sábado, 21 de novembro de 2015

Kallistos Ware - A Prece de Jesus em São Gregório Sinaíta

Os dois Gregórios

A teologia mística de Bizâncio no século XIV é dominada por dois Gregórios: são Gregório Sinaíta (1255-1346) e são Gregório Palamas (1296-1359). É um fato curioso que, embora tenham residido concomitantemente por um período no Monte Athos, nenhuma fonte menciona qualquer contato direto entre eles[1]. Em Athos os dois partilharam de uma mesma e única tradição monástica e espiritual, mas a partir daí seus caminhos divergiram. Palamas envolveu-se na controvérsia pública com Barlaam o Calabrês, e, sem dúvida contra sua vontade, foi forçado a defender o modo de oração do Hesiquiasmo contra críticos hostis e que não o compreendiam. Gregório o Sinaíta, por sua vez, preferiu participar das disputas sobre a luz divina que o fustigaram durante os últimos oito anos de sua vida. Sua posição era a de não justificar o Hesiquiasmo perante estrangeiros, mas explicar seu significado profundo aos que estavam próximos a ele. Enquanto Gregório Palamas passou a última década de sua carreira como Arcebispo de Tessalônica, a segunda maior cidade do Império, Gregório o Sinaíta escolheu terminar seus dias em Paroria, nas remotas montanhas da Trácia, um lugar que seu discípulo e biógrafo Patriarca Kallistos classificou como “os profundos confins do agreste inabitável”.

Essa diferença entre a situação dos dois se reflete nos escritos que deixaram. São Gregório Palamas é o apologista e o teólogo do Hesiquiasmo, integrando a tradição mística e ascética de hesiquiastas dentro do sistema da doutrina Cristã como um todo, e assim criando uma firme base dogmática para os métodos monásticos de oração. De estilo intrincado e prolixo, muitas vezes com argumentações altamente abstratas, seus escritos não são facilmente compreensíveis para o monge médio. São Gregório Sinaíta, por sua vez, é um professore um guia por excelência. Um mestre da vida espiritual, mais do que um teólogo sistemático, ele não tenta nenhuma justificação do Hesiquiasmo; sua tarefa consiste em dizer aos seus discípulos o que fazer, indicando em termos específicos e detalhados o modo de oração que eles devem seguir. Seus textos são muito mais curtos do que os de Palamas, de estilo mais simples e direto; desta forma, eles sempre desfrutaram de maior divulgação.

Vida e viagens

Ao longo de sua vida, são Gregório Sinaíta foi um grande pesquisador. Nascido por volta de 1255 em Koukoulos, perto de Clazomena nas praias ocidentais da Ásia Menor, ele foi feito prisioneiro durante um ataque turco durante o reino de Andronico II (isto é, antes de 1282) e levado para a Laodiceia na costa da Síria. Resgatado por cristãos locais, fixou-se em Chipre, onde foi admitido no primeiro grau da vida monástica, tornando-se “rasoforo[2]”. Depois ele viajou para o Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai, onde recebeu a tonsura. Do Sinai ele viajou para Jerusalém e daí a Creta. Enquanto esteve nesta ilha, ele encontrou um velho monge chamado Arsênio que o instruiu quanto à “guarda da mente, a verdadeira vigilância e a prece pura”. Este foi um momento de virada decisivo no desenvolvimento espiritual de Gregório. Até então sua prece e seu ascetismo haviam se mantido no nível da “vida ativa”; agora ele começava a avançar para o nível da “contemplação[3]”. Embora Gregório seja muitas vezes visto como representante de uma espiritualidade “sinaíta”, devemos notar que ele aprendeu a prece interior não no Sinai, mas em Creta.

De Creta Gregório navegou para Athos, e sem mais delongas ele atravessou toda a Montanha em busca de outros que estivessem familiarizados com os ensinamentos espirituais ministrados a ele por Arsênio. Inicialmente ele se sentiu desapontado. “Vi muitos homens – diz ele nas palavras de seu biógrafo Kallistos – com seus cabelos encanecidos, com muito entendimento das coisas e grande dignidade de caráter; mas eles haviam devotado todo seu zelo na vida ativa. Quando indagados a respeito da quietude (hesíquia) ou sobre a guarda da mente e a contemplação, eles respondiam que destas coisas não sabiam nem o nome”. Depois de uma longa busca, Gregório casualmente encontrou três monges na sketa[4] de Magoula, perto do Mosteiro de Philoteou, que possuíam algum conhecimento da contemplação e da prece interior; todos os outros que ele encontrou estavam absorvidos exclusivamente pela vida ativa. Então ele se instalou em Magoula.

Se correto, este testemunho fornece um retrato revelador da condição espiritual de Athos por volta do início do século XIV. Pode ser que Kallistos, como muitos biógrafos, tenha exagerado um pouco o estado de negligência anterior em relação à prece interior na Montanha, de modo a sublinhar a influência pessoal de seu herói; mas certamente a evidência exposta não pode ser descartada. Quando Gregório chegou, ao que parece, a ênfase em Athos estava colocada quase que exclusivamente nos aspectos exteriores: trabalho manual, obediência estrita, jejuns e outras práticas ascéticas, a sequência ordenada das preces litúrgicas. A vida interior era ignorada. Esta ignorância que prevalecia em relação à contemplação e à “guarda da mente” é especialmente digna de nota, em vista do fato de que Nicéforo o Hesiquiasta talvez ainda estivesse vivo quando da primeira visita de Gregório; em todo caso, sua morte não pode ter ocorrido muito antes disso. Mas talvez os discípulos de Nicéforo se tivessem retirado para as regiões mais remotas da Montanha, de modo que Gregório não conseguiu fazer contato com eles.

