro assim, concluem naturalmente que isto se deve a um entendimento primitivo e pouco acurado.

Todavia, a tradição Ortodoxa está cônscia de que o coração, além de bombear o sangue, constitui, desde que seja adequadamente condicionado, o lugar de comunhão com Deus por intermédio de uma prece incessante, ou seja, da incessante lembrança de Deus. As palavras de Cristo, “Bem-aventurados os puros de coração porque estes verão a Deus[25]”, são tomadas muito a sério porque elas se realizaram em todos aqueles que foram agraciados com a glorificação, tanto antes como depois da Encarnação.

As teologias pastoral e dogmática são para os Padres uma só realidade e seu justo aprendizado se faz quando o intelecto ou razão observa as ações do Espírito Santo no coração e trabalha pela expulsão dos pensamentos, sejam eles bons ou ruins, que não pertencem a ele, e os substituem apenas pelo único pensamento-prece-lembrança de Deus (monologistos euchê, prece monológica)..

Os Padres deram o nome de nous à faculdade da alma que opera dentro do coração quando este é restaurado à sua normalidade, e reservaram os nomes de Logos e dianoia para o intelecto e a razão, ou para aquilo que hoje em dia seria chamado de cérebro e seu sistema nervoso. Outros Padres incluíram a função orante do coração dentro do termo nous, incluindo também neste as funções intelectuais e racionais da alma centradas no cérebro. Para evitar confusões, usaremos os termos “faculdade noética” e “prece noética” para designar a atividade do nous no coração, denominada noera euxé .

A prece do coração pode se tornar contínua, na medida em que a prece abrigada no intelecto ou cérebro passa a operar por decisão daquele que ora, e nos momentos escolhidos por ele. Quem possui o dom da prece incessante no coração ora também em sua mente ou intelecto quando ora com outros e para outros, em sua presença e por sua edificação. Nestes momentos, ele literalmente ora por si próprio com seu intelecto e ao mesmo tempo ora em seu coração com o Espírito, com a língua ou a palavra Pentecostal dada a ele por Deus em Cristo. Uma é a prece do homem para Deus, a outra é a prece do Espírito Santo em Cristo, a Deus, nele. São Paulo considera esta dupla oração como tendo sido concedida à Igreja de Corinto como um fenômeno natural, mas repreende os Coríntios que receberam esse dom por não rezarem também em benefício de outros presentes, que não eram capazes de orar senão com a mente[26].

Paulo inclusive nos diz que quando o fiel alcança a filiação ou a adoção em Cristo, isso significa que “Deus enviou o Espírito de seu Filho ao coração, clamando: Abba, Pai, de modo que você já não é mais escravo, mas filho; e como filho, também é herdeiro de Deus através de Cristo[27]”. Ao falar dessa prece pelo Espírito ou com a língua (glossei), são Paulo não está se referindo à prece que é audível pelos outros. “Pois aquele que ora com a língua não está falando com os homens, mas com Deus. Pois ninguém o entende, uma vez que ele fala mistérios pelo Espírito[28]”. “Se eu for a vocês falando em línguas, que benefício poderei trazer a vocês, se não levar a vocês nem revelação, nem ciência, nem profecia, nem ensinamento[29]”. Isto não deve ser confundido com o milagre das línguas, o fato de que os Apóstolos, no dia de Pentecostes, eram entendidos por todos, cada qual no seu dialeto. São Paulo estava se referindo àqueles que, sem a prece do Espírito Santo em seus corações, não sabem o que está sendo rezado, porque não conseguem ouvir nada.

São Paulo considera esta prece pelo Espírito ou por línguas no coração como um pressuposto do dom da profecia. Ele insiste em que aqueles que foram agraciados por Deus com esta forma de oração estão realmente obrigados a profetizar. “Eu quero que vocês falem em línguas, mas que também profetizem. Porque aquele que profetiza é superior ao que fala por línguas, a menos que ele mesmo as interprete, para a edificação da Igreja[30]”. Esse dom da prece pelo Espírito equivale à chegada de Deus em Cristo no coração, e ao erguimento do véu que obscurecia a leitura de Moisés[31]. Porém, esse dom da profecia já não prognosticava para Paulo a chegada do Anjo do Grande Conselho, mas interpretava a profecia do Velho Testamento como tendo sido realizada no Senhor da Glória, feito Cristo ao nascer como homem da Virgem, e cuja obra foi levada à perfeição por Sua morte, ressurreição, ascensão e retorno no Espírito Santo no Pentecostes. Isso é assim porque aquele que reza por línguas ou pelo Espírito conhece a Cristo ressuscitado pessoalmente, porque este habita em seu coração junto com o Pai[32], por ter ele se tornado o templo de Deus, e não apenas por ter lido a respeito de Cristo na Escritura.

A prece no Espírito – ou “prece noética” – também é chamada de lembrança incessante de Deus. É isto que foi esquecido depois da queda, causando o escurecimento da faculdade noética e o endurecimento do coração.

Atualmente existem dois sistemas de memória conhecidos nos seres vivos: uma memória celular que determina o desenvolvimento e o funcionamento do indivíduo em relação a si mesmo e uma memória cervical que determina as funções e relações do indivíduo consigo mesmo e com o meio em que está inserido. Adicionalmente, existe nos humanos uma memória de Deus, não funcional ou subfuncional, que reside no coração e que quando é restaurada no seu funcionamento resulta na normalização de todas as outras relações ao transformar o egoísmo e o amor próprio baseados no medo, num amor desinteressado e livre de ansiedade[33].

A queda do homem ou a condição do pecado herdado constituiu, seja a falência da faculdade noética em funcionar adequadamente (ou simplesmente funcionar), seja sua confusão com as funções do cérebro e do corpo em geral, seja a escravidão resultante da ansiedade e o meio. Cada indivíduo experimenta a queda de sua própria faculdade noética em vários níveis, na medida em que vai sendo exposto a um meio cheio de disfunções e de não funcionamento das faculdades noéticas. O inverso normalmente ocorre quando o meio é dominado pela iluminação em Cristo, também em graus variados.

O resultado do mau funcionamento das faculdades noéticas são as relações anormais entre Deus e o homem, bem como entre os homens, e a utilização prática tanto de Deus como do homem caído para obter aquilo que cada um entende ser sua segurança e felicidade. O deus ou os deuses que o homem imagina que existem fora da iluminação não passam de projeções psicológicas de sua necessidade de segurança. Devido ao medo e à ansiedade, suas relações com os outros e com Deus são sempre utilitárias.

Apesar disso, todo indivíduo é sustentado pela glória, a luz, o poder, a graça, etc., incriadas, criativas e que o suportam a partir de Deus, mesmo que ele não seja membro do Corpo de Cristo por não ter sido conduzido à iluminação pela purificação da faculdade noética em seu coração. A reação contrária a essa relação direta ou comunhão com Deus vai do endurecimento do coração – isto é, o sopro que apaga a centelha da graça – à experiência da glorificação dos santos. Isso significa que todos os homens são iguais em possuir a faculdade noética, mas não na qualidade ou grau de seu funcionamento.

É importante notar a clara distinção que existe entre a espiritualidade, que está enraizada basicamente na faculdade noética do coração, e a intelectualidade, que está enraizada no cérebro. Assim sendo, teremos as seguintes quatro categorias de pessoas: aquelas com poucas aquisições intelectuais e que chegam ao mais alto nível da perfeição noética, as com as mais altas aquisições intelectuais e que caem aos mais baixos níveis da imperfeição noética, as que conseguem as maiores aquisições intelectuais e também a perfeição noética, e finalmente as que possuem parcas habilidades e aquisições intelectuais e que também têm um coração endurecido.

Esses fatores são a chave para o entendimento da doutrina patrística e bíblica, e da formulação dos dogmas dos Concílios Ecumênicos. Elas não têm nada a ver com a filosofia ou a metafísica e estão mais próximas do campo da psiquiatria. O homem tem um mau funcionamento da faculdade noética que deveria funcionar em seu coração. A cura para esta moléstia, também chamada de “pecado original”, consiste na incessante lembrança de Deus, também chamada de prece perpétua ou iluminação, e que não tem nada a ver com o entendimento platônico ou agostiniano da iluminação por via da intuição ou do conhecimento dos universais.

A correta preparação para a visão de Deus em Sua glória comum a Cristo consiste em se tornar um templo para o Espírito Santo por meio da transformação do egoísmo e do amor utilitário num amor desprendido e não utilitário. Esta transformação ocorre durante o mais alto nível do estado de iluminação chamado theoria, que significa literalmente visão, e que neste caso se refere à visão das razões ou energias de Deus tais como existem na criação, visão adquirida por meio da prece perpétua e da ininterrupta lembrança de Deus. A faculdade noética é libertada de sua escravidão ao intelecto, às paixões, ao meio, e passa a ser influenciada apenas pela lembrança de Deus que funciona simultaneamente às atividades normais da vida cotidiana. Quando a faculdade noética se encontra neste estágio, o homem se transforma no templo de Deus em Cristo pelo Espírito Santo.

São Basílio o Grande escreveu a Gregório o Teólogo que “a moradia de Deus em nós é isto: ter a Deus estabelecido em nosso interior por intermédio da lembrança. Então nos tornamos templos de Deus, quando a continuidade da lembrança não é interrompida pelos assuntos terrenos, nem a faculdade noética é sacudida por sofrimentos inesperados, mas, escapando a todas essas coisas, esta faculdade amiga de Deus se retira para Deus, expulsando as paixões que a tentavam com a incontinência, e se atendo às práticas que conduzem às virtudes”. São Basílio não diz aqui que uma pessoa se torna o templo de Deus deixando de se ocupar com assuntos terrestres (dos problemas materiais) e pensando ininterruptamente apenas a respeito de Deus, mas que a lembrança de Deus prossegue simultaneamente com as ocupações dos assuntos diários e, em especial, quando alguém fica exposto a sofrimentos.

São Gregório o Teólogo, destinatário desta correspondência, observa que “devemos nos lembrar de Deus mais ainda do que caminhamos ou respiramos; numa palavra, não há outra coisa para se fazer (...). Ou, para usarmos as palavras de Moisés[34], quando um homem se deita para dormir, quando ele se levanta, quando caminha pelas estradas, ou seja lá o que faça, ele deve ter isto impresso na lembrança para se purificar[35]”.

