Capítulo III
O ser criado
1.
A noção absoluta de criação
O mundo foi criado pela vontade de Deus. Ele é de uma natureza
diferente de Deus; ele existe fora de Deus, conforme explica São João
Damasceno, “não pelo lugar, mas pela natureza[1]”.
Essas simples afirmações da fé abrem para um mistério tão insondável como o do
ser divino: o mistério do ser criado, a realidade de um ser exterior à
onipresença de Deus, livre em relação à sua onipotência, de uma interioridade
radicalmente nova diante da plenitude trinitária, em resumo, a realidade do
“outro que Deus”, a irredutível densidade ontológica do “outro”.
Somente o Cristianismo, mais exatamente a tradição judaico-cristã,
conhece a noção absoluta da criação. A criação ex nihilo é um dogma de fé. Ela encontra sua primeira expressão na
Bíblia, no segundo livro dos Macabeus, onde uma mãe, exortando seu filho ao
martírio, lhe diz: “Veja o céu e a terra e, observando tudo o que aí se
encontra, você compreendera que Deus a tudo criou do nada[2]”
(ex ouk ontown, segundo a tradução dos
Setenta). Se nos lembrarmos que ouk
constitui uma negação radical, que, diferentemente do outro advérbio de negação
mh, não deixa nenhum lugar à dúvida, e
que aqui ele é empregado de modo sistemático, contra as regras da gramática,
poderemos medir o alcance da expressão: Deus não criou a partir de qualquer coisa,
mas a partir daquilo que não é, ou seja, do “nada”.
Nada
disso existe nas demais religiões ou metafísicas. Nelas, ou a criação se dá a
partir de uma possibilidade de existência eternamente oferecida à ordenação
demiúrgica, tal como a matéria primeira do pensamento antigo ou como a
existência imutável e informe. Em si, essa matéria não existe propriamente: ela
é uma pura possibilidade de existência, sem dúvida o não-ser, mas enquanto mh on, que não é um nada absoluto, o ouk on. Por
reflexo, ela recebe alguma verossimilhança, uma precária evocação do mundo das
ideias: tal é, sobretudo, o dualismo platônico, e também, com algumas
diferenças, a formatação perpétua da matéria em Aristóteles.
Ou
encontramos a ideia de criação como um processo divino. Deus cria a partir de
seu próprio ser, muitas vezes por meio de uma polarização primordial que gera
toda a multiplicidade do universo. O mundo é então a manifestação ou a emanação
da divindade. Essa é a concepção fundamental da Índia, que encontramos no
universo helenístico com a gnose, e da qual o pensamento de Plotino, que tende
para o monismo, está bastante próximo. Dessa forma a cosmogonia se torna uma
teogonia: o absoluto se relativiza por etapas de “condensação” descendente, ele
se manifesta e se degrada no universo. O mundo é um Deus decaído que tende a se
tornar Deus novamente; sua origem reside, seja numa misteriosa catástrofe que
poderíamos chamar de “queda de Deus”, seja numa necessidade interna, numa
estranha paixão cósmica na qual Deus busca tomar consciência de si mesmo, seja
numa temporalidade cíclica de manifestações e reabsorções que parecem se impor
ao próprio Deus.
Nos
dois casos, a ideia de uma criação ex
nihilo não existe. Pois, para o Cristianismo, a própria matéria é criada;
trata-se dessa matéria misteriosa da qual Platão dizia ser inapreensível senão
por conceitos “bastardos”, dessa pura possibilidade de existência – ela mesma
criada, como demonstrou notadamente Santo Agostinho[3]. E,
por outro lado, como poderia a criação possuir um substrato incriado, como
poderia ela ser um Deus desdobrado, uma vez que ela é por essência “outra que
Deus”?
A
criação é assim um ato livre, um ato gratuito de Deus. Ela não responde por
nenhuma necessidade do ser divino. Mesmo as motivações morais que lhe são
atribuídas às vezes não passam de platitudes sem importância: o Deus-Trindade é
uma plenitude de amor, e ele não tem necessidade de um “outro” para derramar
seu amor, porque este “outro” já está nele, na circumincessão das hipóstases.
