terça-feira, 3 de novembro de 2015

Pe. Matta el-Maskine - Conselhos para a Oração



O Padre Matta el-Maskine (Mateus o Pobre) foi um monge copta, nascido em 1919 e morto em 2006 no Cairo. Ele participou ativamente da renovação da Igreja Copta, e deixou muitos escritos de alta espiritualidade, dentre os quais reproduzimos aqui este pequeno texto com conselhos para aqueles que desejam se dedicar a um caminho de oração.




CONSELHOS PARA A ORAÇÃO



Padre Matta el-Maskine, Mosteiro de São Macário, Egito



1.       Cristo nos espera
Cada vez que nos colocamos em pé diante de Cristo para orar com fervor e súplica, nossa vontade encontra a Sua e assim obtemos a misericórdia. Com a frequência e a sinceridade da prece, as duas vontades vão se aproximando.
É somente na oração que Cristo pode nos encontrar e nos revelar sua vontade. Cristo espera e deseja nossa prece: “Eis que estou à porta e bato[1]”. No Evangelho, ele nos revelou a importância e a necessidade da prece, insistindo para que oremos sempre, sem cessar e sem jamais relaxar[2]. Por quê? Porque é exatamente na oração que ele pode nos atingir, nos revelar sua vontade e nos conceder sua graça.
O pecado consiste numa aversão ao Pai e entristece coração de Cristo, pois foi ele a causa da cruz e dos sofrimentos terríveis que o Senhor suportou sem piedade da parte dos homens. Porém, desde que o pecador se apresente diante de Deus Pai colocando-se ele mesmo na cruz e suplicando em nome do sangue de Cristo, seu pecado ser-lhe-á remido, a condenação deixará de pesar sobre ele e ele já não será maldito. Por isso é bom trazer sempre a cruz consigo e beijá-la muitas vezes durante a prece.
Cristo suportou a cruz em vista da alegria que lhe fora prometida[3], ou seja, a alegria de salvar os homens e de reconciliá-los com o Pai. É com vistas a esta mesma alegria que ele continua a suportar os pecados e que ele permanece sempre disposto a perdoá-los, mesmo que eles se renovem inúmeras vezes a cada dia, e desde que a cada vez voltemos a ele com o coração contrito. Os sofrimentos que ele suportou até a morte mostram bem que ele está disposto ilimitadamente a suportar nossos pecados, pois seu coração conhece a fraqueza de nossa natureza, as deficiências de nossa vontade e a grande miséria do homem.
Também é bom, durante a oração, apresentar-se a Cristo na atitude do pecador consciente de sua miséria, batendo no peito, com a cabeça baixa e o rosto coberto de pó, mas ao mesmo tempo com a segurança de ser acolhido e perdoado por ele em razão de sua grande compaixão, pela predileção que ele tem pelos mais fracos e pela alegria que ele sente com cada um de nossos retornos.
2.       Na presença de Deus
A prece é um dom precioso concedido ao homem para que este entre na presença de Deus Pai pela mediação de Jesus Cristo. É por uma condescendência inédita de sua natureza que Deus aceita assim se colocar ao alcance do homem, por causa do amor do Pai pelo seu Filho Jesus Cristo, que se coloca humildemente entre nós cada vez que oramos, segundo sua promessa[4]. O Espírito Santo prepara, com sua graça, este encontro espiritual invisível. Assim é preciso nos prosternarmos com toda piedade e veneração diante do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em muitas ocasiões, a fim de honrarmos a presença divina e manifestarmos nossa completa submissão à Santíssima Trindade.
A cada prosternação, é bom beijar a cruz, pois foi ela o preço para obtermos esses dons preciosos e para que se tenha aberto para nós o acesso seguro e confiante perante o Pai.
A oração começa em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pois somente Ele, o Deus único, deve ser adorado. Em seguida vem a doxologia. Por meio dela, rendemos glória à Santa Trindade, e testemunhamos a plenitude da presença divina. Depois o “Pai Nosso”, que devemos recitar lentamente e dirigir ao Pai, com toda veneração, na atitude de Abrahão quando se dirigiu a Deus com o sentimento esmagador de não ser mais do que “poeira e cinzas”.
Deus não pode ser contido pelo céu, nem pelos céus dos céus, e menos ainda pela terra. Apesar disso, ele ama penetrar e repousar na alma humana que se dirige a ele. Pois a alma humana é um sopro do hálito de Deus, ou seja, seu Espírito.
Assim como a alma experimenta um desejo inato por seu Criador, também o Criador deseja repousar em sua criatura, pois ele é seu próprio Espírito. Assim não devemos imaginar durante a oração nenhuma forma exterior de Deus Pai, nem do Filho, nem do Espírito Santo, como se eles se encontrassem fora do homem ou como se o olho humano pudesse contemplá-los, pois é no interior da alma que Deus se faz presente, e não no exterior. Então sentimos sua presença, mas sem vê-lo: “Ore a seu Pai no secreto[5]”.
A apreensão diante de Deus, o assustador acúmulo de nossos pecados, ou ainda as dúvidas provocadas pela tentação ou pela enfermidade, nos impedem de sentir a presença de Deus, mas isso não quer dizer que Deus não esteja presente em nossa prece. É impossível que um homem comece uma prece humilde e sincera e que Deus permaneça ausente dele; pois o amor de Deus pelo homem arrependido o impede de estar atento aos seus pecados, ou de se sentir desgostoso por causa da impureza do homem ou de suas dúvidas; pois esse amor divino possui o poder infinito de remissão e de purificação.
Ultrapassar as sensações por meio da fé
Assim, é necessário que, se desfazendo das dúvidas, o homem esteja certo de que Deus está presente à sua oração, que ele escuta suas palavras e suas súplicas, e que é com prazer que ele atende à sua prece. Ele deve igualmente estar convencido de que Deus não é inconstante como os homens: seu amor é estável e sua promessa fiel. Uma vez que ele ama, ele não cessa de vir em socorro do homem, seja por meio do amor, seja por meio da correção e do abandono, até sua perfeita salvação.
O homem não deve, portanto, construir sua relação com Deus sobre os afetos e sensações que ele sente, mas deve ultrapassar, por meio da fé, o domínio do sensível.
Pretextos para escapar da oração
A carne do homem deseja contra seu Espírito. Ela não consegue encontrar repouso na prece, sobretudo na prece sincera, pura, oferecida em Espírito de adoração verdadeiro, pois esta implica a negação de si e a morte das paixões, das concupiscências e das falsas esperanças. É assim que o corpo inventa mil pretextos para escapar da oração: ele pretende estar doente, definhando, sente dor de cabeça, nas articulações, no dorso, tem grande necessidade de dormir. E se o homem o obriga a orar, o corpo tenta abreviar a oração. Se o homem persevera em querer cumprir a prece até o final, então o corpo tenta escapar do sentido das palavras: a língua se embrulha, a atenção relaxa e divaga aqui e ali, o pensamento se torna pesado. O “eu” usa o pretexto do corpo para escapar das palavras da oração, pois elas implicam sua morte.
Ele se parece com a serpente que escapa da melodia do encantador e se apressa a tapar os ouvidos para não ouvir sua voz, sabendo que ela implica sua morte.
O Senhor bem sabe disso; por isso ele recomendou de “orar sempre, sem jamais relaxar[6]”. Esses graves sintomas não aparecem nas preces farisaicas, frias, cumpridas apenas para receber a recompensa dos homens, ou seja, para atrair seus louvores ou sua admiração. Ao contrário, o corpo se acomoda bem a este tipo de oração; ele se levanta cedo para cumpri-la publicamente e não sente nenhuma fadiga em se manter de pé por longas horas diante dos homens. Ele eleva a voz bem alta; o intelecto se torna muito atento e o faz pronunciar as orações com estudada compostura, uma nitidez e uma precisão que atraem a admiração dos assistentes. Esse gênero de prece é agradável ao “eu” humano, pois ela comporta em si mesma uma recompensa carnal: ela conduz à afirmação de si ao invés da renúncia a si, à deificação do eu em lugar da morte do eu. Assim o “si” se delicia com isso tanto como ama juntar dinheiro. O corpo não relaxa, assim como não desdenha uma boa mesa.
Sabendo bem o que existe no homem, o Senhor previu isso, ao dizer: “Quanto a você, quando orar, retire-se para o seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai que está lá, no secreto[7]”. Aqui, fechar a porta significa a necessidade de fazer de tal modo que a prece não seja nem vista nem ouvida pelos homens, ao menos na intenção e na consciência daquele que ora.