Enquanto esteve em Athos, são Gregório Sinaíta viveu de preferência não nalgum grande cenóbio, mas no meio semieremítico de uma comunidade isolada, na companhia de um círculo restrito de discípulos escolhidos. Esta também foi a forma adotada por são Gregório Palamas durante a maior parte de sua estada na Montanha Sagrada. Assim como nos séculos XIV e XVIII, e também em nossos dias, a tradição Hesiquiasta em Athos florescia mais nas comunidades (sketes) do que nos “mosteiros da regra”. “Um amante do silêncio, se alguma vez existiu um”, Gregório Sinaíta procurou sempre levar uma vida de silêncio e retiro, escondido do mundo. Forçado a viver por algum tempo dentro dos muros do Mosteiro da Grande Laura, ele verificou que “o permanente contato com os monges roubava-lhe a hesíquia que ele tanto ansiava”. Sob este ponto de vista ele pertence à linhagem de Evagro o Pôntico e santo Isaac o Sírio, mais do que ao caminho de são Basílio o Grande, são Teodoro Estudita e são Simeão o Novo Teólogo.

Mas ao mesmo tempo Gregório Sinaíta acreditava que o caminho da hesíquia não era em absoluto monopólio dos eremitas, mas que ele podia ser seguido também pelos monges do cenóbio. No caso de um de seus discípulos, Isidoro (que foi mais tarde Patriarca), ao invés de lhe conferir a tonsura monástica, ele o instruiu a retornar a Tessalônica e lá buscar sua vocação de “hesiquiasta urbano”, agindo como exemplo e guia para um círculo de leigos: “Não quero que você viva nas montanhas agrestes – por que fazê-lo? – mas sim no mundo, entre os monges e os leigos que lá vivem, para que você sirva de modelo para todos... tanto por seu silêncio quanto por suas palavras”.

Estas palavras significam que a prece interior é possível tanto na cidade quanto no deserto: misticismo e cidade não são necessariamente incompatíveis ou mutuamente exclusivos. Esta era também a convicção de Gregório Palamas. Uma vez em que este se encontrava próximo a Berea, ele encontrou um asceta chamado Jó que sustentava ser a prece contínua possível apenas para monges. Palamas defendeu vigorosamente o ponto de vista contrário, argumentando que a ordem de São Paulo, “Orai sem cessar[5]” se aplicava a todos os cristãos sem exceção.

Perturbado pelas incursões dos Turcos – às quais as comunidades esparsas em Athos, longe dos muros protetores dos grandes cenóbios, eram particularmente vulneráveis – por volta de 1325-8 São Gregório Sinaíta e seus discípulos deixaram a Montanha Sagrada. Ele foi a Tessalônica e depois a Chios, com a ideia de retornar ao Sinai. Mas em Chios ele mudou de planos, dirigindo-se a Mytilene e daí a Constantinopla. Depois de seis meses na capital ele viajou a Paroria, nas montanhas Strandzha, na fronteira entre o Império Bizantino e a Bulgária. Sua primeira estadia aí foi relativamente breve. Ele retornou por um tempo a Constantinopla e daí a Athos, retornando mais uma vez ao Monte Katakryomenois em Paroria, talvez em 1335 ou pouco depois. Aqui, em 27 de Novembro de 1346, veio a falecer.

Em sua selvagem e deserta região São Gregório Sinaíta estabeleceu uma verdadeira “oficina espiritual”, nas palavras de seu biógrafo. Durante seus últimos anos ele tomou sob seus cuidados um substancial corpo de monges, não apenas Gregos, mas Búlgaros e Sérvios. Ele desfrutou da sustentação e da proteção do Czar João Alexander da Bulgária. Sua comunidade em Paroria serviu como uma ligação entre os mundos Grego e Eslavo, ocupando assim uma posição chave naquilo que foi corretamente designado como a “Internacional Hesiquiasta”.  Foram monges de Paroria e seus discípulos imediatos – homens  como São Feodosii de Trnovo, São Romil de Vidin, o Patriarca Evtimii da Bulgária e o Metropolita Kiprian de Kiev – que foram os responsáveis pelo grande renascimento do monarquismo contemplativo que se espalhou por toda a Cristandade Eslava no final da Idade Média.

As longas viagens de São Gregório podem surpreender as pessoas treinadas de acordo com os princípios Beneditinos de estabilidade. Mas muitos paralelos podem ser traçados em relação à tradição monástica do Oriente. Se Gregório mudava de lugar em lugar, isto era devido, não a uma inquietação inerente ou a um caráter de espiritualidade instável, mas a três outros fatores. Em primeiro lugar estava a grave insegurança do Império Bizantino naquele período, exposto aos constantes ataques do exterior. Em segundo, amante do silêncio como era, Gregório parece ter sentido um chamado para atuar como “missionário” do Hesiquiasmo, e desejou espalhar o conhecimento sobre a prece interior tão completamente quanto possível. Em terceiro e mais importante, ele ansiava pelo desligamento do mundo e temia que, se passasse muito tempo num só lugar, pudesse se tornar uma celebridade, conhecido, honrado e seguramente “estabelecido”.

Em sua biografia, o Patriarca Kallistos enfatiza o calor da personalidade de São Gregório, sua gentileza e sentido de pacífica alegria: “Eu o via sair de sua cela com o rosto radiante como sorrindo, e ele olhava para mim com ternura... Ele me respondia com grande doçura e gentileza, como era seu costume... Havia alegria em seu semblante e meiguice em sua alma...”. este mesmo sentimento de alegria, como descobrimos logo, está vividamente refletido nos ensinamentos de Gregório sobre a oração.

O contexto da Prece de Jesus: a descoberta da Graça Batismal

A primeira coisa que salta aos olhos do leitor de São Gregório Sinaíta é o lugar central que ele atribui à Prece de Jesus. Mas para podermos avaliar o que significa para ele a invocação do Nome, é preciso antes estabelecer o contexto teológico no qual se assenta a Prece de Jesus.