Assim sendo, Deus é criador porque quis sê-lo: o nome de criador é secundário
em relação aos três nomes da Trindade. Deus é eternamente Trindade, ele não é
eternamente criador como acreditava Orígenes, que, prisioneiro das concepções
cíclicas da Antiguidade, colocava-O assim na dependência da criatura. Se a
ideia de criação, como ato inteiramente livre, nos aflige, é porque nosso
pensamento viciado pelo pecado identifica a liberdade com o arbitrário; Deus
nos aparece então como um tirano fantasista. Mas se, para nós, a liberdade,
quando não está submetida às leis da criação (no interior da qual nos
encontramos nós), se apresenta como uma arbitrariedade má que desagrega a
existência, para Deus, que transcende a criação, a liberdade é infinitamente
boa: ela suscita a existência. Na criação, com efeito, reconhecemos a ordem, a
finalidade, o amor, tudo o que é contrário ao arbitrário. As qualidades de
Deus, que não têm nada a ver com nossa pseudoliberdade desordenada, se
manifestam aí. A própria existência de Deus se reflete na criatura e a chama a
participar de sua divindade. Esse apelo e a possibilidade de responder a ele
constituem para os que se encontram no interior da criação a única justificação
para esta.
A
criação ex nihilo é obra da vontade
de Deus. É por isso que São João Damasceno se opõe à geração do Verbo: “Pelo
fato de que a geração, diz ele, é uma obra da natureza e procede da própria
substância [de Deus], é preciso que ela seja necessariamente sem começo e
eterna, caso contrário o gerador sofreria uma mudança, e haveria um Deus
anterior e um Deus posterior: Deus aumentaria. Quanto à criação, ela é obra da
vontade de Deus, e assim ela não é co-eterna a Deus. Pois não é possível que
aquilo que foi trazido do nada à existência seja co-eterno àquilo que existe
sem começo e desde sempre[4]”.
Essa obra é contingente: Deus poderia não tê-la criado. Mas, contingente em
relação à própria existência da Trindade, ela impõe aos seres criados uma
necessidade de existir, e de existir para sempre: contingente para Deus, a
criação é necessária para si mesma, pois Deus, livremente, dez do ser criado
aquilo que deve ser.
Assim
nos aparece o sentido positivo da gratuidade divina. Para falarmos
analogicamente – e essa analogia constitui o próprio sentido da criação – é
como a gratuidade do poeta. “Poeta do céu e da terra”, poderíamos denominar a
Deus, traduzindo palavra por palavra o texto grego do Credo. Assim podemos
penetrar no mistério do ser criado: criar não consiste em se refletir num
espelho, ainda que este fosse a matéria prima, não consiste em se dividir
inutilmente para tudo reunir em si mesmo, mas é fazer surgir o novo, poderíamos
dizer: arriscar o novo. Quando Deus suscita fora de si mesmo um sujeito novo,
um sujeito livre, é este o apogeu do seu ato criador: a liberdade divina se
realiza ao criar esse risco supremo: uma outra liberdade.
A
relação de Deus para com sua criação não pode ser concebida senão a posteriori, quando a criação existe.
De fato, não podemos opor nada a Deus, sequer um nada que seriam como que uma
matéria da criação. O próprio nada só existe em relação ao ser criado. É por
oposição ao ser que podemos conceber o nada, mas sem concebê-lo. Podemos falar
ao mesmo tempo do ser criado e do nada das criaturas. Deus cedeu, por assim
dizer, o lugar às criaturas, ele como que se retirou, sem se limitar. As
criaturas possuem em relação a Deus uma exterioridade desejada por Deus, porque
Deus quis criar um sujeito novo que fosse chamado a um grande destino. O nada
se impôs na medida em que o ato da criação teve lugar. O que foi criado do nada
é o “outro que Deus”, que existe porque Deus assim o quis.
É
por isso que não podemos objetivar o nada original. Nihil, aqui, quer dizer simplesmente que nada “antes” da criação
existia “fora” de Deus. Ou antes, que esse “fora” e esse “antes” são absurdos,
porque foi justamente a criação que os estabeleceu. Pensar esse “fora”
significa tocar o nada, ou seja, não ser mais capaz de pensar. Ele não existe
senão pela criação, ele é esse mesmo “espaçamento” que constitui a criação. Da
mesma forma, não podemos evocar o que existia “antes” da criação: o “começo”
não faz sentido em Deus, ele nasce com o ser criado, é a criação que constitui
o tempo do qual antes e depois são apenas termos. Da mesma forma que o “fora”,
o “antes” suprime o pensamento. Ambos, diriam os Alemães, são “conceitos
limite”. Assim, toda a dialética do ser e do nada é absurda: o nada não possui
existência própria (de resto, isso seria uma contradição in adjecto), ele é correlativo à própria existência das criaturas;
estas não estão fundadas nem em si mesmas, nem na essência divina, mas
unicamente sobre a vontade de Deus. Essa ausência de fundamento próprio é o
nada. O estável, o permanente para a criatura, é, por conseguinte, sua relação
com Deus; em relação a si mesma, ela se reporta ao nada.