Ascese do corpo e ardor do Espírito
A ascese do corpo antes e durante a prece é necessária para que a alma alcance sua plena expansão numa prece fervorosa. Conseguimos chegar a isso com dois tipos de posturas. A primeira é negativa: as numerosas prosternações, o jejum, o silêncio, o despojamento e a simplicidade das vestimentas. A segunda é positiva: consiste em oferecer a Cristo, do fundo do coração, um amor sincero, expresso em palavras de afeição, de desejo, por meio de um diálogo do coração que não cessa dia e noite, sustentado por uma meditação atenta de suas palavras e de seus preceitos.
Isto significa que o fervor da prece é condicionado simultaneamente pela ascese do corpo e pelo ardor do Espírito. Apenas um dos dois não é suficiente, pois cada qual ativa o outro. A ascese do corpo prepara o ardor do Espírito e o ardor do Espírito facilita a ascese do corpo. Por meio dessas duas posturas, a prece é colocada ao abrigo da acídia, da preguiça, da tibieza espiritual e da dispersão da atenção.
A prece e o tempo
Cristo entrou no mundo pela encarnação. Nossa fé ortodoxa professa a unidade de natureza do Verbo encarnado[8], ou seja, a união perfeita que se opera nele entre o divino e o humano. Por conseguinte, Cristo uniu em si mesmo as ações humanas temporais – o tempo – à sua divindade eterna. Tudo o que Cristo praticou em sua carne, como a prece, as obras de caridade e a compaixão, ou ainda os sofrimentos redentores assumidos sobre a cruz, tudo isso recebeu nele uma dimensão divina e eterna. Dito de outro modo, o tempo se uniu à eternidade na pessoa de Jesus Cristo.
Unir-se a Cristo por meio da oração, consiste em verdade em glorificar o tempo e santificá-lo, ou ainda, em glorificar a ação humana em si e santificá-la, pois equivale a lhe conferir, em Cristo, uma dimensão divina eterna. A prece autêntica é um “resgate do tempo[9]”, pois ela transforma o tempo morto em obra divina eterna. E ainda o acesso à prece verdadeira é acompanhada necessariamente de um desligamento em relação à percepção do valor humano e material do tempo. O movimento dos ponteiros do relógio é substituído pelo movimento do Espírito. Na oração, o Espírito é chamado a entrar em comunhão com os espíritos dos santos na eternidade, pois ao nos aproximarmos de Cristo também nos aproximamos do Reino dos céus.
Tanto a pressa quanto o sentimento de preguiça na oração são sinais de que nos aproximamos do tempo material, vazio das bênçãos do Espírito e das aspirações à eternidade. O sentimento do tempo material, a importância dos minutos, das horas e dos atos humanos temporais que nos aguardam depois da oração, contribuem para sufocar em nós o Espírito e para nos impedir de desfrutar do sentimento de eternidade e de nela estar durante a prece.
Da mesma forma, a pressa ou a preguiça durante a oração bastam para retirar dela seu verdadeiro caráter espiritual. Ela então se reduz a não ser mais do que um dos numerosos atos da vida corporal que o homem pratica por intermédio de seu pensamento e de seu corpo, como encontrar um superior, pronunciar um discurso ou tomar sua refeição. Assim é que Cristo nos preveniu: “É preciso orar sempre sem jamais relaxar[10]”. Mais vale para o homem expressar pelo Espírito uma oração calma, em paz, digna, que dure cinco minutos, do que orar por toda uma hora com pressa, ou três horas com preguiça.
Cristo participa de nossa oração
Cristo escuta nossa prece. Mais do que isso, ele toma parte dela de modo efetivo. Sem Cristo, nossa oração não pode de modo algum ter acesso junto ao Pai. É pela mansuetude de Cristo, seu amor e sua humildade que avançamos com segurança para o Pai, apoiando-nos unicamente em seu sangue divino vertido por nossa reconciliação e por nossa justificação. Cristo está assim pessoalmente presente em nossa oração; é ele que a apresenta ao Pai por seu próprio mérito. A oração não é, deste modo, uma obra unilateral de parte do homem, tudo o que dizemos nela não tem valor se Cristo não disser “Amém”, ou seja, se ele não nos apoiar por seu mérito próprio junto ao Pai, sustentando nossa fraqueza e intercedendo por nossas faltas.
Assim é que o homem deve estar consciente, durante a prece, dessa participação efetiva de Cristo. Ele não é livre para começar, continuar ou terminar sua oração como melhor lhe aprouver. É seguindo a Cristo que ele se apresenta para a oração, é por sua boca que ele su0lica, por seu sangue que se enche de coragem, por sua justiça que espera ser atendido e por seu amor que ele interpela o Pai como seu bem-amado, pelo Espírito do Filho.
O Espírito Santo clama em nosso coração
O Espírito sabe quais são as demandas oportunas e agradáveis a Cristo e ao Pai. Somente a ele cabe guiar nossa prece, determinar sua duração e o tempo conveniente e nos exortar a cumpri-la. É ele que nos inspira as palavras e que infunde em nossos corações o ardor espiritual e o zelo. É ele que nos penetra de aflição e nos faz orar com pranto e lágrimas, com o coração quebrantado, como se ele próprio tivesse necessidade da misericórdia do Pai e da mediação de Cristo. É também por meio desses “gemidos inexprimíveis[11]” que ele clama em nossos corações pelo Pai e por Cristo, ou seja, por meio de gemidos poderosos e sinceros que o homem não pode traduzir em palavras, pois eles ultrapassam o intelecto por seu fervor, sua profundidade e sua autenticidade.
Confiar-se ao Espírito equivale assim a orar permanentemente sem relaxar, pois ele concede o poder de perseverar na prece com fervor, em pé, ajoelhado ou prosternado, sem se saciar jamais.
O Espírito Santo conhece as necessidades espirituais do homem e sabe quais são as possibilidades materiais com relação ao tempo. Desta forma, ao homem piedoso que teme a Deus ele concede a plenitude da prece e de sua duração, de sorte que sua alma fique plenamente saciada, sem que para isso sejam prejudicadas suas tarefas e responsabilidades. Num mínimo lapso de tempo ele lhe concede as graças mais ricas e preciosas, e faz com que ele termine a prece num momento oportuno. Se, ao contrário, a prece não é guiada pelo Espírito Santo, o homem sai dela sem se sentir consolado, sem a paz interior nem a alegria do coração, como se sua oração não tivesse alcançado o ouvido de Deus.
Como invocar o Espírito Santo?
O Espírito Santo é de uma simplicidade extrema. Ele responde rapidamente ao apelo do homem por pouco que este o invoque com um coração sincero, cheio de fé e de simplicidade. Basta que o convidemos a vir simplesmente – como o faríamos com uma criança simples e inocente – para que ele escute e responda. Na Oração da Hora Terça, a Igreja nos ensina a invoca-lo nestes termos: “Vem e habita em nós[12]”. O Espírito Santo vem para o coração que está cheio de uma fé simples e confiante na misericórdia de Deus. A vinda do Espírito Santo não é acompanhada de nenhuma sensação material. Ele não encontra repouso em meio a gritos, em meio à desordem nem num coração duro, rancoroso, colérico ou autossuficiente. Da mesma forma, ele não encontra repouso no “homem mundano”, ou seja, naquele ligado às coisas do mundo[13], atraído por sua beleza efêmera, ou ambicioso da glória deste século.
O Espírito ama e encoraja a prece do pobre reconhecido perante Deus, bem como a do rico amigo dos pobres. Ele é o Consolador dos inferiores oprimidos e dos superiores misericordiosos, a Luz dos aflitos e a Vida daqueles que prodigalizam pelo serviço do Evangelho e por amor aos pequenos e humildes.
É também necessário a quem desejar orar, que aprenda a se tornar agradável ao Espírito Santo, evitando tudo oque possa contrariar a doçura, a santidade e a caridade do Espírito. De outro modo, sua prece seria privada do único poder capaz de elevá-la e de apresentá-la a Deus.
É também necessário aquém deseja orar na presença de Deus, que tenha plena certeza de estar sustentado pelo Espírito Santo: não é ele quem nos gerou nas pias batismais? Devemos assim invocá-lo do fundo do coração, em múltiplas oportunidades, e lhe pedir que nos disponha para a oração e nos conceda o poder de realizá-la em conformidade com o desejo do Pai e do Senhor Jesus. Nossa prece, portanto, concerne ao Espírito Santo até mais do que a nós mesmos; pois é pela prece que se desenvolve o Homem Novo engendrado em nós pelo Espírito Santo; e é pela prece que ele recebe a luz divina, que ele reconhece a vontade de Deus e que ele aprende a colocá-la em prática com a ajuda da graça.
