1.
Prece e silêncio
“Quando você orar, disse com sabedoria um escritor ortodoxo da
Finlândia, seu ‘eu’ deve se calar. Cale-se, e deixe a prece falar[1]”.
Realizar o silêncio: isto é tudo, e é o mais duro e mais decisivo na arte da
prece. O silêncio não é puramente negativo – uma pausa entre palavras, uma
parada temporária do discurso – mas, bem compreendido, ele é altamente
positivo: uma atitude de despertar atento, de vigilância e, acima de tudo, de
escuta. O hesiquiasta, o homem que alcançou a hesíquia, a paz e o silêncio
interiores, é por excelência aquele que escuta. Ele escuta a voz da prece de
seu próprio coração, e compreende que esta voz não é sua, mas a de um Outro que
lhe fala desde dentro.
A relação entre orar e fazer silêncio ficará mais evidente se
considerarmos quatro curtas definições. A primeira é extraída do Concise Oxford
Dictionary, o qual descreve a prece como “um solene pedido dirigido a Deus
(...) uma fórmula utilizada para orar”. A prece aqui é vista como alguma coisa
expressa em palavras e, de um modo mais específico, como um ato de pedir a Deus
a concessão de algum benefício. Mas aqui estamos ainda no nível da prece
“exterior”, mais do que no grau da prece interior. Poucos de nós se sentiriam
satisfeitos com tal definição.
Nossa segunda definição é a de um estaroste russo do século XIX, já
bem menos exterior. “Na prece, diz-nos o Bispo Teófano o Recluso (1815-1894), o
principal consiste em se colocar diante de Deus com o intelecto no coração, e
de se manter assim dia e noite, até o fim da vida[2]”.
Orar, assim definido, não consiste mais em simplesmente pedir coisas, e pode
perfeitamente se fazer sem nenhum concurso de palavras. Orar é colocar-se
diante de Deus, entrar numa relação imediata e temporal com ele; implica saber
em cada nível de nosso ser, do mais instintivo ao mais intelectual, do
inconsciente até o mais agudo extremo da consciência, que estamos em Deus e que
ele está em nós. Para assegurar e aprofundar nossas relações pessoais com os
outros seres humanos, não precisamos estar constantemente apresentando demandas
e utilizando palavras; quanto mais nos conhecemos e nos amamos uns aos outros,
menos temos necessidade de expressar verbalmente nossa atitude recíproca. O
mesmo acontece com nossa relação pessoal com Deus.
Nessas duas definições, a ênfase é colocada principalmente sobre o que
faz o homem, mais do que sobre o que Deus faz. Mas na relação pessoal da prece,
é o parceiro divino e não o humano que toma a iniciativa e cuja ação é
fundamental. Isto é o que aparece na nossa terceira definição, emprestada a São
Gregório o Sinaíta (1255-1346). Num texto minucioso no qual ele coloca lado a
lado alguns epítetos, num esforço para descrever a verdadeira realidade da
prece interior, ele encerra subitamente com uma simplicidade inesperada: “Por
que falar tanto? A prece é Deus, que faz tudo em todos[3]”.
“A prece é Deus” – não é alguma coisa da qual eu tenho a iniciativa, mas da qual
eu participo; não é essencialmente algo que eu faço, mas que Deus faz em mim:
este é o sentido da frase de São Paulo, “Não eu, mas Cristo em mim[4]”.
O caminho da prece interior está indicado exatamente nas palavras de São João
Batista a respeito do Messias: “É preciso que ele cresça e que eu diminua[5]”.
É neste sentido que orar consiste em permanecer em silêncio. Cale-se, e deixe a
prece falar – mais exatamente, deixe Deus falar. A verdadeira prece interior
consiste em parar de falar e escutar a voz sem palavras de Deus em nosso
coração; significa deixar de fazer as coisas por si e entrar na ação de Deus.
No início da Liturgia Bizantina, quando terminam as cerimônias preliminares e
que tudo está pronto para começar a Eucaristia em si, o diácono se aproxima do
sacerdote e diz: “É tempo de o Senhor agir[6]”.
Esta é exatamente a atitude do praticante, não apenas na prece eucarística, mas
em toda prece, seja pública ou privada.
Nossa quarta definição, emprestada mais uma vez a São Gregório
Sinaíta, indica com mais precisão o caráter desta ação do Senhor em nós: “A
prece, diz ele, é a manifestação do Batismo[7]”.
A ação do Senhor, naturalmente, não é restrita apenas aos batizados: Deus está
presente e opera em todos os homens, devido ao fato de que cada um foi criado à
sua imagem e à semelhança divina. Mas esta imagem foi obscurecida e velada,
embora não totalmente obliterada, pelo pecado do homem. E ela é restaurada em
sua beleza original e em seu esplendor pelo sacramento do Batismo, por meio do
qual Cristo e o Espírito Santo vêm habitar naquilo que os Padres chamam de “as
profundezas e a câmara secreta de nosso coração”. Mas na maior parte das vezes
o Batismo é recebido na infância, e não guardamos dele nenhuma lembrança
consciente. Embora o Cristo do Batismo e a morada do Paráclito jamais cessem de
operar em nós, a maioria de nós, salvo raras exceções, permanece inconsciente
dessa presença interior e de sua ação. A verdadeira prece, assim, significa a
redescoberta e a “manifestação” dessa graça batismal. Orar, é passar do estado
em que a graça está presente em nossos corações secreta e inconscientemente para
o ponto de plena percepção interna e de conhecimento consciente, experimentando
e “sentindo” a atividade do Espírito de modo direto e imediato. Assim falaram
os Santos Calixto e Inácio Xanthopouloi (século XIV): “O objetivo da vida
cristã é de retornar à graça perfeita do Espírito Santo, fonte da vida, que nos
foi dada no começo por meio do divino Batismo[8]”.
“No meu começo está meu fim” O objetivo da prece pode se resumir
nestas palavras: “Torne-se aquilo que você é”. Torne-se, consciente e
ativamente, aquilo que você já é potencial e secretamente, em virtude de sua
criação à imagem de Deus e à sua recriação pelo Batismo. Torne-se aquilo que
você é: mais exatamente, volte a si, descubra aquilo que já é seu; escute
aquele que nunca cessa de falar em você; possua aquele que já o possui. Eis a
mensagem de Deus a quem deseja orar: “Você não me procurará a menos que já me
tenha encontrado”.
Mas por onde devemos começar? Como poderemos aprender a parar de falar
e começar a escutar? Em lugar de simplesmente falar com Deus, como poderemos
fazer nossa a prece na qual Deus nos fala? Como passar da prece expressa em
palavras à prece silenciosa, de uma prece “esforçada” a uma prece “que age por
si só” (para usarmos a terminologia do Bispo Teófano), da “minha” prece à prece
de “Cristo em mim”? Um caminho para quem deseja empreender esta viagem é a
invocação do Nome.
2.
“Senhor Jesus...”
Naturalmente, a invocação do Nome não é p único caminho. Nenhuma
relação autêntica entre pessoas pode existir se não existir uma liberdade e uma
espontaneidade recíprocas, e isto é particularmente verdade em relação à prece
interior. Não existe regras fixas e invariáveis, impostas como uma necessidade
àqueles que buscam a oração; tampouco existe uma técnica mecânica, seja
corporal, seja mental, que possa forçar Deus a manifestar sua presença. Sua
graça é sempre concedida como um dom gratuito e não pode ser ganha
automaticamente mediante um método ou uma técnica. O encontro entre Deus e o
homem no reino do coração é assim caracterizada por um inesgotável variedade de
modelos. Existem mestres espirituais da Igreja Ortodoxa que falam muito pouco,
ou quase nada, da Prece de Jesus[9].
Mas, mesmo que ela não possua o monopólio exclusivo no domínio da prece
interior, a Prece de Jesus se tornou para inúmeros cristãos orientais através
dos séculos o caminho por excelência, a via real. E não apenas para os cristãos
orientais[10]:
no reencontro entre a Ortodoxia e o Ocidente que vem acontecendo nos últimos
anos, não há provavelmente nenhum elemento da herança ortodoxa que tenha
provocado mais interesse do que a Prece de Jesus, e nenhum livro exerceu
sedução maior do que os Relatos de um
Peregrino Russo. Este livro enigmático, que era praticamente desconhecido
na Rússia pré-revolucionária, conheceu um surpreendente sucesso no mundo não
ortodoxo. Depois dos anos 20 do século passado ele foi publicado numa grande
diversidade de línguas. Os leitores de J. D. Salinger se lembrarão do choque
que produziu sobre Franny “este pequeno livro, encapado em seda verde[11]”.
Mas no quê, perguntamos, reside a sedução particular e a eficácia da
Prece de Jesus? Talvez ela se apoie sobre quatro pontos: primeiramente, na sua
simplicidade e facilidade; depois, em seu caráter completo; em terceiro lugar,
no poder do Nome; e por fim, na disciplina espiritual da repetição
perseverante. Vamos retomar cada um desses temas pela ordem.
