Capítulo IV
Antropologia cristã
1.
Imagem e semelhança
A filosofia antiga conhecia a condição central do homem e a expressava
pela noção de “microcosmo”. Para os estoicos em particular, se o homem é
superior ao cosmo, é porque ele o resume e lhe dá sentido: pois o cosmos
consiste num grande homem, assim como o homem é um pequeno cosmo.
A ideia do microcosmo foi retomada pelos Padres, mas com uma vigorosa
superação de todo imanentismo. “O que existe de notável, observa São Gregório
de Nissa, em que o homem seja a marca e a semelhança do universo? O céu gira, a
terra muda, e todo o seu conteúdo é tão efêmero quanto o continente[1]”.
Face às magias cósmicas da Antiguidade em declínio, o camundongo impõe a
liberdade: “Aqueles que creem exaltar a natureza humana com esse termo
grandiloquente [de microcosmo], explica Gregório, não repararam que ao mesmo
tempo estão gratificando o homem com as qualidades dos mosquitos e dos
camundongos[2]”.
A verdadeira grandeza do home não está
no seu incontestável parentesco com o universo, mas na sua participação na
plenitude divina, no mistério presente nele, da imagem e da semelhança. “Na
minha qualidade de terra, escreve São Gregório de Nazianze, estou ligado à vida
aqui de baixo, mas, por ter também em mim uma chama divina, eu trago em meu
seio o desejo da vida futura[3]”.
O homem é um ser pessoal como Deus, e não uma natureza cega. Tal é o
caráter da imagem divina nele. Sua relação com o universo se acha de certo modo
invertida em relação às concepções antigas: ao invés de se “desindividualizar”
para se “cosmizar” e assim se fundir num divino impessoal, sua relação absoluta
de pessoa para com um Deus pessoal deve lhe permitir “personalizar” o mundo. O
homem já não se salva través do universo, mas o universo é que é salvo por
intermédio do homem. Pois o homem é a hipóstase do cosmo inteiro que participa
da sua natureza. E a terra encontra seu sentido pessoal e hipostático no homem.
O homem, para o universo, constitui a esperança de receber a graça e de se unir
a Deus, mas também o perigo da falência e da decadência. “A criação aguarda
ansiosamente essa revelação dos filhos de Deus, escreve São Paulo. Com efeito,
é a vaidade que sujeitou a criação, não por sua vontade, mas por causa daquele
que a sujeitou, embora a criação mantenha a esperança de ser ela também liberta
da escravidão da corrupção, para participar da liberdade gloriosa dos filhos de
Deus[4]”.
Submetida à desordem e à morte pelo homem, a criação espera também do homem,
tornado filho de Deus pela graça, sua libertação.
O mundo segue o homem, porque ele é como que sua natureza, podemos
dizer, sua “antroposfera”. E essa ligação antropocósmica se realiza quando se
realiza a da imagem humana para com Deus, que é seu protótipo; pois a pessoa
não pode, sem se destruir, pretender possuir sua natureza, sua qualidade
notadamente de microcosmo no mundo; mas ela encontra sua plenitude quando ela a
dá, quando assume o universo para oferecê-lo a Deus.
Somos, portanto, responsáveis pelo mundo. Somos a palavra, o logos, pelo qual o mundo fala, e só
depende de nós se o mundo irá blasfemar ou orar. Somente através de nós, o
cosmos, como o corpo do qual ele é um prolongamento, pode receber a graça. Pois
não apenas a alma, mas o corpo do homem é criado à imagem de Deus. “Juntos,
eles foram criados à imagem de Deus”, teria escrito Gregório Palamas[5].
Assim é que a imagem não pode ser objetivada, “naturalizada” por assim
dizer, sendo atribuída a alguma parte do ser humano. Ser à imagem de Deus, afirmam
os Padres em última análise, é ser um ser pessoal, vale dizer, um ser livre,
responsável. Por que, podemos nos perguntar, criou Deus o homem livre e
responsável? Justamente porque ele desejava chamá-lo a uma vocação suprema: a
deificação – ou seja, a se tornar, pela graça, num impulso infinito, como Deus,
aquilo que Deus é por sua natureza. Ora, esse chamado exige uma livre resposta,
pois Deus quer que esse impulso seja um impulso de amor. a união sem amor seria
automática, e o amor implica a liberdade, a possibilidade da escolha e da
recusa. Claro, existe um amor não pessoal, um movimento cego do desejo, servo
de uma força natural. Mas esse não é o
amor do homem ou dos anjos por Deus: senão, seríamos como os animais que se
ligam a Deus por uma espécie de atração obscura de tipo sexual. Para sermos o
que devemos ser amando a Deus, é preciso admitir que podemos ser ao contrário,
é preciso admitir que podemos nos revoltar. Somente a resistência da liberdade
dá sentido à adesão. O amor que Deus pede não é uma imantação física, mas uma
tensão viva dos contrários. Essa liberdade provém de Deus: ela é o selo da
nossa participação divina, a obra prima do Criador.
Um ser pessoal é capaz de am ar a qualquer um, mais do que sua própria
natureza, mais do que sua própria vida. A pessoa, ou seja, a imagem de Deus no
homem, é assim a liberdade do homem em relação à sua natureza, ou, como dizia
São Gregório de Nissa, “o fato de ser livre da necessidade e de não estar
submetido ao domínio da natureza, mas poder se determinar livremente[6]”.
Na maior parte das vezes, o home age sob seus impulsos naturais: ele está
condicionado pelo seu temperamento, seu caráter, sua hereditariedade, o
ambiente cósmico ou psicossocial, sua própria historicidade. Mas a verdade do
homem está além de todo condicionamento, e sua dignidade, de poder se libertar
de sua natureza, não para consumi-la ou abandoná-la a si mesma como os sábios
antigos e orientais, mas para transfigurá-la em Deus.
O objetivo da liberdade, explica São Gregório de Nazianze, é que “o
bem pertença a quem o escolheu[7]”.
Deus não quer ser o possuidor do bem que ele criou; ele espera do homem mais do
que uma participação cega, exclusivamente natural. Ele quer que o homem assuma
conscientemente sua natureza para possuí-la livremente como boa, para
reconhecer com gratidão na vida e no universo os dons do amor divino.