A oração, convite divino ao retorno da criatura exilada
A prece verdadeira, na qual conseguimos acesso junto a Deus e falamos em sua presença, não é um simples ato humano. Ela é essencialmente um convite divino ao qual não temos senão que responder. Deus está sempre, a todo o momento, disposto a nos receber e ele não cessa de nos convidar: “Todo dia eu estendo as mãos[14]”...  “Venham a mim, vocês que penam e se dobram sob o fardo. E eu os aliviarei[15]”... ”Quem vem a mim não será rejeitado[16]”. Pois Deus se regozija de nos ter a seu lado; e, se possível, de modo permanente.
Quando nos colocamos diante de Deus, em sua presença, realizamos de fato o retorno da criatura exilada para o seio de seu Criador, a exemplo do retorno de Adão ao Paraíso. A prece também é, em si, uma reparação das longas horas passadas longe de Deus, em meio às preocupações da terra e os cuidados da vida temporal[17]. Em si mesma, a prece representa um retorno a Deus, uma verdadeira conversão. Deus outrora expulsou Adão de sua presença, e eis que agora ele nos chama sem cessar, “todo o dia”, para que entremos em sua presença e permaneçamos com ele. Uma vez que nos coloquemos junto a ele por meio da oração, Deus deseja que não saiamos dali jamais. Assim é que a prece verdadeira, que conseguiu responder ao desejo bem-aventurado de Deus, deve continuar secretamente no fundo do coração, por meio de uma troca sem palavras, depois que tenhamos deixado o local da prece. Então poderemos nos dedicar às nossas diversas ocupações, enquanto a prece continua a realizar seu trabalho secreto no interior de nossos corações.
Nossas preocupações: como apresentá-las na oração?
A prece não é a ocasião de pedirmos a Deus as coisas que importam à carne[18], aquilo que nos traz bem-estar, que facilita nossos trabalhos ou favorece nossas responsabilidades temporais. Q prece é a ocasião para que o Espírito acesse o Reino. Ela é a janela radiosa pela qual contemplamos desde já a Vida eterna, para a qual seremos levados depois havermos remetido este corpo de volta ao pó, enquanto todos os nossos trabalhos e nossas responsabilidades terão acabado para sempre. Tudo o que nos preocupa sobre a terra é efêmero; mas a oração não é efêmera. Cada minuto que passamos em oração provém da eternidade[19], e para lá retorna. Assim é que durante a prece devemos apresentar nossas preocupações a partir de uma perspectiva espiritual. Vale dizer que todas as nossas necessidades materiais, nossas atividades, nossas responsabilidades e nossas preocupações devem ser apresentadas a Deus, na oração, a fim de que ele as despoje de sua forma mortal, efêmera, e que ele as revista de um caráter divino, tornando-as conformes ao seu desígnio benevolente e fazendo com que assim essas coisas sejam santificadas. Não pedimos na oração que nossos trabalhos sejam prósperos, que tenhamos sucesso em nossas responsabilidades, nem que elas nos tragam uma glória terrestre, um renome ou a tranquilidade e o bem-estar materiais. O que pedimos a Deus na oração, é que ele purifique nossos trabalhos do espírito de egoísmo e de amor-próprio, ou seja, daquilo que faz a glória do “eu” humano, que ele nos inspire a retidão de pensamento e de coração, a fim de que, em nossos trabalhos não empreguemos a malícia, a duplicidade, a desonestidade, a fraude ou a mentira; que ele nos conceda o poder espiritual para não temermos as ameaças, não nos esquivarmos diante dos perigos, não fazermos acepção de pessoas e não nos lamentarmos quando atingidos pela perda ou a injustiça. Nós lhe pedimos que nos faça estimar os valores espirituais acoima de toda atividade e de toda responsabilidade, de sorte que tomemos a defesa dos inocentes, que façamos o elogio da retidão e da integridade, que demos com generosidade e nos que nos atenhamos a conservar a paciência e a caridade acima de todo interesse material.
Assim a prece se tornará ocasião para transformar os desejos da carne em desejo do Espírito, e o meio de purificar nossas obras, nossos pensamentos e nossas intenções das escórias do pecado.
Desta forma nossas atividades temporais serão santificadas, e, por humildes e comuns que sejam, se tornarão dignas de ser oferecidas a Deus, tanto quanto os mais nobres serviços religiosos.
3.       Transformados nesta mesma imagem
E nós que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente pela ação do Senhor, que é Espírito[20]”.
A prece frequente transforma o homem no mais profundo de seu ser.
A prece frequente à qual nos dedicamos nas diversas horas do dia e da noite nas quais a Igreja nos convida a orar, bem como cada vez que somos levados a orar pelo Espírito, seja no tempo oportuno ou não, é um dos modos mais eficazes para “nos transformar pela renovação de nosso julgamento[21]”, esta verdade se manifesta nos filhos de Cristo, iniciados no seu mistério. Quando oramos com frequência, noite e dia, vinte, trinta vezes, cada vez que o Espírito nos inspira palavras de amor, ainda que por cinco minutos ou por um minuto apenas, esta prece assídua opera no mais profundo de nossa mentalidade, de nosso coração, de nosso caráter e de nosso comportamento uma transformação fundamental. Nós não tomamos consciência desta com facilidade, mas todas as pessoas ao nosso redor a percebem.
Quando nos voltamos para Cristo com perseverança na oração, sua imagem mística e invisível se imprime secretamente em nosso ser interior. Então recebemos suas qualidades, ou seja, o reflexo de sua bondade e de sua doçura infinita, e a “luz de sua face[22]”. Foi a propósito desta transformação que são Paulo disse: “Filhinhos, que eu gero em minha dor até que Cristo se forme em vocês[23]”.
A frequência de nossas conversas com Cristo durante a oração faz com que sua sublime imagem se imprima secretamente em nós sem nos demos conta disto. “E todos os que, com o rosto descoberto, contemplaram como em um espelho a glória do Senhor, nos transformamos nesta mesma imagem, sempre mais gloriosa, como convém à ação do Senhor que está no Espírito[24]”.
Este fenômeno tem sua correspondência no mundo material. Quando expomos um corpo inerte à ação de um corpo radioativo, ele recebe radioatividade na proporção do tempo de exposição. Assim, quão mais influenciados seremos, nós que nos aproximamos da fonte de toda luz que jamais existiu no mundo, e de toda energia que jamais animou tanto os corpos celestes como os terrestres, Jesus Cristo, Luz do Pai e Luz do mundo!
O próprio Cristo nos exorta a que nos mantenhamos perto dele, para que as trevas do mundo não nos atinjam, para que elas não tornem cega nossa inteligência, e para que não deixemos de reconhecer a Verdade divina: “Caminhem enquanto tiverem luz, para que as trevas não os alcancem. Eu sou a Luz do mundo; quem me segue não caminhará nas trevas, mas possuirá a Luz da Vida[25]”.
Aqueles que negligenciam deliberadamente a oração se afastam da verdade, mesmo sem se dar conta disto. Estes caminham na borda de um precipício, sobre os limites da incredulidade, ou seja, nas “trevas exteriores[26]”. Eles estão expostos a blasfemar, mesmo sem se aperceber disto. A menor provação é capaz de precipitá-los no abismo do desespero e da inimizade para com Deus.
Mas o contrário é igualmente verdadeiro. Os que são assíduos na oração fervorosa adquirem uma fé mais firme do que as montanhas. E isto, sem afetação, sem se vangloriar por palavras vás. Suas vidas e seu comportamento atestam essa verdade. Sua paciência, sua alegria em meio às provações, sua resistência face aos sofrimentos e à injustiça são sinais que testemunham a solidez de sua fé. Esses não serão atingidos pelas trevas, segundo a promessa do Senhor.
Assim é que a frequência da oração exerce, no mais profundo do homem, uma ação divina que o conduz finalmente a receber o poder da graça. Aí se encontra o começo da união mística permanente com o Senhor.
A prece de comunhão, união com o Senhor
A prece, de início, é a porta pela qual acessamos ao Senhor e pela qual o Senhor vem até nós para despertar e corrigir nossa consciência, e para nos exortar a recebê-lo em nossa vida, e a nos ligarmos a ele de uma vez para sempre até a vida eterna.
