sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Kallistos Ware – O poder do Nome: a Prece de Jesus na espiritualidade Ortodoxa



1.       Prece e silêncio

“Quando você orar, disse com sabedoria um escritor ortodoxo da Finlândia, seu ‘eu’ deve se calar. Cale-se, e deixe a prece falar[1]”. Realizar o silêncio: isto é tudo, e é o mais duro e mais decisivo na arte da prece. O silêncio não é puramente negativo – uma pausa entre palavras, uma parada temporária do discurso – mas, bem compreendido, ele é altamente positivo: uma atitude de despertar atento, de vigilância e, acima de tudo, de escuta. O hesiquiasta, o homem que alcançou a hesíquia, a paz e o silêncio interiores, é por excelência aquele que escuta. Ele escuta a voz da prece de seu próprio coração, e compreende que esta voz não é sua, mas a de um Outro que lhe fala desde dentro.

A relação entre orar e fazer silêncio ficará mais evidente se considerarmos quatro curtas definições. A primeira é extraída do Concise Oxford Dictionary, o qual descreve a prece como “um solene pedido dirigido a Deus (...) uma fórmula utilizada para orar”. A prece aqui é vista como alguma coisa expressa em palavras e, de um modo mais específico, como um ato de pedir a Deus a concessão de algum benefício. Mas aqui estamos ainda no nível da prece “exterior”, mais do que no grau da prece interior. Poucos de nós se sentiriam satisfeitos com tal definição.

Nossa segunda definição é a de um estaroste russo do século XIX, já bem menos exterior. “Na prece, diz-nos o Bispo Teófano o Recluso (1815-1894), o principal consiste em se colocar diante de Deus com o intelecto no coração, e de se manter assim dia e noite, até o fim da vida[2]”. Orar, assim definido, não consiste mais em simplesmente pedir coisas, e pode perfeitamente se fazer sem nenhum concurso de palavras. Orar é colocar-se diante de Deus, entrar numa relação imediata e temporal com ele; implica saber em cada nível de nosso ser, do mais instintivo ao mais intelectual, do inconsciente até o mais agudo extremo da consciência, que estamos em Deus e que ele está em nós. Para assegurar e aprofundar nossas relações pessoais com os outros seres humanos, não precisamos estar constantemente apresentando demandas e utilizando palavras; quanto mais nos conhecemos e nos amamos uns aos outros, menos temos necessidade de expressar verbalmente nossa atitude recíproca. O mesmo acontece com nossa relação pessoal com Deus.

Nessas duas definições, a ênfase é colocada principalmente sobre o que faz o homem, mais do que sobre o que Deus faz. Mas na relação pessoal da prece, é o parceiro divino e não o humano que toma a iniciativa e cuja ação é fundamental. Isto é o que aparece na nossa terceira definição, emprestada a São Gregório o Sinaíta (1255-1346). Num texto minucioso no qual ele coloca lado a lado alguns epítetos, num esforço para descrever a verdadeira realidade da prece interior, ele encerra subitamente com uma simplicidade inesperada: “Por que falar tanto? A prece é Deus, que faz tudo em todos[3]”. “A prece é Deus” – não é alguma coisa da qual eu tenho a iniciativa, mas da qual eu participo; não é essencialmente algo que eu faço, mas que Deus faz em mim: este é o sentido da frase de São Paulo, “Não eu, mas Cristo em mim[4]”. O caminho da prece interior está indicado exatamente nas palavras de São João Batista a respeito do Messias: “É preciso que ele cresça e que eu diminua[5]”. É neste sentido que orar consiste em permanecer em silêncio. Cale-se, e deixe a prece falar – mais exatamente, deixe Deus falar. A verdadeira prece interior consiste em parar de falar e escutar a voz sem palavras de Deus em nosso coração; significa deixar de fazer as coisas por si e entrar na ação de Deus. No início da Liturgia Bizantina, quando terminam as cerimônias preliminares e que tudo está pronto para começar a Eucaristia em si, o diácono se aproxima do sacerdote e diz: “É tempo de o Senhor agir[6]”. Esta é exatamente a atitude do praticante, não apenas na prece eucarística, mas em toda prece, seja pública ou privada.

Nossa quarta definição, emprestada mais uma vez a São Gregório Sinaíta, indica com mais precisão o caráter desta ação do Senhor em nós: “A prece, diz ele, é a manifestação do Batismo[7]”. A ação do Senhor, naturalmente, não é restrita apenas aos batizados: Deus está presente e opera em todos os homens, devido ao fato de que cada um foi criado à sua imagem e à semelhança divina. Mas esta imagem foi obscurecida e velada, embora não totalmente obliterada, pelo pecado do homem. E ela é restaurada em sua beleza original e em seu esplendor pelo sacramento do Batismo, por meio do qual Cristo e o Espírito Santo vêm habitar naquilo que os Padres chamam de “as profundezas e a câmara secreta de nosso coração”. Mas na maior parte das vezes o Batismo é recebido na infância, e não guardamos dele nenhuma lembrança consciente. Embora o Cristo do Batismo e a morada do Paráclito jamais cessem de operar em nós, a maioria de nós, salvo raras exceções, permanece inconsciente dessa presença interior e de sua ação. A verdadeira prece, assim, significa a redescoberta e a “manifestação” dessa graça batismal. Orar, é passar do estado em que a graça está presente em nossos corações secreta e inconscientemente para o ponto de plena percepção interna e de conhecimento consciente, experimentando e “sentindo” a atividade do Espírito de modo direto e imediato. Assim falaram os Santos Calixto e Inácio Xanthopouloi (século XIV): “O objetivo da vida cristã é de retornar à graça perfeita do Espírito Santo, fonte da vida, que nos foi dada no começo por meio do divino Batismo[8]”.

“No meu começo está meu fim” O objetivo da prece pode se resumir nestas palavras: “Torne-se aquilo que você é”. Torne-se, consciente e ativamente, aquilo que você já é potencial e secretamente, em virtude de sua criação à imagem de Deus e à sua recriação pelo Batismo. Torne-se aquilo que você é: mais exatamente, volte a si, descubra aquilo que já é seu; escute aquele que nunca cessa de falar em você; possua aquele que já o possui. Eis a mensagem de Deus a quem deseja orar: “Você não me procurará a menos que já me tenha encontrado”.

Mas por onde devemos começar? Como poderemos aprender a parar de falar e começar a escutar? Em lugar de simplesmente falar com Deus, como poderemos fazer nossa a prece na qual Deus nos fala? Como passar da prece expressa em palavras à prece silenciosa, de uma prece “esforçada” a uma prece “que age por si só” (para usarmos a terminologia do Bispo Teófano), da “minha” prece à prece de “Cristo em mim”? Um caminho para quem deseja empreender esta viagem é a invocação do Nome.

2.       “Senhor Jesus...”

Naturalmente, a invocação do Nome não é p único caminho. Nenhuma relação autêntica entre pessoas pode existir se não existir uma liberdade e uma espontaneidade recíprocas, e isto é particularmente verdade em relação à prece interior. Não existe regras fixas e invariáveis, impostas como uma necessidade àqueles que buscam a oração; tampouco existe uma técnica mecânica, seja corporal, seja mental, que possa forçar Deus a manifestar sua presença. Sua graça é sempre concedida como um dom gratuito e não pode ser ganha automaticamente mediante um método ou uma técnica. O encontro entre Deus e o homem no reino do coração é assim caracterizada por um inesgotável variedade de modelos. Existem mestres espirituais da Igreja Ortodoxa que falam muito pouco, ou quase nada, da Prece de Jesus[9]. Mas, mesmo que ela não possua o monopólio exclusivo no domínio da prece interior, a Prece de Jesus se tornou para inúmeros cristãos orientais através dos séculos o caminho por excelência, a via real. E não apenas para os cristãos orientais[10]: no reencontro entre a Ortodoxia e o Ocidente que vem acontecendo nos últimos anos, não há provavelmente nenhum elemento da herança ortodoxa que tenha provocado mais interesse do que a Prece de Jesus, e nenhum livro exerceu sedução maior do que os Relatos de um Peregrino Russo. Este livro enigmático, que era praticamente desconhecido na Rússia pré-revolucionária, conheceu um surpreendente sucesso no mundo não ortodoxo. Depois dos anos 20 do século passado ele foi publicado numa grande diversidade de línguas. Os leitores de J. D. Salinger se lembrarão do choque que produziu sobre Franny “este pequeno livro, encapado em seda verde[11]”.

Mas no quê, perguntamos, reside a sedução particular e a eficácia da Prece de Jesus? Talvez ela se apoie sobre quatro pontos: primeiramente, na sua simplicidade e facilidade; depois, em seu caráter completo; em terceiro lugar, no poder do Nome; e por fim, na disciplina espiritual da repetição perseverante. Vamos retomar cada um desses temas pela ordem.