O que é a oração? Depois de oferecer uma longa série de definições, Gregório conclui com estas simples porém memoráveis palavras: “Por que falar longamente? A oração é Deus, que opera todas as coisas em todos os homens”. A oração é Deus: no mais profundo e pleno sentido a oração não é um ato nosso, mas a ação de Outro em nós. Não somos nós, que por nossos exclusivos esforços concentramos a mente em nosso coração durante a prece, mas o Paráclito que habita em nós; e, sem ele, nada podemos adquirir. “Ninguém é capaz de controlar a própria mente, se esta não for controlada pelo Espírito”.

A verdadeira prece, assim, é a prece oferecida em nós pelo Senhor Jesus e pelo Espírito Santo. Gregório desenvolve este ponto de modo especificamente sacramental, observando: “A oração é a manifestação do Batismo”. Uma vez que a prece consiste na ação de Deus dentro de nós, e uma vez que é através do sacramento do Batismo que Deus vem habitar em nossos corações, segue-se que a prece é essencialmente a descoberta e a revelação da graça batismal. Nosso objetivo na vida de oração consiste em trazer à luz essa presença divina dentro de nós, removendo os obstáculos do pecado de modo a que a graça do Batismo possa se tornar plenamente “ativa” em nosso coração. A prece, assim, consiste em nos tornarmos aquilo que já somos, em ganhar o que já possuímos, em estar face a face com Aquele que já habita no mais profundo interior de nós mesmos. Toda a amplitude da vida ascética e mística está contida, por antecipação, no sacramento do Batismo.

Essa é a orientação de Gregório. A prece é Deus dentro de nós, pois Deus habita em nossos corações pelo Batismo; orar consiste em passar do estágio da graça batismal presente em nossos corações secreta e inconscientemente, para um ponto de percepção e conscientização plenas, no qual sentimos a atividade da graça de modo direto e imediato. Essa transição da graça secreta para a graça consciente pode ser expressa nos termos da conhecida distinção entre o “Batismo na água” e o “Batismo no Espírito”:

“Somos como crianças no momento de nossa segunda criação, e assim somos descuidados para com a graça que nos foi concedida, inconscientes de nossa renovação, ignorantes da grandeza inigualável desta honra e da glória de que começamos a participar. Não nos damos conta do quanto precisamos, por meio do cumprimento dos mandamentos, crescer em alma e espírito e vermos com a alma e o espírito aquilo que recebemos. E mesmo que tenhamos sido batizados quando adultos, se o tivermos disso apenas na água, ainda não o sentiremos com o Espírito. Como pode um homem descobrir, ou melhor como pode ele autodescobrir Aquele a quem ele hospeda e que foi recebido no Batismo no Espírito, o próprio Cristo? Como disse o Apóstolo, ‘Vocês sabem que Cristo Jesus habita em seus corações?[6]’.[7]

Gregório especifica dois caminhos por meio dos quais a graça do Batismo e a presença da Divindade em nós podem ser redescobertas: através do esforço ascético e através da Prece de Jesus:

“A atividade do Espírito que agora recebemos secretamente [ou “misticamente”, ou “sacramentalmente” – musticws] no Batismo pode ser descoberta de duas maneiras. Em primeiro lugar, este dom é revelado numa forma geral pela realização dos mandamentos, com muito trabalho duro e tempo; como São Marcos coloca, ‘Quanto mais cumprimos os mandamentos, mas claramente o dom do Espírito brilha sobre nós com toda sua irradiação’. Em segundo lugar, ele se manifesta em nós obedecendo a uma invocação metódica e incessante do Senhor Jesus, ou seja, por meio da lembrança de Deus. O primeiro modo é mais lento, e o segundo é mais curto[8]”.

O primeiro caminho é aquele da “vida ativa”, que o próprio Gregório seguia até encontrar com o monge Arsênio em Creta. O segundo caminho é o da prece interior, e está caracterizado acima como “lembrança de Deus”, ou seja, pela invocação contínua do Nome de Jesus. Longe de rejeitar o primeiro caminho, Gregório o considera como uma via espiritual genuína que realmente pode levar o homem à plena descoberta da graça batismal. Mas ele vê o segundo caminho, a via da Prece de Jesus, como mais curto e mais rápido. Falando estritamente, os dois não são alternativos. Aqueles que adotam a Prece de Jesus não estão por isso dispensados de seguir a primeira via, o caminho dos mandamentos. A “vida ativa” não é um estágio pelo qual passa o homem que ora, e que ele possa deixar para trás; pois existe um sentido importante segundo o qual o místico “contemplativo” deve continuar a se esforçar no nível ativo até o fim de sua vida. O ponto que Gregório frisa é que não devemos nos esforçar apenas no nível ativo, pois existe uma dimensão posterior da vida espiritual na qual também podemos penetrar. Em conexão com a segunda via, Gregório estabelece que o dom da graça batismal se manifesta em nós “em obediência”: com isto, ele quer dizer a obediência a um pai espiritual.

O caminho da prece interior é dito ser “mais curto”, mas isto é apenas num sentido relativo. Gregório absolutamente o encara como uma opção “suave”. Isto fica claríssimo na rotina diária que ele propõe para o Hesiquiasta, conforme segue:

Durante o dia, em grupos de três horas, começando pela hora primeira e indo até a hora nona: a “lembrança de Deus” por meio da oração (a Prece de Jesus) e o aquietamento do coração; depois, leitura; a seguir, salmodia com recitação do Saltério. Como alternativa a essa sequência tríplice Gregório sugere que a Prece de Jesus pode ser feita sem interrupção. Nas horas décima, décima primeira e décima segunda, respectivamente, refeição, descanso (se desejado) e vésperas. À noite, três possibilidades: para os iniciantes, metade da noite deve ser passada em vigília e outra metade é dedicada ao sono, com o ponto de divisão à meia-noite (podendo a vigília ser feita antes ou depois deste tempo); para os intermediários, quatro horas de sono e oito de vigília, sendo de uma a duas horas acordado, com recitação da Prece de Jesus, quatro horas dormindo e mais seis horas acordado, incluindo as Matinas, com recitação do Saltério e oração (presumivelmente a Prece de Jesus) e depois as Primas; quanto aos perfeitos, estes, diz Gregório, passarão toda a noite em vigília, de pé, sem interrupção.

