Os
dois Gregórios
A teologia mística de Bizâncio no século XIV é dominada por dois
Gregórios: são Gregório Sinaíta (1255-1346) e são Gregório Palamas (1296-1359).
É um fato curioso que, embora tenham residido concomitantemente por um período
no Monte Athos, nenhuma fonte menciona qualquer contato direto entre eles[1].
Em Athos os dois partilharam de uma mesma e única tradição monástica e
espiritual, mas a partir daí seus caminhos divergiram. Palamas envolveu-se na
controvérsia pública com Barlaam o Calabrês, e, sem dúvida contra sua vontade,
foi forçado a defender o modo de oração do Hesiquiasmo contra críticos hostis e
que não o compreendiam. Gregório o Sinaíta, por sua vez, preferiu participar
das disputas sobre a luz divina que o fustigaram durante os últimos oito anos
de sua vida. Sua posição era a de não justificar o Hesiquiasmo perante
estrangeiros, mas explicar seu significado profundo aos que estavam próximos a
ele. Enquanto Gregório Palamas passou a última década de sua carreira como
Arcebispo de Tessalônica, a segunda maior cidade do Império, Gregório o Sinaíta
escolheu terminar seus dias em Paroria, nas remotas montanhas da Trácia, um
lugar que seu discípulo e biógrafo Patriarca Kallistos classificou como “os
profundos confins do agreste inabitável”.
Essa diferença entre a situação dos dois se reflete nos escritos que
deixaram. São Gregório Palamas é o apologista e o teólogo do Hesiquiasmo,
integrando a tradição mística e ascética de hesiquiastas dentro do sistema da
doutrina Cristã como um todo, e assim criando uma firme base dogmática para os
métodos monásticos de oração. De estilo intrincado e prolixo, muitas vezes com
argumentações altamente abstratas, seus escritos não são facilmente
compreensíveis para o monge médio. São Gregório Sinaíta, por sua vez, é um
professore um guia por excelência. Um mestre da vida espiritual, mais do que um
teólogo sistemático, ele não tenta nenhuma justificação do Hesiquiasmo; sua tarefa
consiste em dizer aos seus discípulos o que fazer, indicando em termos
específicos e detalhados o modo de oração que eles devem seguir. Seus textos
são muito mais curtos do que os de Palamas, de estilo mais simples e direto;
desta forma, eles sempre desfrutaram de maior divulgação.
Vida e viagens
Ao longo de sua vida, são Gregório Sinaíta foi um grande pesquisador.
Nascido por volta de 1255 em Koukoulos, perto de Clazomena nas praias
ocidentais da Ásia Menor, ele foi feito prisioneiro durante um ataque turco
durante o reino de Andronico II (isto é, antes de 1282) e levado para a
Laodiceia na costa da Síria. Resgatado por cristãos locais, fixou-se em Chipre,
onde foi admitido no primeiro grau da vida monástica, tornando-se “rasoforo[2]”.
Depois ele viajou para o Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai, onde
recebeu a tonsura. Do Sinai ele viajou para Jerusalém e daí a Creta. Enquanto
esteve nesta ilha, ele encontrou um velho monge chamado Arsênio que o instruiu
quanto à “guarda da mente, a verdadeira vigilância e a prece pura”. Este foi um
momento de virada decisivo no desenvolvimento espiritual de Gregório. Até então
sua prece e seu ascetismo haviam se mantido no nível da “vida ativa”; agora ele
começava a avançar para o nível da “contemplação[3]”.
Embora Gregório seja muitas vezes visto como representante de uma
espiritualidade “sinaíta”, devemos notar que ele aprendeu a prece interior não
no Sinai, mas em Creta.
De Creta Gregório navegou para Athos, e sem mais delongas ele
atravessou toda a Montanha em busca de outros que estivessem familiarizados com
os ensinamentos espirituais ministrados a ele por Arsênio. Inicialmente ele se
sentiu desapontado. “Vi muitos homens – diz ele nas palavras de seu biógrafo
Kallistos – com seus cabelos encanecidos, com muito entendimento das coisas e
grande dignidade de caráter; mas eles haviam devotado todo seu zelo na vida
ativa. Quando indagados a respeito da quietude (hesíquia) ou sobre a guarda da
mente e a contemplação, eles respondiam que destas coisas não sabiam nem o nome”.
Depois de uma longa busca, Gregório casualmente encontrou três monges na sketa[4]
de Magoula, perto do Mosteiro de Philoteou, que possuíam algum conhecimento da
contemplação e da prece interior; todos os outros que ele encontrou estavam
absorvidos exclusivamente pela vida ativa. Então ele se instalou em Magoula.
Se correto, este testemunho fornece um retrato revelador da condição
espiritual de Athos por volta do início do século XIV. Pode ser que Kallistos,
como muitos biógrafos, tenha exagerado um pouco o estado de negligência
anterior em relação à prece interior na Montanha, de modo a sublinhar a
influência pessoal de seu herói; mas certamente a evidência exposta não pode
ser descartada. Quando Gregório chegou, ao que parece, a ênfase em Athos estava
colocada quase que exclusivamente nos aspectos exteriores: trabalho manual,
obediência estrita, jejuns e outras práticas ascéticas, a sequência ordenada
das preces litúrgicas. A vida interior era ignorada. Esta ignorância que
prevalecia em relação à contemplação e à “guarda da mente” é especialmente
digna de nota, em vista do fato de que Nicéforo o Hesiquiasta talvez ainda
estivesse vivo quando da primeira visita de Gregório; em todo caso, sua morte
não pode ter ocorrido muito antes disso. Mas talvez os discípulos de Nicéforo
se tivessem retirado para as regiões mais remotas da Montanha, de modo que
Gregório não conseguiu fazer contato com eles.