3.       Simplicidade e facilidade

A invocação do Nome é uma oração de enorme simplicidade, acessível a todo cristão, mas que ao mesmo tempo conduz aos mais profundos mistérios da contemplação. Quem se propuser a dizer a Prece de Jesus por longos períodos a cada dia – e, mais ainda, quem quiser exercer o controle da respiração e utilizar outros exercícios físicos em relação à Prece – sem dúvida irá precisar da ajuda de um estaroste, de um guia espiritual experiente. Estes guias são extremamente raros hoje em dia. Mas quem não puder ter um contato pessoal com um estaroste pode da mesma forma praticar a Prece sem nenhum temor, tanto quanto puderem por períodos determinados – de início, não mais do que dez a quinze minutos de cada vez – e tanto quanto puderem sem que interfiram nos ritmos naturais do corpo.

Nenhum conhecimento especializado, nenhuma formação específica é requerida antes de começar a Prece de Jesus. Para o iniciante, basta dizer: comece, simplesmente. “Para caminhar, basta o primeiro passo; para nadar, atire-se à água. O mesmo se dá com a invocação do Nome. Comece a pronunciá-lo com adoração e amor. Una-se a ele. Repita-o. Não pense estar invocando o Nome: pense simplesmente em Jesus. Diga seu Nome lentamente, doce e tranquilamente[12]”.

A forma exterior da Prece se aprende facilmente. Fundamentalmente, ela consiste nestas palavras: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Mas não existe nestas palavras uma uniformidade estrita. A forma verbal pode ser reduzida, e podemos dizer: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”, ou “Senhor Jesus” ou mesmo apenas “Jesus”, embora esta última forma seja pouco difundida. Inversamente, a forma possa ser estendida, acrescentando-se a palavra “pecador” no final, sublinhando assim seu aspecto penitencial. Algumas vezes se inserem também invocações à Mãe de Deus e aos santos. O único elemento essencial e invariável é a inclusão do Nome divino “Jesus”. Cada um é livre para descobrir através de sua experiência pessoal a forma particular que mais de perto responde às suas necessidades. A fórmula precisa empregada pode naturalmente variar de tempos em tempos, desde que não isso aconteça com frequência; pois, como adverte São Gregório Sinaíta, “as árvores que são frequentemente transplantadas não criam raízes[13]”.

Existe uma idêntica facilidade e maneabilidade no que concerne às circunstâncias exteriores nas quais a Prece é recitada. Podemos distinguir duas maneiras de utilizar a Prece: a maneira “livre” e a maneira “formal”. O uso livre designa a recitação da Prece quando estamos ocupados com nossas atividades habituais durante o dia. Ela pode ser dita, uma ou muitas vezes, em momentos dispersos, que, de outra forma, seriam desperdiçados: quando estamos ocupados em tarefas familiares ou semiautomáticas, como vestir-se, banhar-se, colocar os sapatos, regar o jardim; quando caminhamos ou dirigimos, quando esperamos na fila do ônibus ou num engarrafamento; num momento de calma antes de um encontro especial ou difícil; quando não se consegue dormir ou antes de emergir para a plena consciência ao despertar. Uma parte do notável valor da Prece de Jesus reside precisamente no fato de que, em razão mesma de sua simplicidade, podemos dizê-la em condições nas quais as formas mais complexas de oração não seriam praticáveis. Ela auxilia especialmente nos momentos de tensão e de profunda angústia.

Este uso “livre” da Prece de Jesus nos torna capazes de preencher o vazio que existe entre os tempos “fortes” de oração – seja nos ofícios da Igreja, ou a sós em nosso quarto – e as atividades normais da vida cotidiana. “Orem sem cessar”, insiste São Paulo[14]: mas como é isto possível, quando temos tantas coisas urgentes a fazer? O Bispo Teófano nos indica o verdadeiro método em sua máxima: “Mãos no trabalho, inteligência e coração com Deus[15]”. A Prece de Jesus, ao se tornar uma repetição frequente quase habitual e inconsciente, ajuda-nos a nos mantermos na presença de Deus onde quer que estejamos – não apenas no santuário da solidão, mas na cozinha, na oficina, no escritório. Assim nos tornamos semelhantes ao Irmão Laurent, que “estava mais unido a Deus em suas atividades normais do que nos exercícios religiosos”. “É uma grande ilusão, sublinhava ele, imaginar que o tempo da prece deva ser diferente de todos os outros momentos, pois temos tanta obrigação de estarmos unidos a Deus pelo trabalho no tempo do trabalho quanto pela oração no  tempo da oração[16]”.

Essa recitação “livre” da Prece de Jesus é complementada e reforçada pelo seu uso “formal”, quando concentramos toda nossa atenção em dizer a Prece, excluindo toda atividade externa. Aqui, do mesmo modo, não existem regras rígidas, mas variedade e versatilidade.

Nenhuma postura particular é essencial. Na prática ortodoxa, a Prece é correntemente recitada estando-se sentado, mas podemos dizê-la também em pé ou ajoelhados – e mesmo, nos casos de fraqueza corporal ou de fadiga física – deitados. Normalmente ela é recitada numa obscuridade completa ou com os olhos fechados, e não com os olhos abertos diante de um ícone iluminado por velas ou por uma lâmpada votiva. O estaroste Silouane do Monte Athos (1866-1938), quando dizia a Prece, tinha o costume de fechar seu despertador num armário para não ouvir seu tique-taque, e depois colocava sobre os olhos e ouvidos seu grosso capuz de monge[17].

A obscuridade, porém, pode ter um efeito soporífero. Se nos sentirmos sonolentos sentados ou ajoelhados recitando a Prece, então devemos nos levantar por alguns instantes, fazer o sinal da cruz ao final de cada Prece, e nos inclinarmos numa profunda saudação, tocando o chão com os dedos da mão direita. Podemos mesmos fazer a cada vez uma prostração, tocando o solo com a testa. Quando recitamos a Prece sentados, devemos nos assegurar de que a cadeira não seja muito confortável; de preferência, ela não deve ter braços nem encosto. A Prece também pode ser recitada em pé, com os braços em cruz.

Um terço ou rosário (o komvomschoinion, ou tchotki, normalmente com cem nós) costuma ser empregado em relação com a Prece, em princípio não para contar o número de vezes que ela é repetida, mas para auxiliar na concentração e no estabelecimento de um ritmo regular. A medida quantitativa, seja com um terço ou por quaisquer outros modos, não é encorajada. É verdade que, na primeira parte dos Relatos de um Peregrino Russo, uma grande ênfase é colocada pelo estaroste sobre o número exato de vezes que se deve repetir cotidianamente a Prece: três mil vezes, aumentando depois para seis mil e finalmente para doze mil. O Peregrino recebe a instrução de dizer o número exato, nem uma vez a mais ou a menos. Tamanha atenção colocada sobre a quantidade é bastante inabitual. É possível que não se trate de uma simples quantidade, mas da atitude interior do Peregrino: o estaroste deseja colocar à prova sua obediência e sua prontidão para observar sem desvios uma regra estabelecida. Mais característico é o conselho do Bispo Teófano: “Não se inquiete com o número de vezes que você diz a Prece. Que seu único cuidado seja que ela brote de seu coração com a força vivificante de uma fonte de água viva. Expulse de seu espírito todo pensamento baseado em quantidade[18]”.

Algumas vezes a Prece é recitada em grupo, mas o mais comum é que seja feita a sós; as palavras podem ser ditas em voz alta ou silenciosamente. No costume ortodoxo, quando dita em voz alta ela é falada, não cantada. Nada deve haver de forçado ou de rebuscado na recitação. As palavras não devem ser formadas com exagerada ênfase ou com violência interna, mas a Prece deve estabelecer ela própria seu ritmo e sua acentuação, de tal modo a que ela chegue a soar em nós em virtude da melodia que lhe é intrínseca. O estaroste Parfenii de Kiev compara o movimento sinuoso da Prece ao doce murmúrio de um regato[19].

Por tudo o que foi dito, podemos ver que a invocação do Nome é uma prece para todos os tempos, Cada qual pode utilizá-la, sempre e em toda parte. Ela convém ao iniciante tanto quanto aos experientes; podemos dizê-la em companhia de outras pessoas ou estando a sós; ela é apropriada no deserto ou na cidade, em meio a um tranquilo retiro ou na maior correria e agitação. Ela jamais fica deslocada.