O
“novo” da criação não acrescenta nada à existência de Deus. Nossos conceitos
procedem por justaposição, segundo uma imagética seletiva, mas não podemos
adicionar Deus e o mundo. O pensamento deve proceder aqui por analogia, de modo
a sublinhar a um tempo a relação e a diferença; pois a criatura não existe
senão em Deus, nessa vontade criadora que, justamente, a torna diferente de
Deus, ou seja, criatura. “As criaturas são colocadas sobre a palavra criadora
de Deus como sobre uma ponte de diamante, sob o abismo da infinitude divina, e
acima do abismo de seu próprio nada”, disse Filaretes de Moscou[5].
2.
Trindade Criadora e ideias divinas
A
criação é a obra da Trindade. O Credo denomina o Pai como “criador do céu e da
terra”, o Filho como “por quem tudo foi feito” e o Espírito Santo como “criador
da vida”: zwopoion. A vontade é comum aos Três, e é ela
a criadora: portanto, o Pai não pode ser criador sem que o Filho e o Espírito
Santo o sejam também. “O Pai criou o Verbo no Espírito Santo”, diz o adágio
patrístico[6], e
Santo Irineu chama o Filho e o Espírito Santo de “as duas mãos do Pai[7]”.
Trata-se da manifestação econômica da Trindade. As três pessoas criam juntas,
mas cada qual de uma maneira que lhe é própria, e o ser criado é o fruto de sua
colaboração. Segundo São Basílio, o Pai é “a causa primordial de tudo o que foi
feito”, o Filho “a causa operativa” e o Espírito “a causa aperfeiçoadora”[8].
Enraizada no Pai, a ação da Trindade se apresenta como a dupla economia do
Filho e do Espírito: aquele, fazendo passar à existência a vontade do Pai, este
realizando-a em bondade e beleza; um chamando a criatura para conduzi-la ao Pai
– e seu chamado lhe confere sua densidade ontológica – o outro ajudando a
criatura a responder a esse chamado e comunicando a ela a perfeição.
Quando
os Padres tratam da manifestação econômica da Trindade, eles preferem, ao invés
do nome de “Filho”, que designa mais as relações intertrinitárias, o de
“Verbo”. Com efeito, o Verbo é a revelação, a manifestação do Pai: a todos, e,
por conseguinte, aquilo que liga a noção de Verbo ao domínio da economia. São
Gregório de Nazianze analisa, em seu quarto Discurso
Teológico, essa função do Verbo. O Filho é o Logos, diz ele, porque, ao
mesmo tempo em que permanece unido ao Pai, ele O revela. O Filho define o Pai.
“O Filho é assim uma declaração breve e simples da natureza do Pai[9]”.
Toda
coisa criada possui seu “logos”, sua “razão essencial”: “Ora, diz São Gregório,
pode existir alguma coisa que não se apoie sobre o Logos [divino]?[10]”.
Não existe nada que não esteja fundamentado sobre a “Razão de ser” por
excelência, o Logos. Por ele tudo foi feito, é Ele quem deu ao mundo criado não
somente a ordem cujo significado é dado por seu nome, como também a realidade
ontológica. O Logos é o foco divino de onde partem os raios criadores, os logoi (logoi) específicos
das criaturas, essas palavras permanentes de Deus que a um tempo suscitam e
chamam os seres. Cada ser possui assim sua “ideia”, sua “razão” em Deus, no
pensamento do Criador que o produziu não por capricho, mas com “razão” (e esse
é ainda outro sentido de Logos). As ideias divinas são as razões eternas das
criaturas. Aqui o pensamento dos Padres parece receber uma ressonância
platônica. Estaríamos nós diante de um platonismo cristão? Uma breve comparação
nos permitirá compreender que os Padres, se utilizaram alguns elementos da
filosofia grega, renovaram por completo seu conteúdo, que se fez em definitivo
muito mais bíblico do que platônico.