Os
seres pessoais constituem o apogeu da criação, porque eles podem se tornar Deus
pela livre escolha e a graça. Com eles a onipotência divina provoca uma
“intervenção” radical, uma novidade integral: Deus criou seres que, como Ele –
lembremo-nos do Conselho divino do Gênesis – podem decidir e escolher. Mas
esses seres podem se decidir contra Deus; isso não seria para Ele o
risco de destruir sua criação? Esse risco, devemos responder, deve se inscrever
paradoxalmente no cúmulo da onipotência. A criação, para “inovar”, suscita
verdadeiramente o “outro”: vale dizer, um ser pessoal capaz de recusar Aquele
que o criou. O ápice da onipotência se apresenta virtualmente como uma
impotência de Deus, como um riso divino. A pessoa só é a mais alta criação de
Deus porque Deus colocou nela a possibilidade do amor – portanto, da recusa.
Deus arrisca a ruína eterna de sua mais alta criação, justamente para que ela
seja a mais alta.
O paradoxo é irredutível: em sua grandeza, que é o poder de se tornar
Deus, o homem é falível; mas sem falibilidade não há grandeza. É por isso que,
afirmam os Padres, o homem deve passar pela prova, a peira, a fim de tomar consciência de sua liberdade, do livre
amor que Deus espera dele.
Deus criou o homem como “uma criatura que recebeu a ordem de se tornar
Deus[8]”,
diz a frase de São Basílio reportada por São Gregório de Nazianze. Para
executar essa ordem, é necessário o poder de recusar. Deus se torna impotente
diante da liberdade humana; Ele não pode violar essa liberdade, porque ela
procede de sua onipotência. Claro, o homem foi criado pela simples vontade de
Deus, mas ela não basta para deificá-lo. Para a criação é suficiente uma
vontade, mas são necessárias duas para a deificação. Uma só vontade para
suscitar a imagem, mas duas para fazer da imagem a semelhança. O amor de Deus
pelo homem é tão grande que ele não pode constrangê-lo, pois não existe amor
sem respeito. A vontade divina se submeterá sempre às tentativas, aos desvios,
à própria revolta da vontade humana para conduzi-la a um livre consentimento:
tal é a providência divina, e a imagem clássica do pedagogo parecerá fraca para
qualquer um que tenha pressentido Deus como um mendigo do amor esperando à
porta da alma sem ousar forçá-la.
***
Somente o Novo testamento nos revela a plenitude da Trindade. Então
podemos descobrir que o homem não é apenas uma parte do universo. Um homem é um
indivíduo da natureza humana; cada indivíduo é aquilo que é indivisível, aquilo
que não pode ser dividido sob pena de deixar de existir. Mas o homem não é só
indivíduo – parte da natureza humana e do cosmo criado – ele é pessoa. A pessoa
divina não é um indivíduo da natureza divina. Da mesma forma, o homem não particulariza
a natureza, ele a contém, ele se reporta a todo o conjunto do cosmo criado.
Na Trindade, a relação é simples tripla, senão não poderíamos
pressentir o mistério pessoal em Deus. A relação é sempre tripla, e não
simplesmente de um em relação ao outro: diferença, mas não oposição, diferença
que supõe sempre o terceiro termo. Mas, e no mundo humano? Não existe sempre
uma relação com o outro ou com os outros como multiplicidade? Onde fica o
terceiro termo? Deus criou o homem “homem e mulher”, com o plural e o singular
que se alternam. A mulher foi criada da mesma natureza do homem para serem
companheiros. Ela é igual a ele, formando com ele uma unidade de natureza. Mas
nós estamos sempre na dualidade. É preciso ultrapassar a oposição, de modo a
que o “você” deixe de ser somente um “não-eu”. O terceiro termo é necessário
para afirmar a unicidade de cada um. A díade não é superada pela procriação.
Com efeito, a criança depende dos dois outros e ela própria gera uma série
indefinida. Não podemos, assim, estabelecer um paralelo total entre a
unidade-diversidade da Trindade e a unidade-diversidade da Igreja. Esta não é
senão parcial. A imagem da Trindade no ser pessoal do homem exige que seja
assinalado um terceiro termo: o homem-pessoa não está em relação apenas com seu
próximo, mas também com o Deus pessoal. A relação com o próximo é pessoal na
medida em que as duas pessoas assim em relação estão cada qual em relação com
Deus. É a relação com Deus que representa o terceiro termo. Como sublinha um
adágio atribuído a Nilo o Sinaíta: “Bem-aventurado o monge que venera todo
homem como um Deus depois de Deus[9]”,
o que significa: “Seu próximo deve ser para você como um deus depois de Deus”.
A relação deve ser análoga num certo sentido. A relação pessoal com o
outro exige a superação da mônada, do indivíduo, de sua natureza. O outro é
amado como a si mesmo, na medida justamente em que Deus é amado acima de tudo.
A unicidade pessoal se realiza assim. O indivíduo da série natural é
ultrapassado. A pessoa é realizada quando as demais pessoas são colocadas e sua
natureza é abandonada. Não possuir nada de si... O eremita se isola dos homens,
mas apenas para combater o demônio, o inimigo dos homens. “Buscar a salvação”
consiste em esquecer-se de si. O monge atrai sobre si todas as forças
negativas, servindo assim à salvação do mundo.
Em relação a Deus, a relação diádica deve necessariamente ser superada
na relação com o próximo. “Aquele que diz amar a Deus, mas que odeia seu
próximo, é um mentiroso. Pois ele não pode amar a Deus, a quem não vê, se não
amar a seu irmão, a quem vê[10]”.
“Aquilo que vocês fizerem aos menores dos meus irmãos, a mim o terão feito[11]”.
Seremos julgados com base no amor. Não podemos amar sem amar ao próximo. A
exigência do amor é a própria lei da existência pessoal. Deus, o próximo e eu:
os três estão sempre juntos. A horizontal do amor ao próximo e a vertical do
amor a Deus se condicionam mutuamente.
A natureza não pode ser guardada para si. Abandonando a natureza
adquirimos a graça, e é então que a natureza se torna transparente, semelhante.
A imagem é o ser pessoal do homem em sua liberdade. A semelhança é a natureza
transfigurada pela graça – que torna nossa imagem semelhante a Deus. A imagem
não é semelhante, se o homem não se desligar de sua natureza. Caso contrário,
ela se realiza como caricatura. O homem se torna uma imagem horrenda. A pessoa
que se opõe a Deus se torna um ídolo de si mesma: autoeidolon, diz Santo André de Creta. Essa é a raiz do pecado.
Animado a um tempo pela vontade da possessão e pelo orgulho, Adão se tornou um
pequeno deus em seu domínio, em lugar de ser o intendente divino do universo, a
hipóstase do cosmo.
2.
A vocação do primeiro Adão
São Máximo o Confessor descreveu com uma intensidade e uma amplidão
incomparáveis a missão colocada para o homem. Às divisões sucessivas que
constituem a criação deverão corresponder uniões ou sínteses realizadas pelo
homem, graças à “sinergia” da liberdade e da graça.