Enquanto esteve em Athos, são Gregório Sinaíta viveu de preferência
não nalgum grande cenóbio, mas no meio semieremítico de uma comunidade isolada,
na companhia de um círculo restrito de discípulos escolhidos. Esta também foi a
forma adotada por são Gregório Palamas durante a maior parte de sua estada na
Montanha Sagrada. Assim como nos séculos XIV e XVIII, e também em nossos dias,
a tradição Hesiquiasta em Athos florescia mais nas comunidades (sketes) do que
nos “mosteiros da regra”. “Um amante do silêncio, se alguma vez existiu um”,
Gregório Sinaíta procurou sempre levar uma vida de silêncio e retiro, escondido
do mundo. Forçado a viver por algum tempo dentro dos muros do Mosteiro da
Grande Laura, ele verificou que “o permanente contato com os monges roubava-lhe
a hesíquia que ele tanto ansiava”. Sob este ponto de vista ele pertence à
linhagem de Evagro o Pôntico e santo Isaac o Sírio, mais do que ao caminho de
são Basílio o Grande, são Teodoro Estudita e são Simeão o Novo Teólogo.
Mas ao mesmo tempo Gregório Sinaíta acreditava que o caminho da
hesíquia não era em absoluto monopólio dos eremitas, mas que ele podia ser
seguido também pelos monges do cenóbio. No caso de um de seus discípulos,
Isidoro (que foi mais tarde Patriarca), ao invés de lhe conferir a tonsura
monástica, ele o instruiu a retornar a Tessalônica e lá buscar sua vocação de
“hesiquiasta urbano”, agindo como exemplo e guia para um círculo de leigos:
“Não quero que você viva nas montanhas agrestes – por que fazê-lo? – mas sim no
mundo, entre os monges e os leigos que lá vivem, para que você sirva de modelo
para todos... tanto por seu silêncio quanto por suas palavras”.
Estas palavras significam que a prece interior é possível tanto na
cidade quanto no deserto: misticismo e cidade não são necessariamente
incompatíveis ou mutuamente exclusivos. Esta era também a convicção de Gregório
Palamas. Uma vez em que este se encontrava próximo a Berea, ele encontrou um
asceta chamado Jó que sustentava ser a prece contínua possível apenas para
monges. Palamas defendeu vigorosamente o ponto de vista contrário, argumentando
que a ordem de São Paulo, “Orai sem cessar[5]”
se aplicava a todos os cristãos sem exceção.
Perturbado pelas incursões dos Turcos – às quais as comunidades
esparsas em Athos, longe dos muros protetores dos grandes cenóbios, eram
particularmente vulneráveis – por volta de 1325-8 São Gregório Sinaíta e seus
discípulos deixaram a Montanha Sagrada. Ele foi a Tessalônica e depois a Chios,
com a ideia de retornar ao Sinai. Mas em Chios ele mudou de planos,
dirigindo-se a Mytilene e daí a Constantinopla. Depois de seis meses na capital
ele viajou a Paroria, nas montanhas Strandzha, na fronteira entre o Império
Bizantino e a Bulgária. Sua primeira estadia aí foi relativamente breve. Ele
retornou por um tempo a Constantinopla e daí a Athos, retornando mais uma vez
ao Monte Katakryomenois em Paroria, talvez em 1335 ou pouco depois. Aqui, em 27
de Novembro de 1346, veio a falecer.
Em sua selvagem e deserta região São Gregório Sinaíta estabeleceu uma
verdadeira “oficina espiritual”, nas palavras de seu biógrafo. Durante seus
últimos anos ele tomou sob seus cuidados um substancial corpo de monges, não
apenas Gregos, mas Búlgaros e Sérvios. Ele desfrutou da sustentação e da
proteção do Czar João Alexander da Bulgária. Sua comunidade em Paroria serviu
como uma ligação entre os mundos Grego e Eslavo, ocupando assim uma posição
chave naquilo que foi corretamente designado como a “Internacional Hesiquiasta”. Foram monges de Paroria e seus discípulos
imediatos – homens como São Feodosii de
Trnovo, São Romil de Vidin, o Patriarca Evtimii da Bulgária e o Metropolita
Kiprian de Kiev – que foram os responsáveis pelo grande renascimento do
monarquismo contemplativo que se espalhou por toda a Cristandade Eslava no
final da Idade Média.
As longas viagens de São Gregório podem surpreender as pessoas
treinadas de acordo com os princípios Beneditinos de estabilidade. Mas muitos
paralelos podem ser traçados em relação à tradição monástica do Oriente. Se
Gregório mudava de lugar em lugar, isto era devido, não a uma inquietação
inerente ou a um caráter de espiritualidade instável, mas a três outros
fatores. Em primeiro lugar estava a grave insegurança do Império Bizantino
naquele período, exposto aos constantes ataques do exterior. Em segundo, amante
do silêncio como era, Gregório parece ter sentido um chamado para atuar como
“missionário” do Hesiquiasmo, e desejou espalhar o conhecimento sobre a prece
interior tão completamente quanto possível. Em terceiro e mais importante, ele
ansiava pelo desligamento do mundo e temia que, se passasse muito tempo num só
lugar, pudesse se tornar uma celebridade, conhecido, honrado e seguramente
“estabelecido”.
Em sua biografia, o Patriarca Kallistos enfatiza o calor da
personalidade de São Gregório, sua gentileza e sentido de pacífica alegria: “Eu
o via sair de sua cela com o rosto radiante como sorrindo, e ele olhava para
mim com ternura... Ele me respondia com grande doçura e gentileza, como era seu
costume... Havia alegria em seu semblante e meiguice em sua alma...”. este
mesmo sentimento de alegria, como descobrimos logo, está vividamente refletido nos
ensinamentos de Gregório sobre a oração.
O contexto da Prece de Jesus: a descoberta da Graça Batismal
A primeira coisa que salta aos olhos do leitor de São Gregório Sinaíta
é o lugar central que ele atribui à Prece de Jesus. Mas para podermos avaliar o
que significa para ele a invocação do Nome, é preciso antes estabelecer o
contexto teológico no qual se assenta a Prece de Jesus.