4.       Caráter completo

Teologicamente, como o declara com razão o Peregrino Russo, a Prece de Jesus “encerra em si mesma toda a verdade do Evangelho”: trata-se de “um resumo dos Evangelhos[20]”. Numa única e curta fórmula, ela incorpora os dois principais mistérios da fé cristã, a Encarnação e a Trindade. Em primeiro lugar, ela fala das duas naturezas do Cristo homem-Deus (Theanthropos): de sua humanidade, pois ele é invocado por seu nome humano “Jesus”, que sua mãe Maria lhe deu depois de seu nascimento em Belém; e de sua eterna divindade, pois ele também é chamado de “Senhor” e de “Filho de Deus”. Em segundo lugar, a Prece fala por implicação, embora não explicitamente, das três Pessoas da Trindade. Quando ela se dirige à Segunda Pessoa de Jesus, ela o faz também ao Pai, pois Jesus é chamado de “Filho de Deus”; e o Espírito Santo acha-se igualmente presente na Prece, pois ninguém pode dizer “Jesus e Senhor, se não for no Espírito Santo[21]”. Assim, a Prece de Jesus é simultaneamente cristocêntrica e trinitária.

Do ponto de vista da devoção, ela não é menos completa. Ela abarca os dois momentos principais da devoção cristã: o “momento” da adoração, da contemplação da glória de Deus e do reencontro no amor; e o “momento” da penitência, o sentido da indignidade e do pecado. Existe um movimento circular no interior da Prece, uma sequência de subidas e descidas. Na primeira metade da Prece nós “nos atiramos” para Deus: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus...”, e na segunda metade retornamos a nós mesmos cheios de compunção: “tem piedade de mim, pecador”. Aqueles que experimentaram o dom do Espírito, como estabelecido nas Homilias de Macário, têm consciência das duas coisas ao mesmo tempo: de um lado, da alegria e da consolação; de outro, do tremor, do temor e da tristeza[22]. Esta é a dialética interna da Prece de Jesus.

Estes dois momentos – a visão da glória divina e a consciência do pecado do homem – estão unidos e reconciliados num terceiro momento, quando pronunciamos a palavra “piedade”. A “piedade” indica que o abismo entre a “justiça” de Deus e a criação decaída foi preenchido. Aquele que diz a Deus: “tem piedade”, lamenta-se por sua própria impotência ao mesmo tempo em que lança um grito de esperança. Ele não fala apenas do pecado, mas de sua superação. Ele afirma que Deus em sua glória nos aceita, embora sejamos pecadores, pedindo-nos em troca que aceitemos que somos aceitos. Assim, a Prece de Jesus contém não apenas o apelo ao arrependimento, mas uma certeza de perdão e de salvação. O coração da Prece – o próprio Nome de Jesus – significa exatamente esta salvação: “Vocês chamarão pelo Nome de Jesus, pois ele salvará seu povo do pecado[23]”. Mesmo havendo uma tristeza pelo pecado na Prece de Jesus, esta tristeza não é desesperançada, mas é “criadora de alegria”, segundo a expressão de São João Clímaco.

Estas são algumas das riquezas, a um tempo teológicas e devocionais, presentes na Prece de Jesus; presentes, inclusive, não apenas de forma abstrata, mas de modo vivificante e dinâmico. O Valor particular da Prece de Jesus repousa no fato de que ela torna vivas essas verdades, de tal modo que elas podem ser captadas não só exterior e teoricamente, mas com toda a plenitude de nosso ser. Para compreendermos porque a Prece de Jesus possui tamanha eficácia, devemos agora nos voltar para dois aspectos mais profundos: o poder do Nome e a disciplina da repetição.

5.       O poder do Nome

“O Nome do Filho de Deus é grande e sem limites e sustenta o universo inteiro”. Assim afirma o Pastor de Hermas[24], e nós não seremos capazes de apreciar o papel da Prece de Jesus na espiritualidade ortodoxa a menos que tenhamos alguma intuição do poder intrínseco e da força do Nome divino. Se a Prece de Jesus é mais eficaz do que outras invocações, é porque ela contém o Nome de Deus.

No Antigo Testamento, como em muitas culturas arcaicas, existe uma identidade efetiva entre a alma do homem e seu nome. Toda a sua personalidade, com todas as suas particularidades e toda sua energia, tudo está presente em seu nome. Conhecer o nome de uma pessoa equivale a ter uma intuição precisa de sua natureza e, assim, criar uma relação sólida com ela – e talvez até chegar a ter controle sobre ela. É por isso que o misterioso mensageiro que combate com Jacó no vau de Jacó se recusou a revelar seu nome[25]. A mesma atitude se reflete na resposta do ano a Manué: “Por que você pergunta meu nome, sabendo que ele é secreto?[26]”. Uma mudança de nome indica uma mudança decisiva na vida de um homem, como quando Abrão se torna Abrahão[27], ou quando Jacó se torna Israel[28]. Da mesma forma, Saulo se torna Paulo depois de sua conversão[29]; e um monge recebe um novo nome quando de sua profissão de fé, habitualmente não escolhido por ele, para indicar a renovação radical na qual se engajou.

Na tradição hebraica, fazer alguma coisa em nome de outro, ou invocar seu nome e dele se recomendar, são atos de um poder e peso extremos. Invocar o nome de uma pessoa equivale a torná-la efetivamente presente. “Quando mencionamos um nome o tornamos vivo. O nome imediatamente chama pela alma que ele designa; por isso existe um significado tão profundo na simples menção do nome[30]”.

Tudo que vale para os nomes humanos é verdadeiro num grau incomparavelmente mais elevado para o Nome divino. O poder e a glória de Deus estão presentes e ativos em Seu Nome. O Nome de Deus é numen praesens, Deus conosco, Emanuel. Invocar o Nome de Deus com atenção e intenção, deliberadamente, equivale a se colocar em sua presença, abrir-se à sua energia, oferecer-se como instrumento e sacrifício vivo em suas mãos. Era tão ardente o sentido da majestade do Nome de Deus no judaísmo tardio, que o “tetragrama” não era pronunciado em voz alta no serviço da sinagoga: o Nome do Altíssimo era considerado como demasiado terrível para ser pronunciado[31].

Esse entendimento hebraico do Nome passa do Antigo Testamento para o Novo. Os demônios são expulsos e o homens são curados pelo Nome de Jesus, pois este Nome tem poder. Se considerarmos com precisão este poder do Nome, muitos textos familiares adquirem um significado mais porte e mais completo, como, por exemplo, a frase do Pai Nosso: “santificado seja o vosso Nome[32]”; a promessa de Cristo na última ceia: “Tudo o que vocês pedirem ao Pai em meu Nome ele lhes concederá[33]”; seu mandamento final aos apóstolos: “Vão, ensinem as nações, batizando-os em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo[34]”; a proclamação de São Pedro dizendo que não há salvação senão “no Nome de Jesus Cristo de Nazaré[35]”; as palavras de São Paulo: “Que todo joelho se dobre ante o Nome de Jesus[36]”; o nome novo e secreto escrito sobre a pedra branca que nos será dado no século futuro[37].

É essa reverência bíblica em relação ao Nome, que forma a base e o fundamento da Prece de Jesus. O Nome de Deus está essencialmente ligado à sua pessoa e assim a invocação do Nome divino possui um autêntico caráter sacramental, servindo como sinal de sua presença e de sua ação invisível. Para o fiel cristão de hoje, como nos tempos apostólicos, o Nome de Jesus tem poder. Segundo as expressões dos dois anciãos de Gaza, os santos Barsanulfo e João de Gaza (século VI), “a lembrança do Nome de Deus destrói inteiramente todo mal[38]”. “Fustigue seus inimigos com o Nome de Jesus, nos incita São João Clímaco, pois não existem armas mais poderosas no céu e sobre a terra (...) Que a lembrança de Jesus esteja associada à sua respiração e assim você conhecerá o calor da tranquilidade[39]”.

O Nome tem poder, mas uma repetição puramente mecânica não terá nenhum efeito em si mesma. A Prece de Jesus não é um talismã mágico. Como acontece em todas as operações sacramentais, a cooperação entre o homem e Deus é requerida através de sua fé ativa e de seu esforço de ascese. Nós somos chamados a invocar o Nome com recolhimento e vigilância interior, encerrando o pensamento nas palavras da Prece, sabendo que é Aquele a quem nos endereçamos que nos responde em nosso coração. Uma prece assim urdida não é jamais fácil no estágio inicial, e ela é descrita com justeza pelos Padres como um martírio oculto. São Gregório Sinaíta fala frequentemente “da contrição e do trabalho” empregados por quem segue o caminho do Nome; um “esforço contínuo” é exigido; eles serão tentados a renunciar, “por causa do sofrimento persistente que provém da invocação interior do espírito”. “Suas espáduas irão incomodar e vocês sentirão dores de cabeça, ele adverte, mas perseverem com constância e com um ardente desejo, procurando pelo Senhor nos seus corações[40]”. Somente por meio dessa paciente fidelidade poderemos descobrir o verdadeiro poder do Nome.