A divisão fundamental na qual se enraíza a própria realidade do homem
criado é aquela de Deus e do conjunto das criaturas, do criado e do incriado.
A seguir a natureza criada se divide em celeste e terrestre, em
inteligível e sensível. No universo sensível, o céu está separado da terra. Na
superfície desta o paraíso foi estabelecido à parte. Enfim, habitando o
paraíso, o homem, ele próprio dividido em dois sexos, o masculino e o feminino.
Adão deveria superar essas divisões por meio de uma ação consciente,
para reunir em si o conjunto do cosmo criado e para se deificar com ele. Ele
deveria, de início, superar a separação sexual por uma vida casta, por uma
união mais total do que a união exterior dos sexos, por uma “integridade” que
fosse uma integração. Numa segunda etapa, ele deveria reunir o paraíso ao
restante do cosmo terrestre, por meio de um amor a Deus que ao mesmo tempo o
desligasse de tudo e lhe permitisse se apaixonar por tudo: trazendo todo o
tempo o paraíso em si mesmo, ele deveria transformar a terra toda em paraíso.
Em terceiro lugar, seu espírito e seu corpo deveriam triunfar sobre o espaço,
unificando o conjunto do mundo sensível, a terra e seu firmamento. Na etapa
seguinte, ele deveria penetrar no cosmo celeste, viver a vida dos anjos,
assimilar sua inteligência e reunir em si o mundo inteligível e o mundo
sensível. Enfim, o Adão cósmico, entregando-se sem retorno a Deus, teria
remetido a Ele toda a sua criação, e teria recebido Dele, pela reciprocidade do
amor, ou seja, pela graça, tudo o que Deus possui por natureza: assim, na
superação da separação inicial do criado e do incriado, estaria realizada a
deificação do homem e, por intermédio dele, de todo o universo.
A queda tornou o homem inferior à sua vocação. Mas o plano divino não
mudou. A missão do Primeiro Adão será preenchida agora pelo Adão Celeste; não
que este vá substituir o homem, pois o amor infinito de Deus não poderia
substituir a adesão da liberdade humana, mas para dar ao homem a possibilidade
de realizar sua obra, para lhe abrir novamente a via da deificação, esta
suprema síntese, através do homem, de Deus e do cosmo criado, que permanece
como o sentido de toda a antropologia cristã. Assim, por causa do pecado, e
para que o homem possa se tornar Deus, foi preciso que Deus se fizesse homem, e
que o Segundo Adão inaugurasse a “nova criação”, superando todas as divisões da
antiga.
Com seu nascimento virginal, de fato, Cristo ultrapassou a divisão dos
sexos e abriu duas vias para a redenção do “eros”,
unidas somente na pessoa de Maria, a um tempo virgem e mãe: a via do casamento
cristão e a do monaquismo. Sobre a Cruz, Cristo reuniu o conjunto do cosmo
terrestre ao paraíso: pois quando ele permitiu que a morte penetrasse nele para
consumá-la no contato com sua divindade, o lugar mais sombrio da terra se
tornou radioso, e deixaram de existir locais malditos. Depois da Ressurreição,
o próprio corpo de Cristo se desfez das limitações espaciais em numa integração
de todo o sensível, unificou a terra e o céu. Pela Ascensão, Cristo reuniu os
mundos celeste e terrestre, uniu os coros angélicos ao gênero humano. Enfim, ao
se sentar à direita do Pai ele introduziu a humanidade, acima das ordens
angélicas, na própria Trindade, e nisso consistiram as primícias da deificação
cósmica.
Assim é que não podemos encontrar a plenitude da natureza adâmica
senão em Cristo, o Segundo Adão. Mas, para melhor compreendermos essa natureza,
devemos colocar dois problemas difíceis, que por sinal estão conectados: o do
sexo e o da morte.
A condição biológica em que nos encontramos hoje é a mesma do homem
anterior à queda? Essa condição, ligada à dialética trágica do amor e da morte,
estaria enraizada no estado paradisíaco? Aqui o pensamento dos Padres,
justamente por não poder evocar a terra-paraíso senão por intermédio da terra
maldita, arrisca se tornar parcial e, assim, abrir-se a influências não cristãs
que o tornarão parcial. Um dilema se desenha: ou bem uma sexualidade biológica
existia no paraíso, como o deixa entender a ordem divina da multiplicação – mas
não seria isso, na condição primeira do homem, como que um enfraquecimento da
imagem divina pela presença de uma animalidade que implicava simultaneamente a
multiplicidade e a morte? Ou bem a condição paradisíaca seria pura de toda
animalidade, e então o pecado consistiria no próprio fato de nossa vida
biológica, e assim caímos numa espécie de maniqueísmo.
Claro, os Padres rejeitaram, com o origenismo, essa segundo solução.
Mas eles tiveram dificuldade em elucidar a primeira. Partindo da inegável
ligação, no mundo decaído, do sexo com a morte, da animalidade com a
mortalidade, eles se perguntaram se a criação da mulher, ao suscitar uma
condição biológica ligada à finitude, não teria ameaçado, desde o paraíso, a
imortalidade potencial do homem. Esse lado negativo da divisão dos sexos introduzia
uma certa falibilidade, e assim a natureza humana seria daí por diante
vulnerável, tornando a queda inevitável.
Gregório de Nissa, retomado neste ponto por Máximo o Confessor,
recusou esse encadeamento necessário da divisão dos sexos e da queda. Para ele,
a sexualidade teria sido criada por Deus prevendo o pecado, para preservar a
humanidade depois da queda, mas apenas como uma possibilidade[12].
A polarização sexual dotaria a natureza humana de uma salvaguarda que não
implicava nenhuma obrigação; é como o passageiro que se deixa vestir um
salva-vidas, mas que não tem nenhuma intenção de se atirar ao mar. Essa
possibilidade só viria a se atualizar no momento em que, pelo pecado, que nada
tem a ver com o sexo, a natureza afundasse e se fechasse para a graça. Somente
nesse estado decaído, em que a morte é o salário do pecado, a possibilidade se
tronou necessidade. Aqui intervém a exegese, que data de Philon, das “vestes de
pele[13]”
com as quais Deus revestiu o homem depois da queda: essas vestes representariam
nossa natureza atual, nosso estado biológico grosseiro, bem diferente da
corporeidade transparente do paraíso. Um novo cosmo se formou, que se defende
da finitude por meio do sexo, instaurando assim a lei dos nascimentos e das
mortes. Nesse contexto o sexo aparece não como a causa da mortalidade, mas como
um antídoto relativo.