O que é a oração? Depois de oferecer uma longa série de definições,
Gregório conclui com estas simples porém memoráveis palavras: “Por que falar
longamente? A oração é Deus, que opera todas as coisas em todos os homens”. A
oração é Deus: no mais profundo e pleno sentido a oração não é um ato nosso,
mas a ação de Outro em nós. Não somos nós, que por nossos exclusivos esforços concentramos
a mente em nosso coração durante a prece, mas o Paráclito que habita em nós; e,
sem ele, nada podemos adquirir. “Ninguém é capaz de controlar a própria mente,
se esta não for controlada pelo Espírito”.
A verdadeira prece, assim, é a prece oferecida em nós pelo Senhor
Jesus e pelo Espírito Santo. Gregório desenvolve este ponto de modo
especificamente sacramental, observando: “A oração é a manifestação do
Batismo”. Uma vez que a prece consiste na ação de Deus dentro de nós, e uma vez
que é através do sacramento do Batismo que Deus vem habitar em nossos corações,
segue-se que a prece é essencialmente a descoberta e a revelação da graça
batismal. Nosso objetivo na vida de oração consiste em trazer à luz essa
presença divina dentro de nós, removendo os obstáculos do pecado de modo a que
a graça do Batismo possa se tornar plenamente “ativa” em nosso coração. A
prece, assim, consiste em nos tornarmos aquilo que já somos, em ganhar o que já
possuímos, em estar face a face com Aquele que já habita no mais profundo
interior de nós mesmos. Toda a amplitude da vida ascética e mística está
contida, por antecipação, no sacramento do Batismo.
Essa é a orientação de Gregório. A prece é Deus dentro de nós, pois
Deus habita em nossos corações pelo Batismo; orar consiste em passar do estágio
da graça batismal presente em nossos corações secreta e inconscientemente, para
um ponto de percepção e conscientização plenas, no qual sentimos a atividade da
graça de modo direto e imediato. Essa transição da graça secreta para a graça
consciente pode ser expressa nos termos da conhecida distinção entre o “Batismo
na água” e o “Batismo no Espírito”:
“Somos como crianças no momento de nossa segunda criação, e assim
somos descuidados para com a graça que nos foi concedida, inconscientes de
nossa renovação, ignorantes da grandeza inigualável desta honra e da glória de
que começamos a participar. Não nos damos conta do quanto precisamos, por meio
do cumprimento dos mandamentos, crescer em alma e espírito e vermos com a alma
e o espírito aquilo que recebemos. E mesmo que tenhamos sido batizados quando
adultos, se o tivermos disso apenas na água, ainda não o sentiremos com o
Espírito. Como pode um homem descobrir, ou melhor como pode ele autodescobrir
Aquele a quem ele hospeda e que foi recebido no Batismo no Espírito, o próprio
Cristo? Como disse o Apóstolo, ‘Vocês sabem que Cristo Jesus habita em seus
corações?[6]’.[7]”
Gregório especifica dois caminhos por meio dos quais a graça do
Batismo e a presença da Divindade em nós podem ser redescobertas: através do
esforço ascético e através da Prece de Jesus:
“A atividade do Espírito que agora recebemos secretamente [ou
“misticamente”, ou “sacramentalmente” – musticws]
no Batismo pode ser descoberta de duas maneiras. Em primeiro lugar, este dom é
revelado numa forma geral pela realização dos mandamentos, com muito trabalho
duro e tempo; como São Marcos coloca, ‘Quanto mais cumprimos os mandamentos,
mas claramente o dom do Espírito brilha sobre nós com toda sua irradiação’. Em
segundo lugar, ele se manifesta em nós obedecendo a uma invocação metódica e
incessante do Senhor Jesus, ou seja, por meio da lembrança de Deus. O primeiro
modo é mais lento, e o segundo é mais curto[8]”.
O primeiro caminho é aquele da “vida ativa”, que o próprio Gregório
seguia até encontrar com o monge Arsênio em Creta. O segundo caminho é o da
prece interior, e está caracterizado acima como “lembrança de Deus”, ou seja,
pela invocação contínua do Nome de Jesus. Longe de rejeitar o primeiro caminho,
Gregório o considera como uma via espiritual genuína que realmente pode levar o
homem à plena descoberta da graça batismal. Mas ele vê o segundo caminho, a via
da Prece de Jesus, como mais curto e mais rápido. Falando estritamente, os dois
não são alternativos. Aqueles que adotam a Prece de Jesus não estão por isso
dispensados de seguir a primeira via, o caminho dos mandamentos. A “vida ativa”
não é um estágio pelo qual passa o homem que ora, e que ele possa deixar para
trás; pois existe um sentido importante segundo o qual o místico
“contemplativo” deve continuar a se esforçar no nível ativo até o fim de sua
vida. O ponto que Gregório frisa é que não devemos nos esforçar apenas no nível
ativo, pois existe uma dimensão posterior da vida espiritual na qual também
podemos penetrar. Em conexão com a segunda via, Gregório estabelece que o dom
da graça batismal se manifesta em nós “em obediência”: com isto, ele quer dizer
a obediência a um pai espiritual.
O caminho da prece interior é dito ser “mais curto”, mas isto é apenas
num sentido relativo. Gregório absolutamente o encara como uma opção “suave”.
Isto fica claríssimo na rotina diária que ele propõe para o Hesiquiasta,
conforme segue:
Durante o dia, em grupos de três horas, começando pela hora primeira e
indo até a hora nona: a “lembrança de Deus” por meio da oração (a Prece de
Jesus) e o aquietamento do coração; depois, leitura; a seguir, salmodia com
recitação do Saltério. Como alternativa a essa sequência tríplice Gregório
sugere que a Prece de Jesus pode ser feita sem interrupção. Nas horas décima,
décima primeira e décima segunda, respectivamente, refeição, descanso (se
desejado) e vésperas. À noite, três possibilidades: para os iniciantes, metade
da noite deve ser passada em vigília e outra metade é dedicada ao sono, com o
ponto de divisão à meia-noite (podendo a vigília ser feita antes ou depois
deste tempo); para os intermediários, quatro horas de sono e oito de vigília,
sendo de uma a duas horas acordado, com recitação da Prece de Jesus, quatro
horas dormindo e mais seis horas acordado, incluindo as Matinas, com recitação
do Saltério e oração (presumivelmente a Prece de Jesus) e depois as Primas;
quanto aos perfeitos, estes, diz Gregório, passarão toda a noite em vigília, de
pé, sem interrupção.