Esta perseverante fidelidade toma a forma, antes de tudo, de uma atenta e frequente repetição. Cristo disse a seus discípulos que não usassem “vãs repetições[41]”, mas a repetição da Prece de Jesus, quando feita com sinceridade e concentração interior, não é de modo algum “vã”. O ato da repetição incessante do Nome tem um efeito duplo: ele começa por unificar nossa oração e ao mesmo tempo a torna mais interior.

6.       Unificação

Assim que ensaiamos seriamente orar em espírito e verdade, imediatamente nos tornamos conscientes de uma maneira aguda de nossa desagregação interior, de nossa falta de unidade e de integridade. Apesar de todos os nossos esforços para nos mantermos diante de Deus, os pensamentos continuam a se mover sem detença e sem direção em nossa cabeça, como o voo errático das moscas (Bispo Teófano) ou os saltos acrobáticos dos macacos de galho em galho (Ramakrishna). Contemplar significa antes de tudo estar presente onde se está – estar aqui e agora. Mas normalmente nós nos vemos incapazes de impedir nosso espírito de vagabundear sem objetivo no tempo e no espaço. Relembramos o passado, antecipamos o futuro, fazemos planos para o que devemos fazer mais tarde; as pessoas e os lugares se apresentam a nós numa sucessão sem fim. Não temos poder para nos recolhermos em nós mesmos no único lugar onde deveríamos estar: aqui, na presença de Deus. Somos incapazes de viver plenamente no único instante do tempo que existe verdadeiramente: agora, o presente imediato. Esta desagregação interior é uma das mais trágicas consequências da Queda. As pessoas que conseguem adquirir alguma coisa, como já se constatou, são aquelas que fazem uma coisa de cada vez. Mas fazer uma coisa de cada vez não é uma realização pequena. Se já é difícil no trabalho exterior, é ainda mais dura no trabalho da prece interior.

Que devemos fazer? Como podemos aprender a viver no presente? Como é possível captar o kairos, o momento decisivo, o momento oportuno? É precisamente sobre este ponto que a Prece de Jesus pode nos ajudar. A invocação repetida do Nome pode nos conduzir, com a graça de Deus, da divisão à unidade, da dispersão na multiplicidade ao um. “Para deter a contínua vagabundagem dos seus pensamentos, dizia o Bispo Teófano, vocês devem ligar seu intelecto a um pensamento único, ou ao único pensamento do Único[42]”.

Os Padres ascetas, em particular Barsanulfo e João de Gaza, distinguiam duas maneiras de lutar contra os pensamentos. O primeiro método é para os “fortes”, ou “perfeitos”. Estes podem “contradizer” seus pensamentos, ou seja, enfrentá-los cara a cara e afastá-los num combate direto. Mas para a maior parte de nós este método é muito difícil e pode, certamente, conduzir a males reais. O confronto direto, a tentativa de expulsar e extirpar por um esforço de vontade os pensamentos, muitas vezes não faz mais do que dar mais força ainda à nossa imaginação. Violentamente reprimidas, nossas divagações têm tendência a retornar com uma força renovada. Em lugar de lutar contra nossos pensamentos diretamente e de tentar eliminá-los por um esforço da vontade, é mais prudente nos desviarmos e fixar nossa atenção sobre alguma outra coisa. Antes de fixar em nosso interior nosso olhar sobre uma imaginação turbulenta e de nos concentrarmos em nos opor aos nossos pensamentos, devemos olhar para o alto para o Senhor Jesus e nos colocarmos em suas mãos invocando seu Nome; e a graça que age sobre este Nome triunfará sobre os pensamentos que não conseguimos suprimir com nossas próprias forças. Nossa estratégia espiritual deve ser positiva e não negativa: em lugar de tentar esvaziar nosso espírito daquilo que é ruim, devemos enchê-lo com o pensamento daquilo que é bom. “Não contradiga os pensamentos sugeridos por seus inimigos, aconselham Barsanulfo e João, pois isto é exatamente o que eles querem e eles não irão parar de perturbá-lo. Ao contrário, vire-se para o Senhor para que ele o ajude contra eles, colocando diante Dele toda a sua própria impotência; pois ele á capaz de expulsá-los e de reduzi-los a nada[43]”.

A Prece de Jesus é assim uma maneira de se desviar e de olhar além. Pensamentos e imagens se apresentam inevitavelmente a nós durante a Prece. Nós não podemos deter esta corrente por meio de uma simples injunção da vontade. Pouco ou nada vale dizermos: “pare de pensar”; é como dizer: “pare de respirar”... “O intelecto racional não pode permanecer inativo, diz São Marcos o Asceta; os pensamentos não cessam de produzir seu falatório contínuo, como os cantos dos pássaros na aurora. Mas, se por um lado não podemos fazer com que desapareça subitamente esse falatório, podemos ao contrário nos desligar dele, unindo nosso espírito sempre ativo a um único pensamento, ou unicamente ao pensamento do Um[44]”, o Nome de Jesus. É o que diz São Diádoco (Século V): “Quando houvermos obstruído todos os escapes de nosso pensamento com a lembrança de Deus, então nosso espírito pedirá a toda custa alguma tarefa com que satisfaça sua necessidade de atividade. Demos a ele, nessa hora, como única atividade, a invocação ‘Senhor Jesus’...[45]”. “Por meio da lembrança de Jesus Cristo, afirma Filoteu o Sinaíta, reúna seu espírito desagregado que se espalha no exterior[46]”. Assim, ao invés de tentarmos deter a série de pensamentos com nosso poder, contamos com o poder que age por intermédio do Nome.

Segundo Evagro o Pôntico, “a prece consiste em colocar de lado os pensamentos[47]”. Colocar de lado: não um conflito selvagem, uma repressão furiosa, mas um ato de desligamento manso e perseverante. Pela repetição do Nome, somos ajudados a colocar de parte, a deixar passar nossas imaginações sem consistência ou perniciosas, substituindo-as pelo pensamento de Jesus. Mas, embora a imaginação e a razão discursiva não devam ser reprimidas com violência ao dizermos a Prece de Jesus, certamente elas não devem ser encorajadas ativamente. A Prece de Jesus não consiste numa meditação sobre eventos específicos da vida de Cristo, ou sobre qualquer palavra ou parábola dos Evangelhos; menos ainda ela é um modo de raciocinar e discutir interiormente alguma verdade teológica tal como o significado do homoousios ou o dogma da Calcedônia. Sob este ponto de vista, a Prece de Jesus deve se distinguir rigorosamente dos métodos de meditação discursiva, populares no Ocidente desde a Contrarreforma (Inácio de Loyola, Francisco de Sales, Afonso de Ligori, etc.).

À invocação do Nome, não devemos formar deliberadamente em nosso espírito nenhuma imagem visual do Salvador. Esta é uma das razões pelas quais dizemos a Prece na obscuridade, ao invés de com os olhos abertos diante de um ícone. “Mantenha seu espírito livre de todas as cores, imagens e formas, nos incita São Gregório Sinaíta, evite toda imaginação (phantasia) na prece – pois de outro modo você poderá descobrir que se tornou um “fantasiasta” em lugar de um hesiquiasta[48]”. Para não cair na ilusão ao praticar a prece interior, declara São Nilo Sorsky, não se permita nenhum conceito, nenhuma imagem, nenhuma visão[49]”. “Não coloque nenhuma imagem intermediária entre o espírito e o Senhor quando praticar a Prece de Jesus, escreveu o Bispo Teófano, (...) o ponto essencial consiste em permanecer em Deus, e esta maneira de caminhar diante de Deus significa que você vive com a convicção sempre presente à consciência de que Deus está em você, conhecendo a você melhor do você se conhece. Essa consciência do olhe de Deus vendo seu ser interior não deve ser acompanhada de nenhuma imagem. Devemos nos manter apenas com a convicção ou com um sentimento[50]”. Somente invocando a Deus dessa maneira – sem formar imagens do Salvador, mas apenas “sentindo” sua presença – faremos a experiência do pleno poder da Prece de Jesus para nos reconstituir como um todo e nos unificar.