Mas não podemos seguir Gregório quando, argumentando sobre esse
caráter “preventivo” da sexualidade, ele afirma que a divisão entre macho e
fêmea tenha sido “acrescentada” à imagem. Não foi apenas ela, com efeito, mas
todas as divisões do criado é que adquiriram, em decorrência do pecado, um
caráter de separação e de morte. E o amor humano, a paixão absoluta dos amantes,
jamais deixou de manifestar virtualmente, na própria fatalidade de seu
fracasso, uma nostalgia paradisíaca na qual o heroísmo e a arte estão
enraizados. A sexualidade paradisíaca, toda feita de interioridade
consubstancial, e cuja maravilhosa multiplicação, que deveria preencher tudo,
não teria exigido certamente nem a multiplicidade nem a morte, nos é
praticamente desconhecida; pois o pecado, objetivando os corpos – “eles viram
que estavam nus[14]”
– fez das duas primeiras pessoas humanas duas naturezas separadas, dois seres
individuais, que tinham entre si relações exteriores. Mas a nova criação em
Cristo, Segundo Adão, nos permite entrever o sentido profundo de uma divisão
que, é claro, não tem nada de “acrescentada”: a mariologia, o amor de Cristo e
da Igreja e o sacramento do casamento trouxeram à luz uma plenitude que se
origina na criação da mulher. Plenitude apenas entrevista, no entanto, apenas
na pessoa única da Virgem, pois nossa condição decaída subsiste sempre,
exigindo, para o cumprimento de nossa vocação humana, não apenas a castidade
integradora do casamento, mas também, e talvez em primeiro lugar, a castidade
sublimadora do monaquismo.
***
Poderíamos dizer que Adão, em sua condição paradisíaca, era realmente
imortal? “Deus não criou a morte[15]”,
diz o Livro da Sabedoria. Para a teologia arcaica, Santo Irineu por exemplo,
Adão não era necessariamente mortal, nem necessariamente imortal; sua natureza,
rica de possibilidades e maleável, poderia ser constantemente alimentada pela
graça e por ela transformada a ponto de superar todos os riscos de
envelhecimento e de morte. As possibilidades de mortalidade existiriam, mas
para que fossem tornadas impossíveis. Tal era a prova da liberdade de Adão.
A árvore da vida no centro do paraíso e seu fruto de imortalidade
ofereciam, assim, uma possibilidade: dessa forma, em nossas realidades
cristo-eclesiásticas, está a Eucaristia, que nos cura, alimenta e fortifica,
espiritual e corporalmente. É preciso se alimentar de Deus para alcançar
livremente a deificação. E foi nesse esforço pessoal que Adão falhou.
Quanto à interdição divina, ela coloca um duplo problema: o do
conhecimento do bem e do mal e o da proibição em si.
Nem o conhecimento em si, nem o conhecimento do bem e do mal, são
maus. Mas o recurso a esse tipo de discernimento implica uma forma de
inferioridade existencial, um estado decaído. Na condição do pecado, é claro
que precisamos conhecer o bem e o mal, para praticar um e evitar o outro. Mas,
para Adão no paraíso, esse conhecimento não era útil. A própria existência do
mal implica uma separação voluntária de Deus, uma recusa de Deus. Enquanto Adão
permaneceu unido a Deus e cumprindo Sua vontade, enquanto ele se nutriu de Sua
presença, a distinção bem-mal não tinha utilidade.
É por isso que a interdição divina não era tanto em relação a conhecer
o bem e o mal – porque o mal então não existia, ou existia apenas como um
risco, o da própria transgressão de Adão – mas constituía uma provação
voluntária, destinada a estabelecer a consciência da liberdade do primeiro
homem. Adão devia sair de uma inconsciência infantil, aceitando, por amor,
obedecer a Deus. Não que a interdição fosse arbitrária: pois o amor a Deus, se
tivesse sido livremente consentido pelo homem, teria invadido tudo, e tornado
todo o universo transparente para a graça. Como poderia ele desejar outra
coisa, isolar um aspecto, um fruto, desse universo transparente para engoli-lo
num desejo egocêntrico e, no mesmo movimento, torná-lo opaco e tornar a si
mesmo opaco à onipresença divina? “Não coma (...) não toque...”: é a própria
possibilidade de um amor verdadeiramente consciente, de um amor sempre
crescente que arrebataria o homem à fruição autônoma, não de uma árvore, mas de
todas as árvores, não de um fruto, mas de todo o sensível, para abrasá-lo, e
com ele a todo o universo, apenas com o regozijo em Deus.
3.
O pecado original
O problema do mal é essencialmente cristão. Para um ateu lúcido, o mal
não passa de um aspecto do absurdo; para um ateu cego, ele é o resultado
temporário de uma organização ainda imperfeita da sociedade e do universo. Numa
metafísica monista, ele qualifica necessariamente o criado como separado de
Deus; mas então ele não passa de uma ilusão. Numa metafísica dualista, ele
ainda é “outro”, seja matéria ou princípio ruim, mas tão eterno quanto Deus. O
mal enquanto problema decorre necessariamente do Cristianismo. De fato, como
explicá-lo, num mundo criado por Deus, numa visão na qual a criação é
intrinsecamente boa? Mesmo levando em conta a liberdade humana de se opor ao plano
divino, não podemos deixar de nos perguntar: o que é o mal?
A questão, porém, está mal colocada, pois ela implica que o mal seja
“alguma coisa”. Se a entendermos assim, somos tentados a ver no mal uma
essência, o “princípio do mal”, o “anti-deus” dos maniqueístas. O universo
aparece então como uma “terra de ninguém” entre o Deus bom e o Deus mau; sua
riqueza e sua diversidade são um jogo de luz e sombra, e elas provêm da luta
entre os dois princípios.
Essa visão encontra algum fundamento na experiência ascética, e
elementos dualistas tentam todo o tempo se introduzir no Cristianismo, em
especial na vida monástica. Para o pensamento ortodoxo, no entanto, essa visão
é falsa: Deus não tem contrapartida, não se podem conceber naturezas que lhe
sejam estranhas. Do final do século III até Santo Agostinho, os Padres
combateram vigorosamente o maniqueísmo, mas o fizeram utilizando elementos
filosóficos cuja própria problemática acabava por desviar a questão. Para os
Padres, com efeito, o mal é uma falta, um vício, uma imperfeição: não uma
natureza, mas algo que falta à natureza para que ela seja perfeita. Numa linha
essencialista, eles pensavam que o mal não existe, que ele não passa de uma
privação de ser. Foi uma resposta suficiente para os maniqueístas, mas
impotente diante da realidade do mal presente e que age sobre o mundo. Pois,
enfim, se o último pedido do Padre Nosso
pode ser traduzido em termos filosóficos como “Livrai-nos do mal”, o grito de
nossa angústia concreta é: “Livrai-nos do Maligno”.