3.
Simplicidade e facilidade
A invocação do Nome é uma oração de enorme simplicidade, acessível a
todo cristão, mas que ao mesmo tempo conduz aos mais profundos mistérios da
contemplação. Quem se propuser a dizer a Prece de Jesus por longos períodos a
cada dia – e, mais ainda, quem quiser exercer o controle da respiração e
utilizar outros exercícios físicos em relação à Prece – sem dúvida irá precisar
da ajuda de um estaroste, de um guia espiritual experiente. Estes guias são
extremamente raros hoje em dia. Mas quem não puder ter um contato pessoal com
um estaroste pode da mesma forma praticar a Prece sem nenhum temor, tanto
quanto puderem por períodos determinados – de início, não mais do que dez a
quinze minutos de cada vez – e tanto quanto puderem sem que interfiram nos
ritmos naturais do corpo.
Nenhum conhecimento especializado, nenhuma formação específica é
requerida antes de começar a Prece de Jesus. Para o iniciante, basta dizer:
comece, simplesmente. “Para caminhar, basta o primeiro passo; para nadar,
atire-se à água. O mesmo se dá com a invocação do Nome. Comece a pronunciá-lo
com adoração e amor. Una-se a ele. Repita-o. Não pense estar invocando o Nome:
pense simplesmente em Jesus. Diga seu Nome lentamente, doce e tranquilamente[12]”.
A forma exterior da Prece se aprende facilmente. Fundamentalmente, ela
consiste nestas palavras: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de
mim”. Mas não existe nestas palavras uma uniformidade estrita. A forma verbal
pode ser reduzida, e podemos dizer: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”,
ou “Senhor Jesus” ou mesmo apenas “Jesus”, embora esta última forma seja pouco
difundida. Inversamente, a forma possa ser estendida, acrescentando-se a
palavra “pecador” no final, sublinhando assim seu aspecto penitencial. Algumas
vezes se inserem também invocações à Mãe de Deus e aos santos. O único elemento
essencial e invariável é a inclusão do Nome divino “Jesus”. Cada um é livre
para descobrir através de sua experiência pessoal a forma particular que mais
de perto responde às suas necessidades. A fórmula precisa empregada pode naturalmente
variar de tempos em tempos, desde que não isso aconteça com frequência; pois,
como adverte São Gregório Sinaíta, “as árvores que são frequentemente
transplantadas não criam raízes[13]”.
Existe uma idêntica facilidade e maneabilidade no que concerne às circunstâncias
exteriores nas quais a Prece é recitada. Podemos distinguir duas maneiras de
utilizar a Prece: a maneira “livre” e a maneira “formal”. O uso livre designa a
recitação da Prece quando estamos ocupados com nossas atividades habituais
durante o dia. Ela pode ser dita, uma ou muitas vezes, em momentos dispersos,
que, de outra forma, seriam desperdiçados: quando estamos ocupados em tarefas
familiares ou semiautomáticas, como vestir-se, banhar-se, colocar os sapatos,
regar o jardim; quando caminhamos ou dirigimos, quando esperamos na fila do
ônibus ou num engarrafamento; num momento de calma antes de um encontro
especial ou difícil; quando não se consegue dormir ou antes de emergir para a
plena consciência ao despertar. Uma parte do notável valor da Prece de Jesus
reside precisamente no fato de que, em razão mesma de sua simplicidade, podemos
dizê-la em condições nas quais as formas mais complexas de oração não seriam
praticáveis. Ela auxilia especialmente nos momentos de tensão e de profunda
angústia.
Este uso “livre” da Prece de Jesus nos torna capazes de preencher o
vazio que existe entre os tempos “fortes” de oração – seja nos ofícios da
Igreja, ou a sós em nosso quarto – e as atividades normais da vida cotidiana.
“Orem sem cessar”, insiste São Paulo[14]:
mas como é isto possível, quando temos tantas coisas urgentes a fazer? O Bispo
Teófano nos indica o verdadeiro método em sua máxima: “Mãos no trabalho,
inteligência e coração com Deus[15]”.
A Prece de Jesus, ao se tornar uma repetição frequente quase habitual e
inconsciente, ajuda-nos a nos mantermos na presença de Deus onde quer que
estejamos – não apenas no santuário da solidão, mas na cozinha, na oficina, no
escritório. Assim nos tornamos semelhantes ao Irmão Laurent, que “estava mais
unido a Deus em suas atividades normais do que nos exercícios religiosos”. “É
uma grande ilusão, sublinhava ele, imaginar que o tempo da prece deva ser
diferente de todos os outros momentos, pois temos tanta obrigação de estarmos
unidos a Deus pelo trabalho no tempo do trabalho quanto pela oração no tempo da oração[16]”.
Essa recitação “livre” da Prece de Jesus é complementada e reforçada
pelo seu uso “formal”, quando concentramos toda nossa atenção em dizer a Prece,
excluindo toda atividade externa. Aqui, do mesmo modo, não existem regras
rígidas, mas variedade e versatilidade.
Nenhuma postura particular é essencial. Na prática ortodoxa, a Prece é
correntemente recitada estando-se sentado, mas podemos dizê-la também em pé ou
ajoelhados – e mesmo, nos casos de fraqueza corporal ou de fadiga física –
deitados. Normalmente ela é recitada numa obscuridade completa ou com os olhos
fechados, e não com os olhos abertos diante de um ícone iluminado por velas ou
por uma lâmpada votiva. O estaroste Silouane do Monte Athos (1866-1938), quando
dizia a Prece, tinha o costume de fechar seu despertador num armário para não
ouvir seu tique-taque, e depois colocava sobre os olhos e ouvidos seu grosso
capuz de monge[17].
A obscuridade, porém, pode ter um efeito soporífero. Se nos sentirmos
sonolentos sentados ou ajoelhados recitando a Prece, então devemos nos levantar
por alguns instantes, fazer o sinal da cruz ao final de cada Prece, e nos
inclinarmos numa profunda saudação, tocando o chão com os dedos da mão direita.
Podemos mesmos fazer a cada vez uma prostração, tocando o solo com a testa.
Quando recitamos a Prece sentados, devemos nos assegurar de que a cadeira não
seja muito confortável; de preferência, ela não deve ter braços nem encosto. A
Prece também pode ser recitada em pé, com os braços em cruz.
Um terço ou rosário (o komvomschoinion,
ou tchotki, normalmente com cem nós)
costuma ser empregado em relação com a Prece, em princípio não para contar o
número de vezes que ela é repetida, mas para auxiliar na concentração e no
estabelecimento de um ritmo regular. A medida quantitativa, seja com um terço
ou por quaisquer outros modos, não é encorajada. É verdade que, na primeira
parte dos Relatos de um Peregrino Russo,
uma grande ênfase é colocada pelo estaroste sobre o número exato de vezes que
se deve repetir cotidianamente a Prece: três mil vezes, aumentando depois para
seis mil e finalmente para doze mil. O Peregrino recebe a instrução de dizer o
número exato, nem uma vez a mais ou a menos. Tamanha atenção colocada sobre a
quantidade é bastante inabitual. É possível que não se trate de uma simples
quantidade, mas da atitude interior do Peregrino: o estaroste deseja colocar à
prova sua obediência e sua prontidão para observar sem desvios uma regra
estabelecida. Mais característico é o conselho do Bispo Teófano: “Não se
inquiete com o número de vezes que você diz a Prece. Que seu único cuidado seja
que ela brote de seu coração com a força vivificante de uma fonte de água viva.
Expulse de seu espírito todo pensamento baseado em quantidade[18]”.
Algumas vezes a Prece é recitada em grupo, mas o mais comum é que seja
feita a sós; as palavras podem ser ditas em voz alta ou silenciosamente. No
costume ortodoxo, quando dita em voz alta ela é falada, não cantada. Nada deve
haver de forçado ou de rebuscado na recitação. As palavras não devem ser
formadas com exagerada ênfase ou com violência interna, mas a Prece deve
estabelecer ela própria seu ritmo e sua acentuação, de tal modo a que ela
chegue a soar em nós em virtude da melodia que lhe é intrínseca. O estaroste
Parfenii de Kiev compara o movimento sinuoso da Prece ao doce murmúrio de um
regato[19].
Por tudo o que foi dito, podemos ver que a invocação do Nome é uma
prece para todos os tempos, Cada qual pode utilizá-la, sempre e em toda parte.
Ela convém ao iniciante tanto quanto aos experientes; podemos dizê-la em
companhia de outras pessoas ou estando a sós; ela é apropriada no deserto ou na
cidade, em meio a um tranquilo retiro ou na maior correria e agitação. Ela
jamais fica deslocada.
4.