Trata-se de um programa formidável para ser seguido dia após dia, ano após ano. Na verdade, ao iniciante é permitida uma quantidade razoável de sono – se ele desejar, um total de 7 horas num dia de 24 horas. Mas só é permitida uma refeição ao dia, por volta das 15 ou 16 horas. A dieta básica prescrita por Gregório consiste em pão e água: cerca de meio quilo de pão (uma porção generosa) e três copos ou baukalis[9] de água, misturados com dois de vinho. Este regime podia ser complementado com outros alimentos fáceis de conseguir, em sua maior parte presumivelmente vegetais; a carne certamente estava excluída, mas talvez Gregório permitisse ocasionalmente algum peixe fora dos períodos de jejum. Porém, mais séria do que qualquer privação corporal teria sido a absoluta monotonia desse programa diário. Nada é dito a respeito de encontros com outros hesiquiastas para conversas espirituais e conforto mútuo, nada a respeito de qualquer exercício fora das celas: até que ponto Gregório levou estas coisas sem nenhuma concessão? Mais surpreendente ainda, não existe indicação clara a respeito de trabalho manual ou artesanal. Estas coisas Gregório parece ter considerado apropriadas apenas para os “fracos”: estes, se quisessem, poderiam trabalhar com as mãos ou fazer prosternações enquanto recitavam a Prece de Jesus. Da mesma forma, não existem indicações a respeito de Liturgias: com que frequência os hesiquiastas recebiam a comunhão? Em geral, Gregório raramente menciona a Eucaristia em seus escritos. Sem dúvida ele assumia que o hesiquiasta, se vivesse não longe de algum mosteiro, estaria presente ali à Liturgia aos Domingos e dias festivos; se vivessem isolados, teriam que depender da visita ocasional de algum sacerdote. Muitos hesiquiastas passavam cinco dias da semana em estrita reclusão e viviam em comunidade aos Sábados e Domingos, assistindo a Liturgia nestes dois dias; Gregório deve ter considerado este tipo de arranjo, mas nada diz explicitamente a respeito. Mas com este padrão de cinco dias, a monotonia certamente teria sido bastante minorada.

A forma verbal da Prece de Jesus

Tal foi, portanto, o contexto no qual São Gregório Sinaíta colocou a Prece de Jesus, como um meio pelo qual podemos reativar em nós a graça do Batismo e nos tornarmos conscientes da presença interior do Espírito em nossos corações; e vimos acima o programa diário que ele propôs aos que desejassem praticar a invocação do Nome.

Nos escritos de Gregório, a forma normal da Prece de Jesus é “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Em sua Vida pelo Patriarca Kallistos, esta forma padrão é apresentada com a adição no final da palavra “pecador”; mas esta versão expandida, acrescentada do “pecador”, não aparece nos próprios trabalhos de Gregório.

Ocasionalmente, conforme sugere Gregório, o hesiquiasta pode empregar algumas formas abreviadas da oração: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”, ou “Filho de Deus, tem piedade de mim”, ou “Jesus, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Ele considera estas fórmulas curtas como sendo mais fáceis do que a completa. É notável que a segunda das três formas curtas não inclui o Nome de Jesus. Ao permitir essa diversidade de formas vocais, Gregório acrescenta uma advertência contra a mudança frequente de uma forma para outra.

A história anterior dessas diferentes fórmulas pode ser explanada brevemente. Os termos da fórmula “padrão” de Gregório – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim” – é encontrada primeiramente, ao que eu saiba, na Vida do Abade Filemon, uma obra dos séculos Vi a VII, proveniente do Egito. Ela reaparece no tratado de Nicéforo o Hesiquiasta, Da vigilância e da guarda do coração (final do século XIII e início do XIV). Durante os 700 anos que intermediam estes dois textos, não consegui encontrar nenhuma outra fonte em que ela apareça. A Vida de São Gregório Sinaíta é, até onde eu saiba, a mais antiga ocasião em que a Prece é apresentada com a palavra “pecador” no final.

Das três formas breves de Gregório, a mais frequente nas fontes antigas é a primeira, “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”; de fato, ela é consideravelmente mais frequente do que a “forma padrão”. Ela aparece na Vida do Abade Filemon ao lado da forma padrão, e também no Livro de Barsanulfo e João de Gaza, na Vida de Dositeu (ambos Palestinos e datados do princípio do século VI). Na Vida de Dositeu a prece é usada em conjunção com as palavras “Filho de Deus, ajude-me”, que lembra a segunda forma curta de Gregório, “Filho de Deus, tem piedade de mim” . Barsanulfo apresenta ainda várias outras formas que não são mencionadas por Gregório, tais como: “Senhor Jesus Cristo, salve-me”, “Mestre Jesus, proteja-me”, ou “Jesus, ajude-me”. A última dessas três é também encontrada nos Apotegmas dos Padres. A forma “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” aparece num texto do final do século XII, o Meterikon do Abade Isaás, endereçado à monja Teodora, filha do Imperador Isaac II Angelus. A mesma forma, mas precedida da palavra “Nosso” é encontrada no ciclo Copta Macariano, um texto de data incerta, mas possivelmente dos séculos VIII e X: “Não é fácil dizer a cada respiração: ‘Nosso Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim; bendito seja, meu Senhor Jesus, ajude-me!’”.