Em
Platão, as “ideias” representam a própria esfera do ser. O mundo sensível não
possui uma verdade, apenas uma verossimilhança: ele não é real senão na medida
de sua participação às ideias. Para contemplá-las, é preciso escapar do
universo precário da mudança, ao fluxo das gerações e das corrupções. As ideias
representam, assim, o nível superior do ser, não Deus, mas o divino. Os daimones, os deuses, lhes são, de fato, inferiores. A
“criação” de que fala o Timeu
permanece sendo um mito, pois o mundo sempre existiu: eternamente o “demiurgo”
o modela copiando-o do modelo do mundo ideal, do mundo verdadeiro. O neoplatonismo,
que, segundo a expressão de Jean Wahl, hipostasia as hipósteses de Platão,
instaura o Um inefável acima do kosmos nohtos: as
ideias, doravante, serão aquelas da Inteligência divina, desse Nous que emana do Absoluto superior ao próprio ser. Santo Agostinho,
depois de haver lido alguns extratos traduzidos para o latim da Eneida, se deixou fascinar por esses
temas típicos de Plotino. Mas os Padres gregos, que conheciam muito melhor os
filósofos, dominaram mais facilmente seu pensamento, e o utilizaram com toda
liberdade. Para eles, Deus não era apenas uma inteligência contendo as ideias
divinas: sua essência transcenderia infinitamente as ideias. Trata-se de um
Deus livre e pessoal que criou tudo pela sua vontade e sua sabedoria, e as
ideias de todas as coisas estão contidas nessa vontade e nessa sabedoria, e não
na essência divina. Por conseguinte, os Padres gregos recusaram ao mesmo tempo
introduzir no ser interior de Deus o mundo inteligível, e de separar este
último do sensível. Seu sentido do ser divino os fez recusar um Deus
inteligível, seu sentido do criado os fez proibir reduzi-Lo a uma cópia de má
qualidade.
O
próprio Santo Agostinho, no fim de sua vida, em suas Retratações, rejeitou o dualismo implícito de seu “exemplarismo[11]”
estático: não existem dois mundos, ele passou a afirmar[12].
Entretanto, seu ensinamento sobre as ideias contidas no próprio ser de Deus, ao
mesmo tempo como determinações da essência e como causas exemplares das
criaturas, se impôs à teologia ocidental e recebeu um lugar de honra na
sistematização tomista. Para a ortodoxia, ao contrário, é impensável que Deus,
para criar, tenha se contentado em produzir uma réplica de seu próprio
pensamento, de Si mesmo, em definitivo. Isso equivaleria a retirar do mundo
criado sua originalidade e seu valor, depreciar a criação, e também a Deus
enquanto criador. Ora, toda a Bíblia, e sobretudo o livro de Jó, os Salmos, os
Provérbios sublinham a novidade absoluta e esplêndida da criação, diante da
qual os anjos gritavam de alegria, a criação-bênção do Gênesis, a criação-jogo
da Sabedoria, o “hino composto maravilhosamente ao poder que mantém o
universo”, como escreveu São Gregório de Nissa[13].
Os
Padres gregos viram assim no platonismo a descoberta, embora parcial e
perigosa, de uma realidade: não o dualismo, mas a transparência do visível ao
invisível. Eles não hesitaram em utilizar sua linguagem, em falar em
“paradigmas” e “ideias”. Mas eles impregnaram essa linguagem de um respeito
inteiramente bíblico pelo sensível e pelo Deus vivo. Eles aproximaram o Logos
da “palavra” evocada pelos Salmos, e, sobretudo, pelas palavras criadoras que
ressoam no Gênesis. As ideias já não são mais uma determinação necessária do
ser divino, mas a vontade criadora, a palavra viva de Deus. Elas já não
constituem um “mundo subjacente”, mas a profundeza mesma da criatura, seu modo
de participação da energia divina, sua vocação para o mais alto amor. A vontade
criadora de Deus implica ordem e razão, ela insemina com ideias vivas o
“espaçamento” da criação, ela exige para se derramar um “fora” da natureza
divina. São João Damasceno, em sua exposição A Fé Ortodoxa, fala dessa maneira da criação em termos de
ideias-vontades, ou antes, de pensamentos volitivos[14].