Como observou notavelmente o Padre Louis Boyer, o problema do mal, de
uma perspectiva autenticamente cristã, se resume ao do Maligno. Ora, o Maligno
não se resume a uma privação de ser, uma falta de essencialidade, assim como
ele também não é, enquanto maligno, uma essência; pois sua natureza, criada por
Deus, é boa. O Maligno é uma pessoa, ele é alguém.
Certamente o mal não tem lugar entre as essências; mas ele não é
apenas uma falta, existe uma atividade nele. O mal não é uma natureza, mas um
estado da natureza, diziam com mais profundidade os Padres. Ele aparece assim
como uma enfermidade, como um parasita que não existe senão em função da
natureza que ele parasita. Mais precisamente, trata-se de um estado de vontade
desta natureza, de uma vontade falsa em relação a Deus. O mal é a revolta
contra Deus, ou seja, uma atitude pessoal. A visão exata do mal não é, pois,
essencialista, mas personalista. “O mundo todo está sob o poder do mal”, diz
São João[16]:
é o estado no qual se encontra a natureza dos seres pessoais que se desviaram
de Deus.
Assim, a origem do mal repousa na liberdade das criaturas. É por isso
que o mal é indesculpável: porque ele não tem outra origem do que a liberdade
do ser que o realiza. “O mal não existe, ou melhor, ele só existe no momento em
que é exercido”, escreve Diádoco de Foticéia[17],
e Gregório de Nissa sublinha o paradoxo daquele que se submete ao mal: ele
existe na não-existência[18].
Portanto, o homem cedeu lugar ao mal em sua vontade, e o introduziu no
mundo. Claro, o homem, que estava naturalmente disposto para conhecer e amar a
Deus, escolheu o mal porque este lhe foi sugerido: esse foi o papel da
serpente. O mal no homem, e por intermédio dele no cosmo terrestre, aparece
assim ligado a uma contaminação: mas esta não tem nada de automático, ela só
pôde se propagar por uma aquiescência livre da vontade humana. O homem aceitou
deixar-se dominar.
O mal, porém, teve sua origem nos mundos angélicos, e vale a pena nos
determos um pouco aqui.
Os anjos não podem ser definidos como “espíritos incorpóreos”. Mesmo
sendo chamados dessa forma pelos Padres e na liturgia, eles não são “puros
espíritos”. Existe uma corporeidade angélica que pode inclusive se tornar
visível. Embora a ideia de incorporeidade dos anjos tenha acabado por
prevalecer no Ocidente com o tomismo, os franciscanos da Idade Média, em
especial São Boaventura, sustentaram uma posição contrária; e na Rússia, no
século XIX, Inácio Briantchaninov defendeu contra Teófano o Recluso essa
corporeidade angélica. Seja como for, os anjos não possuem uma constituição
biológica semelhante à nossa, e não conhecem nem mortalidade, nem reprodução.
Eles não possuem “vestes de pele”.
A unidade do mundo angélico é, portanto, completamente diferente da
nossa. Podemos falar do “gênero humano”, ou seja, de inúmeras pessoas que
possuem a mesma natureza. Mas os anjos, que também são pessoas, não possuem
unidade de natureza. Cada qual é uma natureza, um universo inteligível. Sua
unidade é assim inorgânica e, podemos dizer por analogia, abstrata: a unidade da
cidade, do coro, da armada, unidade de serviço, de função, de louvor, em suma,
unidade de harmonia; na verdade, poderíamos estabelecer aproximações notáveis
entre a música e as matemáticas de um lado, e os mundos angélicos de outro.
O universo angélico oferece ao mal, portanto, condições diferentes do
nosso. O mal acolhido por Adão pôde contaminar toda a natureza humana. Mas a
atitude maléfica de um anjo permanece pessoal a ele; aqui, o mal de certa forma
se individualiza. Se existe contágio, ele acontece, por exemplo, pela
influência que uma pessoa pode exercer sobre outras. Assim é que Lúcifer
arrastou outros anjos, mas nem todos caíram: a Serpente precipitou um terço dos
astros, diz simbolicamente o Apocalipse[19].
O mal teve assim sua origem no pecado espiritual do anjo. E a atitude
de Lúcifer nos revela a raiz de todo pecado: o orgulho como revolta contra
Deus. Aquele que seria chamado em primeiro lugar à deificação pela graça
pretendeu ser deus por si mesmo. A raiz do pecado reside então na sede de autodeificação,
na aversão pela graça. Permanecendo dependente de Deus em seu próprio ser –
pois este fora criado por Deus – o espírito revoltado adquiriu, em
consequência, a aversão à existência, a ânsia de destruir, a sede de um
impossível nada. Como apenas o mundo terrestre permaneceu aberto para ele, ele
se esforça pra aí destruir o plano divino, e, não podendo anular a criação,
tenta desfigurá-la. O drama que começou no céu prossegue na terra, pois os
anjos fiéis fecharam o céu irredutivelmente aos anjos decaídos.
A serpente do Gênesis é Satanás, assim como o “grande Dragão” do
Apocalipse[20].
Ele estava presente no paraíso terrestre justamente porque o homem deveria
passar pela peira, a prova da
liberdade. O primeiro mandamento, o de não tocar na árvore, estabeleceu a
liberdade humana, e foi nessa mesma ordem de ideias que Deus permitiu a
presença da Serpente. A lei dá vida ao pecado, ela o manifesta, como sublinhou
São Paulo[21].
Deus deu o primeiro mandamento e imediatamente Satanás insinuou a revolta; de
fato, o fruto era bom em si, mas tudo está nas relações pessoais entre o homem
e Deus. E quando Eva viu que a árvore era bela, surgiu um valor externo a Deus.
“Vocês serão como Deus[22]”,
disse a Serpente. Ela não chegou exatamente a enganar o homem: pois este estava
chamado à deificação. Mas aqui a palavra “como” significava a igualdade do
ressentimento, daquele que pretendia encarar a Deus: um deus autônomo contra
Deus, deus por si mesmo, deus do cosmo terrestre isolado de Deus.