A técnica exterior: o controle da respiração

Voltando-nos agora da fórmula verbal da Prece de Jesus para a técnica exterior que a acompanha, veremos que Gregório está familiarizado com o “método físico” exposto nos tratados Da Vigilância e da Guarda do Coração de Nicéforo o Hesiquiasta, e Da Santa Prece e da Atenção atribuído a São Simeão o Novo Teólogo. Apesar de, como eles, recomendar o controle da respiração, as instruções de Gregório são bem menos detalhadas. Assim é que ele explica simplesmente:

“Pela manhã sente-se num banco baixo, com cerca de oito polegadas de altura; contraia sua mente, forçando-a a descer do cérebro para o seu coração e mantenha-o ali. Cuidadosamente incline-se para baixo, até sentir uma dor aguda em seu peito, ombros e pescoço, e chame persistentemente com a mente e a alma, ‘Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim’. Então, por causa do constrangimento e do trabalho, e talvez devido ao sentimento de incômodo que resulta desse esforço contínuo – mas certamente não devido de se alimentar continuamente com o alimento único do tríplice Nome, pois ele disse ‘aquele que se alimentar de mim permanecerá faminto[10]’ – transfira sua mente para a segunda metade e diga ‘Filho de Deus, tem piedade de mim’. Repita isso muitas vezes, e não mude de uma metade para a outra por preguiça; pois as árvores constantemente transplantadas não deitam raízes. Controle a inspiração, a fim de não respirar com facilidade. Pois a corrente de ar que sobe do coração escurece a mente a agita a inteligência, mantendo-a longe do coração. Segure a expiração o máximo possível, e recolha sua mente em seu coração, praticando a invocação do Senhor Jesus contínua e persistentemente[11]”.

Em outra parte, as instruções de Gregório são ainda menos específicas:

“Algumas vezes sente-se num banquinho e permaneça aí pelo máximo de tempo, por causa do desconforto; outras vezes deite-se em seu leito, mas apenas ocasionalmente e só por instantes, para relaxar um pouco. Você deve permanecer pacientemente sentado, relembrando as palavras ‘Persevere na oração[12]’; e não se levante apressadamente por lhe faltar coragem, por causa da insistente dor que provém da invocação interior da mente e da constante imobilidade. ‘Vejam, disse o Profeta, sobreveio-me uma dor aguda, como a dor de uma mulher que vai dar à luz’. Ao contrário, incline-se para baixo e coloque sua mente em seu coração, se ele estiver aberto, e chame o Senhor Jesus em seu auxílio. Seus ombros irão doer e você sentirá dor de cabeça, mas persevere insistentemente e com ânsia ardente, buscando o Senhor em seu coração[13]”.

O controle da respiração, continua Gregório, nos ajuda a controlar a mente:

“A retenção da respiração, com a boca bem fechada, controla a mente, mas apenas em parte, pois logo ela recomeça a se dispersar[14]”.

Demasiada ênfase nos aspectos puramente físicos é deplorável; o objetivo é sempre a concentração da mente:

“Fechando um pouco a boca, controle a respiração da mente e não a das narinas, como fazem aqueles que não são instruídos[15]”.

Isto é o máximo a que chega Gregório em suas instruções sobre a postura corporal e o controle da respiração. Isto dificilmente pode ser denominado uma “técnica psicossomática”, e menos ainda algum tipo de “yoga Cristã”. Tudo o que ele nos fala é que o hesiquiasta deve se sentar num banquinho baixo, com sua cabeça inclinada; que a posição normal durante a recitação da Prece de Jesus é sentado, mais do que de pé, ajoelhado ou deitado. Gregório enfatiza o desconforto físico que se experimenta por se manter a mesma posição durante um período prolongado. O hesiquiasta deve restringir o fluxo da inspiração e expiração; deve evitar na medida do possível respirar profundamente ou rapidamente. E isso é tudo. Lendo essas passagens em seu contexto, fica claro que para Gregório o fator primário era sempre a invocação presente do Nome de Jesus e não as técnicas que a acompanhavam. Sua visão concorda com a de Gregório Palamas, que defendia a legitimidade do método físico, mas o considerava como não mais do que um acessório opcional apropriado principalmente para os iniciantes. Nenhum dos dois Gregórios via o método físico como a única ferramenta privilegiada e infalível, que conduzisse automaticamente à visão de Deus.

Em suas referências sobre o controle da respiração, terá sido São Gregório Sinaíta influenciado pelas técnicas físicas praticadas pelos Sufis em conexão com o dhikr, a invocação do Nome de Deus? Em seus últimos anos Gregório viajou extensamente pelo mundo Islâmico, e assim não é impossível que ele tenha conhecido algo do Sufismo em contatos pessoais e diretos. De modo geral, de qualquer modo, é mais provável que ele tenha aprendido sobre o controle da respiração tanto com o monge Arsênio em Creta como a partir dos escritos de Nicéforo e pseudo-Simeão. As instruções a respeito da postura corporal e a respiração dadas por Gregório o Sinaíta, assim como por Nicéforo e pseudo-Simeão, são bem menos elaboradas do que aquelas apresentadas pelo misticismo Muçulmano. Entretanto os paralelos são bastante evidentes e é difícil excluir a possibilidade de que a tradição Hesiquiasta tenha recebido alguma influência do Islam. A questão merece um estudo posterior.

A técnica interior: prece ininterrupta e sem imagens

A partir do momento em que se refere à técnica interior da Prece de Jesus, São Gregório Sinaíta insiste em duas coisas: primeiro, que a invocação deve ser tanto quanto possível contínua; segundo, ela deve ser livre de imagens. O primeiro aspecto é a tal ponto considerado estabelecido por Gregório que ele em nenhum momento o discute com largueza. Quando se refere à invocação do Senhor Jesus ele simplesmente acrescenta o adjetivo “contínuo”. Essa invocação incessante, conforme ele ensina, algumas vezes adquire a forma de uma prece oral, pronunciada externamente pelos lábios; em outras ocasiões ela é recitada apenas pela mente.