Caráter completo
Teologicamente, como o declara com razão o Peregrino Russo, a Prece de
Jesus “encerra em si mesma toda a verdade do Evangelho”: trata-se de “um resumo
dos Evangelhos[20]”.
Numa única e curta fórmula, ela incorpora os dois principais mistérios da fé
cristã, a Encarnação e a Trindade. Em primeiro lugar, ela fala das duas
naturezas do Cristo homem-Deus (Theanthropos):
de sua humanidade, pois ele é invocado por seu nome humano “Jesus”, que sua mãe
Maria lhe deu depois de seu nascimento em Belém; e de sua eterna divindade,
pois ele também é chamado de “Senhor” e de “Filho de Deus”. Em segundo lugar, a
Prece fala por implicação, embora não explicitamente, das três Pessoas da
Trindade. Quando ela se dirige à Segunda Pessoa de Jesus, ela o faz também ao
Pai, pois Jesus é chamado de “Filho de Deus”; e o Espírito Santo acha-se
igualmente presente na Prece, pois ninguém pode dizer “Jesus e Senhor, se não
for no Espírito Santo[21]”.
Assim, a Prece de Jesus é simultaneamente cristocêntrica e trinitária.
Do ponto de vista da devoção, ela não é menos completa. Ela abarca os
dois momentos principais da devoção cristã: o “momento” da adoração, da
contemplação da glória de Deus e do reencontro no amor; e o “momento” da
penitência, o sentido da indignidade e do pecado. Existe um movimento circular
no interior da Prece, uma sequência de subidas e descidas. Na primeira metade
da Prece nós “nos atiramos” para Deus: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus...”,
e na segunda metade retornamos a nós mesmos cheios de compunção: “tem piedade
de mim, pecador”. Aqueles que experimentaram o dom do Espírito, como
estabelecido nas Homilias de Macário, têm consciência das duas coisas ao mesmo
tempo: de um lado, da alegria e da consolação; de outro, do tremor, do temor e
da tristeza[22].
Esta é a dialética interna da Prece de Jesus.
Estes dois momentos – a visão da glória divina e a consciência do
pecado do homem – estão unidos e reconciliados num terceiro momento, quando
pronunciamos a palavra “piedade”. A “piedade” indica que o abismo entre a
“justiça” de Deus e a criação decaída foi preenchido. Aquele que diz a Deus:
“tem piedade”, lamenta-se por sua própria impotência ao mesmo tempo em que
lança um grito de esperança. Ele não fala apenas do pecado, mas de sua
superação. Ele afirma que Deus em sua glória nos aceita, embora sejamos
pecadores, pedindo-nos em troca que aceitemos que somos aceitos. Assim, a Prece
de Jesus contém não apenas o apelo ao arrependimento, mas uma certeza de perdão
e de salvação. O coração da Prece – o próprio Nome de Jesus – significa
exatamente esta salvação: “Vocês chamarão pelo Nome de Jesus, pois ele salvará
seu povo do pecado[23]”.
Mesmo havendo uma tristeza pelo pecado na Prece de Jesus, esta tristeza não é
desesperançada, mas é “criadora de alegria”, segundo a expressão de São João
Clímaco.
Estas são algumas das riquezas, a um tempo teológicas e devocionais,
presentes na Prece de Jesus; presentes, inclusive, não apenas de forma
abstrata, mas de modo vivificante e dinâmico. O Valor particular da Prece de
Jesus repousa no fato de que ela torna vivas essas verdades, de tal modo que
elas podem ser captadas não só exterior e teoricamente, mas com toda a
plenitude de nosso ser. Para compreendermos porque a Prece de Jesus possui
tamanha eficácia, devemos agora nos voltar para dois aspectos mais profundos: o
poder do Nome e a disciplina da repetição.
5.
O poder do Nome
“O Nome do Filho de Deus é grande e sem limites e sustenta o universo
inteiro”. Assim afirma o Pastor de Hermas[24],
e nós não seremos capazes de apreciar o papel da Prece de Jesus na
espiritualidade ortodoxa a menos que tenhamos alguma intuição do poder
intrínseco e da força do Nome divino. Se a Prece de Jesus é mais eficaz do que
outras invocações, é porque ela contém o Nome de Deus.
No Antigo Testamento, como em muitas culturas arcaicas, existe uma
identidade efetiva entre a alma do homem e seu nome. Toda a sua personalidade,
com todas as suas particularidades e toda sua energia, tudo está presente em
seu nome. Conhecer o nome de uma pessoa equivale a ter uma intuição precisa de
sua natureza e, assim, criar uma relação sólida com ela – e talvez até chegar a
ter controle sobre ela. É por isso que o misterioso mensageiro que combate com
Jacó no vau de Jacó se recusou a revelar seu nome[25].
A mesma atitude se reflete na resposta do ano a Manué: “Por que você pergunta
meu nome, sabendo que ele é secreto?[26]”.
Uma mudança de nome indica uma mudança decisiva na vida de um homem, como
quando Abrão se torna Abrahão[27],
ou quando Jacó se torna Israel[28].
Da mesma forma, Saulo se torna Paulo depois de sua conversão[29];
e um monge recebe um novo nome quando de sua profissão de fé, habitualmente não
escolhido por ele, para indicar a renovação radical na qual se engajou.
Na tradição hebraica, fazer alguma coisa em nome de outro, ou invocar
seu nome e dele se recomendar, são atos de um poder e peso extremos. Invocar o
nome de uma pessoa equivale a torná-la efetivamente presente. “Quando
mencionamos um nome o tornamos vivo. O nome imediatamente chama pela alma que
ele designa; por isso existe um significado tão profundo na simples menção do
nome[30]”.
Tudo que vale para os nomes humanos é verdadeiro num grau
incomparavelmente mais elevado para o Nome divino. O poder e a glória de Deus
estão presentes e ativos em Seu Nome. O Nome de Deus é numen praesens, Deus conosco, Emanuel. Invocar o Nome de Deus com
atenção e intenção, deliberadamente, equivale a se colocar em sua presença,
abrir-se à sua energia, oferecer-se como instrumento e sacrifício vivo em suas
mãos. Era tão ardente o sentido da majestade do Nome de Deus no judaísmo
tardio, que o “tetragrama” não era pronunciado em voz alta no serviço da
sinagoga: o Nome do Altíssimo era considerado como demasiado terrível para ser
pronunciado[31].
Esse entendimento hebraico do Nome passa do Antigo Testamento para o Novo.
Os demônios são expulsos e o homens são curados pelo Nome de Jesus, pois este
Nome tem poder. Se considerarmos com precisão este poder do Nome, muitos textos
familiares adquirem um significado mais porte e mais completo, como, por
exemplo, a frase do Pai Nosso: “santificado seja o vosso Nome[32]”;
a promessa de Cristo na última ceia: “Tudo o que vocês pedirem ao Pai em meu
Nome ele lhes concederá[33]”;
seu mandamento final aos apóstolos: “Vão, ensinem as nações, batizando-os em
Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo[34]”;
a proclamação de São Pedro dizendo que não há salvação senão “no Nome de Jesus
Cristo de Nazaré[35]”;
as palavras de São Paulo: “Que todo joelho se dobre ante o Nome de Jesus[36]”;
o nome novo e secreto escrito sobre a pedra branca que nos será dado no século
futuro[37].
É essa reverência bíblica em relação ao Nome, que forma a base e o
fundamento da Prece de Jesus. O Nome de Deus está essencialmente ligado à sua
pessoa e assim a invocação do Nome divino possui um autêntico caráter
sacramental, servindo como sinal de sua presença e de sua ação invisível. Para
o fiel cristão de hoje, como nos tempos apostólicos, o Nome de Jesus tem poder.
Segundo as expressões dos dois anciãos de Gaza, os santos Barsanulfo e João de
Gaza (século VI), “a lembrança do Nome de Deus destrói inteiramente todo mal[38]”.
“Fustigue seus inimigos com o Nome de Jesus, nos incita São João Clímaco, pois
não existem armas mais poderosas no céu e sobre a terra (...) Que a lembrança
de Jesus esteja associada à sua respiração e assim você conhecerá o calor da
tranquilidade[39]”.
O Nome tem poder, mas uma repetição puramente mecânica não terá nenhum
efeito em si mesma. A Prece de Jesus não é um talismã mágico. Como acontece em
todas as operações sacramentais, a cooperação entre o homem e Deus é requerida
através de sua fé ativa e de seu esforço de ascese. Nós somos chamados a
invocar o Nome com recolhimento e vigilância interior, encerrando o pensamento
nas palavras da Prece, sabendo que é Aquele a quem nos endereçamos que nos
responde em nosso coração. Uma prece assim urdida não é jamais fácil no estágio
inicial, e ela é descrita com justeza pelos Padres como um martírio oculto. São
Gregório Sinaíta fala frequentemente “da contrição e do trabalho” empregados
por quem segue o caminho do Nome; um “esforço contínuo” é exigido; eles serão
tentados a renunciar, “por causa do sofrimento persistente que provém da
invocação interior do espírito”. “Suas espáduas irão incomodar e vocês sentirão
dores de cabeça, ele adverte, mas perseverem com constância e com um ardente
desejo, procurando pelo Senhor nos seus corações[40]”.