Assim, no seu começo, a prece exige de nós um esforço mantido contra a natureza da carne e do “eu” terrestre, que desejam nada perder dos prazeres deste mundo em função de uma outra vida, a qual de nada servirá à carne, nem ao “eu”.
Se a oração perseverar e chegar a submeter ao Espírito a natureza da carne, de sorte que toda tentativa por parte desta de se esquivar, ou de se subtrair por preguiça, de deixar para mais tarde ou de resistir ao apelo do Espírito, seja destruída pela oração, isso testemunhará com segurança a vitória do Espírito e o inteiro domínio da alma por Deus. Então a prece se tornará o sinal evidente de que se realizou com sucesso uma participação ao Senhor e o começo de uma união com ele, no plano de Sua vontade, de Seu desejo e se Sua obediência total ao Pai. E isso se manifestará por um amor que despreza os sofrimentos até a morte.
A prece de comunhão ou de união com o Senhor não faz parte das obras deste século. O tempo que consagramos a ela não faz parte das horas deste século. São fragmentos fugidios, nos quais o homem pode desfrutar já do Reino de Deus por antecipação.  Ele percebe interiormente de modo seguro a presença espiritual do Senhor Jesus, como uma Vida eterna que se derrama por todo seu ser, e uma Luz que brilha em meio às trevas, as trevas das paixões, das tentações do mundo, da maldade do homem e do império do demônio.
Tais momentos espirituais são na realidade a hora divina da qual o Senhor disse: “Eis que vem a hora – e é nela que nos encontramos – em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e aqueles que a ouviram viverão[27]”. Ao dizer: “eis que vem a hora”, ele indicou o tempo escatológico da eternidade, onde estão concentradas para nós as graças eternas de Deus, ou seja, a vida eterna da qual estamos separados atualmente pelo véu obscuro do pecado. Ao acrescentar: “e é nela que nos encontramos”, ele indicou claramente que, durante a oração, a Vida eterna perfura esse véu e invade nossa existência temporal, e a luz de Cristo se derrama no coração daquele que ora, apesar do mundo, do espírito das trevas e da oposição da carne.
Esta é verdadeiramente a prece da ressurreição, a prece da eternidade, representada pela hora de Cristo, e praticada por seus filhos, iniciados em seu mistério, por aqueles que, ao ouvir sua voz, não endureceram seu coração, mas se levantaram de pronto para a prece e o louvor, em todo o tempo, sem relaxar.
A prece é mais poderosa do que o pecado
A prece é mais poderosa do que o pecado. O pecado destrói as forças físicas e morais do homem, mas não é capaz de destruir o poder da misericórdia e o amor de Deus. “Deus é mais forte do que os homens”, Deus continua sempre a amar o homem, antes, durante e depois do pecado.
A prece, enquanto relação entre o homem e Deus, nos coloca em relação com sua misericórdia, que redime das faltas mais graves. Em si, a prece é uma manifestação de arrependimento e de retorno a Deus. Deus está sempre disposto a acolher os que retornam para ele, pois ele não deseja a morte do pecador, mas sim que ele se converta e viva[28].
Se é verdade que o pecado destrói em grande parte a força que o homem adquiriu pela oração, mesmo assim ele é incapaz de chegar ao fundo de tudo o que o homem obteve em sua prece. Se, depois de havermos orado, sucumbimos, qualquer que seja o gênero de nosso pecado, ainda conservamos em nós um resto do poder adquirido pela oração. E este poder acaba por retomar sua predominância. Depois das maiores faltas, sempre resta no coração do homem e em sua consciência um fundo de poder espiritual, que se formou nele pela oração oferecida a Deus com um coração sincero e uma consciência que recusa o pecado. Por meio da prece assídua, o homem adquire pouco a pouco um tesouro de potência espiritual que chega finalmente, não apenas a anular todo pecado, como a purificar a consciência do sentimento penoso causado pelo pecado. A alegria da remissão e da salvação vem substituir a aflição e a dor causadas pelo pecado. A prece se revela como a plena cura da alma.
Mas isso não se realiza em um dia, nem mesmo em um ano. É no decurso de longos anos que a prece realiza sua obra de maturação, lenta mas contínua, com vistas a destruir o desejo do pecado e de lavar progressivamente a consciência. Quando a vida de oração está suficientemente madura, a luz da salvação começa a brilhar de modo intenso e inesperado no interior da alma, com uma alegria indizível, que se alastra por todo o ser interior do homem. Esta luz interior, que não aparece senão tardiamente e que parece ser súbita, é na realidade obra de longos anos, fruto de milhares de orações.
A prece, troca de amor com Deus
A prece, qualquer que seja seu aspecto, de aflição ou de compunção, e qualquer que seja o sentimento que o homem possua de sua mediocridade e de sua indignidade em conversar com Deus, por causa de suas faltas e de seus numerosos pecados, a prece é, acima de tudo, a expressão de um profundo amor trocado entre Deus e o homem: o amor de Deus se manifesta atraindo o coração do homem para orar em sua presença, e o amor do homem consiste em apresentar a Deus seu coração, ainda que sob os aspectos de aflição e de compunção. A prece é uma manifestação de amor, tímida de início, de sorte que o homem não chega a expressá-la com palavras de amor, mas antes com palavras de remorso, de arrependimento e de contrição. A maturidade da prece é o sinal manifesto da maturidade do amor: o homem já não encontra dificuldades em expressar seu amor com palavras de amor.
Deus é amor, tudo é amor. Ele é a origem e a fonte de todo amor. Se o coração do homem não se abre para o amor divino, ele permanece afastado de Deus, privado dos favores de sua natureza radiosa.
Quando o coração do homem é tocado pelo amor divino, o primeiro sinal é uma aspiração a se dirigir para Deus para conversar com ele; a oração é exatamente isto. A oração é assim a primeira efusão do amor divino no coração do homem. Se é verdade que no começo de sua experiência orante o homem é levado sobretudo a acusar seu pecado, a razão está em que o amor divino – que o convidou e que atrai seu coração para a prece – é um amor extremamente puro, que não pode se acomodar ao pecado. Assim o primeiro efeito desta amor é uma prece de arrependimento e de conversão com vistas a purificar o coração e prepará-lo para a troca de amor com Deus.
A prece de compunção e de aflição que aperta o coração do homem é, portanto, ao mesmo tempo um primeiro efeito do amor divino e uma preparação do coração para receber o Bem-Amado em pessoa.
Jesus Cristo, no Evangelho, nos exorta a nos converter para sermos dignos do reino dos céus[29]. Na oração, por causa da presença de Cristo em pessoa, o Reino dos céus se torna muito próximo a nós. Assim a aspiração a se converter aumenta durante a prece, a ponto de que o homem se torna disposto a sacrificar tudo, até a própria vida, em reparação de seus pecados. O móvel misterioso disso tudo é o poder do amor que Cristo derrama secretamente em nosso coração durante a prece. Este poder do amor tem a capacidade de avivar ao máximo o ardor de nossa prece. É assim que o Cântico diz com razão que o amor é forte como a morte[30].
A prece é a ocasião para que Deus derrame seu Espírito de amor no coração do homem. Uma vez derramado, este Espírito age no coração e nele produz múltiplos efeitos. Ele começa por revelar o pecado, em segundo lugar o condena, e enfim o redime. Ao receber estes três efeitos do Espírito durante a prece, o homem recebe o amor divino. A prece é o meio de adquirir o Espírito de amor e de se submeter à sua ação purificadora.
A prece, ato de obediência
Esta submissão ao Espírito de amor e à sua ação purificadora no interior do coração durante a prece é a primeira e mais importante manifestação de obediência a Deus, de obediência ao seu amor.
A rápida docilidade do homem ao primeiro apelo para a prece que ele percebe em seu coração, representa na realidade sua resposta generosa à voz do amor divino com uma obediência apressada: o amor convida o homem à oração e o coração obedece a este apelo.
O critério de sinceridade da oração, enquanto obediência a este chamado de amor, é que ela seja entrecortada de sentimentos de arrependimento e de conversão por cada pecado cometido, por mais insignificante que seja, pois a conversão é o primeiro efeito do amor divino.
A prece sincera é em si um ato de obediência a Deus. A assiduidade na oração, a prontidão em observar o tempo que lhe é consagrado e todas as demais exigências, representa justamente a fidelidade da obediência a Deus.
O home que se esforça cada dia por orar com mais fidelidade é justamente aquele mais fiel em sua obediência a Deus.