Gregório coloca grande ênfase sobre o segundo aspecto. “Mantenha sempre a mente livre de cores, imagens e formas”, exorta ele. Nosso objetivo na prece deve ser o de obter apenas e tão somente “a atividade do coração (...) inteiramente livre de imagens e formas”; não devemos imaginar nenhuma “marca ou impressão, mesmo supostamente das coisas santas”. Ele emite um severo alerta contra a imaginação humana e a fantasia: aquele que ora deve tomar cuidado para não se tornar um fantasista ao invés de um hesiquiasta. Referindo-se a uma frase de São João Clímaco, Gregório observa que “a Hesíquia consiste em deixar de lado os pensamentos”. Tudo isso fazia parte do ensinamento padrão do Oriente Cristão desde muito antes de São Gregório Sinaíta. De acordo com São Diádoco de Foticéia (século V), a invocação do Nome de Jesus, ou “lembrança de Deus” – pois para Diádoco, como para Gregório, as duas coisas são a mesma coisa – tem por objetivo os “escapes” da mente e cortar as fantasias, para assim recolher a mente na verdadeira visão de si mesma. Hesiquio de Bathos (séculos IX-X) é particularmente enfático a respeito da necessidade de manter a Prece de Jesus livre de pensamentos e imaginações: acima de tudo, ela é um meio de manter guarda sobre a mente.

A Prece de Jesus, em outras palavras, não é uma forma de meditação sobre tal ou qual incidente da vida de nosso Senhor. Antes, trata-se de um método de controle dos pensamentos, pela concentração da atenção e guarda da mente; mais precisamente, é um modo de encerrar e conter a mente dentro do coração. Sob condições normais, a atenção do homem é desmontada e dispersa pela multiplicidade dos objetos exteriores; para conseguir a verdadeira prece do coração, sua mente tem que ser unificada. Ele deve ser trazida do estado de fragmentação para o de simplicidade, da pluralidade para a singularidade e a nudez; somente assim ela será capaz de penetrar e se instalar dentro do coração. Este é o objetivo de Prece de Jesus: “pela lembrança de Deus”, como diz Filoteu o Sinaíta (séculos IX-X), “reunir a mente que está dispersa no exterior”. Por isso a Prece de Jesus deve ser essencialmente ininterrupta e desprovida de imagens; somente assim ela pode preencher efetivamente esse trabalho de unificação.

Gregório o Sinaíta desenvolve essa linha por meio de uma referência específica à Queda. A memória do home era originalmente simples e unitária, mas como resultado do pecado de Adão ela sofreu uma divisão e se desintegrou. Através da “lembrança de Deus” e da invocação do Nome, nossa memória se torna capaz de retornar uma vez mais à sua completude primitiva. O entendimento de Gregório em relação à Prece de Jesus como uma invocação livre de imagens é bem expressa por um escritor espiritual Russo do século XIX, o Bispo Teófano o Recluso: “Permanecendo consciente e atento ao coração, clame incessantemente: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim’, sem colocar em sua mente nenhum conceito visual ou imagem, acreditando que o Senhor o vê e o escuta (...) A parte essencial consiste em habitar em Deus, e este caminhar perante Deus significa que você vive com a convicção, mais do que nunca, de que Deus está em você, assim como ele está em tudo: você vive com a firme certeza de que ele vê tudo dentro de você e que o conhece melhor do que você próprio. Esta consciência do olhar de Deus vendo seu ser interior não deve ser acompanhada de nenhum conceito visual, mas sim ser restringida a uma simples convicção ou sentimento”.

Os efeitos da Prece de Jesus: um alegre sentimento de perda, quente e luminoso

Ao mesmo tempo em que exclui os pensamentos e imagens da prática da Prece de Jesus, São Gregório Sinaíta tem muito a dizer a respeito dos sentimentos que devem acompanhar a invocação do Nome. Existe um tom fortemente “afetivo” em tudo o que ele escreve. Aos seus olhos, a Prece de Jesus não é uma encantação mágica, um equivalente verbal da roda de oração Tibetana, mas uma súplica oferecida com grande intensidade de sentimento, com um amor vívido e uma afeição pessoal pelo Salvador. Os sentimentos de que Gregório fala são a um tempo alegres e penitenciais, confiantes e hesitantes: uma conjunção que ele soma por meio do termo composto carmoluph, “alegre aflição”, emprestado de Clímaco. A recitação da Prece de Jesus leva, escreve ele, a uma “exultação cheia de tremor”, “misturando alegria e medo”: “a alma se regozija por causa da visita e da misericórdia de Deus, mas tem e treme com sua chegada, por ser culpada de tantos pecados”. Este é o duplo efeito da invocação.

Conforme deixa claro esta última afirmação de Gregório, de um dado ponto de vista a Prtece de Jesus é um grito por perdão, uma expressão de dor (penqos) e compunção (katanussw): “Senhor Jesus Cristo... tem piedade de mim”. Esse aspecto penitencial da invocação do Nome é fortemente sublinhado na Vida de Gregório pelo Patriarca Kallistos:

“Concentrando todas as suas percepções dentro de si, exercitando ao máximo sua mente junto com seu espírito, fixando-a e conectando-a, numa palavra, pregando-a na Cruz de Cristo, repetindo continuamente a oração “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”, com sua alma cheia de aflição e angústia, com gemidos e um coração quebrantado, ele molhava o chão com as lágrimas cálidas que caíam em abundância de seus olhos”.

A forma específica que a Prece apresenta aqui, com a adição do termo “pecador”, cria uma ênfase especial sobre esse aspecto penitencial. A Prece se liga diretamente ao Cristo crucificado – “pregando-a na Cruz de Cristo” – e se torna estreitamente associada ao dom das lágrimas.