Somente por meio dessa paciente fidelidade poderemos descobrir o verdadeiro
poder do Nome.
Esta perseverante fidelidade toma a forma, antes de tudo, de uma
atenta e frequente repetição. Cristo disse a seus discípulos que não usassem
“vãs repetições[41]”,
mas a repetição da Prece de Jesus, quando feita com sinceridade e concentração
interior, não é de modo algum “vã”. O ato da repetição incessante do Nome tem
um efeito duplo: ele começa por unificar nossa oração e ao mesmo tempo a torna
mais interior.
6.
Unificação
Assim que ensaiamos seriamente orar em espírito e verdade,
imediatamente nos tornamos conscientes de uma maneira aguda de nossa
desagregação interior, de nossa falta de unidade e de integridade. Apesar de
todos os nossos esforços para nos mantermos diante de Deus, os pensamentos
continuam a se mover sem detença e sem direção em nossa cabeça, como o voo
errático das moscas (Bispo Teófano) ou os saltos acrobáticos dos macacos de
galho em galho (Ramakrishna). Contemplar significa antes de tudo estar presente
onde se está – estar aqui e agora. Mas normalmente nós nos vemos incapazes de
impedir nosso espírito de vagabundear sem objetivo no tempo e no espaço.
Relembramos o passado, antecipamos o futuro, fazemos planos para o que devemos
fazer mais tarde; as pessoas e os lugares se apresentam a nós numa sucessão sem
fim. Não temos poder para nos recolhermos em nós mesmos no único lugar onde
deveríamos estar: aqui, na presença de Deus. Somos incapazes de viver
plenamente no único instante do tempo que existe verdadeiramente: agora, o
presente imediato. Esta desagregação interior é uma das mais trágicas
consequências da Queda. As pessoas que conseguem adquirir alguma coisa, como já
se constatou, são aquelas que fazem uma coisa de cada vez. Mas fazer uma coisa
de cada vez não é uma realização pequena. Se já é difícil no trabalho exterior,
é ainda mais dura no trabalho da prece interior.
Que devemos fazer? Como podemos aprender a viver no presente? Como é
possível captar o kairos, o momento
decisivo, o momento oportuno? É precisamente sobre este ponto que a Prece de
Jesus pode nos ajudar. A invocação repetida do Nome pode nos conduzir, com a
graça de Deus, da divisão à unidade, da dispersão na multiplicidade ao um.
“Para deter a contínua vagabundagem dos seus pensamentos, dizia o Bispo
Teófano, vocês devem ligar seu intelecto a um pensamento único, ou ao único
pensamento do Único[42]”.
Os Padres ascetas, em particular Barsanulfo e João de Gaza, distinguiam
duas maneiras de lutar contra os pensamentos. O primeiro método é para os
“fortes”, ou “perfeitos”. Estes podem “contradizer” seus pensamentos, ou seja,
enfrentá-los cara a cara e afastá-los num combate direto. Mas para a maior
parte de nós este método é muito difícil e pode, certamente, conduzir a males
reais. O confronto direto, a tentativa de expulsar e extirpar por um esforço de
vontade os pensamentos, muitas vezes não faz mais do que dar mais força ainda à
nossa imaginação. Violentamente reprimidas, nossas divagações têm tendência a
retornar com uma força renovada. Em lugar de lutar contra nossos pensamentos
diretamente e de tentar eliminá-los por um esforço da vontade, é mais prudente
nos desviarmos e fixar nossa atenção sobre alguma outra coisa. Antes de fixar
em nosso interior nosso olhar sobre uma imaginação turbulenta e de nos
concentrarmos em nos opor aos nossos pensamentos, devemos olhar para o alto
para o Senhor Jesus e nos colocarmos em suas mãos invocando seu Nome; e a graça
que age sobre este Nome triunfará sobre os pensamentos que não conseguimos
suprimir com nossas próprias forças. Nossa estratégia espiritual deve ser
positiva e não negativa: em lugar de tentar esvaziar nosso espírito daquilo que
é ruim, devemos enchê-lo com o pensamento daquilo que é bom. “Não contradiga os
pensamentos sugeridos por seus inimigos, aconselham Barsanulfo e João, pois
isto é exatamente o que eles querem e eles não irão parar de perturbá-lo. Ao
contrário, vire-se para o Senhor para que ele o ajude contra eles, colocando
diante Dele toda a sua própria impotência; pois ele á capaz de expulsá-los e de
reduzi-los a nada[43]”.
A Prece de Jesus é assim uma maneira de se desviar e de olhar além.
Pensamentos e imagens se apresentam inevitavelmente a nós durante a Prece. Nós
não podemos deter esta corrente por meio de uma simples injunção da vontade.
Pouco ou nada vale dizermos: “pare de pensar”; é como dizer: “pare de
respirar”... “O intelecto racional não pode permanecer inativo, diz São Marcos
o Asceta; os pensamentos não cessam de produzir seu falatório contínuo, como os
cantos dos pássaros na aurora. Mas, se por um lado não podemos fazer com que
desapareça subitamente esse falatório, podemos ao contrário nos desligar dele,
unindo nosso espírito sempre ativo a um único pensamento, ou unicamente ao
pensamento do Um[44]”,
o Nome de Jesus. É o que diz São Diádoco (Século V): “Quando houvermos
obstruído todos os escapes de nosso pensamento com a lembrança de Deus, então
nosso espírito pedirá a toda custa alguma tarefa com que satisfaça sua
necessidade de atividade. Demos a ele, nessa hora, como única atividade, a
invocação ‘Senhor Jesus’...[45]”.
“Por meio da lembrança de Jesus Cristo, afirma Filoteu o Sinaíta, reúna seu
espírito desagregado que se espalha no exterior[46]”.
Assim, ao invés de tentarmos deter a série de pensamentos com nosso poder,
contamos com o poder que age por intermédio do Nome.
Segundo Evagro o Pôntico, “a prece consiste em colocar de lado os
pensamentos[47]”.
Colocar de lado: não um conflito selvagem, uma repressão furiosa, mas um ato de
desligamento manso e perseverante. Pela repetição do Nome, somos ajudados a
colocar de parte, a deixar passar nossas imaginações sem consistência ou
perniciosas, substituindo-as pelo pensamento de Jesus. Mas, embora a imaginação
e a razão discursiva não devam ser reprimidas com violência ao dizermos a Prece
de Jesus, certamente elas não devem ser encorajadas ativamente. A Prece de
Jesus não consiste numa meditação sobre eventos específicos da vida de Cristo,
ou sobre qualquer palavra ou parábola dos Evangelhos; menos ainda ela é um modo
de raciocinar e discutir interiormente alguma verdade teológica tal como o
significado do homoousios ou o dogma
da Calcedônia. Sob este ponto de vista, a Prece de Jesus deve se distinguir
rigorosamente dos métodos de meditação discursiva, populares no Ocidente desde
a Contrarreforma (Inácio de Loyola, Francisco de Sales, Afonso de Ligori,
etc.).
À invocação do Nome, não devemos formar deliberadamente em nosso
espírito nenhuma imagem visual do Salvador. Esta é uma das razões pelas quais
dizemos a Prece na obscuridade, ao invés de com os olhos abertos diante de um
ícone. “Mantenha seu espírito livre de todas as cores, imagens e formas, nos
incita São Gregório Sinaíta, evite toda imaginação (phantasia) na prece – pois de outro modo você poderá descobrir que
se tornou um “fantasiasta” em lugar de um hesiquiasta[48]”.
Para não cair na ilusão ao praticar a prece interior, declara São Nilo Sorsky,
não se permita nenhum conceito, nenhuma imagem, nenhuma visão[49]”.
“Não coloque nenhuma imagem intermediária entre o espírito e o Senhor quando
praticar a Prece de Jesus, escreveu o Bispo Teófano, (...) o ponto essencial
consiste em permanecer em Deus, e esta maneira de caminhar diante de Deus
significa que você vive com a convicção sempre presente à consciência de que
Deus está em você, conhecendo a você melhor do você se conhece. Essa
consciência do olhe de Deus vendo seu ser interior não deve ser acompanhada de
nenhuma imagem. Devemos nos manter apenas com a convicção ou com um sentimento[50]”.
Somente invocando a Deus dessa maneira – sem formar imagens do Salvador, mas
apenas “sentindo” sua presença – faremos a experiência do pleno poder da Prece
de Jesus para nos reconstituir como um todo e nos unificar.
7.