Trata-se de um programa formidável para ser seguido dia após dia, ano
após ano. Na verdade, ao iniciante é permitida uma quantidade razoável de sono
– se ele desejar, um total de 7 horas num dia de 24 horas. Mas só é permitida
uma refeição ao dia, por volta das 15 ou 16 horas. A dieta básica prescrita por
Gregório consiste em pão e água: cerca de meio quilo de pão (uma porção
generosa) e três copos ou baukalis[9]
de água, misturados com dois de vinho. Este regime podia ser complementado com
outros alimentos fáceis de conseguir, em sua maior parte presumivelmente
vegetais; a carne certamente estava excluída, mas talvez Gregório permitisse
ocasionalmente algum peixe fora dos períodos de jejum. Porém, mais séria do que
qualquer privação corporal teria sido a absoluta monotonia desse programa
diário. Nada é dito a respeito de encontros com outros hesiquiastas para
conversas espirituais e conforto mútuo, nada a respeito de qualquer exercício
fora das celas: até que ponto Gregório levou estas coisas sem nenhuma
concessão? Mais surpreendente ainda, não existe indicação clara a respeito de
trabalho manual ou artesanal. Estas coisas Gregório parece ter considerado
apropriadas apenas para os “fracos”: estes, se quisessem, poderiam trabalhar
com as mãos ou fazer prosternações enquanto recitavam a Prece de Jesus. Da
mesma forma, não existem indicações a respeito de Liturgias: com que frequência
os hesiquiastas recebiam a comunhão? Em geral, Gregório raramente menciona a Eucaristia
em seus escritos. Sem dúvida ele assumia que o hesiquiasta, se vivesse não
longe de algum mosteiro, estaria presente ali à Liturgia aos Domingos e dias
festivos; se vivessem isolados, teriam que depender da visita ocasional de
algum sacerdote. Muitos hesiquiastas passavam cinco dias da semana em estrita
reclusão e viviam em comunidade aos Sábados e Domingos, assistindo a Liturgia
nestes dois dias; Gregório deve ter considerado este tipo de arranjo, mas nada
diz explicitamente a respeito. Mas com este padrão de cinco dias, a monotonia
certamente teria sido bastante minorada.
A forma verbal da Prece de Jesus
Tal foi, portanto, o contexto no qual São Gregório Sinaíta colocou a
Prece de Jesus, como um meio pelo qual podemos reativar em nós a graça do
Batismo e nos tornarmos conscientes da presença interior do Espírito em nossos
corações; e vimos acima o programa diário que ele propôs aos que desejassem
praticar a invocação do Nome.
Nos escritos de Gregório, a forma normal da Prece de Jesus é “Senhor Jesus
Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Em sua Vida pelo Patriarca Kallistos, esta forma padrão é apresentada com
a adição no final da palavra “pecador”; mas esta versão expandida, acrescentada
do “pecador”, não aparece nos próprios trabalhos de Gregório.
Ocasionalmente, conforme sugere Gregório, o hesiquiasta pode empregar
algumas formas abreviadas da oração: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”,
ou “Filho de Deus, tem piedade de mim”, ou “Jesus, Filho de Deus, tem piedade
de mim”. Ele considera estas fórmulas curtas como sendo mais fáceis do que a
completa. É notável que a segunda das três formas curtas não inclui o Nome de
Jesus. Ao permitir essa diversidade de formas vocais, Gregório acrescenta uma
advertência contra a mudança frequente de uma forma para outra.
A história anterior dessas diferentes fórmulas pode ser explanada
brevemente. Os termos da fórmula “padrão” de Gregório – “Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de mim” – é encontrada primeiramente, ao que eu
saiba, na Vida do Abade Filemon, uma
obra dos séculos Vi a VII, proveniente do Egito. Ela reaparece no tratado de
Nicéforo o Hesiquiasta, Da vigilância e
da guarda do coração (final do século XIII e início do XIV). Durante os 700
anos que intermediam estes dois textos, não consegui encontrar nenhuma outra
fonte em que ela apareça. A Vida de São
Gregório Sinaíta é, até onde eu saiba, a mais antiga ocasião em que a Prece
é apresentada com a palavra “pecador” no final.
Das três formas breves de Gregório, a mais frequente nas fontes
antigas é a primeira, “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”; de fato, ela é
consideravelmente mais frequente do que a “forma padrão”. Ela aparece na Vida do Abade Filemon ao lado da forma
padrão, e também no Livro de
Barsanulfo e João de Gaza, na Vida de
Dositeu (ambos Palestinos e datados do princípio do século VI). Na Vida de Dositeu a prece é usada em
conjunção com as palavras “Filho de Deus, ajude-me”, que lembra a segunda forma
curta de Gregório, “Filho de Deus, tem piedade de mim” . Barsanulfo apresenta
ainda várias outras formas que não são mencionadas por Gregório, tais como:
“Senhor Jesus Cristo, salve-me”, “Mestre Jesus, proteja-me”, ou “Jesus,
ajude-me”. A última dessas três é também encontrada nos Apotegmas dos Padres. A
forma “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” aparece num texto do final do
século XII, o Meterikon do Abade
Isaás, endereçado à monja Teodora, filha do Imperador Isaac II Angelus. A mesma
forma, mas precedida da palavra “Nosso” é encontrada no ciclo Copta Macariano,
um texto de data incerta, mas possivelmente dos séculos VIII e X: “Não é fácil
dizer a cada respiração: ‘Nosso Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim;
bendito seja, meu Senhor Jesus, ajude-me!’”.