São Gregório insiste que filosofar sobre Deus só é permitido àqueles que passaram nas provas “e que alcançaram a theoria, e que foram previamente purificados em suas almas e corpos, ou, no mínimo, que estão sendo purificados[36]”.

Esse estado da theoria possui dois estágios que já mencionamos: a relação da pessoa com seu meio, pela incessante lembrança de Deus no coração, e a visão do meio e de si mesmo saturados tanto com a glória de Deus como com a presença em si da natureza humana de Cristo. A glorificação ou deificação é um dom de Deus que não se busca, mas que Deus concede a Seus amigos de acordo com as necessidades de cada qual e com as necessidades dos outros.

Durante esse último estágio de glória, a prece incessante, a profecia e o conhecimento de Deus (theologia) terminam, pois são substituídos pela visão da glória de Deus em Cristo, quando só permanece o amor.

“Os profetas serão abolidos (...) as línguas cessarão (...) o conhecimento será abolido (...) quando aquilo que é perfeito chegar[37]”.

Mas “o amor não passará jamais[38]”. “Pois vemos agora por meio de um espelho, de um modo obscuro, mas então veremos face a face; presentemente, eu conheço em parte, mas então eu serei  conhecido como fui conhecido[39]”.

São Paulo fala aqui de uma experiência futura que ele já teve: “como fui conhecido”.

Quando, por sua vez, a glorificação em Cristo por meio desse encontro face a face termina, então a prece noética, a profecia e o conhecimento sobre Deus retornam. Assim, embora eles tenham sido abolidos em Paulo durante sua theosis, ele retornou à prece pelo Espírito, recomeçou a profetizar e a conhecer, esperando que se repetisse sua experiência, seja em sua forma intermediária, seja em sua forma final, quando da aparição universal de Cristo em glória.

Antes do Pentecostes, a glorificação era de natureza transitória e não prosseguia depois da morte. Agora, no Corpo de Cristo, a theosis é ainda uma experiência transitória deste lado da morte, mas é uma experiência permanente dos santos de Cristo depois da morte de seus corpos. Agora, no Corpo de Cristo, a glorificação não está limitada ao coração e manifestada apenas no rosto, como acontecia com os profetas, cuja glória foi abolida[40], mas ela se estende no presente, nos glorificados, a todo o corpo. Assim, os próprios corpos dos santos manifestam a glorificação permanente de seus proprietários, porque eles permanecem, de maneira indefectível, impregnados por essa glorificação (theosis) permanente e se tornam relíquias santas.

Durante a glorificação, as funções normais do corpo, como dormir, comer, beber, mesmo a digestão, são suspensas. A outros respeitos a mente e o corpo funcionam normalmente, na medida em que a pessoa vai se aclimatando para ver a si mesma e o seu entorno saturados pela glória de Cristo, que é tanto escuridão, como luz, como nenhuma das duas coisas, porque não existe nada assim criado. Diferentemente da iluminação, a theosis não constitui um conhecimento, porque ela está acima do conhecimento[41]. A primeira glorificação que a pessoa recebe se realiza com uma perda de orientação porque inicialmente ela vê apenas o incriado, mas com a aclimatação ela começa a ver de outro modo seu entorno criado nesta luz, que é o dia do Senhor e que não tem fim. Então, apesar de que a prece incessante e o conhecimento relativo sobre Deus tenha terminado, o conhecimento e a percepção consciente do entorno da pessoa não findam aí.

A justificação apenas pela fé é o ensinamento da Bíblia. Mas essa fé salvadora consiste num estado de iluminação do coração, bastante descrita e às vezes chamada de fé interior. “Porque todos vocês são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Pois vocês foram batizados em Cristo e de Cristo se revestiram[42]”. “Porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho aos seus corações, clamando: Abba, Pai. De tal modo que vocês já não são escravos, mas filhos, e herdeiros através de Cristo[43]”. Filiação, justificação e a prece no Espírito Santo no coração são uma, a mesma e idêntica realidade. Não existe justificação pela lei ou pelas obras, mas apenas em Cristo que dá a lei. A lei não dá a vida, somente Cristo dá a vida. “Pois se uma lei tivesse sido dada, capaz de criar a vida, então também a justiça viria desta lei[44]”. É a fé que se forma naqueles que receberam o dom da prece no Espírito em seus corações, que dá a segurança do amor de Deus em Cristo, e que resulta num amor que não busca o seu próprio interesse[45].

Essa terapia e a transformação da personalidade humana em sua relação com a humanidade torna clara a diferença que existe entre aqueles que estão em processo de cura e os que não estão. A fé em Cristo, sem suportar a cura em Cristo, não é fé alguma. A fé em um médico sem suportar a cura prescrita por ele resulta na mesma contradição de termos.

Para colocarmos essa terapia numa perspectiva apropriada em relação ao mundo como um todo, devemos estabelecer que o Judaísmo profético e seu sucessor, o Cristianismo, se tivessem aparecido neste século, deveriam ser classificados não como religiões, mas como ciências médicas na área da psiquiatria, com um impacto profundo sobre a sociedade, devido ao seu sucesso em curar em graus diversos a doença do funcionamento parcial da personalidade humana. De modo algum eles deveriam ser confundidos com religiões, que, por meio de diversas práticas mágicas e crenças, prometem escapar de um suposto mundo material maléfico, ou de falsas aparências, para um também suposto mundo de segurança e felicidade.

Outra maneira de vermos isto consiste em nos concentrarmos mais profundamente nas implicações do entendimento bíblico e patrístico a respeito do céu e do inferno. O próprio Deus é ao mesmo tempo céu e inferno, recompensa e punição. Todos os seres humanos foram criados para contemplar incessantemente a Deus na glória incriada de Cristo. Se Deus será para cada um o céu ou o inferno, a recompensa ou a punição, isso dependerá da resposta de cada um ao amor de Deus em Cristo e da sua aceitação da prescrição de transformar seu amor egoísta e interesseiro num amor semelhante ao de Deus, que não busca seu próprio benefício.

Isso significa que nenhuma religião ou igreja pode reclamar para si o poder de decidir quem vai para o céu e quem vai para o inferno, uma vez que todos, mais cedo ou mais tarde, verão a glória de Deus em Cristo, seja como luz, seja com um fogo consumidor. A verdadeira vida em Cristo constitui uma preparação por meio da purificação e da iluminação do coração, para que esta visão seja celestial e não infernal. A responsabilidade primária daqueles que atingiram o estado de iluminação é a de iluminar as outras pessoas, de modo a que elas possam viver e trabalhar unidas por meio do amor desinteressado e não utilitário, e ao mesmo tempo se preparar para a experiência eterna que todos terão.

A partir do momento em que a pessoa separa céu e inferno e imagina que essas condições correspondem a lugares diferentes, ou que o inferno é uma perda da visão de Deus, ela automaticamente introduz aspectos mágicos no entendimento bíblico da terapia. Assim sendo, a visão de Deus se torna o céu para todos os que, de um modo ou de outro, adquiriram esse estado. Essa magia pode tomar a forma da predestinação, da salvação pela fé ou pelas boas obras, ou ainda pela participação nos sacramentos e pela absolvição sacerdotal, ou por uma combinação de todas essas coisas. Essas variações da tradição invariavelmente transferem a necessidade de mudança, do homem para Deus, cuja atitude salvadora em relação ao primeiro passa a ser determinada por uma obediência escrava à sua Vontade. Esquece-se de que Deus ama a todas as suas criaturas indiscriminadamente, incluindo o próprio demônio, com o mesmo amor, esquece-se de que Deus foi e sempre será o amigo de todos os homens, e que é o homem, e não Deus, que precisa da reconciliação, isto é, de uma terapia para tratar o mau funcionamento de parte de sua personalidade.


D.      O CORPO DE CRISTO


Uma tese fundamental de são Paulo, assim como de são João, é de que Cristo veio com o Espírito Santo e o Pai depois de Sua Ressurreição e de Sua Ascensão, e que ele retornou para habitar nos fiéis. Levando-se em conta a relação de Lucas e Paulo, o acontecimento pentecostal reportado por aquele tem provavelmente como pano de fundo uma eclesiologia paulina.

Porém, sobre a questão capital do “falar em línguas”, é Lucas quem se torna a chave para Paulo, e não o inverso.

Devemos notar que as epístolas de Paulo dão dirigidas àqueles que já foram iniciados nos mistérios da Igreja. O Evangelho de João é um catecismo pós batismal, destinado àqueles que já possuem o Espírito. O de Lucas, ao contrário, como os de Marcos e Mateus, são catecismos pré batismais, e os Atos se dirigem a um público não iniciado na vida esotérica em Cristo. Porém, como Lucas foi discípulo e companheiro de Paulo, seus escritos supõem e refletem essa vida secreta em Cristo.

Para João, a vinda do Espírito Santo realizou aquilo que Cristo prometeu ao dizer que ele prepararia um lugar onde, quando regressasse, receberia Seus discípulos junto a si, de sorte a que eles pudessem estar onde Ele estivesse[46]. Por intercessão de Cristo, o Pai enviaria a Seus discípulos um outro consolador que eles conheciam porque ele habitava neles e estava neles[47]. Nesse dia, os discípulos saberiam que Cristo está no Pai e que eles estavam em Cristo e Ele neles[48]. Nesse dia, eles veriam a Cristo, porque ele vive e também eles viverão[49]. Cristo aparecerá àquele que O ama[50]. Cristo e o Pai virão a ele e nele farão Sua morada[51]. Quando vier o Espírito, Ele lhes ensinará todas as coisas e lhes recordará tudo o que Ele, Cristo, lhe dissera[52]. Quando vier o Espírito da Verdade, enviado por Cristo da parte do Pai, Ele prestará testemunho de Cristo, e também os discípulos darão testemunho, porque estão com Ele desde o começo[53]. Quando vier o Espírito da Verdade, ele conduzirá os discípulos com toda verdade, pois Ele não falará por si, mas dirá tudo o que foi ouvido e lhes anunciará as coisas por vir. Ele glorificará a Cristo, porque receberá essas coisas de Cristo e as anunciará aos discípulos. Cristo disse isso porque tudo o que pertence ao Pai pertence a Ele, Cristo. Por isso o Espírito da Verdade receberá Dele essas coisas e as anunciará aos discípulos. Pois Cristo repetiu que em pouco tempo os discípulos já não O veriam, mas que em pouco tempo O veriam novamente[54]. Depois disso, vem essa passagem, que culmina os capítulos 14 a 17: “Pai, aqueles que tu me deste, eu quero que eles estejam comigo onde eu estiver, para que eles contemplem a minha glória que tu me deste, pois me amaste antes da criação do mundo[55]”.