Comido o fruto, o pecado se desenvolveu em múltiplas etapas. Quando
Deus chamou Adão, este, longe de gritar sua inquietação e de se lançar em
direção ao seu criador, acusou a mulher, “que você pôs ao meu lado[23]”,
sublinhou ele. O homem assim recusou sua responsabilidade, rejeitou-a primeiro sobre
a mulher e depois sobre o próprio Deus. Adão foi assim o primeiro determinista.
O homem não é livre, nos faz ele pensar;
foi a criação, junto com Deus, que o conduziram ao mal.
Daí por diante o homem está sob o domínio do Maligno. Sua natureza,
desligando-se de Deus, se tornou não natural, contra a natureza. O espírito
humano, brutalmente derrubado, recebeu a imagem da matéria informe, ao invés de
refletir a eternidade; a hierarquia primeira do ser humana aberta à graça e que
deveria derramá-la sobre o cosmo foi invertida. O espírito deveria viver de
Deus, a alma do espírito, o corpo da alma. Mas o espírito se pôs a parasitar a
alma, alimentando-se de valores não divinos, como essa bondade e essa beleza
autônomas que a Serpente fez com que a mulher descobrisse ao atrair sua atenção
para a árvore. A alma, por sua vez, parasitou o corpo, e levantaram-se as
paixões. E o corpo, finalmente, parasitou o universo terrestre, destruiu-o para
comer e encontrou aí a morte.
Deus, porém – e nisso reside todo o mistério das “vestimentas de pele”
– introduziu uma certa ordem no próprio seio da desordem, para evitar uma total
desagregação pelo mal. Sua vontade benevolente organizou e preservou o universo,
seu castigo se fez pedagógico: mais vale para o homem morrer, ou seja, ser
excluído da árvore da vida, do que eternizar-se em sua condição monstruosa. Sua
própria finitude fará surgir nele o arrependimento, ou seja, a possibilidade de
um novo amor. mas o universo assim salvaguardado não é por isso o mundo
verdadeiro; essa ordem, onde a morte tem lugar, permanece sendo uma ordem
catastrófica. “A terra é maldita[24]”
por causa do homem, e a própria beleza do cosmo se tornou ambígua.
O mundo verdadeiro, a verdadeira natureza, não se afirmam senão pela
graça. É por isso que o pecado abre o drama da redenção. O Segundo Adão
escolherá Deus, do mesmo modo como o Primeiro Adão escolheu a si mesmo: Satanás
vai a Cristo após o batismo e lhe propõe a mesma tentação. Mas por três vezes a
tentação foi destruída contra as vontades reunidas de Deus e do homem.
4.
O sentido do Antigo Testamento
No paraíso, o acordo entre a liberdade humana e a graça poderia lançar
uma ponte luminosa sobre essa distância infinita que, segundo João Damasceno,
separa a criatura do Criador[25]:
Adão era chamado diretamente a se deificar. Mas, depois da queda, dois
obstáculos se interpuseram para tornar essa distância intransponível: o próprio
pecado, que tornou a natureza humana incapaz de receber a graça, e a morte, o
desembocadouro da decadência que precipitou a humanidade num estado contra a
natureza, no qual a vontade do homem, contaminando o cosmo, deu ao não-ser uma
realidade paradoxal e trágica.
Nesse estado, o homem já não pode corresponder à sua vocação. Mas o
plano de Deus não se alterou: Ele deseja sempre que o homem se uma a ele e
transfigure toda a terra.
A finalidade última e plenamente positiva do homem implica desde logo
um aspecto negativo: a salvação. Para que o homem possa livremente retornar a
Deus, é preciso primeiro que Este o liberte de seu estado pecaminoso e mortal.
Esse estado exige a redenção que, no conjunto do plano divino, aparece assim
não como um fim, mas como um meio negativo. Pois não podemos ser salvos, a
menos que sejamos também a presa impotente do mal.
Depois da queda, a história humana é um grande naufrágio na tentativa
de salvação: mas o porto da salvação não é o objetivo; ele é a possibilidade,
para o náufrago, de retomar sua viagem, cujo objetivo permanece sendo a união
com Deus.
Assim, depois da perda do estado paradisíaco, o homem, objetivamente,
já não pode alcançar seu fim último. Sua atitude, em seu novo estado de não-ser
e de morte, é de uma passividade dolorosa, feita em primeiro lugar de uma tenaz
nostalgia paradisíaca e, em segundo, de uma espera mais e mais consciente da
salvação. O movimento de queda continua, o que torna a espera mais contundente,
mas que também faz com que apareçam, seja mil maneiras de esquecimento (e de
tentar esquecer) da morte, ou seja, da separação de Deus, seja a vontade
luciferiana de obter a salvação por si só e se autodeificar. Toda a história da
humanidade é a história da salvação, e nela podemos discernir três períodos.
O primeiro consiste numa longa preparação para a vinda do Salvador;
ele se estende desde a queda até a Anunciação: pois “hoje é o começo de nossa
salvação”, canta o ofício da festa[26].
Durante esse período, a Providência não cessou de levar em conta a vontade dos
homens, e de eleger em consequência seus instrumentos.
O segundo período, da Anunciação até o Pentecostes, corresponde à vida
terrestre e à ascensão de Cristo. Aqui o homem nada pode: somente Cristo, por
sua vida, sua ressurreição e sua ascensão, realiza a obra da salvação. Na sua
pessoa, a humanidade e a divindade se unem, a eternidade entra no tempo, o
tempo penetra na eternidade, e a natureza antropocósmica deificada é
introduzida na vida divina, no próprio seio da Trindade.
Então, com o Pentecostes, começa um novo período no qual as pessoas
humanas, secundadas pelo Espírito Santo, devem adquirir livremente essa
deificação que sua natureza recebeu de Cristo de uma vez por todas. Na Igreja,
natureza e graça colaboram. Em respeito pela liberdade humana, Deus permitiu
que subsistisse o tempo do pecado e da morte; porque ele não quis se impor ao
homem, mas ele deseja uma resposta de fé e de amor. Porém, nossa situação é
incomparavelmente superior ao estado paradisíaco: já não corremos o risco, com
efeito, de perdermos a graça, e podemos sempre participar da plenitude
teândrica da Igreja. Pela penitência e a fé, as próprias condições de nossa
decadência, assumidas até o fundo por Cristo, se abrem para o mistério do amor.
a história da Igreja constitui assim uma livre tomada de consciência, pelos
homens, da unidade realizada em Cristo e sempre presente na Igreja, onde o
esplendor eterno do Reino nos foi dado de antemão. Assim é que colaboramos para
a abolição definitiva da morte e para a transfiguração cósmica, ou seja, para a
segunda vinda do Senhor.