A prece, escola de obediência
Aquele que desejar aprender a obedecer a voz de Deus, praticamente na sua vida, deve começar por uma pronta docilidade ao Espírito da oração, a partir do momento em que o apelo de Deus se faz ouvir em seu coração. Com isto a obediência a Deus se torna fácil para ele, mesmo nas circunstâncias mais duras e mais difíceis.
Quem não aprendeu desde o começo a obedecer a Deus por meio da prece contínua, não poderá, quando as circunstâncias se tornarem difíceis, improvisar uma obediência pronta, fácil e serena.
A obediência a Deus na oração contínua do coração dá ao Espírito ocasião de se tornar mais forte do que a carne e de superar as tentações, os prazeres e as solicitações da carne, pouco a pouco, a carne perde todo seu império sobre o homem e este se torna infalivelmente dócil ao apelo divino.
Quem não aprende a ser dócil a Deus pela oração pode imaginar que conseguirá obedecê-lo em toda ocasião; mas quando surgir o apelo de Deus pela doação de si e o sacrifício, ele se verá desprevenido diante da rebelião da carne que se nega e que apresenta mil pretextos falsos para escapar ao chamado de Deus; em definitivo, o homem fica reduzido a se submeter à carne por ter perdido a graça; e ele se retira triste e cabisbaixo.
A obediência a Deus é uma das exigências mais difíceis da relação entre o homem e Deus. Os maiores profetas e santos encontraram mais de uma ocasião de queda neste campo. Mas quem se dedica cada dia, por meio da oração, a se submeter à voz de Deus, chega facilmente a adquirir o Espírito de obediência com serena espontaneidade. Pois, por meio da oração, ele adquire progressivamente o Espírito de abandono, vale dizer, a disposição em confiar sua vida inteiramente à direção de Deus e aos desígnios de sua graça. A obediência se torna assim uma parte integrante de seu pensamento, de seus sentimentos e de sua vontade, e isso transparece em seu comportamento. O próprio Cristo afirmou ter ele mesmo aprendido a obediência. Ele, o Filho de Deus, o Senhor da glória[31]! Filho que era, aprendeu, com seu sofrimento, a obediência[32].
Pela prece, o homem adquire, como dissemos, o Espírito de abandono a Deus. Desejando torná-lo perfeito na obediência, Deus o submete ao sofrimento. Ao aceitar o sofrimento ao qual Deus o expõe, o homem manifesta a plenitude de sua obediência a Deus, e este é o sinal de que concluiu sua salvação. Cristo, Filho que era, aprendeu a obediência pelo sofrimento; depois de se ter tornado perfeito, ele se tornou para todos os que lhe obedecem, o princípio da salvação eterna. A prece é o meio de adquirir o Espírito de obediência e de abandono a Deus. O sofrimento aceito com alegria é a perfeição da obediência; e é este o fruto da prece.
O homem que ama a oração e que a ela se aplica com fidelidade é aquele que pode aceitar o sofrimento com amor. Mas quem detesta a oração também detesta, necessariamente, o sofrimento. Com isso ele mostra que é totalmente estranho ao Espírito de obediência, e também, por conseguinte, ao amor divino, e que é insensível aos avanços deste amor.
A prece, capacidade de abandono à vontade divina
O Espírito de abandono que recebemos durante a oração é de fato uma abdicação da vontade própria. E ele não nos chega facilmente, mas ao termo de um longo conflito entre o “eu” humano com suas falsas esperanças “religiosas tanto quanto temporais” e a vontade divina que não deseja senão a salvação do homem. A vontade própria do “eu” não é destruída senão por meio de múltiplas contrariedades enviadas por Deus para desarrumar a falsa quietude do “eu” e destruir os monumentos de ilusão que este ergue à sua própria glória diante dos homens.
Durante esse conflito, se o homem cessa de orar, ele perde seu apego e sua submissão à vontade divina e cessa de discernir o objetivo do combate e da vida espiritual, que não é outro que sua própria salvação. Então ele toma partido de sua própria vontade, de seu “eu”, e começa a murmurar contra as provas que Deus lhe envia para sua salvação. Ele recusa as contrariedades e os ultrajes que Deus, em sua sabedoria suprema e sua providência, dispõe para ele, com vistas a libertá-lo da vanglória. Ele a tudo encara como o cúmulo da amargura, a ponto de desejar antes morrer do que se ver assim ultrajado diante dos homens e do mundo, pois seu “eu” adquire a seus olhos mais envergadura do que o próprio Deus, o Mestre da vida!
Quanto ao homem que encontra seu refúgio na oração e se apega a ela, ele vê nos seus sofrimentos, nas contrariedades e nos ultrajes uma condescendência de Deus, que se digna intervir na sua vida para corrigi-lo e realizar nele o milagre da humildade. Por meio da perseverança na oração, o  homem recebe finalmente o Espírito de abandono e de submissão à vontade divina; a graça ilumina seu intelecto para fazê-lo ver o quanto sua salvação depende de fato do modo como ele aceita os sofrimentos, as contrariedades, as enfermidades e toda humilhação. Ademais, ele se coloca do lado da vontade divina, até a inteira submissão de sua própria vontade e a supressão de todo desejo próprio. Toda sua felicidade consiste daí por diante em cumprir a vontade de Deus; nisto ele encontra seu maior prazer, mesmo nas circunstâncias mais difíceis.
A prece confere ao homem, portanto, a capacidade de aderir à vontade de Deus e de se abandonar a ele com alegria.
O sacrifício, plenitude da obediência
O progresso na oração traz consigo o progresso da obediência. A plenitude da obediência é ela própria a plenitude do amor. Quando o coração se torna sensível ao amor de Cristo, quando ele é tocado e responde com docilidade, ele se torna digno de ser iniciado em seu mistério. O mistério do amor de Cristo, este é o sacrifício.
Dito de outro modo, quando o homem ama a oração e nela encontra seu equilíbrio espiritual, ele entra em comunhão espiritual com Cristo; ele começa a se compadecer com ele da aflição dos pecadores, dos oprimidos e dos pobres; seu coração se torna semelhante ao de Cristo. A oração permanente e fiel comporta assim uma comunhão real com a vida de Cristo e uma participação em sua missão essencial.
Quem é assíduo na oração não tarda a receber em seu coração o fogo de Cristo e sua missão própria, ou seja, o desejo ardente da salvação dos homens, o amor pelos pecadores, a doação de si para aliviar os outros, o empobrecimento voluntário para enriquecer as almas e as escolha generosa da cruz como sinal de um amor autêntico. Assim é que a prece começa por um encontro com Cristo, depois o amamos, entramos em comunhão com ele, e enfim participamos efetivamente de sua vida e de sua cruz. Quem deseja adotar a missão de Cristo, anunciar seus sofrimentos e sua cruz, deve então começar por se dedicar à prece de todo coração, a fim de se deixar penetrar pela vontade de Cristo antes de abraçar sua missão.
4.       A prece pelos outros
A prece, fonte de poder para os outros. Quando percebemos em nós a alegria da comunhão com Cristo durante a oração, quando somos considerados dignos de carregar sua cruz, isso ainda não quer dizer que a prece tenha alcançado seu termo. Ao contrário, este momento será para nós um convite para que comecemos a nos iniciar no mistério da prece que ultrapassa o entendimento humano: é o momento de descobrirmos que nossa oração se torna para as outras pessoas uma fonte de poder espiritual.
Aquele a quem Cristo confiou os segredos de seu coração e de sua missão para com os pecadores, recebe dele o poder de completar sua obra e de viver seu amor.
Quem ama os pecadores como Cristo amou e ama, que se compadece com o sofrimento dos pobres de dos enfermos, e que está disposto a se desgastar por eles, é justamente aquele que é capaz de orar por eles e de obter sua cura, sua consolação e seu conforto, quando a prece se eleva ao nível do amor divino por uma obediência assídua ao Espírito, e quando ela irradia em comunhão com Cristo, então ela se torna potente e eficaz, a ponto de ser para uns e outros uma fonte de assistência espiritual, de reconforto e de consolação. Ela se torna capaz mesmo de obter para os outros a remissão de seus pecados. Pois o homem que se une a Cristo pela prece se torna capaz de se colocar no lugar do pecador, dispondo-se a tomar sobre si seu pecado e toda sua fraqueza, e a suportar em seu lugar toda correção e todo castigo. Então, por isso mesmo e em virtude dessa disposição e de sua união a Cristo, ele se torna capaz de pedir pelos outros o perdão de seus pecados, e de obtê-lo.
Aqui a prece começa a desempenhar um papel dos mais importantes para a salvação dos outros, para o perdão de seus pecados e a manifestação da misericórdia divina naqueles que estão longe de Deus por indiferença ou ignorância.