7.       Interiorização

A invocação repetida do Nome, que começa por unificar nossa prece, ao mesmo tempo a torna mais interior, cada vez mais parte de nós mesmos – não algo que fazemos em certos momentos, mas algo que somos todo o tempo: não um ato ocasional, mas um estado contínuo. Esta maneira de orar se torna verdadeiramente a prece do homem como um todo, prece na qual as palavras e seu significado se identificam plenamente com aquele que ora.  Tudo isso foi bem expresso por Paul Evdokimov (1901-1970): “Nas catacumbas, a imagem que mais aparece é a silhueta de uma mulher em oração, a Orante. Ela representa a única atitude verdadeira da alma humana. Não basta possuir a oração: devemos nos tornar preces encarnadas. Não basta apenas ter tempo para a prece: cada ato, cada gesto, mesmo um sorriso, deve se tornar um hino de adoração, uma oferenda, uma prece. Não devemos oferecer o que temos, mas o que somos[51]”. É disso que o mundo tem necessidade, acima de qualquer outra coisa: não de pessoas que dizem as orações com maior ou menor regularidade, mas de pessoas que são “prece”.

O tipo de prece que Paul Evdokimov descreve aqui pode ser definido mais exatamente como “a prece do coração”. Na Ortodoxia, como em muitas outras tradições, a prece é em geral distinguida em três categorias que devemos considerar como níveis que se misturam uns com os outros, mais do que como etapas sucessivas: a prece dos lábios (prece vocal), a prece do intelecto (prece mental) e a prece do coração (ou do intelecto no coração). A Invocação do nome começa, como toda outra prece, como uma prece vocal, nas qual as palavras são pronunciadas com a língua por um esforço deliberado da vontade. Ao mesmo tempo, e sempre por meio de um esforço deliberado, concentramos nosso intelecto sobre o sentido daquilo que está sendo dito pela língua.

Com o tempo e o auxílio de Deus, nossa prece se torna mais interior. A participação do intelecto se torna mais intensa e mais espontânea, enquanto que os sons enunciados pela língua se tornam menos importantes; por um momento, eventualmente, ele cessam completamente, e o Nome é invocado em silêncio, sem nenhum movimento dos lábios, mas apenas pelo intelecto. Quando isto acontece é porque passamos, pela graça de Deus, do primeiro para o segundo nível. Não que a invocação oral cesse por completo, pois haverá momentos nos quais mesmo os mais avançados na prece interior desejarão chamar pelo Senhor Jesus em voz alta (e quem verdadeiramente pode se pretender avançado na prece interior? Somos todos iniciantes nas coisas do Espírito).

Mas a viagem interior ainda não está completa. Um homem é algo mais do que seu espírito consciente; além de seu cérebro e de suas capacidades de raciocínio, existem suas emoções e suas afeições, sua sensibilidade estética e ainda as camadas sucessivas de sua personalidade. Tudo isso desempenha um papel na prece, pois o home como um todo é chamado a tomar parte do ato total de adoração. Como uma gota de tinta que cai sobre um mata-borrão, o ato da prece deve se estender regularmente para o exterior a partir do centro cerebral da consciência e do raciocínio até impregnar cada parte de nosso ser.

Em termos mais técnicos, isso significa que somos chamados a avançar do segundo nível para o terceiro: da prece do intelecto à prece do intelecto no coração. O “coração” neste contexto deve ser compreendido no sentido semítico e bíblico, mais do que no sentido moderno, como designando não somente as emoções e os afetos, mas a totalidade da pessoa humana. O coração é o órgão primeiro do ser do homem, “o eu mais profundo e mais verdadeiro, que não pode ser alcançado senão pelo sacrifício, através da morte[52]”. Segundo B. Vycheslavtsev, ele é “o centro não apenas da consciência, mas do inconsciente, não apenas da alma mas do espírito, não apenas do espírito mas do corpo, não apenas do inteligível mas do incompreensível; numa palavra, ele é o centro absoluto[53]”. Interpretado desta maneira, o coração é muito mais do que um órgão material do corpo: o coração físico é um símbolo exterior das possibilidades espirituais sem limites da criatura humana, feito à imagem e semelhança de Deus.

Para realizar a viagem interior e atingir a prece verdadeira, é necessário penetrar nesse centro absoluto, ou seja, fazer a descida do intelecto ao coração. Mais exatamente, somos chamados a descer, não do intelecto, mas com o intelecto. O objetivo não é mais simplesmente “a prece do coração”, mas “a prece do intelecto no coração”, pois as formas conscientes do entendimento, aí incluída a razão, são um dom de Deus e devem ser utilizadas a seu serviço e não rejeitas. Esta “união do intelecto com o coração” significa a restauração da natureza decaída e fragmentada do homem, sua restituição à sua unidade original. A prece do coração é um retorno ao Paraíso, um movimento inverso da Queda, a descoberta do status ante pecatum. Isso significa que se trata de uma realidade escatológica, uma garantia e uma participação no século futuro – algo que, no século presente, não é jamais nem plena nem inteiramente realizada.

Aqueles que, mesmo imperfeitamente, realizaram numa certa medida a “prece do coração”, começaram a fazer a transição de que falamos acima – a transição da prece “esforçada” para a prece “que age por si só”, da prece que dizemos para aquela que “fala por si mesma”, ou melhor, aquela que Cristo diz em mim. Pois o coração possui um duplo significado na vida espiritual: ele é ao mesmo tempo o centro do ser do homem e o ponto de encontro entre o homem e Deus. É simultaneamente o lugar do conhecimento de si, onde o homem vê a si mesmo com é verdadeiramente, e o lugar de transcendência do eu no qual o homem entende sua natureza como um templo da Santíssima Trindade, onde a imagem se confronta com o arquétipo. Na “câmara interior” de seu próprio coração ele encontra o fundamento de seu ser e assim passa da fronteira misteriosa entre o Criado e o Incriado. “Existem profundezas incomensuráveis no coração, afirmam as Homilias de Macário (...) Deus está lá com os anjos, a luz e a vida lá estão, bem como o Reino e os apóstolos, as cidades celestes e os tesouros da graça: tudo está lá[54]”. A prece do coração designa assim o ponto onde “minha” ação, “minha” prece, se identifica explicitamente com a ação contínua de um Outro em mim. Já não é a Prece de Jesus, mas a Prece do próprio Jesus. Esta passagem da prece “esforçada” à prece “que age por si mesma” é descrita de modo notável nos Relatos de um Peregrino Russo: “Numa bela manhã eu fui despertado pela Prece[55]”. Até então o Peregrino “dizia a Prece”; agora ele descobre que a Prece “diz a si mesma” mesmo quando ele está dormindo, pois ela está unida à prece de Deus nele.

Os leitores dos Relatos podem ter a impressão de que essa passagem da prece vocal para a prece do coração acontece facilmente, quase de um modo mecânico e automático. Ao que parece o Peregrino alcançou a prece “que age por si só” em poucas semanas. Mas convém lembrar que sua experiência, embora não sendo única[56], é excepcional. O mais comum é que a prece do coração surja, se surgir, depois de toda uma vida de esforço ascético. Ela consiste num livre dom de Deus, concedido quando e como ele quiser, e não o resultado inevitável de uma técnica aplicada. Santo Isaac o Sírio (século VII) sublinha a extrema raridade desse dom, quando diz: “Dificilmente um de cada dez mil será digno do dom da prece pura”. E ele acrescenta: “Quanto ao mistério que se encontra além da prece pura, será excepcional se encontrarmos um único homem de toda uma geração que tenha se aproximado deste conhecimento da graça de Deus[57]”.

Um em dez mil, um único em toda uma geração: embora desiludidos com esta advertência, não devemos nos desencorajar por nada. O caminho para o reino interior se abre diante de todos e todos igualmente viajam seu tanto por ele. No século presente, poucas pessoas experimentaram com alguma plenitude os mistérios mais profundos do coração, mas muitos receberam de maneira mais humilde e intermitente verdadeiras intuições daquilo que significa a prece espiritual.

8.       Os exercícios respiratórios

É tempo agora de examinarmos um aspecto controverso no qual o ensinamento dos hesiquiastas bizantinos é frequentemente mal interpretado: o papel do corpo na prece.

O coração, como foi dito, é o primeiro órgão do ser do homem, o ponto de convergência entre o espírito e a matéria, o centro, ao mesmo tempo, da constituição física do homem e de sua estrutura psíquica e espiritual. E como o coração possui esse duplo aspecto, a um tempo visível e invisível, a prece do coração será a prece do corpo tanto quanto a da alma: somente se ela incluir o corpo ela poderá ser verdadeiramente a prece do homem como um todo. Um ser humano, dentro da perspectiva bíblica, é uma totalidade psicossomática, não uma alma aprisionada num corpo do qual tenta escapar, mas a unidade integral das duas coisas. O corpo não é um obstáculo a ser ultrapassado, uma porção de matéria que se pode ignorar, mas ele desempenha um papel positivo na vida espiritual e é dotado de energias que podem ser “mobilizadas” pelo trabalho da prece.