Interiorização
A invocação repetida do Nome, que começa por unificar nossa prece, ao
mesmo tempo a torna mais interior, cada vez mais parte de nós mesmos – não algo
que fazemos em certos momentos, mas algo que somos todo o tempo: não um ato
ocasional, mas um estado contínuo. Esta maneira de orar se torna
verdadeiramente a prece do homem como um todo, prece na qual as palavras e seu
significado se identificam plenamente com aquele que ora. Tudo isso foi bem expresso por Paul Evdokimov
(1901-1970): “Nas catacumbas, a imagem que mais aparece é a silhueta de uma
mulher em oração, a Orante. Ela representa a única atitude verdadeira da alma
humana. Não basta possuir a oração: devemos nos tornar preces encarnadas. Não
basta apenas ter tempo para a prece: cada ato, cada gesto, mesmo um sorriso,
deve se tornar um hino de adoração, uma oferenda, uma prece. Não devemos
oferecer o que temos, mas o que somos[51]”.
É disso que o mundo tem necessidade, acima de qualquer outra coisa: não de
pessoas que dizem as orações com maior ou menor regularidade, mas de pessoas
que são “prece”.
O tipo de prece que Paul Evdokimov descreve aqui pode ser definido
mais exatamente como “a prece do coração”. Na Ortodoxia, como em muitas outras
tradições, a prece é em geral distinguida em três categorias que devemos
considerar como níveis que se misturam uns com os outros, mais do que como
etapas sucessivas: a prece dos lábios (prece vocal), a prece do intelecto
(prece mental) e a prece do coração (ou do intelecto no coração). A Invocação
do nome começa, como toda outra prece, como uma prece vocal, nas qual as
palavras são pronunciadas com a língua por um esforço deliberado da vontade. Ao
mesmo tempo, e sempre por meio de um esforço deliberado, concentramos nosso
intelecto sobre o sentido daquilo que está sendo dito pela língua.
Com o tempo e o auxílio de Deus, nossa prece se torna mais interior. A
participação do intelecto se torna mais intensa e mais espontânea, enquanto que
os sons enunciados pela língua se tornam menos importantes; por um momento,
eventualmente, ele cessam completamente, e o Nome é invocado em silêncio, sem
nenhum movimento dos lábios, mas apenas pelo intelecto. Quando isto acontece é
porque passamos, pela graça de Deus, do primeiro para o segundo nível. Não que
a invocação oral cesse por completo, pois haverá momentos nos quais mesmo os
mais avançados na prece interior desejarão chamar pelo Senhor Jesus em voz alta
(e quem verdadeiramente pode se pretender avançado na prece interior? Somos
todos iniciantes nas coisas do Espírito).
Mas a viagem interior ainda não está completa. Um homem é algo mais do
que seu espírito consciente; além de seu cérebro e de suas capacidades de
raciocínio, existem suas emoções e suas afeições, sua sensibilidade estética e
ainda as camadas sucessivas de sua personalidade. Tudo isso desempenha um papel
na prece, pois o home como um todo é chamado a tomar parte do ato total de
adoração. Como uma gota de tinta que cai sobre um mata-borrão, o ato da prece
deve se estender regularmente para o exterior a partir do centro cerebral da
consciência e do raciocínio até impregnar cada parte de nosso ser.
Em termos mais técnicos, isso significa que somos chamados a avançar
do segundo nível para o terceiro: da prece do intelecto à prece do intelecto no
coração. O “coração” neste contexto deve ser compreendido no sentido semítico e
bíblico, mais do que no sentido moderno, como designando não somente as emoções
e os afetos, mas a totalidade da pessoa humana. O coração é o órgão primeiro do
ser do homem, “o eu mais profundo e mais verdadeiro, que não pode ser alcançado
senão pelo sacrifício, através da morte[52]”.
Segundo B. Vycheslavtsev, ele é “o centro não apenas da consciência, mas do
inconsciente, não apenas da alma mas do espírito, não apenas do espírito mas do
corpo, não apenas do inteligível mas do incompreensível; numa palavra, ele é o
centro absoluto[53]”.
Interpretado desta maneira, o coração é muito mais do que um órgão material do
corpo: o coração físico é um símbolo exterior das possibilidades espirituais
sem limites da criatura humana, feito à imagem e semelhança de Deus.
Para realizar a viagem interior e atingir a prece verdadeira, é
necessário penetrar nesse centro absoluto, ou seja, fazer a descida do
intelecto ao coração. Mais exatamente, somos chamados a descer, não do
intelecto, mas com o intelecto. O objetivo não é mais simplesmente “a prece do
coração”, mas “a prece do intelecto no coração”, pois as formas conscientes do
entendimento, aí incluída a razão, são um dom de Deus e devem ser utilizadas a
seu serviço e não rejeitas. Esta “união do intelecto com o coração” significa a
restauração da natureza decaída e fragmentada do homem, sua restituição à sua
unidade original. A prece do coração é um retorno ao Paraíso, um movimento
inverso da Queda, a descoberta do status ante
pecatum. Isso significa que se trata de uma realidade escatológica, uma
garantia e uma participação no século futuro – algo que, no século presente,
não é jamais nem plena nem inteiramente realizada.
Aqueles que, mesmo imperfeitamente, realizaram numa certa medida a
“prece do coração”, começaram a fazer a transição de que falamos acima – a
transição da prece “esforçada” para a prece “que age por si só”, da prece que
dizemos para aquela que “fala por si mesma”, ou melhor, aquela que Cristo diz
em mim. Pois o coração possui um duplo significado na vida espiritual: ele é ao
mesmo tempo o centro do ser do homem e o ponto de encontro entre o homem e
Deus. É simultaneamente o lugar do conhecimento de si, onde o homem vê a si
mesmo com é verdadeiramente, e o lugar de transcendência do eu no qual o homem entende
sua natureza como um templo da Santíssima Trindade, onde a imagem se confronta
com o arquétipo. Na “câmara interior” de seu próprio coração ele encontra o
fundamento de seu ser e assim passa da fronteira misteriosa entre o Criado e o
Incriado. “Existem profundezas incomensuráveis no coração, afirmam as Homilias
de Macário (...) Deus está lá com os anjos, a luz e a vida lá estão, bem como o
Reino e os apóstolos, as cidades celestes e os tesouros da graça: tudo está lá[54]”.
A prece do coração designa assim o ponto onde “minha” ação, “minha” prece, se
identifica explicitamente com a ação contínua de um Outro em mim. Já não é a
Prece de Jesus, mas a Prece do próprio Jesus. Esta passagem da prece
“esforçada” à prece “que age por si mesma” é descrita de modo notável nos Relatos de um Peregrino Russo: “Numa
bela manhã eu fui despertado pela Prece[55]”.
Até então o Peregrino “dizia a Prece”; agora ele descobre que a Prece “diz a si
mesma” mesmo quando ele está dormindo, pois ela está unida à prece de Deus
nele.
Os leitores dos Relatos podem ter a impressão de que essa passagem da
prece vocal para a prece do coração acontece facilmente, quase de um modo
mecânico e automático. Ao que parece o Peregrino alcançou a prece “que age por
si só” em poucas semanas. Mas convém lembrar que sua experiência, embora não
sendo única[56],
é excepcional. O mais comum é que a prece do coração surja, se surgir, depois
de toda uma vida de esforço ascético. Ela consiste num livre dom de Deus, concedido
quando e como ele quiser, e não o resultado inevitável de uma técnica aplicada.
Santo Isaac o Sírio (século VII) sublinha a extrema raridade desse dom, quando
diz: “Dificilmente um de cada dez mil será digno do dom da prece pura”. E ele
acrescenta: “Quanto ao mistério que se encontra além da prece pura, será
excepcional se encontrarmos um único homem de toda uma geração que tenha se
aproximado deste conhecimento da graça de Deus[57]”.
Um em dez mil, um único em toda uma geração: embora desiludidos com
esta advertência, não devemos nos desencorajar por nada. O caminho para o reino
interior se abre diante de todos e todos igualmente viajam seu tanto por ele.
No século presente, poucas pessoas experimentaram com alguma plenitude os
mistérios mais profundos do coração, mas muitos receberam de maneira mais
humilde e intermitente verdadeiras intuições daquilo que significa a prece
espiritual.
8.
Os exercícios respiratórios
É tempo agora de examinarmos um aspecto controverso no qual o
ensinamento dos hesiquiastas bizantinos é frequentemente mal interpretado: o
papel do corpo na prece.
O coração, como foi dito, é o primeiro órgão do ser do homem, o ponto
de convergência entre o espírito e a matéria, o centro, ao mesmo tempo, da
constituição física do homem e de sua estrutura psíquica e espiritual. E como o
coração possui esse duplo aspecto, a um tempo visível e invisível, a prece do
coração será a prece do corpo tanto quanto a da alma: somente se ela incluir o
corpo ela poderá ser verdadeiramente a prece do homem como um todo. Um ser
humano, dentro da perspectiva bíblica, é uma totalidade psicossomática, não uma
alma aprisionada num corpo do qual tenta escapar, mas a unidade integral das
duas coisas. O corpo não é um obstáculo a ser ultrapassado, uma porção de matéria
que se pode ignorar, mas ele desempenha um papel positivo na vida espiritual e
é dotado de energias que podem ser “mobilizadas” pelo trabalho da prece.