Mas Kallistos imediatamente passa a descrever o quanto a Prece colocava em chamas o coração de Gregório, enchendo-o de luz e alegria. O mesmo vemos nos escritos do próprio Gregório. Embora ele não subestime a necessidade de contrição e lágrimas, é fora de questão que para ele a alegria prevalece sobre a tristeza. Quando ele descreve a ação e os efeitos da Prece de Jesus, sua energia (uma das palavras preferidas por Gregório), os termos que ele emprega são “felicidade”, transporte ou “salto” do espírito, e “certeza”. Todas estas são expressão de um caráter “afetivo”, que envolve uma forte sugestão de sentimento, de um sentimento espiritual e de uma sensação conscientemente experimentada. E elas são palavras que implicam, não desânimo e tristeza, mas uma confiança amorosa e exultante na compaixão de Deus. A rotina que Gregório Sinaíta prescreve para o Hesiquiasta pode parecer, a quem vê de fora, intoleravelmente austero e rigoroso; e o próprio Gregório fala do esforço concentrado requerido para os que recitam a Prece, da “dor aguda” que eles sentem no peito, ombros e pescoção. Mas ao mesmo tempo ele não espera que seu Hesiquiasta seja uma figura abatida e melancólica, mas exatamente o contrário disto. Existe um tipo específico de sentimento ao qual Gregório faz constante referência: a sensação de calor afetuoso. “O verdadeiro início da oração, escreve ele, consiste uma sensação de calor no coração”. Suas palavras não devem ser entendidas num sentido meramente simbólico ou metafórico. É verdade que ele se refere mais a um calor espiritual do que uma sensação puramente física; mas esta experiência espiritual parece, em sua visão, possuir uma concomitância definida no nível físico. Ele é cuidadoso, por outro lado, em distinguir três diferentes tipos de calor: o calor natural, corpóreo em sua origem, devido ao “excesso de sangue”; um calor não natural e pecaminoso, que inflama a imaginação a pensamentos de luxúria, e que é inspirado pelo demônio; e o verdadeiro calor espiritual, fruto da graça. Como pode o homem distingui-los? O critério básico, diz Gregório, é a sensação de plenitude: se o calor provém de Deus, ele se caracteriza por uma absoluta ausência de dúvidas, pela completa confiança interior e por uma certeza calma: “Se algo chega ao coração, dizem os Padres, seja sensível ou inteligível, e o coração hesita a respeito dela e não a aceita imediatamente, ela não vem de Deus, mas do adversário”. E Gregório acrescenta caracteristicamente: “O tempo, a experiência e a percepção revelaram essas coisas a nós (...) O palato distingue os alimentos, diz a Escritura[16]; da mesma forma, o paladar espiritual deixará claro o que é cada coisa”. Note-se o apelo à experiência, tão frequente na tradição Hesiquiasta.

A sensação de calor desempenhou um papel decisivo em toda a vida espiritual do contemporâneo de Gregório no Monte Athos, São Máximo de Kapsokalyvia. Numa conversa entre este e São Gregório Sinaíta, recorda Teófano de Vatopedia, discípulo de Máximo, Gregório perguntou-lhe se possuía a “oração da mente”, a verdadeira prece interior. Em resposta, Máximo descreveu o modo como em sua juventude ele orava fervorosamente à Mãe de Deus pela graça da prece: “E um dia (...) quando com devoção eu beijava seu imaculado ícone, subitamente sobreveio um calor em meu peito e meu coração, não como se me queimasse, mas enchendo-me de frescor e doçura, e de uma grande compunção. A partir deste momento, Padre, meu coração começou a dizer a prece dentro de mim; e ao mesmo tempo meu cérebro e minha mente se agarraram à lembrança de Jesus e de minha Theotokos; e esta lembrança nunca mais me deixou”.

O modo como a Prece de Jesus é ligada aqui à devoção para com a Santa Virgem é bastante pouco usual no Hesiquiasmo do século XIV, e não existem paralelos a respeito nos escritos de São Gregório Sinaíta. Gregório e Máximo, de resto, estão de acordo no significado que ambos atribuem à sensação de calor, e ambos tratam esta como um sinal visível e uma indicação certeira do início da prece interior. Nesta ênfase sobre o sentimento, sobre a sensação da graça, ambos se colocam dentro da tradição “afetiva” que vem desde São Simeão o Novo Teólogo, São Diádoco de Foticeia e das homilias de Macário.

A noção de calor sugere inevitavelmente a ideia de fogo, e por sua vez o fogo está associado à luz. Poderíamos esperar assim que Gregório Sinaíta ligasse a Prece de Jesus com a visão da luz divina. Sob este ponto, porém, ele é declaradamente mais reservado do que Simeão o Novo Teólogo ou Gregório Palamas. Ele virtualmente não faz referências à Transfiguração. Quando ele fala em termos de luz, geralmente é no sentido de alertar o leitor na respeito dos perigos da ilusão, contra as falsas visões da luz que resultam de um autoengano ou de alguma armadilha do demônio. “Não tente contemplar luzes”, ele insiste; e, ecoando as palavras de cautela manifestadas antes por Diádoco, ele escreve: “Preste atenção, com conhecimento e cuidado. Se acontecer, durante a obra da oração, que você veja luz ou fogo, fora ou dentro de si, ou o que parece ser a forma de Cristo, de um anjo ou de algum santo, não aceite essas coisas, para não se prejudicar”.