A técnica exterior: o controle da respiração
Voltando-nos agora da fórmula verbal da Prece de Jesus para a técnica
exterior que a acompanha, veremos que Gregório está familiarizado com o “método
físico” exposto nos tratados Da
Vigilância e da Guarda do Coração de Nicéforo o Hesiquiasta, e Da Santa Prece e da Atenção atribuído a
São Simeão o Novo Teólogo. Apesar de, como eles, recomendar o controle da
respiração, as instruções de Gregório são bem menos detalhadas. Assim é que ele
explica simplesmente:
“Pela manhã sente-se num banco baixo, com cerca de oito polegadas de
altura; contraia sua mente, forçando-a a descer do cérebro para o seu coração e
mantenha-o ali. Cuidadosamente incline-se para baixo, até sentir uma dor aguda
em seu peito, ombros e pescoço, e chame persistentemente com a mente e a alma,
‘Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim’. Então, por causa do constrangimento
e do trabalho, e talvez devido ao sentimento de incômodo que resulta desse
esforço contínuo – mas certamente não devido de se alimentar continuamente com
o alimento único do tríplice Nome, pois ele disse ‘aquele que se alimentar de
mim permanecerá faminto[10]’
– transfira sua mente para a segunda metade e diga ‘Filho de Deus, tem piedade
de mim’. Repita isso muitas vezes, e não mude de uma metade para a outra por
preguiça; pois as árvores constantemente transplantadas não deitam raízes.
Controle a inspiração, a fim de não respirar com facilidade. Pois a corrente de
ar que sobe do coração escurece a mente a agita a inteligência, mantendo-a
longe do coração. Segure a expiração o máximo possível, e recolha sua mente em
seu coração, praticando a invocação do Senhor Jesus contínua e persistentemente[11]”.
Em outra parte, as instruções de Gregório são ainda menos específicas:
“Algumas vezes sente-se num banquinho e permaneça aí pelo máximo de
tempo, por causa do desconforto; outras vezes deite-se em seu leito, mas apenas
ocasionalmente e só por instantes, para relaxar um pouco. Você deve permanecer
pacientemente sentado, relembrando as palavras ‘Persevere na oração[12]’;
e não se levante apressadamente por lhe faltar coragem, por causa da insistente
dor que provém da invocação interior da mente e da constante imobilidade. ‘Vejam,
disse o Profeta, sobreveio-me uma dor aguda, como a dor de uma mulher que vai
dar à luz’. Ao contrário, incline-se para baixo e coloque sua mente em seu
coração, se ele estiver aberto, e chame o Senhor Jesus em seu auxílio. Seus ombros
irão doer e você sentirá dor de cabeça, mas persevere insistentemente e com
ânsia ardente, buscando o Senhor em seu coração[13]”.
O controle da respiração, continua Gregório, nos ajuda a controlar a
mente:
“A retenção da respiração, com a boca bem fechada, controla a mente,
mas apenas em parte, pois logo ela recomeça a se dispersar[14]”.
Demasiada ênfase nos aspectos puramente físicos é deplorável; o
objetivo é sempre a concentração da mente:
“Fechando um pouco a boca, controle a respiração da mente e não a das
narinas, como fazem aqueles que não são instruídos[15]”.
Isto é o máximo a que chega Gregório em suas instruções sobre a
postura corporal e o controle da respiração. Isto dificilmente pode ser
denominado uma “técnica psicossomática”, e menos ainda algum tipo de “yoga
Cristã”. Tudo o que ele nos fala é que o hesiquiasta deve se sentar num
banquinho baixo, com sua cabeça inclinada; que a posição normal durante a
recitação da Prece de Jesus é sentado, mais do que de pé, ajoelhado ou deitado.
Gregório enfatiza o desconforto físico que se experimenta por se manter a mesma
posição durante um período prolongado. O hesiquiasta deve restringir o fluxo da
inspiração e expiração; deve evitar na medida do possível respirar
profundamente ou rapidamente. E isso é tudo. Lendo essas passagens em seu contexto,
fica claro que para Gregório o fator primário era sempre a invocação presente
do Nome de Jesus e não as técnicas que a acompanhavam. Sua visão concorda com a
de Gregório Palamas, que defendia a legitimidade do método físico, mas o
considerava como não mais do que um acessório opcional apropriado
principalmente para os iniciantes. Nenhum dos dois Gregórios via o método
físico como a única ferramenta privilegiada e infalível, que conduzisse
automaticamente à visão de Deus.
Em suas referências sobre o controle da respiração, terá sido São Gregório
Sinaíta influenciado pelas técnicas físicas praticadas pelos Sufis em conexão
com o dhikr, a invocação do Nome de
Deus? Em seus últimos anos Gregório viajou extensamente pelo mundo Islâmico, e
assim não é impossível que ele tenha conhecido algo do Sufismo em contatos
pessoais e diretos. De modo geral, de qualquer modo, é mais provável que ele
tenha aprendido sobre o controle da respiração tanto com o monge Arsênio em
Creta como a partir dos escritos de Nicéforo e pseudo-Simeão. As instruções a
respeito da postura corporal e a respiração dadas por Gregório o Sinaíta, assim
como por Nicéforo e pseudo-Simeão, são bem menos elaboradas do que aquelas
apresentadas pelo misticismo Muçulmano. Entretanto os paralelos são bastante
evidentes e é difícil excluir a possibilidade de que a tradição Hesiquiasta
tenha recebido alguma influência do Islam. A questão merece um estudo
posterior.
A técnica interior: prece ininterrupta e sem imagens
A partir do momento em que se refere à técnica interior da Prece de
Jesus, São Gregório Sinaíta insiste em duas coisas: primeiro, que a invocação
deve ser tanto quanto possível contínua; segundo, ela deve ser livre de
imagens. O primeiro aspecto é a tal ponto considerado estabelecido por Gregório
que ele em nenhum momento o discute com largueza. Quando se refere à invocação
do Senhor Jesus ele simplesmente acrescenta o adjetivo “contínuo”. Essa invocação
incessante, conforme ele ensina, algumas vezes adquire a forma de uma prece
oral, pronunciada externamente pelos lábios; em outras ocasiões ela é recitada
apenas pela mente.