Se isso vale para a prece em geral, vale de uma maneira ainda mais
específica, para a Prece de Jesus, por ser ela precisamente uma invocação ao
Deus encarnado, ao Verbo feito carne. Em sua encarnação, Cristo tomou não
apenas um intelecto humano e uma vontade humana, mas um corpo humano, e assim
ele fez da carne uma fonte inesgotável de santificação. Como essa carne, que o
Homem-Deus tornou portadora do espírito, poderá participar da invocação do Nome
na prece do intelecto no coração?
Para favorecer tal participação e auxiliar na concentração, os
hesiquiastas desenvolveram uma “técnica corporal”. Eles compreenderam que cada
atividade psíquica possui repercussões no nível físico e corporal; conforme
nosso estado interno, esquentamos ou esfriamos, respiramos mais depressa ou
mais devagar, o ritmo dos batimentos cardíacos acelera ou desacelera, e assim
por diante. Inversamente, cada alteração de nosso estado físico reage de forma
negativa ou positiva sobre nossa atividade psicológica. Assim, se pudermos
aprender a controlar e regular certos processos físicos que acontecem em nós,
esta possibilidade pode ser usada para reforçar nossa concentração interior na
prece. Este é o princípio do “método” hesiquiasta. Em detalhe, sua técnica
apresenta três aspectos principais:
a)
Postura exterior: São Gregório Sinaíta aconselha
sentar-se num banquinho baixo, com cerca de vinte e cinco centímetros de
altura; a cabeça e as espáduas devem estar inclinadas e os olhos fixos no local
do coração. Ele admite que essa posição logo se mostrará extremamente
desconfortável. Outros escritores recomendam uma postura ainda mais incômoda,
com a cabeça entre os joelhos, conforme o exemplo de Elias sobre o Monte
Carmelo[58].
b) Controle
da respiração: a respiração deve ser mais lenta e ao mesmo tempo deve estar
coordenada com o ritmo da Prece. De modo geral, a parta “Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus” é dita inspirando, e a parte “tem piedade de mim, pecador” é
dita expirando. Mas outros métodos são possíveis. A recitação da Prece também
pode ser sincronizada com as batidas do coração.
c)
Exploração interior: exatamente como se ensina a
um aspirante a yogi a concentrar seu
pensamento sobre partes específicas de seu corpo, também o hesiquiasta
concentrará seu pensamento sobre o centro cardíaco. Enquanto ele inspira pelo
nariz e leva o ar aos pulmões, ele faz descer seu intelecto juntamente com o
sopro e busca interiormente o lugar do coração. As instruções exatas referentes
a esse exercício não são consignadas por escrito para que não sejam mal
compreendidas: os detalhes do processo são tão delicados que o acompanhamento
pessoal de um mestre experiente é indispensável. O iniciante que, na ausência
de tal acompanhamento, tente buscar o centro cardíaco corre o risco de dirigir
seu pensamento sem o saber a uma região logo abaixo do coração, ou seja, para o
abdômen e suas entranhas. O efeito sobre a prece será desastroso, pois esta
região inferior é a fonte dos pensamentos carnais e das sensações que raptam o
intelecto e o coração[59].
Por razões evidentes, o mais cuidadoso discernimento é necessário
quando intervimos nas atividades instintivas do corpo, como a respiração e o
batimento cardíaco. Um uso errôneo da técnica corporal pode prejudicas a saúde
de um homem e perturbar seu equilíbrio mental; daí a importância de um mestre
digno de confiança. Se um estaroste assim não estiver disponível, é preferível
para o iniciante que se mantenha simplesmente na recitação efetiva da Prece de
Jesus sem perturbar o ritmo de sua respiração ou dos batimentos de seu coração.
Com frequência ele descobrirá que sem nenhum esforço consciente de sua parte as
palavras da invocação se adaptarão por si sós ao ritmo de sua respiração e de
seu coração. E se isto não acontecer. Ele não deve se inquietar, mas deve
continuar tranquilamente o trabalho de invocação mental.
As técnicas corporais não passam de coisas acessórias, auxiliares que
se revelaram válidas para alguns, mas que de modo algum são obrigatórias a
qualquer custo. A Prece de Jesus pode ser praticada em sua plenitude sem nenhum
método corporal. São Gregório Palamas (1296-1359), mesmo considerando as
técnicas corporais como teologicamente defensáveis, as tratava como algo
secundário e adequado apenas aos iniciantes[60].
Para ele, como para todos os mestres hesiquiastas, o essencial não é o controle
externo do sopro, mas a invocação interior e secreta do Senhor Jesus.
Os escritores ortodoxos dos últimos cento e cinquenta anos, de modo
geral, pouca relevância deram às técnicas corporais. O conselho dado pelo Bispo
Inácio Briantchaninov (1807-1897) é característico a respeito:
“Aconselhamos aos nossos irmãos bem-amados que não tentem estabelecer
essa técnica em si mesmos, se ela não se revelar por si só. Muitos, desejando
aprender pela experiência, destruíram seus pulmões sem ganho algum. A essência
da questão consiste na união do intelecto com o coração durante a Prece e isto
não se realiza senão pela graça de Deus e a seu tempo, determinado por Deus. A
técnica respiratória é completamente substituída pelo enunciado vagaroso da
Prece, por um curto repouso ou pausa ao final, cada vez que a dizemos, e por
uma respiração suave e calma, concentrando o pensamento sobre as palavras da
prece, com a ajuda destes meios, podemos
facilmente alcançar um bom estado de atenção[61]”
No que concerne à rapidez da recitação, o Bispo Inácio sugere:
“Para dizer a Prece de Jesus cem vezes atentamente e sem precipitação,
precisamos de cerca de meia hora; mas alguns ascetas utilizam ainda mais tempo.
Não diga a Prece com precipitação, uma imediatamente depois da outra. Faça uma
curta pausa depois de cada Prece e assim ajude o intelecto a se concentrar. Dizer
a Prece sem pausas distrai o intelecto, respire com cuidado, suave e lentamente[62]”.
Os iniciantes no uso da Prece preferirão provavelmente um ritmo um
pouco mais rápido do que o proposto aqui; talvez vinte minutos para cem Preces.
Similaridades notáveis existem entre as técnicas corporais
recomendadas pelos hesiquiastas bizantinos e aquelas empregadas pelo yoga e o sufismo[63].
Até que ponto essas semelhanças são resultado de pura coincidência, de um
desenvolvimento independente, ainda que análogo, em tradições separadas? Se
existe uma relação direta entre o Hesiquiasmo e o sufismo – e alguns paralelos
são tão próximos que uma simples coincidência parece estar excluída – que parte
um emprestou ao outro? Existe aqui um campo de pesquisa fascinante, embora as
evidências possam ser demasiado fragmentadas para autorizar qualquer conclusão
definitiva. Um ponto, entretanto, não deveria ser esquecido. Pois além das
semelhanças, existem as diferenças. Todos os quadros possuem molduras e todas
as molduras têm certos traços em comum; mas os quadros dentro das molduras
podem ser inteiramente diferentes. E o que conta é o quadro, não a moldura. No
caso da Prece de Jesus as técnicas corporais compõem de certo modo a moldura. E
esta “moldura” da Prece de Jesus lembra certamente outras “molduras” não
cristãs, mas isto não deve nos tornar insensíveis ao caráter único do quadro em
seu interior, ao caráter distintivo da Prece. O ponto essencial na Prece de
Jesus não é o ato da repetição em si mesmo, nem a maneira de sentar e de
respirar, mas sim Aquele a quem nos dirigimos, e, sob este aspecto, as palavras
são endereçadas sem ambiguidade ao Salvador encarnado, Jesus Cristo, Filho de
Deus e filho de Maria.
A existência de uma técnica corporal relacionada à Prece de Jesus não
deve nos cegar no que diz respeito ao verdadeiro caráter da Prece. A Prece de
Jesus não se resume a uma técnica destinada a nos ajudar a nos concentrar ou a
nos relaxar. Não é simplesmente uma amostra de “yoga cristã”, uma espécie de “meditação transcendental”, ou um “mantra cristão”, mesmo que alguns tenham
tentado interpretá-la nesse sentido. Trata-se de uma invocação dirigida a outra
Pessoa: ao Deus feito homem, Jesus Cristo, nosso Salvador e Redentor em pessoa.
A Prece de Jesus é assim muito mais do que um método ou uma técnica isolada.
Ela existe dentro de um dado contexto e, se ela for separada deste contexto,
ela perde seu significado próprio.