Para João, o envio do Espírito Santo por Cristo pressupõe, como condição absoluta, a Ascensão da natureza humana do Salvador. O mesmo encontramos em Lucas, e também em são Paulo.

“Agora eu volto para Aquele que me enviou... para vocês é bom que eu me vá. Pois se eu não for, o Consolador não virá a vocês; mas, se eu e for, eu vo-lo enviarei[56]”.

João não confunde as aparições de Cristo que aconteceram depois da Ressurreição com Seu retorno no Pentecostes, em Seu Espírito, como provam claramente as palavras que ele reportou de Cristo a Maria Madalena: “Não me toque; pois eu ainda não subi para Meu Pai[57]”.

Mas nas aparições que se seguem, Cristo diz a Tomé para colocar a mão em Seu lado. Tomé crê pela visão, mais do que pelo toque: “Porque você me viu, você acreditou[58]”.

O lugar onde habita aquele que ama o Pai em Cristo é a natureza humana de Cristo, Templo natural do Logos e glória natural que Cristo, enquanto Verbo, recebeu do Pai e divide por natureza com o Espírito Santo. Tornar-se membro do Corpo de Cristo equivale a se tornar templo de Deus e, ao mesmo tempo, habitar em Deus como em seu templo. O Pentecostes equivale ao nascimento da Igreja, porque a natureza humana de Cristo está presente e unida pela graça a cada membro de Seu Corpo: não que haja uma parte de Cristo em cada um, mas, ao contrário, Cristo inteiro está presente em cada membro, pela graça. Cristo partiu a fim de poder retornar no Espírito Santo, numa nova presença de Sua natureza humana que, assim como a glória incriada de Deus, se divide indivisível na multidão dos fiéis, de sorte que Cristo está presente e unido pela graça a cada um dos membros de Seu Corpo. Ao mesmo tempo, o Corpo de Cristo permanece sendo um, de tal modo que Seus membros estão uns com os outros, na glória e o reino da Santíssima Trindade.

Segundo os Atos dos Apóstolos, Cristo disse a Seus discípulos antes de Sua Ascensão, que em breve eles seriam batizados no Espírito Santo[59]. No momento do Pentecostes, “línguas de fogo apareceram e se colocaram sobre cada um deles e todos se encheram do Espírito Santo, e se viram falando em outras línguas, segundo o que o Espírito lhes ordenasse anunciar[60]”. Dada a ligação que existe, como dissemos, em João, entre a vinda do Espírito Santo e a nova aparição de Cristo a seus discípulos, e levando-se em conta Suas aparições efetivas ocorridas depois do Pentecostes, como, por exemplo, a Estevão[61] e a Paulo[62], não é sem cabimento pensar – e é até provável – que a promessa do capítulo um dos Atos[63] se realizou no Pentecostes no capítulo dois[64]. Durante a Ascensão de Cristo, dois homens vestidos de branco apareceram aos Apóstolos e lhes disseram que Cristo voltaria “da mesma maneira como eles o haviam visto no céu[65]”.

Seja como for, o fato de falar em outras línguas não deve ser confundido com o ato de “anunciar” (apophtheggesthai). O “anúncio” de que se trata em Atos[66] significa a profecia, como se deduz claramente de todo o discurso de são Pedro[67]. Cada pessoa recebia primeiro o dom da língua no coração e depois era inspirada em seu intelecto para compreender os profetas e Cristo, a fim de profetizar. Essas distinções são claras em Paulo, e seria inverossímil que não fossem familiares a Lucas. Uma vez recebido o dom da língua, o Espírito poderia eventualmente, embora não necessariamente, criar situações semelhantes àquelas dos Atos[68].

Em todo caso, o batismo do Espírito é idêntico ao dom das línguas e se distingue nitidamente do batismo da água. Paulo foi primeiro glorificado ao ver Cristo em glória, e somente depois foi batizado[69]. Ao receber o dom das línguas não fica claro que ele tinha. Os doze discípulos de Apolo que haviam recebido o batismo de arrependimento de João, foram “batizados em nome do Senhor Jesus, e quando Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo desceu sobre eles e eles falaram em línguas e profetizaram[70]”. O centurião Cornélio e seus companheiros foram primeiro batizados no Espírito, recebendo o dom das línguas na ou pela glorificação, e depois batizados na água quando Pedro constatou que já não poderia se opor a isso. “Enquanto Pedro ainda pronunciava essas palavras, o Espírito Santo desceu sobre todos eles que escutaram a palavra. Todos os fiéis circuncisos que haviam vindo com Pedro ficaram espantados de que o dom do Espírito Santo estivesse também partilhado com os pagãos, pois os ouviam falar em línguas e glorificar a Deus. Então Pedro disse: Poderíamos recusar a águia do batismo a quem recebeu o Espírito Santo tanto quanto nós?[71]”. Pedro justificou sua ação lembrando o que Cristo havia dito antes de Sua Ascensão a propósito da batismo no Espírito Santo[72], e concluiu: “Se Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós (...) quem sou eu, e que poder tenho eu para me opor a Deus?[73]”. O termo grego que aqui se traduz por “mesmo” é isen, que significa também “igual”. Portanto, o dom recebido nessa passagem não é apenas o mesmo que o do Pentecostes, mas lhe é igual. Essa noção de igualdade é o ponto central das disputas que aconteceram em Corinto, onde muitos fiéis que possuíam apenas o dom das línguas se consideravam iguais aos outros, sem compreender que isso só ocorreria se as “línguas” fossem precedidas ou seguidas da glorificação, na medida em que, durante a visão de Deus, todos os carismas são abolidos, com exceção do amor.

Esse batismo no Espírito que desabrocha no dom das línguas, e que normalmente é acompanhado do carisma da profecia, está evidentemente na origem da crisma, esse mistério que nos torna membros do Corpo de Cristo e templo de Deus.

Parece que, para são Paulo, seria preciso no mínimo o dom das línguas para ser membro do Corpo de Cristo. É ele que se encontra no fundamento, não apenas da profecia, mas de todos os carismas. Abaixo dos que falavam em línguas estavam os “homens do povo” (idiotai) e os “não fiéis” (apistoi). Esses não eram nem membros do Corpo de Cristo, nem providos de carismas.

Os “homens do povo” tinham seu lugar na assembleia, e diziam amém no momento requerido durante as orações[74]. O fato de que diziam amém nas preces de ação de graças significa que eles provavelmente haviam recebido o batismo da água e aguardavam a vida do Espírito Santo em seu coração, ou seja, o dom das línguas; é possível que tomassem parte na comunhão eucarística, como os Apóstolos antes do Pentecostes. Eram, com certeza, leigos batizados da comunidade apostólica.

Os “não fiéis”, aqueles que não tinham a fé, eram provavelmente catecúmenos de origem pagã, a quem era impossível tratar como eram tratados os judeus. Estes eram sempre considerados fiéis, desde que não houvessem rejeitado completamente o Senhor de Glória encarnado.

Aqueles que possuíam os carismas de que fala a primeira epístola aos Coríntios – carismas que compreendem os diaconai (ministérios) e os energêmata (operações) enumerados nos versículos de 4 a 10, como mostram os versículos de 28 a 31 do mesmo capítulo, e os dons citados na última passagem – eram todos membros do clero, classificados segundo seus dons espirituais e não segundo seu papel litúrgico estrito ou sua ordenação. Foi Deus que os chamou diretamente e lhes deu o dom da prece em língua, depois de terem eles sido convenientemente preparados por um pai espiritual. Paulo disse que os Coríntios podiam ter muitos mestres em Cristo, mas não muitos pais. “Fui eu quem os gerou em Jesus Cristo pelo Evangelho[75]”. No entanto, Paulo dá graças a Deus por não ter batizado nenhum deles, com raras exceções[76].

Isso significa que Paulo os fez nascer para o reinos dos carismas, dos quais a palavra em língua ou a prece em língua era o primeiro fundamento. Em outros termos, os carismas são o produto do batismo do Espírito Santo e o sinal do pertencimento ao Corpo de Cristo. “Fomos todos, com efeito, batizados no mesmo Espírito[77]”. Trata-se claramente aqui do batismo do Espírito. Toda a sequência mostra que o Corpo de Cristo não compreende senão aqueles que receberam este batismo.

Assim como nos Atos, o fato de falar em línguas é, para Paulo, um signo fundamental do batismo no Espírito. Mas em duas passagens[78] os “gêneros de línguas” parecem à primeira vista separadas dos carismas mais elevados, o que dá a impressão de que a Igreja poderia passar sem elas. Porém, a afirmação de que “nem todos falam em línguas[79]” não quer dizer que aqueles que possuem carismas mais elevados não o fazem, mas sim que os “homens do povo” e os “não fiéis” não falam em línguas, como fica claro em I Coríntios 14: 16, 23, 24. Quando Paulo enumera  aqueles que Deus estabeleceu na Igreja, ele começa pelos Apóstolos, que ele coloca em primeiro lugar, e acaba pelos “gêneros de línguas”, que ele deixa por último[80]. Os “homens do povo” (idiotai) não são contados, nem aqui nem na explicação da organização da assembleia em I Coríntios 14: 26 e ss. A razão disto é que eles ainda não possuíam o dom do Espírito Santo clamando incessantemente neles em não foram assim colocados por Deus no Corpo de Cristo.

Fica claro, a partir do que são Paulo diz de si mesmo, que os carismas mais elevados implicam os inferiores, mas não o inverso. “Eu dou graças a Deus por falar em línguas mais do que todos vocês; mas, na igreja, eu prefiro dizer cinco palavras com a minha inteligência, a fim de instruir também os outros, do que dez mil palavras em línguas[81]”. Isso não quer dizer que são Paulo, quando estava na igreja, não orasse em língua, ou seja, no Espírito; mas que na igreja ele se considerava igualmente obrigado a orar também com sua inteligência para a edificação dos demais. “Eu rezarei pelo espírito, mas também rezarei com a inteligência[82]”.