Gregório coloca grande ênfase sobre o segundo aspecto. “Mantenha
sempre a mente livre de cores, imagens e formas”, exorta ele. Nosso objetivo na
prece deve ser o de obter apenas e tão somente “a atividade do coração (...)
inteiramente livre de imagens e formas”; não devemos imaginar nenhuma “marca ou
impressão, mesmo supostamente das coisas santas”. Ele emite um severo alerta
contra a imaginação humana e a fantasia: aquele que ora deve tomar cuidado para
não se tornar um fantasista ao invés de um hesiquiasta. Referindo-se a uma
frase de São João Clímaco, Gregório observa que “a Hesíquia consiste em deixar
de lado os pensamentos”. Tudo isso fazia parte do ensinamento padrão do Oriente
Cristão desde muito antes de São Gregório Sinaíta. De acordo com São Diádoco de
Foticéia (século V), a invocação do Nome de Jesus, ou “lembrança de Deus” –
pois para Diádoco, como para Gregório, as duas coisas são a mesma coisa – tem por
objetivo os “escapes” da mente e cortar as fantasias, para assim recolher a
mente na verdadeira visão de si mesma. Hesiquio de Bathos (séculos IX-X) é
particularmente enfático a respeito da necessidade de manter a Prece de Jesus
livre de pensamentos e imaginações: acima de tudo, ela é um meio de manter guarda
sobre a mente.
A Prece de Jesus, em outras palavras, não é uma forma de meditação
sobre tal ou qual incidente da vida de nosso Senhor. Antes, trata-se de um
método de controle dos pensamentos, pela concentração da atenção e guarda da
mente; mais precisamente, é um modo de encerrar e conter a mente dentro do
coração. Sob condições normais, a atenção do homem é desmontada e dispersa pela
multiplicidade dos objetos exteriores; para conseguir a verdadeira prece do
coração, sua mente tem que ser unificada. Ele deve ser trazida do estado de
fragmentação para o de simplicidade, da pluralidade para a singularidade e a
nudez; somente assim ela será capaz de penetrar e se instalar dentro do
coração. Este é o objetivo de Prece de Jesus: “pela lembrança de Deus”, como
diz Filoteu o Sinaíta (séculos IX-X), “reunir a mente que está dispersa no
exterior”. Por isso a Prece de Jesus deve ser essencialmente ininterrupta e
desprovida de imagens; somente assim ela pode preencher efetivamente esse
trabalho de unificação.
Gregório o Sinaíta desenvolve essa linha por meio de uma referência
específica à Queda. A memória do home era originalmente simples e unitária, mas
como resultado do pecado de Adão ela sofreu uma divisão e se desintegrou. Através
da “lembrança de Deus” e da invocação do Nome, nossa memória se torna capaz de
retornar uma vez mais à sua completude primitiva. O entendimento de Gregório em
relação à Prece de Jesus como uma invocação livre de imagens é bem expressa por
um escritor espiritual Russo do século XIX, o Bispo Teófano o Recluso: “Permanecendo
consciente e atento ao coração, clame incessantemente: ‘Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de mim’, sem colocar em sua mente nenhum conceito visual
ou imagem, acreditando que o Senhor o vê e o escuta (...) A parte essencial
consiste em habitar em Deus, e este caminhar perante Deus significa que você
vive com a convicção, mais do que nunca, de que Deus está em você, assim como
ele está em tudo: você vive com a firme certeza de que ele vê tudo dentro de
você e que o conhece melhor do que você próprio. Esta consciência do olhar de
Deus vendo seu ser interior não deve ser acompanhada de nenhum conceito visual,
mas sim ser restringida a uma simples convicção ou sentimento”.
Os efeitos da Prece de Jesus: um alegre sentimento de perda, quente e
luminoso
Ao mesmo tempo em que exclui os pensamentos e imagens da prática da
Prece de Jesus, São Gregório Sinaíta tem muito a dizer a respeito dos
sentimentos que devem acompanhar a invocação do Nome. Existe um tom fortemente “afetivo”
em tudo o que ele escreve. Aos seus olhos, a Prece de Jesus não é uma
encantação mágica, um equivalente verbal da roda de oração Tibetana, mas uma
súplica oferecida com grande intensidade de sentimento, com um amor vívido e
uma afeição pessoal pelo Salvador. Os sentimentos de que Gregório fala são a um
tempo alegres e penitenciais, confiantes e hesitantes: uma conjunção que ele
soma por meio do termo composto carmoluph,
“alegre aflição”, emprestado de Clímaco. A recitação da Prece de Jesus leva,
escreve ele, a uma “exultação cheia de tremor”, “misturando alegria e medo”: “a
alma se regozija por causa da visita e da misericórdia de Deus, mas tem e treme
com sua chegada, por ser culpada de tantos pecados”. Este é o duplo efeito da
invocação.
Conforme deixa claro esta última afirmação de Gregório, de um dado
ponto de vista a Prtece de Jesus é um grito por perdão, uma expressão de dor (penqos) e compunção (katanussw): “Senhor Jesus Cristo... tem piedade de mim”. Esse aspecto
penitencial da invocação do Nome é fortemente sublinhado na Vida de Gregório pelo Patriarca
Kallistos:
“Concentrando todas as suas percepções dentro de si, exercitando ao
máximo sua mente junto com seu espírito, fixando-a e conectando-a, numa
palavra, pregando-a na Cruz de Cristo, repetindo continuamente a oração “Senhor
Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”, com sua alma cheia de aflição
e angústia, com gemidos e um coração quebrantado, ele molhava o chão com as
lágrimas cálidas que caíam em abundância de seus olhos”.
A forma específica que a Prece apresenta aqui, com a adição do termo “pecador”,
cria uma ênfase especial sobre esse aspecto penitencial. A Prece se liga
diretamente ao Cristo crucificado – “pregando-a na Cruz de Cristo” – e se torna
estreitamente associada ao dom das lágrimas.