Ela se torna assim um poderoso apoio à predicação, a força misteriosa que se antecipa à Palavra e prepara os corações para receber a remissão e a salvação. Basta um que ore com fervor, em sua cela, no secreto, para causar, com sua união a Cristo, a salvação de milhares de pessoas.
Deus emprega nossas orações para a salvação dos outros
Saibamos então que, quando Deus nos atrai pera a prece, ele não leva em consideração unicamente nossa própria salvação, mas deseja igualmente empregar nossas orações para a salvação dos outros. Assim a oração se torna uma das obras mais fundamentais e mais preciosas aos olhos de Deus.
O homem que faz seus esforços em sua vida de oração e que progride rapidamente no Espírito de abandono e de obediência à vontade de Deus se torna “um bom soldado de Cristo Jesus[33]”. O próprio Senhor o chama todos os dias à sua presença, e o coloca para interceder em favor dos outros até que seja atendido. Logo ele receberá do Senhor o poder de salvar numerosas pessoas e de conduzi-las do caminho da morte para o seio de Deus.
O progresso de nossa vida de oração se traduz pela intimidade de nosso amor a Deus. Esta intimidade é a consequência direta tanto da satisfação que Deus sente a nosso respeito em sua condescendência quanto à nossa fraqueza, quanto da ampliação do horizonte de nossa humanidade[34], ou seja, da acuidade da consciência que temos de nosso dever absoluto para com os demais, de nossa responsabilidade espiritual em relação aos pecadores e àqueles cuja fé ou caridade definhou, em relação aos que pregam e anunciam a Palavra.
Os graus superiores da prece, nos quais ela se lança à perfeição, tem como sinal a súplica fervorosa com lágrimas em favor dos outros. É como se nosso progresso na vida de oração nos fosse concedido em benefício de nossos irmãos fracos que não sabem orar. “Orem uns pelos outros, para que sejam todos curados[35]”.
E quando são Tiago nos ordena expressamente chamar “os presbíteros da Igreja” para que eles orem por um enfermo que sofre, a fim de curá-lo, é porque se supõe que o padre esteja mais avançado que os demais homens na vida de oração, que ele tenha recebido mais graças e que tenha sido colocado à parte para se consagrar à orar pelos outros.
Não podemos progredir nos graus da prece, adquirir uma verdadeira segurança junto a Deus, nem receber o dom das lágrimas, senão na medida do progresso de nossa compaixão para com os que sofrem e são ultrajados, seja pelos homens, seja pelo pecado: “Lembrem-se dos prisioneiros como se estivessem aprisionados com eles, e dos que são ultrajados, por vocês também possuem um corpo[36]”. Dito de outro modo, o progresso de nossa intimidade com Deus, que tem seu centro na oração, depende fundamentalmente do progresso de nosso conhecimento dos fardos dos homens e de nossa disposição em carregá-los junto com eles com mais generosidade.
Nossa comunhão com Cristo e nossa comunhão com os sofrimentos dos homens
Nossa comunhão com as penas daqueles que sofrem, que estão enfermos ou foram ultrajados, e nossa capacidade de carregar seus fardos, não nos vêm a partir de uma simples filantropia humana, de uma compaixão passageira ou de um desejo de sermos bem vistos ou de recebermos elogios; pois tal compaixão estaria destinada a diminuir rapidamente, e logo desaparecer. Ao contrário, é pela oração perseverante, pura, sincera, que recebemos esses sentimentos, como um dom de Deus que nos torna capazes, não apenas de perseverar nessa comunhão com os mais fracos, como ainda de progredir nela a ponto de já não mais ser possível viver sem eles[37], e de não encontrar repouso senão na partilha de suas penas e de seus sofrimentos. O segredo deste carisma reside em nossa comunhão com Cristo, em nossa participação na sua natureza e suas qualidades divinas, de sorte que daí por diante é ele “quem opera em nós ao mesmo tempo o desejo e a ação[38]”. Assim, nossa comunhão com o sofrimento dos homens e nossa comunhão com Cristo dependem fundamentalmente uma da outra no mais alto grau; de sorte que levar a cruz de Cristo significa por isso mesmo ter parte na cruz dos homens, sem restrição, até o final.
Quando diminui a intimidade de nossas relações com Cristo na oração, isto indica que uma grave enfermidade atingiu a prece em sua própria essência. Para aqueles que agem, que servem os outros e oram por eles, isso representa uma grande perda, um fracasso certo: eles começam a enfraquecer, a se sentir abatidos; daí para frente é com esforço que eles conseguem cumprir com os deveres que antes lhes eram tão fáceis; a seguir eles começam a negligenciá-los e a tentar se evadir, e finalmente eles se abstém e se recusam a cumpri-los. Pois sem Cristo, é impossível continuar a servir os outros com uma ação fecunda, contínua e eficaz; e não se alcança Cristo senão pela oração.
A busca de si mesmo na oração mancha a oração
A prece alcança seu grau de pureza autêntica quando nela nos esquecemos de nós totalmente, vale dizer que, deliberadamente, cessamos de nos interessar por nós mesmos e preferimos nos ocupar unicamente dos assuntos, das necessidades e da salvação dos outros. O grau de pureza perfeita da prece é correlativo ao grau do amor perfeito. Ora, o amor não é verdadeiramente perfeito a menos que não busque seu próprio interesse: “O amor não busca seu próprio interesse[39]”. Interessar-se por si mesmo, por suas próprias necessidades – tanto espirituais como materiais – denota uma imperfeição no amor, e por conseguinte uma imperfeição na prece. A causa disso é a imperfeição de nosso conhecimento interior de Cristo e de nossa união com ele. Cristo disse: “Não é minha vontade que eu busco...[40]”; e “Não existe amor maior do que dar a vida por seus amigos[41]”; e “Quem ama sua vida a perderá[42]”; e finalmente: “Amem seus inimigos, orem por seus perseguidores[43]”.
Esquecer-se de si durante a prece é se tornar embaixador de Cristo
O esquecimento de si começa por um esforço voluntário. Mas quando perseveramos nele com sinceridade diante de Deus, Deus no-lo concede como um dom gratuito. A partir é espontaneamente que “já não buscamos cada qual nossos próprios interesses, mas cada um busca o interesse dos outros[44]”.
Quando deixamos de lado deliberadamente nossas próprias necessidades na prece, e encontramos toda nossa alegria em pedir, suplicar e nos prodigalizar em benefício dos outros, então o próprio Deus começa a se ocupar de nós e a se encarregar de nossa vida, tanto no plano material como no espiritual, até os mínimos detalhes. Dito de outra forma, quando nos ocupamos dos outros, Deus se ocupa de nós; e quando limitamos nossas preces e súplicas às necessidades dos outros[45], Deus cumula nossas próprias necessidades sem que o peçamos.
É assim que se realiza, por meio da oração, o desígnio salutar de Cristo, a respeito do qual ele disse aos apóstolos: “Vão, e façam discípulos de todas as nações[46]”. O homem cujo coração está aberto para Deus se contenta com Deus e já não lhe pede mais nada para si próprio. Aquele cujo coração ainda não está aberto para Deus necessita de corações amigos que se lancem para Deus em seu favor, a fim de que Deus atenda a prece fervorosa de seus irmãos.
O homem que conheceu a Deus e o amou se torna responsável diante de Deus por seu irmão cujo coração ainda não se abriu para Deus. É assim que Deus alcança os pecadores perdidos que estão longe dele, por meio da oração daqueles que o amam e que estão próximos de si. Os que já amaram a Cristo e que lhe são fiéis se tornam sobre a terra verdadeiros embaixadores de Cristo. Com suas preces e sua disposição a se dedicar, eles reconciliam a Deus com os homens e os homens com Deus. “Estamos assim em embaixada a serviço de Cristo (...) Nós lhes suplicamos em nome de Cristo: deixem-se reconciliar com Deus[47]”.