Por “gêneros de línguas”, são Paulo entende evidentemente a oração, a recitação dos salmos e o canto dos hinos e das odes espirituais[83]. Assim, alguns possuem os “gêneros de línguas” e outros possuem ademais a “interpretação das línguas[84]”. “Aspirem aos dons espirituais, mas sobretudo ao da profecia(...) eu gostaria de falar a todos em línguas, mas mais ainda que vocês profetizassem, pois aquele que profetiza é maior do que o que fala em línguas, a menos que este último interprete, para que a Igreja receba dele a edificação[85]”. Tal como nos Atos, a existência da profecia resulta aqui do dom da língua, mas nem sempre este conduz à profecia. Em parte alguma se diz que Cornélio e seus companheiros profetizavam, embora eles falassem em língua, porque haviam sido glorificados. Porém, o falar em língua poderia desabrochar na interpretação, mais do que na profecia, e esses dois carismas são iguais.

Entretanto, apesar dessa igualdade, os profetas têm maior importância. Além de que seu carisma se encontra no último lugar da lista, os que falavam ou oravam simplesmente em línguas se viam, para Paulo, praticamente reduzidos, na Igreja, a um silêncio mais apropriado aos “homens do povo”. Os que apenas falavam em línguas deviam guardar silêncio e ter intérpretes como porta-vozes, que falassem por dois ou três dentre eles a cada turno. “Se não houver intérprete, que ele se cale na Igreja, e somente fale a si mesmo e a Deus[86]”. Em outros termos, ele deve continuar a orar em língua inaudivelmente, e deixar que os outros dirijam o culto de todo o corpo dos fiéis e dispensar a instrução para o benefício que possam obter de sua inteligência, a qual, nesse caso, transmite seus pensamentos pelas palavras da boca e da língua criadas.

O grupo desses fiéis cuja formação espiritual não havia ultrapassado o carisma da prece em línguas, também chamada de “prece pelo Espírito”, parece ter sido a principal fonte das desordens da Igreja de Corinto. Eles deviam formar uma maioria, que impusera, de modo democrático, a prática da prece inaudível em língua como prece coletiva na igreja, a fim de demonstrar sua igualdade em relação a todos. Se eles não interpretavam nem profetizavam era, provavelmente, em função de sua incultura, que os tornava incapazes de expor sua experiência – autêntica, é verdade – de modo coerente, conciso e ordenado. Tratava-se, sem dúvida, de pagãos convertidos na maior parte dos casos, que não estavam nem a par dos costumes da sinagoga, nem familiarizados com o mundo do Antigo Testamento. O mais alto grau que eles poderiam atingir era, para muitos deles, a interpretação ou o ensino da oração aos outros. Dentre eles, naturalmente, muitos eram mulheres: e isso deu ocasião a Paulo para aplicar um princípio já testado da velha sabedoria rabínica. O carisma da interpretação era evidentemente necessário para manter esse grupo silencioso na Igreja. O destaque para “se não houver intérprete” parece indicar que estes só seriam designados quando esse grupo tivesse sido conduzido à obediência.

A sensível irritação de são Paulo provém de que um grupo de carismáticos coríntios teria, sem dúvida, convencido os outros fiéis ricos nessa graça, a conduzir o culto coletivo sem dar expressão sonora à prece que o Espírito Santo dizia em seus corações. Para Paulo, essa prece era, em si, uma coisa boa. “É verdade que você presta excelentes ações de graças, mas o outro não fica edificado por isso[87]”. “Se você abençoa pelo Espírito, como poderá o homem do povo responder “Amém” à sua ação de graças, pois ele não sabe o que você disse?[88]”. Fica claro que “orar em língua” e “orar pelo Espírito” eram termos intercambiáveis.

São Paulo trata dos diferentes tipos de sons que existem no mundo, tanto aqueles das coisas sem vida, como flautas, harpas e trompetes, quanto os produzidos pelo homem. Que Paulo está falando aqui de sons de fato, em suas ressonâncias, e não de sons confusos e incompreensíveis, deduz-se claramente da expressão adelos phoné que ele emprega em I Coríntios 14: 8, e que significa “som oculto” ou “som não manifestado”. No versículo 9 do mesmo capítulo 14, Paulo fala da impossibilidade de compreender um discurso que não é transmitido por palavras formadas pela língua. Ele prossegue dizendo: “Tais são, e outros existem ainda, os diversos tipos de sons que encontramos no mundo, e nenhum é mudo. Assim, se eu não conheço o valor do som, eu serei um bárbaro para aquele que fala, e ele o será para mim[89]”.

O próprio fato de que alguns Coríntios falavam em línguas, mas sem explicar nem profetizar, prova de modo definitivo que essa palavra em línguas não constituía o anúncio (apophtheggesthai) de que se trata em Atos 2: 1 e ss. Por outro lado, Paulo não fornece a menor indicação que permita supor que os que haviam recebido o dom das línguas sentissem dificuldades em compreender uns aos outros. Parece que somente os “homens do povo” e os “não fiéis” não podiam participar daquilo que se passava então. Entretanto, quando todo o grupo de carismáticos se pôs a profetizar, então, tanto os “homens do povo” como os “não fiéis” viram que eles mesmos e os segredos de seus corações eram revelados por um exame atento[90]. Trata-se do diagnóstico de que falamos acima. Eles adquiriram a certeza de que os profetas de fato possuíam a Deus em si mesmos. Aa confiança que eles passaram a depositar neles e sua submissão à terapia desses pais espirituais os conduziu à adoção no Espírito e à união com o Corpo de Cristo, ou seja, o dom das línguas.

Assim, um diagnóstico da doença espiritual de que sofre o coração, efetuada pelos terapeutas que possuem o discernimento dos espíritos[91] constitui, para cada um, no ponto de partida indispensável para receber a terapia da prece do Espírito Santo no coração, a única que permite compreender as coisas que se referem a Cristo e a Seu Corpo, a Igreja. Eis porque “as línguas são um sinal, não para aqueles que têm a fé, mas para os que não a têm, enquanto que a profecia é um signo, não para os que não têm fé, mas para os que a têm[92]”. Dito de outro modo, as línguas não são um sinal para os que possuem o dom da fé interior no coração, pois estes têm, eles próprios, o dom das línguas[93], mas para aqueles que são desprovidos dela. Ao contrário, a profecia, é um signo não para aqueles que não possuem essa fé, porque eles também não possuem o dom das línguas que os tornaria capazes de profetizar e de compreender a profecia, mas é um signo para os que têm fé, por que estes, possuindo o dom das línguas, compreendem a profecia. É preciso assim começar pela fé exterior, aceitando a autoridade ou a competência do terapeuta. Quanto a permanecer no estado daquele que ora e recita os salmos de cor sem progredir ao menos até a interpretação que edifica os demais, isso equivale a sufocar todo crescimento espiritual, e essa atitude não pode conduzir ao amor que não busca seu próprio interesse. “É por isso que existem muitos dentre vocês que são fracos e doentes e um grande número que estão adormecidos[94]”.

O fato de falar em línguas não é um fenômeno específico de Corinto. São Paulo fala aos romanos do culto no intelecto (logiken latreian) e da transformação que provém da renovação do intelecto[95]. Como é possível essa renovação? Pela libertação do intelecto que se liberta da lei que reside em nossos membros, a qual luta contra aquela que o intelecto aceita e nos retém cativos da lei do pecado[96]. “É assim que eu me torno, pelo intelecto, escravo da lei de Deus, e pela carne escravo da lei do pecado. Não há assim condenação alguma para aqueles que estão em Jesus Cristo, porque a lei do Espírito de vida em jesus Cristo me libertou da lei do pecado e da morte[97]”. “Mas se Cristo está em vocês, o corpo, é verdade, está morto por causa do pecado, mas o Espírito está vivo por causa da justiça[98]”. “Pois todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus, pois vocês não receberam um espírito de servidão para ainda viverem no temor: mas receberam um Espírito de adoção, no qual podemos clamar: Abba! Pai! O próprio Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus[99]”. Em outros termos, cada um sabe se foi justificado e adotado em Cristo pelo Espírito, quando escuta a prece do Espírito falar incessantemente em seu coração.

Que essa lei do Espírito de vida em Cristo constitui exatamente o dom das línguas mencionado na primeira epístola aos Coríntios e nos Atos, fica claro no principal ponto da exposição paulina: “Pois nós não sabemos o que pedir em nossas preces, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos silenciosos (stenagmois alaletois). Mas Aquele que sonda os corações conhece qual é o pensamento do Espírito, pois é segundo Deus que ele intercede em favor dos santos[100]”. Dito de outra maneira, ser membro do Corpo de Cristo é possuir esse dom das línguas. “Se alguém não possui o Espírito de Cristo, este não Lhe pertence[101]”. Vemos assim porque são João chama o Espírito Santo de “outro paráclito[102]”, palavra que significa literalmente “advogado” ou “intercessor”.

Uma das passagens mais marcantes sobre os gêneros de línguas (gene glosson) é talvez este: “Mas estejam cheios do Espírito, falando em vocês mesmos[103] nos salmos, nos hinos e nas odes espirituais, cantando e salmodiando em seus corações ao Senhor, rendendo continuamente graças a Deus Pai por todas as coisas, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo[104]”. Esta passagem representa, sem dúvida, uma ampliação da frase: “Eu salmodiarei pelo Espírito[105]”, recitação que devemos distinguir de outra: “Eu salmodiarei com o intelecto[106]”. Enfim, esse texto reflete claramente o que Paulo nos diz de si mesmo[107] e testemunha ainda do caráter incessante dos gêneros de línguas.

À luz de tudo o que lemos, ficam claras as palavras da epístola aos Tessalonicenses: “Alegrem-se, orem sem cessar, rendam graças a todo instante. Pois essa é a vontade de Deus para vocês em Jesus Cristo. Não apaguem o Espírito, não desdenhem dos profetas, mas experimentem tudo, retenham o que é bom e abstenham-se de toda espécie de mal[108]”. Este trecho resume tudo o que vimos até aqui.