O contexto da Prece de Jesus é antes de tudo um contexto de fé. A
invocação do Nome pressupõe que aquele que diz a Prece crê em Jesus Cristo como
o Filho de Deus e Salvador. Subjacente à repetição de uma fórmula verbal, deve
existir uma fé viva no Senhor Jesus – naquilo que ele é e naquilo que ele fez
por nós pessoalmente. Talvez a fé, em muitos de nós, seja ainda incerta e
vacilante; talvez ela coexista com a dúvida; talvez nos sintamos constrangidos
de gritar junto com o pai da criança possessa: “Senhor, eu creio; ajude-me a
vencer minha incredulidade![64]”.
Mas é preciso que haja ao menos um desejo de crer; pelo menos, em meio a todas
as incertezas, uma chama de amor por este Jesus que conhecemos hoje tão
imperfeitamente.
Em segundo lugar, o contexto da Prece de Jesus é um contexto de
comunidade. Não invocamos o Nome enquanto indivíduos separados, confiando
apenas em nossos recursos interiores, mas como membros da comunidade eclesial.
Escritores como São Barsanulfo, São Gregório Sinaíta e o Bispo Teófano
consideraram como estabelecido que aqueles a quem eles recomendavam a Prece de
Jesus eram membros batizados da Igreja, participantes regulares da vida
sacramental da Igreja pela confissão e pela santa comunhão. Nem por um instante
eles encararam a invocação do Nome como um substituto dos sacramentos, mas
presumiram sempre que qualquer um que dissesse a Prece seria um membro
praticante e participante da comunhão da Igreja.
Hoje em dia, porém, neste período de curiosidade insaciável e de
desagregação eclesiástica, existem muitos que utilizam a Prece de Jesus sem que
sejam membros praticantes de alguma Igreja, às vezes mesmo sem ter uma fé clara
no Senhor Jesus ou em qualquer outra coisa. Podemos condená-los? Podemos
impedi-los de utilizá-la? Certamente não, uma vez que também eles estão
buscando sinceramente a Fonte da vida. Jesus nunca condenou ninguém, com
exceção dos hipócritas. Mas com toda humildade e com a consciência aguda de
nossa própria falta de fé, temos a obrigação de considerar a situação dessas
pessoas como anormal, e de adverti-las.
9.
O fim da viagem
O objetivo da Prece de Jesus, como de toda prece cristã, é que nossa
oração se identifique cada vez mais à prece que é oferecida em nós por Jesus o
grande Sacerdote, que nossa vida se torne uma só com sua vida, que nosso sopro
se una ao Sopro Divino que sustenta o universo. O objetivo final pode ser
descrito realmente pela expressão patrística da theosis, “deificação” ou “divinização”. Como diz o Arquipreste
Serge Boulgakov: “O Nome de Jesus presente no coração humano confere a este o
poder da deificação[65]”.
“O Logos se tornou homem, dizia Santo Atanásio, para que possamos nos tornar
Deus[66]”.
Aquele que é Deus por natureza emprestou de nós a humanidade para que nós, os
homens, pudéssemos, graças à sua divindade, nos tornarmos “partícipes da
natureza divina[67]”.
A Prece de Jesus, dirigida ao Logos encarnado, é um meio de realizar em nós o
mistério da theosis, por meio do qual o homem realiza a verdadeira semelhança
com Deus.
A Prece de Jesus, unindo-nos a Cristo, nos ajuda a tomar parte na
habitação recíproca, ou pericorese, das Três Pessoas da Santíssima Trindade.
Quanto mais a Prece se torna parte de nós mesmos, mais entramos no movimento do
amor que circula constantemente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É
deste amor que Santo Isaac o Sírio disse: “O amor é o reino do qual Nosso
Senhor falou simbolicamente quando prometei aos seus discípulos que estes
comeriam em seu Reino: “Vocês comerão e beberão à mesa em meu Reino[68]”.
Ora, que poderiam eles comer, senão o amor? (...) Quando chegarmos ao amor,
teremos alcançado a Deus e nosso caminho estará terminado: teremos chegado à
ilha que se encontra para além do mundo, onde está o Pai com o Filho e o
Espírito Santo, a quem sejam dados o poder e a glória![69]”.
Na tradição hesiquiasta, o mistério da theosis costuma se manifestar
na forma exterior de uma visão de luz. Esta luz que os santos contemplam na
prece não é nem a luz simbólica do intelecto, nem a luz dos sentidos, corporal
e criada. Trata-se de nada menos do que da luz divina e incriada da Divindade
que irradiou de Cristo quando se sua Transfiguração sobre o Monte Tabor, e que
iluminará o mundo todo em sua segundo descida no último dia. Eis uma passagem
característica sobre a luz divina, extraída de São Gregório Palamas,
descrevendo a visão do Apóstolo ao ser elevado até o terceiro céu[70]:
“Paulo viu ‘uma luz que não tinha limites nem para baixo, nem para o alto, nem
para os lados’; ele não viu o limite de sua visão e da luz que o iluminava,
como se estivesse vendo um sol infinitamente mais luminoso e maior do que o
universo: e no centro ele se mantinha, inteiramente transformado em olho[71]”.
Esta é a visão de glória da qual poderemos nos aproximar pela
invocação do Nome. A Prece de Jesus faz com que o brilho da Transfiguração
penetre em cada recôndito de nossa vida. A repetição incessante teve dois
efeitos sobre o autor anônimo dos Relatos
de um Peregrino Russo. Primeiro, ela transformou sua relação para com a
criação material ao seu redor, tornando todas as coisas transparentes e
transformando-as em sacramentos na presença de Deus: “Quando eu orava com meu
coração, tudo ao meu redor me parecia cheio de encanto e maravilhoso. As
árvores, a erva, os pássaros, a terra, o ar, a luz, tudo parecia me dizer que
existia por causa do homem, que tudo era testemunha do amor de Deus pelo homem,
que tudo mostrava o amor de Deus e cantava em seu louvor. Assim é que eu
compreendi aquilo que a Filocalia chama
de ‘o conhecimento do discurso de todas as criaturas[72]’
(...) e eu sentia um amor ardente por Jesus Cristo e por todas as criaturas de
Deus[73]”.
Assim falou também o Padre Boulgakov: “Brilhando através do coração, a luz do
Nome de Jesus ilumina todo o universo[74]”.
Em segundo lugar, a Prece transfigurou a relação do Peregrino não
apenas com o mundo material, mas como os outros homens: “Novamente eu retomava
meu caminho errante. Mas eu já não caminhava como antes, cheio de preocupações.
A invocação do Nome de Jesus alegrava minha viagem. Todo mundo era bom para
mim, era como se cada um me amasse (...) Se alguém me fazia mal, eu não
precisava de mais do que pensar: ‘Como é doce a Prece de Jesus!’, e a ferida e
a cólera desapareciam e eu me esquecia de tudo[75]”.
“Tudo o que vocês fizerem ao menor dos meus pequeninos, é a mim que
fizeram”. A Prece de Jesus nos ajuda a ver a Cristo em todo homem, e a todos os
homens em Cristo.
Por conseguinte, a Prece de Jesus não é uma fuga ou uma negação do
mundo, mas, ao contrário, ela é intensamente positiva. Ela não implica uma
rejeição à criação de Deus, mas uma reafirmação do valor último de tudo e de
cada um em Deus. Como diz Nadejda Gorodetzky: “Podemos colocar este Nome nas
pessoas, nos livros, nas flores, em tudo o que encontramos, vemos ou pensamos.
O Nome de Jesus pode se tornar a chave mística do mundo, um instrumento de
oferenda oculta de tudo e de cada um, colocando o selo divino sobre o mundo. Podemos
talvez falar aqui em sacerdócio de todos os crentes. Em união com nosso Grande
Sacerdote, imploramos em Espírito: transforme minha oração em sacramento[76]”.
A prece é ação: orar significa ser altamente eficaz[77].
E isto é ainda mais verdadeiro em relação à Prece de Jesus do que para qualquer
outra oração. Ao mesmo tempo em que ela foi escolhida para ser especificamente
mencionada no ofício de profissão monástica como prece própria dos monges e dos
religiosos[78],
ela é também uma prece própria para os leigos e casados, para os doutores e
p0siquiatras, para os trabalhadores sociais e para os motoristas de ônibus. A
invocação do Nome, bem praticada, engaja a cada um mais profundamente na tarefa
que lhe está assinalada; ela o torna mais eficaz sua ação, ela não o separa dos
outros, mas une as pessoas entre si sensibilizando-as em seus medos e suas
angústias de uma maneira que nunca existiu antes. A Prece de Jesus faz de cada
um “um homem para os outros”, um instrumento vivo da paz de Deus, um centro
dinâmico de reconciliação.
[1] Tito
Colliander, Le Chemin des ascètes,
Bellefontaine, p. 73.