Assim as ideias divinas se tornam inseparáveis da intenção criadora. Sem dúvida
Deus pensou o mundo eternamente, mas apenas em relação a esse “outro” que
deveria começar, ou seja, fundar o tempo. Assim, segundo as Escrituras, foi a
Sabedoria que estabeleceu os sete pilares da morada. Aqui retorna o mundo ideal
de Platão: trata-se de um instrumento, não um além, da criação. Deus, para
criar, pensa a criação, e esse pensamento concede realidade à existência das
coisas. As ideias são a sabedoria dentro da obra divina, ou antes, são a
sabedoria trabalhando: exemplarismo, se o quisermos, mas dinâmico, aquele de
uma vontade-pensamento, de uma vontade-palavra, na qual se enraízam os logoi das coisas: pela palavra divina, o
mundo é suspenso sobre seu próprio nada, e existe uma palavra para cada coisa,
uma palavra em cada coisa, que representa sua norma de existência e sua via de
transfiguração. O santo, cuja vontade criada opera livremente com a
vontade-ideia de Deus – que a um tempo a funda e a solicita – percebe, pela
contemplação desembaraçada de toda natureza, o mundo como uma “ordenação
musical”: em cada coisa ele escuta uma palavra do Verbo, e as coisas já não são
para ele, nessa decifração fervorosa do “Livro do mundo”, mais do que uma
palavra permanente, pois “passarão o céu e a terra, mas não passarão as minhas
palavras[15]”.
3.
Criação: tempo e eternidade
“No
princípio era o Verbo”, escreveu São João, e o Gênesis afirma: “No princípio
criou Deus o céu e a terra”. Orígenes identifica esses dois documentos: Deus,
diz ele, criou tudo em seu Verbo, portanto Nele próprio, por toda a eternidade[16].
Maître Eckhart faz a mesma aproximação: o princípio evocado no duplo in principio é para Deus como que o
intelecto que contém tanto o Verbo como o mundo. Arius, ao contrário,
confundindo os termos gregos quase homônimos gennhsis (nascimento)
e genesis (criação), interpreta São João em
termos de gênese, e transforma o Filho em criatura.
Os
Padres, para sublinhar simultaneamente a incognoscibilidade da essência divina
e a divindade do Filho, distinguiram esses dois começos: distinção entre a obra
da natureza, existência primordial de Deus, e a obra da vontade que implicou
uma relação com o outro que estabeleceu essa mesma relação. São João evoca
assim um começo eterno, o do Verbo, e a palavra, aqui analógica, denota uma
relação eterna. Ao contrário, ela recebe todo o seu sentido no texto do Gênesis
onde o surgimento do mundo suscita o tempo. Ontologicamente, o Gênesis vem
depois em relação ao Prólogo de São João: os “dois começos” diferem, se que por
isso sejam estranhos um ao outro, se nos lembrarmos do caráter intencional das
ideias divinas, da Sabedoria a um tempo eterna e voltada para esse “outro” que
deveria, no sentido próprio, começar. Pois a própria sabedoria proclamou: “O
Senhor me deu as primícias de seus caminhos, como prelúdio de suas obras, desde
sempre[17]”.
O
“começo” do primeiro versículo do Gênesis significa, portanto, a criação do
tempo. Assim se estabelece a relação entre o tempo e a eternidade, problema que
é correlato ao da criação ex nihilo.
É
preciso descartar dois obstáculos. O primeiro seria a tentativa de ser “grego”,
vale dizer, colocar-se como um puro metafísico diante dos dados bíblicos,
tentando reduzir pela razão o mistério de seu simbolismo, a ponto de tornar
inútil o “salto da fé”. A teologia não precisa mendigar explicações aos
filósofos: ela pode responder sozinha os seus problemas, não contra o mistério
e a fé, mas alimentando a intelecção do mistério, transformando-a, pela fé, num
engajamento completo da pessoa. A verdadeira teologia ultrapassa e transfigura a
metafísica.
O
outro obstáculo seria, para desgosto dos filósofos, o de ser unicamente
“judeu”, ou seja, tomar ao pé da letra o simbolismo concreto da Escritura.