Portanto, é a lei do Espírito de vida em Cristo que, longe de se opor à Torah criada, torna possível sua realização. Entendemos assim porque os Padres não restringiram o Antigo Testamento à Lei, nem conceberam o Novo simplesmente como a graça. Para Paulo, a fé não se reduz à aceitação dos dogmas, mas inclui também o dom das línguas no coração. As mesmas noções estão subentendidas, sem dúvida, na epístola de Paulo aos Gálatas.

“A lei foi nosso pedagogo para nos conduzir a Cristo quando éramos crianças, a fim de que fôssemos justificados pela fé. Depois que chegou a fé, já não estamos sob a tutela de um pedagogo como estão as crianças[109]”. Paulo não opõe aqui, como sendo momentos históricos, o Velho e o Novo Testamentos, em termos de uma lei supostamente abolida pela graça depois da vinda de Cristo. Não, ele fala de coisas contemporâneas, e distingue os catecúmenos, que estão sob a pedagogia da lei, daqueles que receberam o batismo no Espírito. Os Gálatas, enquanto crianças espirituais, estavam sob a pedagogia da Torah; mas agira que receberam o batismo do Espírito, já não são mais “homens do povo” nem “não fiéis”, por terem em seus corações da lei incriada do Espírito Santo de Cristo. A fé não é aqui uma simples crença ou confiança em Cristo, mas fé interior, que se manifesta como dom de línguas. “Pois vocês são todos filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, porque todos os que foram batizados em Cristo, de Cristo se revestiram (...) E porque são filhos, Deus enviou ao seus corações o Espírito de Seu Filho, que clama: Abba, Pai, de tal modo que vocês já não são escravos, mas filhos; e se são filhos, são também herdeiros por Cristo[110]”. Justificação pela fé, dom das línguas, batismo em Cristo, reconciliação e adoção: diferentes palavras para um só e mesma realidade.

É no interior deste reino de vida em Cristo que não existem mais “Grego ou Judeu, escravo ou homem livre, homem ou mulher, pois vocês estarão todos em Jesus Cristo[111]”. Ao atingir o nível da prece em línguas e o da profecia, todos são um em Cristo. É por isso que lemos: “todo home que ora ou que profetiza” e “toda mulher que ora ou que profetiza” em I Coríntios 11: 4-5.

Entretanto, os homens devem orar com a cabeça descoberta e as mulheres com a cabeça coberta, porque “a cabeça do homem é Cristo, mas a da mulher é o homem, e a de Cristo é Deus[112]”. Dado que se profetiza para a edificação dos demais[113] e da Igreja[114], é de se esperar que as mulheres profetizem dentro da igreja também. “Pois vocês todos podem profetizar sucessivamente, a fim de que todos sejam instruídos e que todos sejam reconfortados[115]”. Porém Paulo proíbe às mulheres tomar a palavra na Igreja. Por outro lado, quando ele diz que as mulheres devem profetizar com a cabeça coberta, ele parece se referir às suas funções durante as assembleias eclesiais.

A igualdade entre homens e mulheres na profecia realiza estritamente a predição do Velho Testamento, reportado por Pedro em seu discurso do dia de Pentecostes[116].

O profetas mencionados em Efésios 2: 20 evidentemente não são os do Antigo testamento, mas os profetas da Igreja, como em Efésios 3: 5. Cristo “não foi manifestado aos filhos dos homens para outras gerações, do mesmo modo como foi revelado agora pelo Espírito aos Seus santos apóstolos e profetas”. Essas palavras lembram claramente, ao que parece, que os profetas que ocupavam o segundo posto na Igreja, logo depois dos Apóstolos[117], deviam seu lugar ao fato de que Cristo se revelara a eles em glória, assim como se revelou aos Apóstolos. Dito de outro modo, não era apenas em virtude do dom das línguas que eles profetizavam, mas porque, além disso, haviam sido glorificados em Cristo pelo Espírito. Expondo a ideia de que os membros do Corpo de Cristo não são todos um único e mesmo membro, Paulo conclui com essas palavras: “Se um membro é glorificado, todos os membros se regozijam com ele, pois vocês são o Corpo de Cristo e Seus membros, cada qual à sua maneira. E Deus estabeleceu na Igreja primeiramente os apóstolos, depois os profetas e depois os doutores...[118]”. À luz da passagem da epístola aos Efésios 3: 5, isso significa que os profetas eram chamados do mesmo modo como os Apóstolos.

É evidentemente nesse contexto que se deve entender os versículos a seguir: “Assim, portanto, vocês não são mais estrangeiros, nem gente de fora; mas são concidadãos dos santos, pessoas da cada de Deus. Vocês foram edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a pedra angular[119]”.

Diante de nossos olhos se desenha assim uma escala de perfeição, que culmina no amor que não busca seu próprio interesse[120], o único que não perece jamais[121], no tempo em que todos os carismas serão abolidos pela vinda do perfeito, ou seja, da glorificação, ou visão de Deus no encontro face a face com Cristo em Glória[122]. Porém, quando esse tempo houver passado, o amor subsistirá com a fé, a esperança e os carismas que os acompanham.

Aquilo que hoje em dia chamamos de “eclesiologia eucarística” é um fenômeno de estrutura que nasceu no contexto da realidade do Corpo de Cristo tal como Paulo a encara. No coração dessa estrutura se encontra o diagnóstico da enfermidade do coração e seu tratamento por meio dos carismas dos quais a prece do Espírito Santo no coração era a condição necessária, a glorificação e o fundamento último. Enquanto a comunidade local foi o Corpo de Cristo, no sentido que atribui são Paulo, a “eclesiologia eucarística” não era outra coisa que a expressão estrutural normal e natural. Porém, esse coração da assembleia local se enfraqueceu gradualmente e, por conseguinte, a estrutura da Igreja evoluiu, segundo a vontade diretora daqueles que, geração após geração, transmitiram a tradição da prece do Espírito Santo no coração, pois é ela que constitui o coração da tradição dos Apóstolos e da sucessão apostólica.

Supõe-se que o clero é eleito dentre os fiéis, ou seja, que seus membros são extraídos de entre pessoas em estado de glorificação ou de iluminação. A eleição constitui um reconhecimento da qualidade de mestre espiritual atingido pelo fiel. O processo histórico que tornou possível que certos patriarcas e metropolitas tenham ordenado bispos que não haviam alcançado a experiência espiritual indicada pelos dogmas, e cujos mistérios eles não eram capazes de expressar, este processo foi descrito por são Simeão o Novo Teólogo († 1042), que é reconhecido como um dos grandes entre os Padres. Isso significa que sua análise histórica faz parte integrante da consciência da Igreja, tal como ela entende a si mesma.

Numa obra consagrada à confissão e outrora atribuída a são João Damasceno, são Simeão explica de que modo as pessoas que, num período anterior, eram leigos na Igreja, começaram a se fazer ordenar ao episcopado, simulando uma iluminação que não possuíam. Essas pessoas não iluminadas foram a causa da aparição das heresias no interior da Igreja. Isso não quer dizer que se deixa de ser ortodoxo por introduzir novos dogmas, mas por que não se é iluminado. Incapazes de encontrar candidatos iluminados, ou preferindo os indignos, alguns patriarcas e metropolitas ordenaram bispos que não possuíam o estado de iluminação. Em lugar desse estado, ele “se contentaram com exigir deles a recitação escrita do Credo da fé e se deram por satisfeitos que eles nem zelassem pelo bem, nem tivessem querelas com ninguém pelo mal, mas que preservassem dentro desses limites a paz da Igreja, coisa que foi, no entanto, pior do que toda raiva e uma desordem imensa[123]”.

Para quem é capaz de ver, em são Simeão revela o conflito secular que opõe, de um lado, a tradição apostólica do diagnóstico e da terapia e, de outro, aqueles que pretenderam reduzir a salvação à confiança e à fé nos dogmas, aos méritos das boas obras e à moral.

Quaisquer que tenham sido as razões reais da ascensão do monaquismo, foi a prece do Espírito Santo no coração que se tornou seu coração e sua alma. Desde o começo de sua Vida de Antônio, santo Atanásio nos ensina que “ele estava constantemente em oração, sabendo que o homem deve orar secretamente sem cessar[124]”. São João Cassiano nos ensina que a prece permanente é a prática usual de “todo monge que progride para alcançar a lembrança perpétua de Deus[125]”.

Essa tradição estava ainda bastante viva nos reinos merovíngios. Entretanto, o episcopado foi, nessa época, transformado numa corrente de transmissão administrativa a serviço dos reis francos. Assim embora Gregório de Tours tenha sido um grande admirador de Cassiano, de Basílio o Grande e de seus descendentes espirituais da Gália, ele não compreendeu a verdadeira natureza da ocupação à qual eles se dedicavam. Ao descrever a vida de Pátroclo o Recluso, Gregório escreveu que “seu regime se compunha de pão misturado com água e levemente salgado. Durante o sono, seus olhos não se fechavam. Ele orava sem cessar, ou, se se detinha por alguns momentos, passava o tempo em leituras ou com as escrituras[126]”. Gregório pensava que, para orar sem cessar, era preciso de algum modo estar sempre desperto. Da mesma forma, como ele sabia que Pátroclo ocupava algum tempo a ler e escrever, Gregório concluiu que ele devia parar de rezar nesses momentos. Sua afirmação de que os olhos de Pátroclo não se fechavam durante o sono é perfeitamente inverossímil. Somente no estado de glorificação Pátroclo não dormia. Mas então ele tampouco comia pão ou bebia água, e, mais notável ainda, parava de orar quando se encontrava nesse estado (“as línguas cessam”, diz Paulo em I Coríntios 13: 8). Fora desses momentos em que se encontrava em estado de glória, ele o0rava sem cessar, dormindo ou acordado, e também quando estava a ler ou a escrever.

E.       PROFECIA E TEOLOGIA


As observações que fizemos até agora nos inclinam fortemente a pensar que aquilo que em Paulo se chama “profetizar” e “tornar-se profeta” é análogo, senão idêntico, ao que encontramos na tradição patrística sob o nome de “teologia” e “teólogo”. A desaparição dos termos “profeta” e “profecia” se deve talvez à fiação do cânon do Novo Testamento, à predominância dos termos padre e bispo, e ao fato de que a experiência da glorificação se tornou mais rara, diminuindo o número de profetas e tornando igualmente mais raro o dom das línguas. Entretanto, a realidade dos dons das línguas e da glorificação não desapareceu; eles foram preservados em especial no seio do movimento monástico, que se tornou o centro principal dessa tradição e forneceu à Igreja seus metropolitas, seus arcebispos e, finalmente, até seus bispos.