***
O período da preparação é o da promessa; trata-se de uma lenta
progressão em direção a Cristo no decurso da qual a “pedagogia” divina se
esforçou para tornar possível a realização da promessa feita no próprio
instante da punição.
O Antigo Testamento não conheceu a santificação íntima da graça;
entretanto, ele conheceu a santidade, pois a graça, desde o exterior, a
suscitava na alma como um efeito. O homem que se submetia a Deus na fé e que
vivia com toda retidão podia se tornar um instrumento da Sua vontade. Como o
prova a vocação dos profetas, não se trata do acordo entre duas vontades, mas
da utilização imperiosa da vontade humana pela vontade de Deus: o Espírito de
Deus se estabelece no profeta, Deus se apropria do homem impondo-se desde o
exterior à sua pessoa; Deus, invisível, fala, e seu servidor o escuta. A treva
do Sinai se opõe à luz do Tabor, como o mistério velado se opõe ao mistério
revelado. O homem se prepara para servir na obscuridade da fé, pela obediência
e a pureza. Obediência e pureza são conceitos negativos: eles implicam a
exterioridade de Deus e a submissão instrumental do homem que, mesmo justo, não
pode se liberar de seu estado de pecado e de morte. a santidade como
santificação ativa de todo o ser e livre assimilação da natureza humana à
natureza de Deus não poderá se manifestar senão depois da obra de Cristo, pela
tomada de consciência desta obra. É por isso que a Lei é essencial para o
Antigo Testamento, e a relação entre o homem e Deus não é a união, mas a Aliança,
garantida pela fidelidade à Lei.
A história do Antigo Testamento é a de eleições ligadas a sucessivas
quedas. Por meio dessas, Deus salva um “resto” cuja espera se purifica; pela
própria dialética das decepções, a espera do Messias triunfal se torna a do
Servidor sofredor de Yahvé, a espera política de um povo, a de uma libertação
espiritual da humanidade. Quanto mais Deus se afasta, mais a prece do homem se
aprofunda; quanto mais a eleição se limita, mais ela se universaliza: até o
ponto da pureza suprema da Virgem capaz de engravidar do Salvador da
humanidade.
A primeira queda, depois da perda do paraíso, foi o assassinato de
Abel por Caim. Deus, no entanto, havia dito a Caim: “O pecado não dormia à sua
porta? Seu desejo se voltou contra você, será que você pode dominá-lo?[27]”.
Mas Caim matou a seu irmão. A essa primeira queda correspondeu uma primeira
eleição: a de Seth e sua descendência. Os filhos de Seth são os “filhos de
Deus”: eles invocaram o nome de Yahvé e um deles, Enoque, “caminhou com Deus[28]”,
e talvez tenha sido arrebatado com seu corpo ao paraíso[29].
Os descendentes de Caim, ao contrário, são apenas filhos do homem, tragicamente
entregues à morte: “Eu matei um homem por minha ferida e assassinei um jovem
por minha cicatriz”, diz Lamec[30].
Malditos pela terra cultivada cuja boca teve que beber o sangue de Abel, eles
foram os primeiros citadinos, os inventores das artes e das técnicas. Com eles,
apareceu a civilização, imensa compensação pela ausência de Deus. É preciso
esquecer Deus ou substituí-lo: esquecê-lo forjando os metais, deixando-se
capturar pela pesandez da terra e pelo poder opaco que ela confere: assim foi
Tubal-Caim, “o ferreiro, pai de todos os artesãos do bronze e do ferro[31]”;
substituir a Deus por meio da festa da arte, pela consolação nostálgica da
música: assim foi Jubal, “pai de todos os que tocam a lira e a flauta[32]”.
As artes, aqui, aparecem como valores culturais e não cultuais; elas são como
uma prece que se perde, porque não se dirige a Deus. A beleza que elas suscitam
se fecha sobre si mesma para amarrar o homem à sua magia. Essas invenções
inauguram a cultura como culto de uma abstração, vazio dessa presença à qual
todo culto deve ser endereçado.
Depois veio o dilúvio, e Deus parece ter deixado regressar às águas
originais sua criação devastada pela corrupção. Talvez devêssemos ligar essa
nova queda ao misterioso comércio entre anjos e homens, do qual resultou a
aparição dos “gigantes[33]”:
não se trataria aí de uma gnose luciferiana da qual o homem viria a extrair
produtos prodigiosos? Seja como for, um “resto”, um homem junto com os seus,
encontrou graça aos olhos de Deus: pois “Noé era um homem justo, íntegro dentre
os homens de seu tempo; Noé caminhava com Deus[34]”.
Noé salva a humanidade e todas as criaturas terrestres, não as regenerando como
Cristo – de quem ele é apenas uma imagem – mas assegurando sua continuidade.
Depois do dilúvio, Deus concluiu com a humanidade uma aliança cósmica, que
estabilizou o universo terrestre e tomou como signo o arco-íris, essa
misteriosa ponte de luz que liga a terra ao céu.
Mas uma nova queda interveio com a construção de Babel. Babel
representa o impulso usurpador da civilização sem Deus, uma unidade puramente
humana, inteiramente criada a partir da terra na vontade de conquistar o céu.
Assim as civilizações sacras do Oriente construíram seus zigurates, seus
templos cujos estágios simbolizavam sem dúvida a escala de interiorização que o
iniciado deveria subir metodicamente. Babel tipificou e superou esses exemplos
arcaicos para permanecer para sempre atual.
A unidade sem Deus trouxe consigo, como justo castigo, a dispersão
para longe de Deus. Então nasceu a diversidade das línguas, o caos das
“nações”, mas Deus utilizou o próprio mal para responder à queda com uma
eleição: dentre os povos que se formaram no seio da desunião e da mistura, Ele
escolheu um como instrumento; dentre os descendentes de Sem, Heber dará seu
nome aos Hebreus. Essa eleição culminará com a aliança com Abrahão, eleição
histórica desta vez, na qual se anuncia a glória de uma descendência mais
numerosa do que as estrelas do céu. Mas Abrahão teve que ser provado em sua
esperança para que ela pudesse se confirmar plenamente. O sacrifício que lhe
foi exigido, o de Isaac, herdeiro da promessa, exigiu uma fé além de toda
lógica, uma obediência incondicional. Abrahão disse a Isaac, que o interrogou
quando subiam o monte Moriá: “Deus providenciará o cordeiro para o holocausto,
meu filho[35]”;
e quando Deus, no último instante, substituiu, de fato, a vítima humana por um
cordeiro, entendemos que ele prepara o Cordeiro divino, Cristo, a cada vez que
o homem obedece. Como não entregaria ele Seu próprio Filho, se o homem já havia
dado o seu? Assim, a história do Antigo
Testamento não é apenas a das prefigurações da salvação, mas a história das
recusas e das aceitações do homem. A salvação se aproxima ou se afasta na
medida em que o homem se prepara ou não para acolhê-la. O kairos de Cristo, seu “momento”, dependerá da
vontade humana. Todo o sentido do Antigo Testamento reside nessas flutuações
que sublinham o duplo aspecto da Providência. Esta não é unilateral, ela leva
em conta a espera e o chamado humanos. A pedagogia divina perscruta o homem,
prove suas disposições.