Se isso vale para a prece em geral, vale de uma maneira ainda mais específica, para a Prece de Jesus, por ser ela precisamente uma invocação ao Deus encarnado, ao Verbo feito carne. Em sua encarnação, Cristo tomou não apenas um intelecto humano e uma vontade humana, mas um corpo humano, e assim ele fez da carne uma fonte inesgotável de santificação. Como essa carne, que o Homem-Deus tornou portadora do espírito, poderá participar da invocação do Nome na prece do intelecto no coração?

Para favorecer tal participação e auxiliar na concentração, os hesiquiastas desenvolveram uma “técnica corporal”. Eles compreenderam que cada atividade psíquica possui repercussões no nível físico e corporal; conforme nosso estado interno, esquentamos ou esfriamos, respiramos mais depressa ou mais devagar, o ritmo dos batimentos cardíacos acelera ou desacelera, e assim por diante. Inversamente, cada alteração de nosso estado físico reage de forma negativa ou positiva sobre nossa atividade psicológica. Assim, se pudermos aprender a controlar e regular certos processos físicos que acontecem em nós, esta possibilidade pode ser usada para reforçar nossa concentração interior na prece. Este é o princípio do “método” hesiquiasta. Em detalhe, sua técnica apresenta três aspectos principais:

a)      Postura exterior: São Gregório Sinaíta aconselha sentar-se num banquinho baixo, com cerca de vinte e cinco centímetros de altura; a cabeça e as espáduas devem estar inclinadas e os olhos fixos no local do coração. Ele admite que essa posição logo se mostrará extremamente desconfortável. Outros escritores recomendam uma postura ainda mais incômoda, com a cabeça entre os joelhos, conforme o exemplo de Elias sobre o Monte Carmelo[58].
b)      Controle da respiração: a respiração deve ser mais lenta e ao mesmo tempo deve estar coordenada com o ritmo da Prece. De modo geral, a parta “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus” é dita inspirando, e a parte “tem piedade de mim, pecador” é dita expirando. Mas outros métodos são possíveis. A recitação da Prece também pode ser sincronizada com as batidas do coração.
c)       Exploração interior: exatamente como se ensina a um aspirante a yogi a concentrar seu pensamento sobre partes específicas de seu corpo, também o hesiquiasta concentrará seu pensamento sobre o centro cardíaco. Enquanto ele inspira pelo nariz e leva o ar aos pulmões, ele faz descer seu intelecto juntamente com o sopro e busca interiormente o lugar do coração. As instruções exatas referentes a esse exercício não são consignadas por escrito para que não sejam mal compreendidas: os detalhes do processo são tão delicados que o acompanhamento pessoal de um mestre experiente é indispensável. O iniciante que, na ausência de tal acompanhamento, tente buscar o centro cardíaco corre o risco de dirigir seu pensamento sem o saber a uma região logo abaixo do coração, ou seja, para o abdômen e suas entranhas. O efeito sobre a prece será desastroso, pois esta região inferior é a fonte dos pensamentos carnais e das sensações que raptam o intelecto e o coração[59].

Por razões evidentes, o mais cuidadoso discernimento é necessário quando intervimos nas atividades instintivas do corpo, como a respiração e o batimento cardíaco. Um uso errôneo da técnica corporal pode prejudicas a saúde de um homem e perturbar seu equilíbrio mental; daí a importância de um mestre digno de confiança. Se um estaroste assim não estiver disponível, é preferível para o iniciante que se mantenha simplesmente na recitação efetiva da Prece de Jesus sem perturbar o ritmo de sua respiração ou dos batimentos de seu coração. Com frequência ele descobrirá que sem nenhum esforço consciente de sua parte as palavras da invocação se adaptarão por si sós ao ritmo de sua respiração e de seu coração. E se isto não acontecer. Ele não deve se inquietar, mas deve continuar tranquilamente o trabalho de invocação mental.

As técnicas corporais não passam de coisas acessórias, auxiliares que se revelaram válidas para alguns, mas que de modo algum são obrigatórias a qualquer custo. A Prece de Jesus pode ser praticada em sua plenitude sem nenhum método corporal. São Gregório Palamas (1296-1359), mesmo considerando as técnicas corporais como teologicamente defensáveis, as tratava como algo secundário e adequado apenas aos iniciantes[60]. Para ele, como para todos os mestres hesiquiastas, o essencial não é o controle externo do sopro, mas a invocação interior e secreta do Senhor Jesus.

Os escritores ortodoxos dos últimos cento e cinquenta anos, de modo geral, pouca relevância deram às técnicas corporais. O conselho dado pelo Bispo Inácio Briantchaninov (1807-1897) é característico a respeito:

“Aconselhamos aos nossos irmãos bem-amados que não tentem estabelecer essa técnica em si mesmos, se ela não se revelar por si só. Muitos, desejando aprender pela experiência, destruíram seus pulmões sem ganho algum. A essência da questão consiste na união do intelecto com o coração durante a Prece e isto não se realiza senão pela graça de Deus e a seu tempo, determinado por Deus. A técnica respiratória é completamente substituída pelo enunciado vagaroso da Prece, por um curto repouso ou pausa ao final, cada vez que a dizemos, e por uma respiração suave e calma, concentrando o pensamento sobre as palavras da prece, com a ajuda destes meios, podemos  facilmente alcançar um bom estado de atenção[61]

No que concerne à rapidez da recitação, o Bispo Inácio sugere:

“Para dizer a Prece de Jesus cem vezes atentamente e sem precipitação, precisamos de cerca de meia hora; mas alguns ascetas utilizam ainda mais tempo. Não diga a Prece com precipitação, uma imediatamente depois da outra. Faça uma curta pausa depois de cada Prece e assim ajude o intelecto a se concentrar. Dizer a Prece sem pausas distrai o intelecto, respire com cuidado, suave e lentamente[62]”.

Os iniciantes no uso da Prece preferirão provavelmente um ritmo um pouco mais rápido do que o proposto aqui; talvez vinte minutos para cem Preces.

Similaridades notáveis existem entre as técnicas corporais recomendadas pelos hesiquiastas bizantinos e aquelas empregadas pelo yoga e o sufismo[63]. Até que ponto essas semelhanças são resultado de pura coincidência, de um desenvolvimento independente, ainda que análogo, em tradições separadas? Se existe uma relação direta entre o Hesiquiasmo e o sufismo – e alguns paralelos são tão próximos que uma simples coincidência parece estar excluída – que parte um emprestou ao outro? Existe aqui um campo de pesquisa fascinante, embora as evidências possam ser demasiado fragmentadas para autorizar qualquer conclusão definitiva. Um ponto, entretanto, não deveria ser esquecido. Pois além das semelhanças, existem as diferenças. Todos os quadros possuem molduras e todas as molduras têm certos traços em comum; mas os quadros dentro das molduras podem ser inteiramente diferentes. E o que conta é o quadro, não a moldura. No caso da Prece de Jesus as técnicas corporais compõem de certo modo a moldura. E esta “moldura” da Prece de Jesus lembra certamente outras “molduras” não cristãs, mas isto não deve nos tornar insensíveis ao caráter único do quadro em seu interior, ao caráter distintivo da Prece. O ponto essencial na Prece de Jesus não é o ato da repetição em si mesmo, nem a maneira de sentar e de respirar, mas sim Aquele a quem nos dirigimos, e, sob este aspecto, as palavras são endereçadas sem ambiguidade ao Salvador encarnado, Jesus Cristo, Filho de Deus e filho de Maria.

A existência de uma técnica corporal relacionada à Prece de Jesus não deve nos cegar no que diz respeito ao verdadeiro caráter da Prece. A Prece de Jesus não se resume a uma técnica destinada a nos ajudar a nos concentrar ou a nos relaxar. Não é simplesmente uma amostra de “yoga cristã”, uma espécie de “meditação transcendental”, ou um “mantra cristão”, mesmo que alguns tenham tentado interpretá-la nesse sentido. Trata-se de uma invocação dirigida a outra Pessoa: ao Deus feito homem, Jesus Cristo, nosso Salvador e Redentor em pessoa. A Prece de Jesus é assim muito mais do que um método ou uma técnica isolada. Ela existe dentro de um dado contexto e, se ela for separada deste contexto, ela perde seu significado próprio.

O contexto da Prece de Jesus é antes de tudo um contexto de fé. A invocação do Nome pressupõe que aquele que diz a Prece crê em Jesus Cristo como o Filho de Deus e Salvador. Subjacente à repetição de uma fórmula verbal, deve existir uma fé viva no Senhor Jesus – naquilo que ele é e naquilo que ele fez por nós pessoalmente. Talvez a fé, em muitos de nós, seja ainda incerta e vacilante; talvez ela coexista com a dúvida; talvez nos sintamos constrangidos de gritar junto com o pai da criança possessa: “Senhor, eu creio; ajude-me a vencer minha incredulidade![64]”. Mas é preciso que haja ao menos um desejo de crer; pelo menos, em meio a todas as incertezas, uma chama de amor por este Jesus que conhecemos hoje tão imperfeitamente.