A primeira epístola aos Coríntios, em seus capítulos de doze a catorze – e sobretudo 14: 26 ss – nos introduz na escola teológica da Igreja dos Apóstolos. Foi ela que formou os Padres da Igreja. Lembremo-nos do principal argumento que são Gregório o Teólogo opõe aos adeptos de Eunomo: que teologizar ou filosofar sobre Deus não é permitido senão aos que atingiram a theoria, com a qual ele entende a prece do Espírito Santo no coração, ou seja, a lembrança de Deus, interrompida de tempos em tempos pela glorificação. Assim profetizar ou teologizar consiste em interpretar a Escritura sob a direção do dom das línguas, e se torna profeta ou teólogo aquele que atinge a glorificação.

No entanto, essa teologia é pura terapia e signo de santidade. Elevar-se em direção à glorificação com as asas da prece noética, tal é o tratamento, e alcançar a glorificação dá o gosto pela saúde e pela perfeição que começam a aparecer. Ao mesmo tempo, essa glorificação é a revelação de toda a verdade pelo Espírito Santo.

De acordo com os Padres, os profetas também tiveram a prece perpétua, seu caminho normal para a glorificação. No entanto, sua experiência não implicava nem participação no Corpo de Cristo, nem vitória duradoura sobre a morte. O dom das línguas do Pentecostes ainda não acontecera. Assim é que o segundo dom inclui o primeiro, mas o inverso não é verdadeiro. Por conseguinte, aquele que possui o dom das línguas conhece o espírito daquele que não possui mais do que o dom da prece. Quem tem o dom das línguas ou a prece noética, mas sem a glorificação, pode progredir na inteligência do espírito dos Profetas. Mas quem não possui o dom das línguas é incapaz disso. “Nós recebemos o Espírito que provém de Deus, a fim de que conheçamos as coisas que Deus nos concedeu gratuitamente[127]”.

É nesse contexto que no interior das assembleias cada Coríntio carismático – dotado do dom das línguas – expunha, seja um salmo, seja um ponto de instrução, uma experiência de revelação ou ainda algo que tinha a dizer, a interpretar ou a ensinar sobre o dom das línguas[128]. “Quanto aos profetas, que falem dois ou três, e que os demais julguem; e se a algum outro, que esteja sentado, [um significado mais exato] vier a ser revelado, que o primeiro [o que falava] se cale. Pois todos vocês podem profetizar sucessivamente, a fim de que sejam todos instruídos e exortados os espíritos dos profetas estão submetidos aos profetas; pois Deus não é um Deus de desordem, mas de paz[129]”. Dito de outra forma, os profetas sabem como se deve profetizar, de modo que toda instrução e toda troca entre os que profetizam (mas que ainda não são profetas propriamente falando) deve ser submetidas ao seu controle. São os glorificados em Cristo que julgam todos os outros e não são julgados por ninguém. “Mas aquele que possui o Espírito, certamente, julga sobre tudo, e ele próprio não é julgado por ninguém. Pois quem conhece o pensamento do Senhor, para instruí-lo? Ora, nós possuímos o pensamento de Cristo[130]”. Em outros termos, o pensamento ou a inteligência dos Apóstolos e dos profetas se torna igual à de Cristo por causa da glorificação; daí resulta que eles já não vivem, porque foram crucificados e morreram para o pecado, e é Cristo que vive neles[131]. Estes são os verdadeiros “amigos de Deus”.

Então, o que está descrito nessa passagem de I Coríntios 14: 26-33? Uma mudança que se refere à experiência que cada um teve do Espírito Santo, e que aconteceu sob a direção dos profetas, para a edificação e o crescimento na inteligência e na perfeição. É a forma apostólica da confissão comunitária, conforme aparece na leitura de I Coríntios 14: 24, onde a profecia conduz ao exame preciso dos idiotai e apistoi e à manifestação das coisas ocultas em seus corações. É quase certo que a profecia de que fala Paulo e a teologia tal como os Padres a compreendem são a mesma coisa. Tanto o profeta como o teólogo se formam pela purificação, a iluminação e a glorificação do coração, no qual a operação do Espírito satura e sobrepuja a inteligência e as paixões, transformando assim o amor próprio interessado em amor desinteressado pelo próximo.

Traço notável, o Cristo que os carismáticos experimentam no interior de si mesmos, e que eles veem de tempos em tempos pelo Espírito na glória de Deus é idêntico àquele que eles encontravam no Antigo Testamento na glorificação dos profetas. São Paulo, numa observação feita de passagem, revela toda a estrutura fundamental do culto e da fé das comunidades apostólicas. “Pois, se eles houvessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor de Glória[132]”. O próprio modo como essa sentença aparece, jogada no meio do desenvolvimento de um raciocínio, e seu caráter único nas cartas de Paulo testemunham que seus leitores a consideravam evidente. Não temos dúvidas sobre o sentido da expressão, porque um pouco adiante Paulo explica que foi Cristo quem conduziu os Hebreus para fora do Egito e os sustentou durante sua estada no deserto, “pois eles bebiam em um rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo[133]”. Os Gálatas receberam Paulo “como um Anjo de Deus, como Jesus Cristo[134]” – alusão provável à hospitalidade oferecida por Abrahão ao Anjo de Glória. Paulo não via absolutamente a Cristo no Antigo Testamento como um Messias qualquer terrestre ou celeste, mas como o próprio Senhor de Glória, que se tornaria Messias por Seu nascimento da Virgem.

O significado preciso do nome de “profeta” em são Paulo é, portanto, o seguinte: aquele que viu o mesmo Senhor de Glória que os profetas do Velho Testamento. É nisso que constitui a chave da experiência do dom da profecia e o centro do culto e do estudo da assembleia paulina dos carismáticos. A Escritura que eles utilizavam era o Antigo Testamento, no qual, pelo testemunho de sua própria experiência de línguas, eles viam Cristo em toda parte nas vidas dos profetas, como Senhor e Anjo de Glória. Se eles houvessem lido o Antigo Testamento a partir dos pressupostos de Agostinho e de seus herdeiros em teologia, não teriam existido arianos, nem eunominianos, nem os Concílios Ecumênicos da História, não porque não teriam existido heréticos, mas porque não teriam existido arianos, nem eunominianos, nem ortodoxos. Fazer teologia a partir de um monoteísmo abstrato que se imagina existir no Velho Testamento, ou sobre uma ideia filosófica de Deus, equivale a praticar a astronomia com a ajuda da imaginação ao invés de utilizar telescópios sob a orientação de especialistas. A esse respeito, arianos e eunominianos pertenciam à tradição patrística e bíblica da teologia empírica, enquanto que Agostinho divaga nas esferas do misticismo neoplatônico e do monoteísmo abstrato.

O que nos mostra claramente que são Paulo acredita que Deus, em Cristo, revelou por Seu Espírito toda a verdade na experiência da glorificação, é aquilo que ele diz quando opõe a criança e o adulto. “Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei homem, aboli o que era infantil. Pois atualmente vemos por meio de um espelho, de uma maneira obscura, mas então veremos face a face. Presentemente, eu conheço em parte, mas então eu serei conhecido como um dia fui conhecido[135]”. Passa-se assim da infância submetida à lei[136] para a idade adulta nutrida pela fé, onde temos o dom das línguas e onde a lei criada é substituída pela lei incriada dentro do coração. Durante esse período, vemos por intermédio de um espelho, de modo obscuro, e conhecemos e profetizamos parcialmente[137]. Paulo fala aqui daqueles que profetizavam simplesmente em virtude do dom das línguas. “Quando vier o que é perfeito, o que é parcial desaparecerá (...) então eu serei conhecido como um dia fui conhecido[138]”. O que Paulo quer dizer aqui? Que ninguém se torna profeta simplesmente por profetizar em virtude do dom das línguas[139]. Acima da profecia se encontra a abolição da profecia na glorificação, que equivale à vinda do perfeito, onde o glorificado se torna conhecido como Paulo foi conhecido por Deus. Essa é a experiência que faz o apóstolo e o profeta.

São Paulo teria considerado inteiramente incongruente a ideia de que a Igreja pudesse ser, seja conduzida em toda a Verdade, seja levada a uma melhor inteligência de toda a Verdade, como dão testemunho essas palavras: “E, como está escrito, as coisas que o olho não viu, que o ouvido não escutou e que não foram mostradas ao coração do homem – todas essas coisas que Deus preparou para aqueles que O amam – Deus nos revelou pelo Espírito[140]”. Segundo Paulo, Deus revela a cada glorificado “todas as coisas” “que Deus preparou para aqueles que O amam”. Em outros termos, “toda a Verdade[141]”, da qual aqueles que amam a Deus são chamados a participar.

Parece ser bem certo que não encontramos em parte alguma, no Novo Testamento, a menção a uma revelação de toda a Verdade que seria feita à Igreja, ou a ideia que ela seria conduzida à compreensão de toda a Verdade. Toda a verdade, a Toda-Verdade, é Cristo. Ela é revelada por Seu Espírito, também chamado de Espírito de Verdade, àqueles que são glorificados em Seu Corpo. Os outros membros do Corpo de Cristo, que possuem essa qualidade de membros por terem o dom da prece incessante do Espírito Santo no coração, não conhecem senão em parte e não profetizam ou teologizam senão em parte. São aqueles que “veem por intermédio de um espelho, de modo obscuro, que não conhecem nem profetizam senão parcialmente[142]”. Todos os outros fiéis de Cristo são crianças submetidas à Lei. A ideia de que eles pudessem profetizar ou teologizar teria parecido a Paulo tão absurda quanto o foi aos olhos dos Padres serem confrontados por leigos e heréticos que se diziam teólogos.