Mas Kallistos imediatamente passa a descrever o quanto a Prece
colocava em chamas o coração de Gregório, enchendo-o de luz e alegria. O mesmo
vemos nos escritos do próprio Gregório. Embora ele não subestime a necessidade
de contrição e lágrimas, é fora de questão que para ele a alegria prevalece
sobre a tristeza. Quando ele descreve a ação e os efeitos da Prece de Jesus,
sua energia (uma das palavras preferidas por Gregório), os termos que ele
emprega são “felicidade”, transporte ou “salto” do espírito, e “certeza”. Todas
estas são expressão de um caráter “afetivo”, que envolve uma forte sugestão de
sentimento, de um sentimento espiritual e de uma sensação conscientemente experimentada.
E elas são palavras que implicam, não desânimo e tristeza, mas uma confiança
amorosa e exultante na compaixão de Deus. A rotina que Gregório Sinaíta prescreve
para o Hesiquiasta pode parecer, a quem vê de fora, intoleravelmente austero e
rigoroso; e o próprio Gregório fala do esforço concentrado requerido para os
que recitam a Prece, da “dor aguda” que eles sentem no peito, ombros e pescoção.
Mas ao mesmo tempo ele não espera que seu Hesiquiasta seja uma figura abatida e
melancólica, mas exatamente o contrário disto. Existe um tipo específico de
sentimento ao qual Gregório faz constante referência: a sensação de calor
afetuoso. “O verdadeiro início da oração, escreve ele, consiste uma sensação de
calor no coração”. Suas palavras não devem ser entendidas num sentido meramente
simbólico ou metafórico. É verdade que ele se refere mais a um calor espiritual
do que uma sensação puramente física; mas esta experiência espiritual parece,
em sua visão, possuir uma concomitância definida no nível físico. Ele é
cuidadoso, por outro lado, em distinguir três diferentes tipos de calor: o
calor natural, corpóreo em sua origem, devido ao “excesso de sangue”; um calor
não natural e pecaminoso, que inflama a imaginação a pensamentos de luxúria, e
que é inspirado pelo demônio; e o verdadeiro calor espiritual, fruto da graça. Como
pode o homem distingui-los? O critério básico, diz Gregório, é a sensação de
plenitude: se o calor provém de Deus, ele se caracteriza por uma absoluta
ausência de dúvidas, pela completa confiança interior e por uma certeza calma: “Se
algo chega ao coração, dizem os Padres, seja sensível ou inteligível, e o
coração hesita a respeito dela e não a aceita imediatamente, ela não vem de
Deus, mas do adversário”. E Gregório acrescenta caracteristicamente: “O tempo,
a experiência e a percepção revelaram essas coisas a nós (...) O palato
distingue os alimentos, diz a Escritura[16];
da mesma forma, o paladar espiritual deixará claro o que é cada coisa”. Note-se
o apelo à experiência, tão frequente na tradição Hesiquiasta.
A sensação de calor desempenhou um papel decisivo em toda a vida
espiritual do contemporâneo de Gregório no Monte Athos, São Máximo de
Kapsokalyvia. Numa conversa entre este e São Gregório Sinaíta, recorda Teófano
de Vatopedia, discípulo de Máximo, Gregório perguntou-lhe se possuía a “oração
da mente”, a verdadeira prece interior. Em resposta, Máximo descreveu o modo
como em sua juventude ele orava fervorosamente à Mãe de Deus pela graça da
prece: “E um dia (...) quando com devoção eu beijava seu imaculado ícone,
subitamente sobreveio um calor em meu peito e meu coração, não como se me
queimasse, mas enchendo-me de frescor e doçura, e de uma grande compunção. A partir
deste momento, Padre, meu coração começou a dizer a prece dentro de mim; e ao
mesmo tempo meu cérebro e minha mente se agarraram à lembrança de Jesus e de
minha Theotokos; e esta lembrança nunca mais me deixou”.
O modo como a Prece de Jesus é ligada aqui à devoção para com a Santa
Virgem é bastante pouco usual no Hesiquiasmo do século XIV, e não existem
paralelos a respeito nos escritos de São Gregório Sinaíta. Gregório e Máximo,
de resto, estão de acordo no significado que ambos atribuem à sensação de calor,
e ambos tratam esta como um sinal visível e uma indicação certeira do início da
prece interior. Nesta ênfase sobre o sentimento, sobre a sensação da graça,
ambos se colocam dentro da tradição “afetiva” que vem desde São Simeão o Novo
Teólogo, São Diádoco de Foticeia e das homilias de Macário.
A noção de calor sugere inevitavelmente a ideia de fogo, e por sua vez
o fogo está associado à luz. Poderíamos esperar assim que Gregório Sinaíta
ligasse a Prece de Jesus com a visão da luz divina. Sob este ponto, porém, ele
é declaradamente mais reservado do que Simeão o Novo Teólogo ou Gregório
Palamas. Ele virtualmente não faz referências à Transfiguração. Quando ele fala
em termos de luz, geralmente é no sentido de alertar o leitor na respeito dos
perigos da ilusão, contra as falsas visões da luz que resultam de um autoengano
ou de alguma armadilha do demônio. “Não tente contemplar luzes”, ele insiste;
e, ecoando as palavras de cautela manifestadas antes por Diádoco, ele escreve: “Preste
atenção, com conhecimento e cuidado. Se acontecer, durante a obra da oração,
que você veja luz ou fogo, fora ou dentro de si, ou o que parece ser a forma de
Cristo, de um anjo ou de algum santo, não aceite essas coisas, para não se
prejudicar”.