Em segundo lugar, o contexto da Prece de Jesus é um contexto de comunidade. Não invocamos o Nome enquanto indivíduos separados, confiando apenas em nossos recursos interiores, mas como membros da comunidade eclesial. Escritores como São Barsanulfo, São Gregório Sinaíta e o Bispo Teófano consideraram como estabelecido que aqueles a quem eles recomendavam a Prece de Jesus eram membros batizados da Igreja, participantes regulares da vida sacramental da Igreja pela confissão e pela santa comunhão. Nem por um instante eles encararam a invocação do Nome como um substituto dos sacramentos, mas presumiram sempre que qualquer um que dissesse a Prece seria um membro praticante e participante da comunhão da Igreja.

Hoje em dia, porém, neste período de curiosidade insaciável e de desagregação eclesiástica, existem muitos que utilizam a Prece de Jesus sem que sejam membros praticantes de alguma Igreja, às vezes mesmo sem ter uma fé clara no Senhor Jesus ou em qualquer outra coisa. Podemos condená-los? Podemos impedi-los de utilizá-la? Certamente não, uma vez que também eles estão buscando sinceramente a Fonte da vida. Jesus nunca condenou ninguém, com exceção dos hipócritas. Mas com toda humildade e com a consciência aguda de nossa própria falta de fé, temos a obrigação de considerar a situação dessas pessoas como anormal, e de adverti-las.

9.       O fim da viagem

O objetivo da Prece de Jesus, como de toda prece cristã, é que nossa oração se identifique cada vez mais à prece que é oferecida em nós por Jesus o grande Sacerdote, que nossa vida se torne uma só com sua vida, que nosso sopro se una ao Sopro Divino que sustenta o universo. O objetivo final pode ser descrito realmente pela expressão patrística da theosis, “deificação” ou “divinização”. Como diz o Arquipreste Serge Boulgakov: “O Nome de Jesus presente no coração humano confere a este o poder da deificação[65]”. “O Logos se tornou homem, dizia Santo Atanásio, para que possamos nos tornar Deus[66]”. Aquele que é Deus por natureza emprestou de nós a humanidade para que nós, os homens, pudéssemos, graças à sua divindade, nos tornarmos “partícipes da natureza divina[67]”. A Prece de Jesus, dirigida ao Logos encarnado, é um meio de realizar em nós o mistério da theosis, por meio do qual o homem realiza a verdadeira semelhança com Deus.

A Prece de Jesus, unindo-nos a Cristo, nos ajuda a tomar parte na habitação recíproca, ou pericorese, das Três Pessoas da Santíssima Trindade. Quanto mais a Prece se torna parte de nós mesmos, mais entramos no movimento do amor que circula constantemente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É deste amor que Santo Isaac o Sírio disse: “O amor é o reino do qual Nosso Senhor falou simbolicamente quando prometei aos seus discípulos que estes comeriam em seu Reino: “Vocês comerão e beberão à mesa em meu Reino[68]”. Ora, que poderiam eles comer, senão o amor? (...) Quando chegarmos ao amor, teremos alcançado a Deus e nosso caminho estará terminado: teremos chegado à ilha que se encontra para além do mundo, onde está o Pai com o Filho e o Espírito Santo, a quem sejam dados o poder e a glória![69]”.

Na tradição hesiquiasta, o mistério da theosis costuma se manifestar na forma exterior de uma visão de luz. Esta luz que os santos contemplam na prece não é nem a luz simbólica do intelecto, nem a luz dos sentidos, corporal e criada. Trata-se de nada menos do que da luz divina e incriada da Divindade que irradiou de Cristo quando se sua Transfiguração sobre o Monte Tabor, e que iluminará o mundo todo em sua segundo descida no último dia. Eis uma passagem característica sobre a luz divina, extraída de São Gregório Palamas, descrevendo a visão do Apóstolo ao ser elevado até o terceiro céu[70]: “Paulo viu ‘uma luz que não tinha limites nem para baixo, nem para o alto, nem para os lados’; ele não viu o limite de sua visão e da luz que o iluminava, como se estivesse vendo um sol infinitamente mais luminoso e maior do que o universo: e no centro ele se mantinha, inteiramente transformado em olho[71]”.

Esta é a visão de glória da qual poderemos nos aproximar pela invocação do Nome. A Prece de Jesus faz com que o brilho da Transfiguração penetre em cada recôndito de nossa vida. A repetição incessante teve dois efeitos sobre o autor anônimo dos Relatos de um Peregrino Russo. Primeiro, ela transformou sua relação para com a criação material ao seu redor, tornando todas as coisas transparentes e transformando-as em sacramentos na presença de Deus: “Quando eu orava com meu coração, tudo ao meu redor me parecia cheio de encanto e maravilhoso. As árvores, a erva, os pássaros, a terra, o ar, a luz, tudo parecia me dizer que existia por causa do homem, que tudo era testemunha do amor de Deus pelo homem, que tudo mostrava o amor de Deus e cantava em seu louvor. Assim é que eu compreendi  aquilo que a Filocalia chama de ‘o conhecimento do discurso de todas as criaturas[72]’ (...) e eu sentia um amor ardente por Jesus Cristo e por todas as criaturas de Deus[73]”. Assim falou também o Padre Boulgakov: “Brilhando através do coração, a luz do Nome de Jesus ilumina todo o universo[74]”.

Em segundo lugar, a Prece transfigurou a relação do Peregrino não apenas com o mundo material, mas como os outros homens: “Novamente eu retomava meu caminho errante. Mas eu já não caminhava como antes, cheio de preocupações. A invocação do Nome de Jesus alegrava minha viagem. Todo mundo era bom para mim, era como se cada um me amasse (...) Se alguém me fazia mal, eu não precisava de mais do que pensar: ‘Como é doce a Prece de Jesus!’, e a ferida e a cólera desapareciam e eu me esquecia de tudo[75]”.

“Tudo o que vocês fizerem ao menor dos meus pequeninos, é a mim que fizeram”. A Prece de Jesus nos ajuda a ver a Cristo em todo homem, e a todos os homens em Cristo.

Por conseguinte, a Prece de Jesus não é uma fuga ou uma negação do mundo, mas, ao contrário, ela é intensamente positiva. Ela não implica uma rejeição à criação de Deus, mas uma reafirmação do valor último de tudo e de cada um em Deus. Como diz Nadejda Gorodetzky: “Podemos colocar este Nome nas pessoas, nos livros, nas flores, em tudo o que encontramos, vemos ou pensamos. O Nome de Jesus pode se tornar a chave mística do mundo, um instrumento de oferenda oculta de tudo e de cada um, colocando o selo divino sobre o mundo. Podemos talvez falar aqui em sacerdócio de todos os crentes. Em união com nosso Grande Sacerdote, imploramos em Espírito: transforme minha oração em sacramento[76]”.

A prece é ação: orar significa ser altamente eficaz[77]. E isto é ainda mais verdadeiro em relação à Prece de Jesus do que para qualquer outra oração. Ao mesmo tempo em que ela foi escolhida para ser especificamente mencionada no ofício de profissão monástica como prece própria dos monges e dos religiosos[78], ela é também uma prece própria para os leigos e casados, para os doutores e p0siquiatras, para os trabalhadores sociais e para os motoristas de ônibus. A invocação do Nome, bem praticada, engaja a cada um mais profundamente na tarefa que lhe está assinalada; ela o torna mais eficaz sua ação, ela não o separa dos outros, mas une as pessoas entre si sensibilizando-as em seus medos e suas angústias de uma maneira que nunca existiu antes. A Prece de Jesus faz de cada um “um homem para os outros”, um instrumento vivo da paz de Deus, um centro dinâmico de reconciliação.