Esse exame às vezes se transforma numa luta, pois Deus deseja que a
liberdade humana não apenas Lhe resista mas até que O constranja, senão a
revelar Seu nome, ao menos a abençoar. Assim é que Jacó se torna Israel: “pois
você lutou com Deus e com os homens e os venceu[36]”.
E o patriarca se fez povo, e quando esse povo se tornou cativo no
Egito, Deus suscitou Moisés para libertá-lo. No Sinai, Deus passou em sua
glória diante de Moisés, mais impediu que este visse Sua Face, “pois o homem
não pode me ver e viver[37]”:
a natureza divina permaneceu oculta. Mas a eleição de Israel, etapa decisiva,
se afirmou numa nova aliança: a da Lei, obrigação escrita à qual o povo eleito
tinha que se submeter. A Lei foi acompanhada de promessas divinas, que os
Profetas não cessaram de confirmar. Assim, a Lei e os Profetas se completaram,
e Cristo os irá evocar sempre juntos, para sublinhar sua realização. Os
Profetas são os homens que Deus escolheu para anunciar o sentido profundo da
Lei. Aos fariseus, que pouco a pouco transformaram a Lei numa realidade
estática e num meio de justificação, os Profetas explicaram seu espírito, seu
dinamismo histórico, o chamado escatológico que ela continha, fazendo com que o
homem tomasse consciência de seu pecado e de sua impotência diante dele.
Os Profetas, em relação ao povo eleito, desempenharam um papel análogo
ao da Tradição na Igreja: Profetas e Tradição, com efeito, nos mostram o
verdadeiro sentido das Escrituras. E a dualidade Lei-Profetas exprime já, de
certa forma, a ação “definidora” do Logos, e a ação vivificante do Espírito
Santo. De fato, no Antigo Testamento, o espírito de profecia nos permite
entrever a ação da terceira pessoa da Trindade.
As eleições lentamente se fecharam: em Israel, a casa de Judá, em Judá
a casa de Davi. Assim cresceu a árvore de Jessé até a eleição suprema da
Virgem.
Essa eleição foi anunciada a Maria pelo anjo Gabriel. Mas Maria estava
livre para aceitá-la ou recusá-la. Toda a história do mundo, toda a realização
do plano divino estava suspensa nessa livre resposta humana. O humilde
consentimento da Virgem permitiu ao Verbo se fazer carne.
“Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a sua palavra[38]”.
Tudo o que Deus esperava da humanidade decaída se realizou em Maria: uma
liberdade pessoal abria enfim sua carne, sua natureza humana, à obra necessária
da salvação. A segunda pessoa da Trindade poderia entrar na história, não por
uma brutal interrupção na qual o homem fosse apenas instrumento, não colocando
a Virgem à parte, separada da descendência de Adão, mas por um consentimento no
qual a longa pedagogia divina encontrava enfim a sua recompensa. Foi porque
Deus se empenhou com toda a seriedade e o respeito do amor na história da
salvação do homem, que a Virgem, recapitulando toda a santidade do Antigo
Testamento, pôde oferecer a esse amor a pura moradia de sua carne. Seus ancestrais,
abençoados por Deus e purificados pela Lei, receberam espiritualmente as
palavras do Verbo. Ela pôde receber corporalmente o próprio Verbo. Ao
engravidar de uma pessoa divina que dela emprestou a humanidade, ela se tornou
verdadeiramente a Mãe de Deus. É por isso que João Damasceno pôde escrever: “O
nome da Mãe de Deus (qeotokos)
contém todo o mistério da economia divina[39]”.
Mas a santidade do Antigo Testamento não deu ao Verbo apenas sua mãe, e,
poderíamos dizer, sua Esposa: ela o proclamou profeticamente a Israel. Maria
foi o silêncio que encarna; o Batismo, no espírito de Elias, foi a voz que
clama no deserto: último profeta, ele reconheceu a apontou “o Cordeiro que tira
o pecado do mundo[40]”.
O Antigo Testamento culmina nesses dois seres que a iconografia exalta de um
lado e de outro do Cristo em glória: a Esposa e o Amigo do Esposo.
[1]
Gregório de Nissa, De hominis opifício,
16.
[2] Ibid.
[3]
Gregório de Nazianze, Poemas dogmáticos,
8.
[4]
Romanos 8: 19-21.
[5]
Pseudo-Palamas (Gregório Coniata), Diálogo
entre a alma e o corpo.
[6]
Gregório de NIssa, De hominis opifício,
16.
[7]
Gregório de Nazianze, Discurso 45, 8.
[8]
Gregório de Nazianze, Discurso 43,
48.
[9]
Paseudo-Nilo o Sinaíta (Evagro o Pôntico), De
oratione, 123.
[10] I
João 4: 20.
[11]
Mateus 25: 40.
[12]
Gregório de NIssa, De hominis opifício,
16.
[13]
Gênesis 3: 21.
[14]
Gênesis 3: 7.
[15]
Sabedoria 1: 13.
[16] I
João 5: 19.
[17]
Diádoco de Foticéia, Capítulos gnósticos,
3.
[18]
Gregório de Nissa, Discurso catequético
VII, 40.
[19]
Apocalipse 8: 12.
[20]
Apocalipse 12: 9;
[21]
Romanos 3: 20.
[22]
Gênesis 3: 5.
[23]
Gênesis 3: 12.
[24]
Gênesis 3: 17.
[25]
João Damasceno, A fé Ortodoxa I, 13.
[26]
Tropário da Anunciação.
[27]
Gênesis 4: 7.
[28]
Gênesis 4: 7.
[29] Gênesis 5: 24.
[30] Gênesis 4: 23.
[31] Gênesis 4: 22.
[32] Gênesis 4: 21.
[33] Gênesis 6: 1-4.
[34]
Gênesis 6: 9.
[35]
Gênesis 22: 8.
[36]
Gênesis 32: 29.
[37]
Êxodo 33: 20.
[38]
Lucas 1: 38.
[39]
João Damasceno, A fé Ortodoxa III,
12.
[40]
João 1: 29.
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