Em muitos casos, se torna impossível entrar em relação com os pecadores e os perdidos, por causa de sua hostilidade, ou por causa da vergonha que ele têm em falar conosco. Mas por meio da prece, nós ultrapassamos esses obstáculos que nos separam deles; superamos sua hostilidade e evitamos sua vergonha; pois por meio da oração podemos nos aproximar secretamente de seu coração, penetrar neles sem que o saibam e, desde dentro, gemer identificados a eles, como se nós mesmos fôssemos pecadores e perdidos; e tudo isso antes mesmo de que eles nos conheçam ou que falem conosco. Se então, do fundo de seu coração, orarmos e clamarmos a Deus trazendo sobre nós o peso de suas faltas e de sua perdição, Deus os ouvirá através de nós; malgrado sua insubmissão natural, o arrependimento assaltará sua consciência e o apelo ao retorno se fará tão urgente que logo eles se dirigirão a Deus e a nós pedindo nossa ajuda. A oração é uma força de atração por meio da qual o homem atrai a seu irmão por intermédio do Espírito Santo; pois é pelo Espírito Santo que Cristo atrai a tudo para si[48], e transforma em si próprio toda dualidade em unidade[49].
Também temos necessidade de que orem por nós.
Não são apenas os pecadores e os perdidos que necessitam que se ore por eles para que se convertam e retornem ao conhecimento de Deus; também nós, você e eu, temos grande necessidade das orações dos outros. Pois muitas vezes negligenciamos examinar nossa consciência e nos deixamos levar por graves faltas. Deixamos de nos acusar por elas durante longos anos, e elas contribuem para enfraquecer nossa vida espiritual. Por causa disso, nossa alma de vê desprovida do poder de Deus e da ação manifesta da graça. Falamos dos pecados dos homens, oramos pelos outros e, enquanto isso o pecado se desenvolve em nossos membros, mancha nossos pensamentos e  incentiva nossas paixões.
Temos muita necessidade de que orem por nós com fervor, a fim de que o Espírito nos revele os pecados que arrastam e se escondem em nosso coração, a fim de que nossa consciência seja tomada de arrependimento e se converta. Poderemos então receber novamente o poder de Deus, e nossas preces e todas as nossas obras serão reavivadas pelo dinamismo manifesto da graça.
As preces dos outros, quando dirigidas a nós com força e discernimento, despertam nosso ser interior. Elas se tornam como flechas inflamadas, flamejantes, que iluminam nossa consciência e incendeiam nosso coração para que busquemos a conversão e a salvação. As preces dos outros, quando são fervorosas, se tornam para o homem de Deus um fator dos mais importantes para renovar sua vida e adquirir mais energia espiritual.
Mesmo os santos, os profetas e os apóstolos tiveram necessidade das orações dos outros. Sem a prece de Cristo por ele, são Pedro teria perecido para sempre por sua negação e sua fé teria fracassado sem retorno[50]. Da mesma forma, se não fosse a prece sem descanso da Igreja por ele, ele teria terminado sua vida na prisão de Herodes[51]. São Paulo também tinha uma aguda consciência da importância da oração dos demãos para que ele pudesse “abrir a boca” para anunciar a mensagem do Espírito e para que pudesse perseverar em seu ministério. Assim é que ele não cessava de pedir a cada Igreja que orasse por ele[52].
Santos, profetas e apóstolos não puderam assim se bastar em matéria de oração, por si próprios ou por seu ministério, mas tiveram sempre uma viva necessidade de que os demais orassem por eles, a fim de que se enchessem inteiramente com o poder divino e que a graça suscitasse neles novas energias.
É assim que a prece dos outros se torna, para aquele que age ou prega, uma fonte insubstituível de energia espiritual. Na medida em que as preces dos outros por ele se fazem mais fervorosas, sua ação se torna mais eficaz; e na medida em que os joelhos se dobram diante do Senhor por ele, o ardor de sua ação persiste e suas palavras recebem o poder e a eficácia do Espírito Santo.
A prece pelos outros é uma grave responsabilidade
A prece, quanto à sua necessidade, passa por três estágios:
a)      De início, sentimos essa necessidade como um “ato de fidelidade”, fidelidade do servidor para com seu mestre ou seu criador. Rendemos-lhe graças, louvamo-lo e o glorificamos em retribuição pelos benefícios que recebemos dele. Sentimos que é de suas mãos que recebemos e damos[53]. Por isso é grave deixar de orar. Pode o servidor deixar de ser fiel e ainda assim permanecer na casa?
b)      Quando progredimos na oração, percebemos melhor a própria essência da prece na medida em que ela expressa a relação vivificante que une o homem ao seu Senhor. O homem que ora vive da vida de Deus, e quem negligencia a prece já não vive senão por si mesmo e não recebe os sinais manifestos da vida divina. Assim, se de início da oração exprime a “fidelidade do servidor”, ela em seguida se torna “um sinal da vida eterna”.
c)       Quando continuamos a progredir na prece, descobrimos uma nova dimensão importante: a oração se torna o canal pelo qual passa a relação do homem para com seus irmãos. O homem experimenta de fato que sua oração começa a se tornar para os demais uma fonte de vida e de poder. “Qualquer um que observar seu irmão cometer um pecado (...) que ore por ele e lhe dará a vida[54]”. Portanto, aquele que ora pelos outros corrige e faz reviver as almas mortas ou que estavam em vias de morrer, conforme a palavra do Senhor: “Falam reviver os mortos[55]”.
Agora, a prece começa a se tornar uma “grave responsabilidade”; pois, se por uma razão qualquer, o homem deixa de orar pelos pecadores que vivem ao seu redor, se negligencia suplicar em seu favor, eles morrerão em seus pecados. Aqui a negligência na prece atinge seu cúmulo e arrasta consigo as mais graves consequências. O pecador morre em seu pecado por falta de ter tido sua alma despertada e reanimada pela prece dos demais. Assim, como poderá se justificar aquele que negligenciou orar por este e que o terá privado assim da fonte de vida da qual Deus o tornou responsável? Percebem a gravidade da oração?
Assim, se a prece, no início da vida espiritual, parece ser necessária, depois se mostra, para o que progride nela, essencial para a vida no Espírito, ela finalmente se torna, para os que foram iniciados no mistério da prece pelos outros, uma das mais graves responsabilidades que Deus jamais confiou aos homens.
O homem que percebe a necessidade da oração para os pecadores e que negligencia orar por eles, participa de uma falta grave e se torna responsável por sua morte. “Aquele que sabe fazer o bem e não o faz, cai em pecado[56]”. “De minha parte, que eu me guarde de pecar contra o Senhor, jamais cessando de orar por vocês[57]”. Quem recebeu o poder de reviver um morto e não o faz reviver se torna responsável por sua morte. A prece é uma capacidade de retornar da morte para a vida, porque o pecado é a morte da alma e a prece consiste no meio de obter a remissão deste pecado. “A prece com fé salvará o enfermo e o Senhor o erguerá. Se ele cometeu pecados, estes lhe serão perdoados[58]”.
Somos assim chamados a orar pelos pecadores, não apenas para salvá-los da morte pelo pecado, mas ainda para não morrermos em seguida a eles. A oração que elevamos por eles, com insistência, súplicas e lágrimas, nos liberta da responsabilidade por seu sangue e nos evita morrer por sua causa[59].
É assim que a prece de intercessão pelos pecadores aumenta a proporção dos membros ativos da família humana, tornando o homem responsável pela salvação de seu irmão. “Filho do homem, eu o estabeleci como vigia para a casa de Israel[60]”. É assim que o homem que lança sua alma na prece pelos pecadores é estabelecido como apóstolo da mensagem de salvação para todas as categorias de pecadores, próximos ou distantes de si, que tenha encontrado em sua vida ou que jamais tenha visto. “Vão, e de todas as nações façam discípulos[61]”.
Por meio da prece o homem se torna sacerdote, no sentido que ele se torna responsável pela salvação dos outros e capaz – pelo amor, a doação de si e a participação no sacrifício e no sacerdócio de Cristo – de libertá-los da condenação à morte causada por seu pecado.
Ao se encarregar de seu pecado, gemendo do fundo do coração sob seu peso e fazendo penitência, ele se torna capaz, fazendo-se pecador em seu lugar, de pedir o perdão por ele e para ele obtê-lo. “Vendo sua fé, Jesus disse ao paralítico: Confiança, meu filho, seus pecados lhe foram perdoados[62]”.
5.       A adoração pura dos seres espirituais[63]
A oração de louvor, de adoração e de contemplação do rosto glorioso de Cristo[64]. A prece é a ocasião para descobrir as qualidades e a própria vida de Deus. “O Senhor estará sempre com vocês, se vocês estiverem com ele. Se vocês o procurarem, ele se deixará encontrar. Mas se vocês o abandonarem, ele também os abandonará[65]”. E: “É isso que o Senhor queria dizer, quando falou: Eu mostrarei minha santidade em meus ministros[66]”. E também: “E quem me ama, será amado por meu Pai. Eu também o amarei e me manifestarei a ele[67]”.