[1] Tito Colliander, Le Chemin des ascètes, Bellefontaine, p. 73.
[2] Citado no livro do higoumeno Chariton de Valamo, L'Art de la prière : Anthologie de textes spirituels sur la Prière du coeur, apresentado pelo Arquimandrita Kallistos Ware. Bellefontaine, 1976, p. 81.
[3] Capítulos sobre a Prece, 113 (PG, 150, 1280A). Ver Kallistos Ware, "The Jesus Prayer in Saint Gregory of Sinai", Eastern Churches Review, IV,1972, p. 8.
[4] Gálatas 2: 20.
[5] João 3: 30.
[6] Citação do Salmo 118 (119), 126. Em algumas versões em inglês da Liturgia, traduz-se assim: "É tempo de agir (de fazer o sacrifício para o Senhor)", mas a alternativa que utilizamos é mais rica de sentidos e é preferida por muitos comentadores ortodoxos. O original grego utiliza a palavra kairos: "É o kairos para o Senhor agir. "Kairos tem aqui o significado específico de momento decisivo, de momento oportuno; aquele que ora capta este kairos. Voltaremos a este ponto.
[7] Capítulos sobre a Prece, 113 (PG, 150, 1277D).
[8] Centúria, 4 (PG, 147. 637D). A ideia da prece como descoberta da habitação de Deus em nós pode também ser expressa em termos de Eucaristia.
[9] A Prece de Jesus, por exemplo, não é mencionada nos textos autênticos de são Simão o Novo Teólogo, nem na vasta antologia espiritual de Evergetinos (ambos do século X).
[10] Existia naturalmente uma devoção cordial ao Santo Nome de Jesus no Ocidente medieval e também na Inglaterra. Mesmo possuindo algumas diferenças em relação à Tradição Bizantina, existem também paralelos evidentes. Este artigo não pretende discutir a invocação do Nome no Ocidente. Ver Kallistos Ware, "The Holy Name of Jesus" in East and West : the Hesychasts and Richard Rolle, in Sobornost, 4, 2, 1982, p. 163-184.
[11] J.D. Sallinger, Frany and Zooey.
[12] Um Monge da Igreja do Oriente, "On the Invocation of the Name of Jesus", The Fellowship of Saint Alban and Saint Sergius, Londres, 1950, p. 5-6.
[13] Sur la tranquillité et la prière, 2 (PG, 150, 1316B).
[14] I Tessalonicenses 5: 17.
[15] L'Art de la Prière, p. 122.
[16] Frère Laurent de la Résurrection (1611-1691), carmelita descalço, The Practice of the Presence of God, éd. D. Attwater, Paraclete Books, Londres, 1962, p. 13, 16.
[17] Archimandrite Sofrony, The Undistorted lmage: Staretz Silouan, Londres, 1958, p. 40-41. Trad: Starets Silouane, moine du Mont-Athos, éd. Présence, 1973. Ver cap. VI "De la prière pure".
[18] Citado em E. Behr-Sigel, "La Prière à Jésus ou le mystère de la spiritualite monastique orthodoxe", Dieu vivant, 8, 1947, p. 81.
[19] L'Art de la Prière, p. 149.
[20] Relatos de um peregrine russo, Seuil (Livre de Vie), p. 53.
[21] I Colossenses 12: 3.
[22] H. Berthold, Makarios/Symeon, Reden und Briefe, vol. II, Berlin, 1973, p. 290.
[23] Mateus 1: 21.
[24] Similitudes, IX, 14.
[25] Gênesis 32: 29.
[26] Juízes 13: 18.
[27] Gênesis 17: 5.
[28] Gênesis 32: 28.
[29] Atos 13: 9.
[30] Ver J. Pederson, Israël, vol. l, Londres/Copenhague, 1926, p. 245-259.
[31] Sobre a veneração de Nome entre os cabalistas judeus da Idade Média, ver Gershom G. Scholem, Major Trends in Jewish Mysticism, 3ª. ed., Londres, 1955, p. 132-133 ; compare-se o modo de tratar este tema no notável romance de Charles Williams, All Hollow’s Eve, Londres, 1945.
[32] Lucas 11: 2-4.
[33] João 16: 23.
[34] Mateus 28: 19.
[35] Atos 4: 10-12.
[36] Filipenses 2: 10.
[37] Apocalipse 2: 17.
[38] Correspondance, Volos, éd. Sotirios Schoinas, 1960, p. 693 ; trad. L. Regnault et P. Lemaire, Solesmes, 1972, p. 692.
[39] A escada santa, 21 et 27 (PG 88, 945C et 1112C).
[40] Ver Kallistos Ware, "A Prece de Jesus em São Gregório Sinaíta", art. cit. p. 14-15.
[41] Mateus 6: 7.
[42] L'Art de la Prière, p. 130.
[43] Correspondance, éd. Schoinas, 91 ; trad. Regnault et Lemaire, 166.
[44] Sur la pénitence, 11 (PG 65, 981B).
[45] Cent textes sur la Connaissance et le Discernement, 59, éd. E. des Places, Seuil (SC 5bis), 1955, p. 119.
[46] Chapitres, 27.
[47] Sur la Prière, 70 (PG 79, 1181C).
[48] Persévérance dans la Prière, 7 (PG 150, 1340D).
[49] L'Art de la Priére, p. 136.
[50] L'Art de la Priére, p. 135.
[51] Sacrement de l'amour : le Mystére conjugal à la lumiére de la Tradition orthodoxe, DDB, 1980, p. 83.
[52] Richard Kehoe, "The Scriptures as Word of God", The Eastern Churches Quarterly, VIII, 1947, p. 78.
[53] Citado em John B. Dunlop, Starets Amvrosy : Model for Dostoievsky's Starets Zossima, Belmont, Mass., 1972, p. 22.
[54] Homélies XV, 32 et XLIII, 7, Berlin, éd. Dorries/Klostermann/Kroeger, 1964, p. 146, 289.
[55] Relatos de um peregrino russo, p. 36.
[56] O Estaroste Silouane do Mont-Athos (1866-1938) não havia praticado por mais de três semanas a Prece de Jesus quando ela desceu em seu coração e se tornou contínua. Seu biógrafo, o arquimandrita Sophrony, observou com justeza que este foi "um dom sublime e raro; somente mais tarde o Padre Silouane se deu conta do quanto esse dom é raro”. The Undistorted Image, p.24. Para uma discussão mais ampla sobre esta questão, ver Kallistos Ware, "Pray without Ceasing : The Ideal of Continual Prayer in Eastern Monasticism", Eastern Churches Review, II, 1969, p. 259-261.
[57] Mystic Treatises por Isaac de Nínive, trad. inglesa por A.J. Wensinck, Amsterdam, 1923, p. 113.
[58] . "Elias subiu ao monte Carmelo. Lá ele se ajoelhou e colocou sua cabeça entre os joelhos " (1R 18,42). Como exemplo de um monge grego orando nesta posição, num manuscrito do século XI, ver J. Meyendorff, Saint Grégoire Palamas et la mystique orthodoxe, Paris, 1959, p. 92.
[59] Para uma bibliografia mais ampla sobre o controle da respiração, ver Kallistos Ware : “The Jesus Prayer in Saint Gregory of Sina ", art. cit. p. 14, nota 55. Sobre os diferentes centros físicos no homem e suas implicações espirituais, ver o doutor André Bloom (atualmente metropolita Antoine de Suroge), "Contemplation et ascèse : contribution orthodoxe, Technique et contemplation in Études carmélitaines, 28, Bruges, 1949, p. 49-67.
[60] Grégoire Palamas, Défense des saints hésychastes, I, II, 7, Louvain, éd. J. Meyendorff, 1959, vol. I.
[61] The Arena: an Offering to Contemporary Monasticism, trad. Arquimandrite Lazarus, Madras, 1970.
[62] Op. cit., p. 81.
[63] Ver L.Gardet, "Un problème de mystique comparée : la mention du Nom divin (dhikr) dans la mystique musulmane", Revue thomiste, LII, 1952, p. 642-679 ; LIII, 1953, p. 197-216.
[64] Marcos 9: 24.
[65] L'Orthodoxie, Lausanne, 1980, p. 164.
[66] L'Incarnation du Verbe, 54.
[67] II Pedro 1: 4.
[68] Lucas 22: 30.
[69] Mystic Treatises, trad. Wensinck, p. 211-212.
[70] II Colossenses 12: 24.
[71] Défense des saints hésychastes, I, III, 21, éd. Meyendorff, vol. I, p. 156 s.
[72] Cf. Máximo o Confessor - Centúrias sobre a teologia e a economia da encarnação do Verbo de Deus - Primeira Centúria, 66.
[73] Relatos de um peregrine russo, p. 56-57, 69.
[74] L'Orthodoxie, p. 164.
[75] Relatos de um peregrine russo, p. 38, 40.
[76] "The Prayer of Jesus , Blackfriars XXIII, 1942, p. 76.
[77]  Ver Tito Colliander, Le Chemin des ascètes, p. 64 s
[78] Na investidura de um monge, segundo o costume grego e russo, dá-se a ele um terço (komvoschoinion). Entre os russos, o abade entrega o terço com estas palavras: Tome, meu irmão, este glaivo do Espírito, que é a Palavra de Deus, a fim de orar a Jesus continuamente; pois você deve ter sempre o  Nome de Jesus no intelecto, no coração e nos lábios, dizendo sem cessar: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim pecador”." Ver N.F. Robinson SSJE, Monasticism in the Orthodox Churches, Londres/Milwaukee, 1916, p. 159-160. Observe-se a menção aos três níveis da prece: lábio, intelecto e coração.

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