O único critério da presença da graça é a sensação de calor; e esta sensação, como a invocação do Nome, deve ser inteiramente livre de imagens visuais ou formas. Mas se Gregório não oferece nenhuma descrição explícita da visão da luz do Tabor, isto não significa que ele pense que esta visão seja impossível ou que não seja importante. A verdadeira razão de sua reticência deve ser encontrada em outra parte. Para aqueles que precisam aprender sobre a oração a partir de livros e aos quais ainda não foi concedida a visão da luz divina em sua experiência pessoal, toda e qualquer descrição verbal será não apenas inadequada como ainda potencialmente perigosa, porque pode encorajar a aceitação de uma falsa visão da luz. E para os poucos, pouquíssimos, a quem foi concedida a verdadeira visão do Tabor, já não há necessidade alguma de ler a respeito em livros. A luz de Deus, quando se revela, traz consigo sua própria chancela de autenticidade.

Mesmo assim, apesar dessa reserva, o leitor atento encontrará nos escritos de São Gregório Sinaíta, bem como na Vida pelo Patriarca Kallistos, indicações suficientes para justificar a posição de Gregório dentre os “místicos da luz”. Ele fala da “contemplação espiritual da luz”, classificando esta contemplação como “hipostática”, ou seja, objetiva e não meramente simbólica ou imaginária. Na prece pura, ensina ele, “os sentidos são fechados pela luz da mente, pois nestes momentos a mente se torna imaterial e cheia de luz”. “Quando a mente é purificada e retorna à sua dignidade primitiva, escreve ele em outra parte, ela mira a Deus e dele recebe o conhecimento divino (...) Ela mergulha os pensamentos na luz e se torna ela própria luz”. Mais significativo ainda, quando discute as falsas visões da luz que provém do diabo, ele chega a mencionar a verdadeira visão da luz que provém de Deus: “A partir de sua atividade (energeia) você poderá saber quando a luz que brilha em sua alma vem de Deus ou do demônio”. Isto não são mais do que dicas, mas são suficientes para mostrar que Gregório Sinaíta pertence à mesma tradição de Simeão o Novo Teólogo e de Palamas.

São Gregório Sinaíta foi classificado como “um missionário da prece mental, inteiramente consciente de estar iniciando algo novo dentro do mundo monástico de seu tempo”; um missionário “que inaugurou o mais celebrado renascimento místico de toda a história Bizantina”. Esta segunda afirmação chega mais perto da verdade do que a primeira. Gregório não “iniciou algo novo”, no sentido de propor uma doutrina de oração que fosse novidade total recém inventada. Ele se encaminhou, ao contrário, por uma tradição espiritual e mística que se estendia longamente para o passado, a Evagro, Marcos o Asceta e Diádoco, a João Clímaco e Hesíquio. O que ele iniciou não foi uma revolução, mas um renascimento – uma renovação e uma revivência daquilo de que tanto se falara antes e que agora estava quase completamente perdido. Seu biógrafo nos recorda, como vimos, que em sua chegada a Athos por volta de 1300 Gregório não encontrou mais do que três ascetas em toda a península que conheciam alguma coisa da prece interior. Uma geração mais tarde, quando Gregório Palamas pediu apoio em sua contenda com Barlaam o Calabrês, os principais monges por toda a Montanha Santa endossaram o Tomo que ele havia preparado. O que em 1300 era um ensinamento oculto, conhecido por poucos, em 1340 havia se tornado um bem compartilhado e que era a glória da comunidade monástica como um todo. Tal é a medida do sucesso de Gregório Sinaíta como missionário.

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[1] Quando Palamas chegou a Athos cerce de 1317, Gregório Sinaíta ainda estava na Montanha; os dois Gregórios deixaram Athos na mesma época, 1325-8, devido às invasões Turcas, e ambos se dirigiram a Tessalônica. Quando Gregório Sinaíta retornou brevemente a Athos em 1330, Palamas se encontrava lá. Os dois estiveram associados à mesma área a nordeste de Athos, entre Iviron e Lavra. Os seguidores do Sinaíta estavam entre os mais firmes apoiadores de Palamas durante a controvérsia hesiquiasta; os discípulos de Gregório Sinaíta em Magoula assinaram o Tomo Hagiorítico em defesa do ponto de vista Palamita, e foi Palamas quem concedeu a tonsura a Isidoro, discípulo espiritual de Gregório Sinaíta. Em vista de todas essas coisas, um contato direto e pessoal entre os Gregórios parece intrinsecamente provável, embora não possa ser provado. Em Athos, Palamas teve como mestre espiritual um certo “Gregório o Grande”, mas este parece não ter sido o Sinaíta.
[2] Estágio em que o noviço recebe uma tonsura sem no entanto pronunciar os votos.
[3] Os termos “vida ativa” e “vida contemplativa”, naturalmente, utilizados no sentido Patrístico, não devem ser entendidos em sua concotação Ocidental moderna. A vida “ativa” significa, não uma vida a serviço direto do mundo – pregar, ensinar, fazer um trabalho social e coisas do gênero – mas a luta para derrotar as paixões e adquirir virtudes. Compreendendo desta forma o termo, podemos dizer que muitos eremitas, monges e freiras que viviam em estrita clausura, estavam absorvidos pela “vida ativa”. Nesse mesmo ponto, existem homens e mulheres comprometidos com uma vida de serviço ao mundo, mas que possuem a prece verdadeira em seus corações; a respeito destes, podemos dizer que levam a “vida contemplativa”. O que importa não é a situação exterior, mas a realidade interior.
[4] Pequena comunidade monástica.
[5] I Tessalonicenses 5: 17.
[6] Cf. II Coríntios 13: 5; Efésios 3: 17.
[7] De quiete et oratione, 1-2.
[8] Ibid., 3. Gregório se refere aqui a Marcos o Eremita, monge que viveu por volta do século V.
[9] Pequena ânfora na qual se refrescava o vinho.
[10] Eclesiástico 24: 21.
[11] De quietudine et duobus orationis modis, 2
[12] Colossenses 4: 2.
[13] Quomodo oporteat sedere, 1
[14] Ibid. 3.
[15] Ibid. 7.
[16] Cf. Eclesiástico 36: 18-19.

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