Assim, quando o coração do homem se interessa pelas qualidades transcendentes de Deus e se aproxima dele pela oração, ele começa a experimentar o sabor divino. Cada vez que uma nova qualidade divina lhe é revelada, ele recebe algo dela; pois Deus não se manifesta ao homem por meio de um conhecimento teórico, mas pela comunicação misteriosa de uma potência divina. Durante a prece, Deus libera o coração do homem do véu espesso da razão humana, e lhe revela seu desígnio, sua economia, por meio da qual ele conduz a criação inteira e a própria vida do homem através dos diversos eventos e da sucessão de seus anos. O homem então recebe daí uma clara percepção das qualidades de Deus, mas por uma intuição interior acompanhada de uma comunicação de potência. Ele prova de Deus e o saboreia, como se saboreia um favo de mel.
Se o mel perecível tem a propriedade de reanimar nosso corpo, quanto mais não inflamará Deus nosso ser interior? Sentimos então o fogo de Deus queimar em nós, seja para nos purificar, seja para nos consolar ou nos alegrar; seja para suscitar em nós um desejo ardente do reino, seja para nos levar à ação e à doação de nós mesmos. Mas quaisquer que sejam os sentimentos provocados em nós pelo fogo divino, a prece daquele que recebeu tal experiência se elevará sempre a um grau supremo de louvor e de glorificação das qualidades indizíveis de Deus. Nem a língua, nem a inteligência, nem o corpo do homem se cansarão de louvar e exaltar o Nome de Deus e suas qualidades. Essa prece inflamada que se limita a louvar e a glorificar as virtudes divinas é conforme a prece dos querubins. Sabemos que os querubins são “cheios de olhos[68]”, como sinal da contemplação intensa com a qual eles percebem a natureza de Deus. Mas esta percepção da natureza divina não se opera neles pela razão, num plano teórico, mas pela comunicação de um poder. Assim é que se diz também que eles são “inflamados pelo fogo[69]”, para simbolizar que eles são vivamente influenciados pela natureza de Deus. A relação entre estas duas expressões – cheios de olhos e inflamados pelo fogo – é fundamental na criação espiritual[70], pois a clara percepção de Deus na oração conduz necessariamente a uma determinada participação na natureza ígnea de Deus. “Nosso Deus é um fogo devorador[71]”. “Ele faz de seus anjos os ventos, e de seus servidores uma chama ardente[72]”. De resto, sabemos que a prece dos querubins e dos serafins consiste em clamar com voz infatigável e lábios que não descansam, e em repetir sem cessar o louvor e a glória de Deus, santo, santo, santo[73]... Pois a natureza de Deus é extremamente gloriosa e se torna impossível a qualquer criatura que a tenha percebido para de louvá-la, ainda que por um mísero instante.
Assim, quando olhamos com amor, em muitas ocasiões durante a prece, para a face de Jesus Cristo, sem outro objetivo do que amar a Deus e lhe render glória, então nossas almas se veem libertas do véu espesso da razão, e captamos a glória da natureza divina em Cristo. “Deus brilhou em nossos corações para fazer resplender o conhecimento da glória de Deus que está na face de Cristo[74]”. Assim chegamos à prece de adoração dos seres espirituais. É assim que, durante a prece de contemplação de Cristo, Deus nos concede os inumeráveis olhos querubínicos para que “resplandeça em nossos corações o conhecimento da glória de Deus”. Nossos corações serão então inflamados pelo fogo divino, de tal maneira que seremos incapazes, nestas horas benditas, de fazer outra coisa que não seja glorificar a Deus sem interrupção.

***
ANEXO I – A respeito das duas naturezas de Cristo
Seguindo a são Cirilo de Alexandria, as antigas Igrejas orientais (copta, síria, armênia) sempre admitiram que Cristo possui duas naturezas, mas que, em razão da união perfeita destas duas naturezas, não devemos reconhecer nele, depois desta união,  senão “uma natureza encarnada do Verbo de Deus”.
Esta união perfeita das duas naturezas numa natureza única, no entanto, realizou-se “sem confusão, mistura ou alteração da divindade e da humanidade” (confissão de fé da missa copta). Especificamente não se realizou em detrimento do elemento humano: Cristo é “homem completo, desfrutando de uma alma racional”. Essas precisões bastam para diferenciar categoricamente essa formulação da fé ortodoxa da heresia monofisista de Eutíquio (que falava da dissolução do humano no divino como uma gota de vinho que se dissolve no oceano), bem como da de Apolinário (que se recusava a reconhecer uma alma humana em Cristo). Estas duas heresias são igualmente condenadas pelo monofisismo ortodoxa.
Os historiadores da espiritualidade cristã reconhecem agora que a adesão dos cristãos orientais a essa formulação da fé inaugurada por são Cirilo foi ditada pelo grande benefício que ela demonstrou em favorecer a doutrina espiritual da divinização do cristão, tão cara à Igreja do Oriente.



[1] Apocalipse 3: 20.
[2] Lucas 18: 1.
[3] Hebreus 12: 2.
[4] Mateus 18: 19.
[5] Mateus 6: 6.
[6] Lucas 18: 1.
[7] Mateus 6: 6.
[8] Ver Anexo I.
[9] Cf. Efésios 5: 16.
[10] Lucas 18: 1.
[11] Romanos 8: 26.
[12] “Rei Celestial, Consolador, Espírito de Verdade, presente em toda parte e ocupando todo lugar, vem e habita em nós, purifica-nos de toda mancha e salva nossas almas, Tu que és bom”.
[13] Tiago 4: 4; João 2: 15.
[14] Romanos 10: 21.
[15] Mateus 11: 28.
[16] João 6: 37.
[17] Luvas 21: 37.
[18] Cf. Romanos 8: 7; Tiago 4: 3.
[19] No sentido de que ela consiste numa participação na prece eterna de Cristo.
[20] II Coríntios 3: 18.
[21] Romanos 12: 2.
[22] Salmo 4: 7.
[23] Gálatas 4: 19.
[24] II Coríntios 3: 16.
[25] João 12: 35; 8: 12.
[26] Mateus 22: 13.
[27] João 5: 25.
[28] Cf. Ezequiel 18: 23.
[29] Mateus 4:17.
[30] Cânticos 8: 6.
[31] I Coríntios 2: 8.
[32] Hebreus 5: 8.
[33] II Timóteo 2: 3.
[34] O Padre Matta el-Maskine entende que nisto consiste a consciência que temos de não sermos simples indivíduos separados uns dos outros, mas de sermos membros da mesma natureza humana (Cf. Isaías 58: 7 – “Não se feche diante daquele que é sua própria carne”).
[35] Tiago 5: 16.
[36] Hebreus 13: 3.
[37] I Tessalonicenses 3: 8.
[38] Filipenses 2: 13.
[39] I Coríntios 13: 5.
[40] João 5: 30.
[41] João 15: 13.
[42] João 12: 25.
[43] Mateus 5: 44.
[44] Filipenses 2: 4
[45] Idem.
[46] Mateus 28: 19.
[47] II Coríntios 5: 20.
[48] João 12: 32.
[49] Cf. Efésios 2: 14.
[50] Lucas 22: 32.
[51] Atos 12: 5.
[52] Efésios 6: 19; Colossenses 4: 3; Romanos 15: 30; etc.
[53] II Crônicas 29: 14.
[54] I João 5: 16.
[55] Mateus 10: 8.
[56] Tiago 4: 17.
[57] I Samuel 12: 23.
[58] Tiago 5: 15.
[59] Ezequiel 3: 19; 33: 1-9.
[60] Ezequiel 3: 17.
[61] Mateus 28: 19.
[62] Mateus 9: 2.
[63] Como “seres espirituais” o Padre Matta el-Maskine entende também os cristãos tornados “espirituais” (Cf. Romanos 8: 9; Coríntios 8: 9), bem como os seres incorpóreos do mundo angélico: querubins, serafins, etc.
[64] Cf. II Coríntios 4: 6.
[65] II Crônicas 15: 2.
[66] Levítico 10: 3.
[67] João 14: 21.
[68] Ezequiel 10: 12.
[69] Ezequiel 1: 13.
[70] Como “criação espiritual” o Padre Matta el-Maskine se refere tanto ao mundo angélico como à nova criação: “Se alguém está em Cristo, nova criatura é” (II Coríntios 5: 17)
[71] Hebreus 12: 29.
[72] Hebreus 1: 7.
[73] Isaías 6: 3; Apocalipse 4: 8.
[74] II Coríntios 4: 6.


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