Uma vez que podemos, sem risco de erro, afirmar que o profeta representa, no pensamento de Paulo, um elemento indispensável à estrutura do Corpo de Cristo[143], do qual ele constitui um dos principais fundamentos, juntamente com os Apóstolos, é forçoso concluir que sem profetas não existe Igreja. Isso é perfeitamente exato, desde que se compreenda que o profeta é aquele que experimentou a glorificação igual à dos Apóstolos. Que eles sejam chamados profetas ou Padres da Igreja, tanto faz. O essencial é que os seres que, possuindo a prece contínua, atingiram a glorificação, constituem o verdadeiro coração da Santa Tradição, pois sem eles o Corpo de Cristo não pode existir. Que esses Padres estejam presentes no seio das comunidades locais ou se encontrem apenas nos mosteiros não muda em nada o fato de que são eles os únicos especialistas capazes de produzir os membros do Corpo de Cristo. Sem eles, os mistérios (os “sacramentos”) da Igreja se transformam num sistema de pura magia. Em parte alguma são Paul diz que o Corpo de Cristo pode ser edificado por meio do batismo, da crisma, da eucaristia ou de coisas desta ordem, mas apenas por meio dos Apóstolos e dos profetas. O que ele quer dizer é que esses apóstolos, esses padres, dão nascimento a outros seres em Cristo, preparando-os para receber a prece do Espírito Santo no coração. Somente nesse contexto os sacramentos, batismo, crisma, eucaristia, ordenação, confissão, penitência e todos os demais, não são prestidigitação.

Se admitimos a hipótese que apresentamos, podemos ver perfeitamente porque, deixando de lado Agostinho, nenhum dos Padres da Igreja jamais imaginou desempenhar um papel no esforço supostamente cumprido pela Igreja no sentido de melhorar com a passagem do tempo sua inteligência do mistério de Deus e da encarnação.  A formulação do dogma não tem rigorosamente nada a ver com uma tentativa qualquer de compreender esses mistérios. Todos os Padres concordam com Gregório de Nazianze, que chamamos “o Teólogo” precisamente porque ele atingiu a glorificação, no dizer que é impossível exprimir a Deus e mais impossível ainda concebê-Lo. A teologia não consiste em conceber a Deus, e o dogma não consiste em expressar a Deus. Teologizar consiste em conhecer a Deus pela prece ininterrupta e pelo estudo da Escritura: o dogma é o guia que conduz a Ele em meio ao oceano das superstições e das falsas ideias sobre Deus. Teologia e dogma são abolidos no momento da visão de Cristo na glória de Seu Pai, pelo Espírito Santo, experiência que transcende todo conceito ou expressão relativos a Ele, ao mesmo tempo em torna capaz de encontrar os conceitos e as expressões que conduzirão outros até Ele.

Isso significa que é preciso fazer uma distinção radical entre a doutrina sobre Deus e o mistério de Deus. Agostinho confundiu as duas coisas e pensou que aceitando a doutrina ele poderia, por meio da fé, compreender o mistério, mas o objetivo da doutrina não é ser compreendida, mas ser abolida na glorificação, esta que está acima da compreensão, pois Deus é um mistério e permanece um mistério mesmo para aquele que O veem em Cristo. Podemos, é verdade, dizer que a doutrina se dá a conhecer, mas apenas a quem conhece seu objetivo e não a confunde com o próprio Deus.

A formulação do dogma no Credo e nas definições dos Concílios locais e ecumênicos da tradição ortodoxa foi, em cada caso particular, uma resposta à heresia, e jamais o momento de um pretenso desenvolvimento dogmático devido à especulação, nem uma etapa da famosa, mas ilusória  transformação dos teologumenos, dos discursos teológicos, em dogmas.

Para os Padres, teologizar consiste em raciocinar em conformidade com a prece contínua, com a Escritura lida dentro da tradição de seus próprios Pais espirituais e ainda a partir de sua própria glorificação – caso tenham atingido esse estado – ou a de outros, mas jamais por especulação.

Para encerrarmos esse capítulo, lembraremos que Orígenes (185-255) identifica o falar em línguas de I Coríntios com a prece ininterrupta do Espírito Santo no coração, e vê essa tradição operando desde o Antigo testamento, pois é essa prece que faz os profetas. Os Padres capadócios não mostram a menor marca de desacordo com Orígenes sobre esse ponto, até onde pude verificar. Na época de são João Crisóstomo (344-407), porém, em Antioquia, uma tradição interpretativa diferente prevaleceu, segundo a qual a palavra em línguas seria o dom com o qual os Apóstolos falavam na língua dos povos a quem evangelizavam. Não obstante, pensava-se que esse dom das linguagens acompanhava o da prece incessante, ao qual, segundo são João Crisóstomo, se refere são Paulo em sua primeira epístola aos Coríntios, 14: 14-16. São Cirilo de Alexandria (374-444) parece seguir uma linha intermediária na interpretação do falar em línguas paulino, porque ele sublinha, como também o fizemos, que “ninguém entende[144]”. Ele não parece tão certo como João Crisóstomo que isso significa: “ninguém o compreende”.

O que é evidente é que as ideias relativas aos apóstolos haviam progredido de tal maneira que eles eram vistos então como formando, por si próprios, uma classe à parte, de modo que, comparados aos carismas que eles receberam, os dons do Espírito Santo que sobreviviam na Igreja seriam de ordem inferior. O que conta, na presente discussão, é que o próprio dom da prece incessante no coração, bem como a glorificação ou theosis, jamais deixaram de ser considerados como o centro da tradição, desde os tempos dos profetas do Antigo Testamento.


F.       CONSEQUÊNCIAS E CONCLUSÕES


1.       Parece que, para ser coerente e se conformar com a maneira como são Paulo, o cristianismo primitivo e os Padres compreenderam Jesus Cristo como a Vida do Mundo, é preciso abordar o tema por meio da teologia empírica ou experimental, cujo domínio se sobrepõe parcialmente aos das ciências da medicina.

Talvez seja um bom método separar a experiência da prece do Espírito Santo no coração da questão da vida após a morte, a fim de tratar esse fenômeno em relação com as outras ciências terapêuticas. A própria existência da faculdade noética e o fato de que ela funciona ou não, não é um problema exclusivo apenas dos teólogos. Certamente, a cura dessa faculdade faz da tradição que sabe operá-la uma ciência mais exata do que a psiquiatria em sua forma atual. Em todo caso, esse deveria ser um meio de auxiliar na causa da reunião dos cristãos, mais do que de convidar cientistas a se debruçar sobre esse tipo de problema. Convém notar que nem a Bíblia nem os Padres consideram a glorificação como uma experiência que só seria possível numa existência post mortem. Os médicos normativos são aqueles que não apenas possuem a prece incessante do Espírito Santo no coração, mas que ainda experimentaram a glorificação nesta vida. São eles os principais portadores dessa tradição de cura da faculdade noética.

2.       Isso quer dizer que a tradição para os Profetas, os Apóstolos e os Padres, não é diferente da tradição moderna das sociedades científicas. Hipóteses e teorias não podem ser separadas da tradição da verificação empírica. A medicina não pode ser separada do diagnóstico e da terapia. O diagnóstico e a terapia não podem ser reduzidos a atos cerimoniais que não produzem nenhuma restauração constatável da saúde. Da mesma forma, os sacramentos e a liturgia não podem ser separados da purificação e da iluminação da faculdade noética, tanto quanto a fé, a prece, a teologia e o dogma não podem ser pensados independentemente da verificação empírica da prece incessante do Espírito Santo no coração e da glorificação.

3.       Porém, tanto a fé, a prece, a teologia e o dogma de uma parte, e os sacramentos e a liturgia de outra, foram separados do diagnóstico e da terapia das enfermidades da faculdade noética. Isso aconteceu não apenas fora da Tradição ortodoxa, mas muitas vezes no interior mesmo dessa tradição. Certamente, em alguns casos, esse fenômeno atingiu proporções consideráveis nas Igrejas sinodais, por grandes períodos de tempo, quando o monaquismo tradicional e patrístico foi suprimido por alguns períodos, ou reduzido a quase nada.

4.       Podemos ver perfeitamente, se considerarmos a relação que existe entre a iluminação e a glorificação, ou entre o dogma e o mistério, a enorme avenida que se abre ao desenvolvimento dos meios conceituais e linguísticos que permitirão ajudar o próximo a se preparar para receber o dom da prece incessante e da fé interior, a fim de se tornar templo do Espírito Santo e membros do Corpo de Cristo. Porém, esse desenvolvimento conceitual e linguístico não é sinal de uma compreensão mais profunda. A mais alta compreensão é a participação da glorificação que transcende a compreensão. O Pentecostes jamais foi superado e não cessa de operar, através da iluminação e da glorificação. Nem a iluminação nem a glorificação são suscetíveis de se tornar institucionais. A identidade dessa experiência de iluminação e de glorificação naqueles que possuem esses dons não implica necessariamente a identidade na expressão doutrinal, sobretudo quando os carismas estão separados espacialmente por um tempo muito longo. Entretanto, quando eles se encontram, ele concordam instantaneamente  sobre a uniformidade da expressão doutrinal de sua experiência idêntica. O grande impulso para uma expressão doutrinal idêntica foi dado na época em que o Cristianismo de tornou a religião oficial do Império Romano e satisfez a necessidade que o Estado tinha de poder distinguir os médicos autênticos dos charlatões, da mesma maneira como ele pôde incumbir organismos que ele reconhecia, para proteger os cidadãos e os membros autênticos do corpo médico dos feiticeiros e dos charlatões. Acreditava-se que a espiritualidade ortodoxa era um fenômeno identificável e verificável, coisa que, na verdade, ela é.

5.       A tradição bíblica preservada pelos Padres não pode ser identificada nem reduzida a um sistema de preceitos de moral ou a uma ética cristã. Ela constitui antes um ascetismo terapêutico, ao qual nenhum grau de doença do coração ou da faculdade noética desencoraja, exceto seu completo endurecimento. Adotar a forma exterior desse ascetismo, sem seu coração e seu centro, e aplicar a ele um sistema de preceitos morais com vistas a fundamentar uma ética pessoal e social, equivale a fabricar uma sociedade de hipócritas puritanos, que imaginam possuir direitos especiais ao amor de Deus por causa de sua moral, ou de sua predestinação, ou dos dois. Os mandamentos de Cristo não podem ser cumpridos apenas com a decisão de se conformar a eles, nem por uma certeza de haver sido eleito. Um homem que tem as pernas amarradas não pode correr cem metros, qualquer que seja seu desejo de fazê-lo. Ele só poderá com a condição de que suas pernas sejam liberadas e restabelecidas com força suficiente. Da mesma maneira, ninguém pode cumprir os mandamentos se não passar pela purificação e pela iluminação de sua faculdade noética, e atingir os umbrais da glorificação.