O único critério da presença da graça é a sensação de calor; e esta
sensação, como a invocação do Nome, deve ser inteiramente livre de imagens
visuais ou formas. Mas se Gregório não oferece nenhuma descrição explícita da
visão da luz do Tabor, isto não significa que ele pense que esta visão seja
impossível ou que não seja importante. A verdadeira razão de sua reticência
deve ser encontrada em outra parte. Para aqueles que precisam aprender sobre a
oração a partir de livros e aos quais ainda não foi concedida a visão da luz
divina em sua experiência pessoal, toda e qualquer descrição verbal será não apenas
inadequada como ainda potencialmente perigosa, porque pode encorajar a
aceitação de uma falsa visão da luz. E para os poucos, pouquíssimos, a quem foi
concedida a verdadeira visão do Tabor, já não há necessidade alguma de ler a
respeito em livros. A luz de Deus, quando se revela, traz consigo sua própria
chancela de autenticidade.
Mesmo assim, apesar dessa reserva, o leitor atento encontrará nos
escritos de São Gregório Sinaíta, bem como na Vida pelo Patriarca Kallistos, indicações suficientes para
justificar a posição de Gregório dentre os “místicos da luz”. Ele fala da “contemplação
espiritual da luz”, classificando esta contemplação como “hipostática”, ou
seja, objetiva e não meramente simbólica ou imaginária. Na prece pura, ensina
ele, “os sentidos são fechados pela luz da mente, pois nestes momentos a mente
se torna imaterial e cheia de luz”. “Quando a mente é purificada e retorna à sua
dignidade primitiva, escreve ele em outra parte, ela mira a Deus e dele recebe
o conhecimento divino (...) Ela mergulha os pensamentos na luz e se torna ela
própria luz”. Mais significativo ainda, quando discute as falsas visões da luz
que provém do diabo, ele chega a mencionar a verdadeira visão da luz que provém
de Deus: “A partir de sua atividade (energeia)
você poderá saber quando a luz que brilha em sua alma vem de Deus ou do demônio”.
Isto não são mais do que dicas, mas são suficientes para mostrar que Gregório
Sinaíta pertence à mesma tradição de Simeão o Novo Teólogo e de Palamas.
São Gregório Sinaíta foi classificado como “um missionário da prece
mental, inteiramente consciente de estar iniciando algo novo dentro do mundo
monástico de seu tempo”; um missionário “que inaugurou o mais celebrado
renascimento místico de toda a história Bizantina”. Esta segunda afirmação
chega mais perto da verdade do que a primeira. Gregório não “iniciou algo novo”,
no sentido de propor uma doutrina de oração que fosse novidade total recém
inventada. Ele se encaminhou, ao contrário, por uma tradição espiritual e
mística que se estendia longamente para o passado, a Evagro, Marcos o Asceta e
Diádoco, a João Clímaco e Hesíquio. O que ele iniciou não foi uma revolução,
mas um renascimento – uma renovação e uma revivência daquilo de que tanto se
falara antes e que agora estava quase completamente perdido. Seu biógrafo nos
recorda, como vimos, que em sua chegada a Athos por volta de 1300 Gregório não
encontrou mais do que três ascetas em toda a península que conheciam alguma
coisa da prece interior. Uma geração mais tarde, quando Gregório Palamas pediu
apoio em sua contenda com Barlaam o Calabrês, os principais monges por toda a
Montanha Santa endossaram o Tomo que ele havia preparado. O que em 1300 era um
ensinamento oculto, conhecido por poucos, em 1340 havia se tornado um bem
compartilhado e que era a glória da comunidade monástica como um todo. Tal é a
medida do sucesso de Gregório Sinaíta como missionário.
***
[1]
Quando Palamas chegou a Athos cerce de 1317, Gregório Sinaíta ainda estava na
Montanha; os dois Gregórios deixaram Athos na mesma época, 1325-8, devido às
invasões Turcas, e ambos se dirigiram a Tessalônica. Quando Gregório Sinaíta
retornou brevemente a Athos em 1330, Palamas se encontrava lá. Os dois
estiveram associados à mesma área a nordeste de Athos, entre Iviron e Lavra. Os
seguidores do Sinaíta estavam entre os mais firmes apoiadores de Palamas
durante a controvérsia hesiquiasta; os discípulos de Gregório Sinaíta em
Magoula assinaram o Tomo Hagiorítico em defesa do ponto de vista Palamita, e
foi Palamas quem concedeu a tonsura a Isidoro, discípulo espiritual de Gregório
Sinaíta. Em vista de todas essas coisas, um contato direto e pessoal entre os
Gregórios parece intrinsecamente provável, embora não possa ser provado. Em
Athos, Palamas teve como mestre espiritual um certo “Gregório o Grande”, mas
este parece não ter sido o Sinaíta.
[2]
Estágio em que o noviço recebe uma tonsura sem no entanto pronunciar os votos.
[3] Os
termos “vida ativa” e “vida contemplativa”, naturalmente, utilizados no sentido
Patrístico, não devem ser entendidos em sua concotação Ocidental moderna. A vida
“ativa” significa, não uma vida a serviço direto do mundo – pregar, ensinar,
fazer um trabalho social e coisas do gênero – mas a luta para derrotar as paixões
e adquirir virtudes. Compreendendo desta forma o termo, podemos dizer que
muitos eremitas, monges e freiras que viviam em estrita clausura, estavam
absorvidos pela “vida ativa”. Nesse mesmo ponto, existem homens e mulheres
comprometidos com uma vida de serviço ao mundo, mas que possuem a prece
verdadeira em seus corações; a respeito destes, podemos dizer que levam a “vida
contemplativa”. O que importa não é a situação exterior, mas a realidade
interior.
[4]
Pequena comunidade monástica.
[5] I
Tessalonicenses 5: 17.
[6]
Cf. II Coríntios 13: 5; Efésios 3: 17.
[7] De
quiete et oratione, 1-2.
[8]
Ibid., 3. Gregório se refere aqui a Marcos o Eremita, monge que viveu por volta
do século V.
[9]
Pequena ânfora na qual se refrescava o vinho.
[10]
Eclesiástico 24: 21.
[11] De quietudine et duobus orationis modis,
2
[12]
Colossenses 4: 2.
[13] Quomodo oporteat sedere, 1
[14]
Ibid. 3.
[15]
Ibid. 7.
[16]
Cf. Eclesiástico 36: 18-19.
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