[2]
Citado no livro do higoumeno Chariton de Valamo, L'Art de la prière : Anthologie de textes spirituels sur la Prière du
coeur, apresentado pelo Arquimandrita Kallistos Ware. Bellefontaine, 1976, p. 81.
[3] Capítulos sobre a Prece, 113 (PG, 150,
1280A). Ver Kallistos Ware, "The
Jesus Prayer in Saint Gregory of Sinai", Eastern Churches Review,
IV,1972, p. 8.
[4]
Gálatas 2: 20.
[5]
João 3: 30.
[6]
Citação do Salmo 118 (119), 126. Em algumas versões em inglês da Liturgia, traduz-se
assim: "É tempo de agir (de fazer o sacrifício para o Senhor)", mas a
alternativa que utilizamos é mais rica de sentidos e é preferida por muitos
comentadores ortodoxos. O original grego utiliza a palavra kairos: "É o kairos
para o Senhor agir. "Kairos tem aqui
o significado específico de momento decisivo, de momento oportuno; aquele que
ora capta este kairos. Voltaremos a
este ponto.
[7] Capítulos sobre a Prece, 113 (PG, 150,
1277D).
[8] Centúria, 4 (PG, 147. 637D). A ideia da
prece como descoberta da habitação de Deus em nós pode também ser expressa em
termos de Eucaristia.
[9] A
Prece de Jesus, por exemplo, não é mencionada nos textos autênticos de são Simão
o Novo Teólogo, nem na vasta antologia espiritual de Evergetinos (ambos do
século X).
[10] Existia
naturalmente uma devoção cordial ao Santo Nome de Jesus no Ocidente medieval e
também na Inglaterra. Mesmo possuindo algumas diferenças em relação à Tradição Bizantina,
existem também paralelos evidentes. Este artigo não pretende discutir a
invocação do Nome no Ocidente. Ver
Kallistos Ware, "The Holy Name of
Jesus" in East and West : the
Hesychasts and Richard Rolle, in Sobornost, 4, 2, 1982, p. 163-184.
[11] J.D. Sallinger, Frany and Zooey.
[12] Um Monge da Igreja do
Oriente, "On the Invocation of the
Name of Jesus", The Fellowship of Saint Alban and Saint Sergius,
Londres, 1950, p. 5-6.
[13] Sur la tranquillité et la prière, 2 (PG,
150, 1316B).
[14] I
Tessalonicenses 5: 17.
[15] L'Art de la Prière, p. 122.
[16] Frère Laurent de la Résurrection
(1611-1691), carmelita descalço, The
Practice of the Presence of God, éd. D. Attwater, Paraclete Books, Londres,
1962, p. 13, 16.
[17] Archimandrite Sofrony, The Undistorted lmage: Staretz Silouan,
Londres, 1958, p. 40-41. Trad: Starets Silouane, moine du Mont-Athos, éd.
Présence, 1973. Ver cap. VI "De
la prière pure".
[18] Citado
em E. Behr-Sigel, "La Prière à Jésus
ou le mystère de la spiritualite monastique orthodoxe", Dieu vivant,
8, 1947, p. 81.
[19] L'Art de la Prière, p. 149.
[20] Relatos de um peregrine russo, Seuil
(Livre de Vie), p. 53.
[21] I Colossenses 12: 3.
[23]
Mateus 1: 21.
[24] Similitudes, IX, 14.
[25]
Gênesis 32: 29.
[26]
Juízes 13: 18.
[27] Gênesis 17: 5.
[28] Gênesis 32: 28.
[29] Atos 13: 9.
[30] Ver
J. Pederson, Israël, vol. l,
Londres/Copenhague, 1926, p. 245-259.
[31] Sobre
a veneração de Nome entre os cabalistas judeus da Idade Média, ver Gershom G.
Scholem, Major Trends in Jewish Mysticism,
3ª. ed., Londres, 1955, p. 132-133 ; compare-se o modo de tratar este tema no
notável romance de Charles Williams, All
Hollow’s Eve, Londres, 1945.
[32]
Lucas 11: 2-4.
[33]
João 16: 23.
[34]
Mateus 28: 19.
[35]
Atos 4: 10-12.
[36]
Filipenses 2: 10.
[37]
Apocalipse 2: 17.
[38] Correspondance, Volos, éd. Sotirios
Schoinas, 1960, p. 693 ; trad. L. Regnault et P. Lemaire, Solesmes, 1972, p.
692.
[39] A escada santa, 21 et 27 (PG 88, 945C et
1112C).
[40] Ver
Kallistos Ware, "A Prece de Jesus em
São Gregório Sinaíta", art. cit. p. 14-15.
[41]
Mateus 6: 7.
[42] L'Art de la Prière, p. 130.
[45] Cent textes sur la Connaissance et le Discernement, 59, éd. E. des Places, Seuil (SC 5bis), 1955, p.
119.
[46] Chapitres, 27.
[47] Sur la Prière, 70 (PG 79, 1181C).
[48] Persévérance dans la Prière, 7 (PG 150,
1340D).
[49] L'Art de la Priére, p. 136.
[50] L'Art de la Priére, p. 135.
[51] Sacrement de l'amour : le Mystére conjugal à
la lumiére de la Tradition orthodoxe, DDB, 1980, p. 83.
[52] Richard Kehoe, "The Scriptures as Word of God", The
Eastern Churches Quarterly, VIII, 1947, p. 78.
[53] Citado em John B. Dunlop, Starets Amvrosy : Model for Dostoievsky's
Starets Zossima, Belmont, Mass., 1972, p. 22.
[55] Relatos de um peregrino russo, p. 36.
[56] O
Estaroste Silouane do Mont-Athos (1866-1938) não havia praticado por mais de
três semanas a Prece de Jesus quando ela desceu em seu coração e se tornou
contínua. Seu biógrafo, o arquimandrita Sophrony, observou com justeza que este
foi "um dom sublime e raro; somente mais tarde o Padre Silouane se deu
conta do quanto esse dom é raro”. The Undistorted Image, p.24. Para uma discussão mais
ampla sobre esta questão, ver Kallistos Ware, "Pray without Ceasing : The Ideal of Continual Prayer in Eastern
Monasticism", Eastern Churches Review, II, 1969, p. 259-261.
[57] Mystic Treatises por Isaac de Nínive,
trad. inglesa por A.J. Wensinck, Amsterdam, 1923, p. 113.
[58] .
"Elias subiu ao monte Carmelo. Lá ele se ajoelhou e colocou sua cabeça
entre os joelhos " (1R 18,42). Como exemplo de um monge grego orando nesta
posição, num manuscrito do século XI, ver J. Meyendorff, Saint Grégoire Palamas et la mystique orthodoxe, Paris, 1959, p.
92.
[59] Para
uma bibliografia mais ampla sobre o controle da respiração, ver Kallistos Ware
: “The Jesus Prayer in Saint Gregory of
Sina ", art. cit. p. 14, nota 55. Sobre os diferentes centros físicos
no homem e suas implicações espirituais, ver o doutor André Bloom (atualmente metropolita
Antoine de Suroge), "Contemplation
et ascèse : contribution orthodoxe, Technique et contemplation in Études
carmélitaines, 28, Bruges, 1949, p. 49-67.
[60] Grégoire
Palamas, Défense des saints hésychastes,
I, II, 7, Louvain, éd. J.
Meyendorff, 1959, vol. I.
[62] Op.
cit., p. 81.
[63] Ver
L.Gardet, "Un problème de mystique
comparée : la mention du Nom divin (dhikr) dans la mystique musulmane",
Revue thomiste, LII, 1952, p. 642-679 ; LIII, 1953, p. 197-216.
[64]
Marcos 9: 24.
[67]
II Pedro 1: 4.
[68]
Lucas 22: 30.
[70]
II Colossenses 12: 24.
[72]
Cf. Máximo o Confessor - Centúrias sobre
a teologia e a economia da encarnação do Verbo de Deus - Primeira Centúria,
66.
[73] Relatos de um peregrine russo, p. 56-57,
69.
[74] L'Orthodoxie, p. 164.
[75] Relatos de um peregrine russo, p. 38,
40.
[76] "The Prayer of Jesus , Blackfriars XXIII, 1942, p. 76.
[77] Ver Tito Colliander, Le Chemin des ascètes, p. 64 s
[78] Na
investidura de um monge, segundo o costume grego e russo, dá-se a ele um terço (komvoschoinion). Entre os russos, o
abade entrega o terço com estas palavras: Tome, meu irmão, este glaivo do Espírito,
que é a Palavra de Deus, a fim de orar a Jesus continuamente; pois você deve
ter sempre o Nome de Jesus no intelecto,
no coração e nos lábios, dizendo sem cessar: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
tem piedade de mim pecador”." Ver N.F. Robinson SSJE, Monasticism
in the Orthodox Churches, Londres/Milwaukee, 1916, p. 159-160. Observe-se
a menção aos três níveis da prece: lábio, intelecto e coração.
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