6.       A perspectiva patrística do tema da assembleia do Conselho Mundial das Igrejas que aconteceu em Vancouver em 1983, tal como a esboçamos neste artigo, indica claramente que devemos consagrar nossa atenção em examinar cuidadosamente o Antigo e o Novo testamento, tanto do ponto de vista de seu ascetismo terapêutico como de seu cristocentrismo. Essa pode ser a chave para um diálogo com o judaísmo. O Cristo do Antigo Testamento não é o Messias, mas o Anjo do Senhor, o Anjo do Grande Conselho, o Senhor de Glória. Ele não é um Messias elevado à divindade pelo cristianismo primitivo. Ao contrário, é o Senhor de Glória que se fez homem por meio de Seu Nascimento da Virgem Maria, tornando-se assim o Messias.

7.       Em momento algum de sua história a tradição ortodoxa considerou os crentes como uma sociedade esotérica que não estendia seu cuidado a todo o conjunto da sociedade. Bem ao contrário, o cristianismo ortodoxo penetrou todos os aspectos da sociedade, graças principalmente à sua ascese terapêutica, que praticavam imperadores, oficiais civis, militares, intelectuais, negociantes, populares, agricultores, jovens e velhos, na mesma medida também em que todos viam no monaquismo o centro de treinamento por excelência de seus médicos.

8.       O interesse da tradição ortodoxa por todos os aspectos da sociedade, da cultura e da civilização provém igualmente da consideração que todos os seres humanos têm em relação não apenas à faculdade noética, como também em relação à graça, à glória e ao reino incriado de Deus nelas, ainda que sob uma forma em que essas coisas pouco ou quase nada operam, por causa das enfermidades dessa faculdade, de sua escravidão relativamente ao intelecto, às paixões e ao seu meio, coisas estas que a tornam sujeita ao medo, à ansiedade e a crenças que nada têm a ver com a realidade. Os ortodoxos agem também admitindo que o próprio Deus opera diretamente em todo ser humano, independente de suas crenças falsas e de seu estado de santidade, que Deus ama todas as suas criaturas com o mesmo amor e que todos veremos a glória incirada de  Cristo, alguns como luz, outras como fogo e trevas exteriores, em função do estado do coração de cada um, seja ele iluminado ou endurecido.

9.       Não existe outra unidade em Cristo senão aquela realizada pela purificação, a iluminação e a glorificação, alcançada nesta vida. A estrutura visível da Igreja é ao mesmo tempo uma expressão dessa unidade, e aquilo que garante a todos os que desejam a possibilidade de alcançar essa terapia oferecida por Cristo por intermédio de Seus santos.

10.   Os critérios que devem ser empregados para a reunião dos cristãos divididos não podem ser diferentes dos que seriam empregados para reunir as associações de cientistas. Astrônomos ficariam chocados se tivessem que se reunir com astrólogos. Esses últimos devem primeiramente se tornar astrônomos para poderem ser recebidos. Membros de uma associação médica moderna ficariam igualmente chocados se fosse proposta uma união com charlatões ou com feiticeiros de uma tribo primitiva. Da mesma forma, os Padres ficariam chocados com a ideia de uma união de sua tradição com igrejas  que não possuem mais do que fracas luzes, ou mesmo nenhuma luz, a respeito da terapia da purificação, da iluminação e da glorificação, e que colocaram a autoridade institucional nas mãos de médicos impostores. A questão da reunião remete à do sucesso das Igrejas em produzir efeitos em função dos quais se supões que elas existam, “Bem-aventurados os corações puros, porque eles verão a Deus”.




[1] I Coríntios 13: 8-10.
[2] Êxodo 3: 14.
[3] Êxodo 3: 6.
[4] Contra os arianos III, 12, 14.
[5] Ibid. III, 12.
[6] II Coríntios 3: 15.
[7] Êxodo 3: 2.
[8] Êxodo 3: 6.
[9] Isaías 9: 6.
[10] João 1: 1-2. Refutação da Apologia de Eunomo 2, 18.
[11] Gregório de Nisse, Contra Eunomo XI, 3.
[12] Êxodo 33: 15; 34: 9.
[13] Êxodo 32: 34; 33: 2.
[14] Êxodo 33: 17.
[15] Êxodo 3: 2.
[16] Contra Eunomo XV, 3.
[17] João 14: 2-23.
[18] Atos 2: 3-4.
[19] Discursos Teológicos, 2, 3.
[20] Discursos Teológicos, 2, 4.
[21] João, 16:11, 16-33.
[22] João 16: 27.
[23] João 15: 14-15.
[24] II Coríntios 1: 22; 5: 5; Efésios 1: 14.
[25] Mateus 5: 8.
[26] I Coríntios 14: 14 ss.
[27] Gálatas 4: 6-7.
[28] I Coríntios 14: 2.
[29] I Coríntios 14: 6.
[30] I Coríntios 14: 1, 5.
[31] II Coríntios 3: 15.
[32] João 14: 23.
[33] I João 4: 18.
[34] Deuteronômio 6: 7.
[35] Discurso Teológico, 1, 5.
[36] Ibid.
[37] I Coríntios 13: 8-9.
[38] Ibid.
[39] I Coríntios 13: 12.
[40] II Coríntios 3: 7 ss.
[41] I Coríntios 13: 8.
[42] Gálatas 3: 26-27.
[43] Gálatas 4: 6-7.
[44] Gálatas 3: 21.
[45] I Coríntios 13: 5.
[46] João 14: 2-3.
[47] João 14: 16-17.
[48] João 14: 20.
[49] João 14: 19.
[50] João 14: 21.
[51] João 14: 23.
[52] João 14: 26.
[53] João 15: 26-27.
[54] João 16: 13-16.
[55] João 17: 24.
[56] João 16: 5-7.
[57] João 20: 17.
[58] João 20: 29.
[59] Atos 1: 5; cf. Mateus 3: 12.
[60] Atos 2: 1.
[61] Atos 7: 55-56.
[62] Atos 9: 3 e ss.; 6 e ss.; 17 e ss.
[63] Atos 1: 11.
[64] Atos 2: 1 e ss.
[65] Atos 1: 11.
[66] Atos 2: 4.
[67] Atos 2: 14 e ss.
[68] Atos 2: 6-13.
[69] Atos 9: 18; 22: 16.
[70] Atos 19: 5-6.
[71] Atos 10: 44-47.
[72] Atos 1: 5.
[73] Atos 11: 17.
[74] I Coríntios 14: 16.
[75] I Coríntios 4: 15-15.
[76] I Coríntios 1: 14, 16.
[77] I Coríntios 12: 13.
[78] I Coríntios 12: 10; 12: 28-30.
[79] I Coríntios 12: 30.
[80] I Coríntios 12: 28.
[81] I Coríntios 14: 18-19.
[82] I Coríntios 14: 15.
[83] Efésios 5: 18-20.
[84] I Coríntios 12: 10, 29.
[85] I Coríntios 14: 1, 5.
[86] I Coríntios 14: 27-28.
[87] I Coríntios 14: 17.
[88] I Coríntios 14: 16.
[89] I Coríntios 14: 10-11.
[90] I Coríntios 14: 20.
[91] I Coríntios 12: 10.
[92] I Coríntios 14: 22.
[93] Ceux qui ont dépassé toutes les formes particulières et sont parvenus à l’universalité, et qui « savent » ainsi ce que les autres ne font que « croire » simplement, sont nécessairement « orthodoxes » au regard de toute tradition régulière ; et, en même temps, ils sont les seuls qui puissent se dire pleinement et effectivement « catholiques », au sens rigoureusement étymologique de ce mot, tandis que les autres ne peuvent jamais l’être que virtuellement, par une sorte d’aspiration qui n’a pas encore réalisé son objet, ou de mouvement qui, tout en étant dirigé vers le centre, n’est pas parvenu à l’atteindre réellement. (René Guénon – Aperçus sur l’initiation, XXXVII)
[94] I Corintios 11: 30.
[95] Romanos 12: 1-2.
[96] Romanos 7: 23.
[97] Romanos 7: 25 – 8: 1-2.
[98] Romanos 8: 10.
[99] Romanos 8: 14-16.
[100] Romanos 8: 28-27.
[101] Romanos 8: 9.
[102] João 14:16, 26; 15:26;  16:7; 1 João 2:1.
[103] A expressão laloutes eautois é equivalente ao eauto dé laleito to Theô, “que fala a si mesmo e a Deus” (I Coríntios 14: 28).
[104] Efésios 5: 18-20.
[105] I Coríntios 14: 15.
[106] Ibid.
[107] I Coríntios 14: 18.
[108] Tessalonicenses 5: 16-21.
[109] Gálatas 3: 24.
[110] Gálatas 3: 26-27; 4: 6-7.
[111] Gálatas 3: 28.
[112] I Coríntios 11: 3.
[113] I Coríntios 14: 3.
[114] I Coríntios 14: 4.
[115] I Coríntios 14: 31.
[116] Atos 2: 17.
[117] I Coríntios 12: 28.
[118] I Coríntios 12: 26-28.
[119] Efésios 2: 12 ss.
[120] I Coríntios 13: 5.
[121] I Coríntios 13: 8.
[122] I Coríntios 13: 10-12.
[123] Migne, PG 95, 300.
[124] Capítulo 3.
[125] Conferências X, 10.
[126] História dos Francos, V, 10.
[127] I Coríntios 2: 12.
[128] I Coríntios 14: 26.
[129] I Coríntios 14: 29-33.
[130] I Coríntios 2: 15-16.
[131] Gálatas 2: 18-20.
[132] I Coríntios 2: 8.
[133] I Coríntios 10: 1-5.
[134] Gálatas 4: 14.
[135] I Coríntios 13: 11-12.
[136] Gálatas 3: 24.
[137] I Coríntios 13: 9, 12.
[138] I Coríntios 13: 10, 12.
[139] I Coríntios 12: 29.
[140] I Coríntios 2: 9-10.
[141] João 16: 13.
[142] I Coríntios 13: 12.
[143] Efésios 2: 19-22; 3: 5-6; 4: 11-13; I Coríntios 12: 28.
[144] I Coríntios 14: 2.

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