Alguns exegetas modernos, sobretudo (mas não exclusivamente) os protestantes,
pretendem cuidadosamente banir tudo o que possa lembrar, por pouco que seja, a
filosofia. Assim Oscar Cullmann, em seu livro Cristo e o tempo, pretende rejeitar como platônicos ou helênicos
todos os problemas da eternidade, e pensar a Bíblia exclusivamente a partir da
rasa leitura de seu texto. Ora, a Bíblia é profundidade, mas suas partes mais
antigas, sobretudo o Gênesis, procedem segundo uma lógica arcaica que não
separa o concreto do abstrato, a imagem da ideia, o símbolo da realidade
simbolizada. Uma lógica poética, se assim o quisermos, ou sacramental, cuja
simplicidade não é senão aparente, prenhe que é que uma Palavra que dá à carne
– indissociavelmente das palavras e das coisas – uma transparência
incomparável. Nossa linguagem já não é assim: talvez ela seja menos total, mas
é mais consciente e mais rigorosa, e assim ela despoja a intelecção arcaica de
sua envoltória de carne, ela a captura no nível do pensamento: não do
raciocínio, repetimos, mas da intelecção contemplativa. Um homem de nosso
tempo, ao interpretar a Bíblia, deve ter a coragem de pensar: pois não se
brinca de criança impunemente; se recusarmos abstrair a profundidade,
abstrairemos, apesar disso, a superfície, em virtude da própria linguagem
utilizada, e cairemos desse modo não no maravilhamento infantil do autor
arcaico, mas em posições infantis. Então a eternidade se torna linear, como o
tempo; nós a pensamos como uma linha indefinida! A existência temporal do
mundo, da criação até a Parúsia, não passa de uma porção finita dessa linha...
a eternidade se refere a um tempo sem começo nem fim, o infinito se reporta ao
indefinido. Mas então, o que acontece com a transcendência? Para sublinhar a
pobreza dessa filosofia (pois é disso que se trata) basta lembrar que o finito
não tem medida comum com o infinito.
Nem
gregos nem judeus, mas cristãos, os Padres deram a esse problema uma resposta
que, longe de blasfemar a Bíblia pelo raciocínio ou pela platitude, a captou em
sua profundidade.
Para
São Basílio, o primeiro momento do tempo ainda não é o tempo. “Assim como o
começo de um caminho ainda não é o caminho, nem o começo de uma casa é uma
casa, também o começo do tempo não é ainda o tempo, nem mesmo uma parte mínima
do tempo[18]”.
Esse primeiro momento é impensável para nós, se definirmos o instante como sendo
um ponto do tempo – representação falsa, como mostrou Santo Agostinho, porque o
devir se torna passado sem cessar, sem que jamais possamos captar o presente
dentro do tempo. Ora, o primeiro momento não é divisível: ele nem sequer é
infinitamente pequeno, sem medida segundo o tempo: trata-se de um momento como
um limite, portanto, sem duração.
Então,
o que é o momento? Esse problema já havia preocupado o pensamento antigo. No
impasse de uma racionalidade impiedosa, Zenon ligava o tempo ao absurdo, porque
ele era, ou antes, deveria ser simultaneamente movimento e repouso. Mais
sensível ao mistério, Platão teve pensamentos notáveis a respeito do “súbito”
que, dizia ele, não constitui um tempo, mas um limite, e, como tal, uma
abertura para a eternidade. O presente sem dimensão, sem duração, se revelava
como presença da eternidade.
Este
é justamente, para São Basílio, o primeiro momento no qual aparece todo o
conjunto da existência, simbolizada pelo “céu e a terra”. A criatura surge num
“súbito”, simultaneamente eterno e temporal, no limite entre a eternidade e o
tempo. O “começo”, logicamente análogo à noção geométrica de limite (entre dois
planos, por exemplo), é uma espécie de instantaneidade em si intemporal, mas
cuja explosão criadora suscita o tempo. É o ponto de intersecção da vontade
divina com aquilo que, daí por diante, virá e durará. A própria origem da
criatura é assim uma mudança, um “começo”, e é por isso que o tempo é uma forma
de existência criada, enquanto que a eternidade pertence propriamente a Deus.
Mas essa contingência original não diminui absolutamente o ser criado: a
criatura não desaparecerá jamais, porque a palavra de Deus é indestrutível[19].
O
mundo assim criado permanecerá para sempre, mesmo depois que o tempo for
abolido, ou antes, por ser ele em si uma criatura, ele se transformará na
eterna novidade da epectase (lit. extensão, alongamento), da tensão do homem e
seu progresso em direção a Deus.
Assim
se unem no mesmo mistério o primeiro e o oitavo dia, que coincidem no domingo.
Pois este é ao mesmo tempo o primeiro e o oitavo dia da semana, aquele da
entrada na eternidade. O ciclo semanal se fecha no sábado, no repouso divino do
sabbat; para além fica o domingo, dia
da criação e da recriação do mundo, dia da Ressurreição, que é como o “súbito”
da eternidade, o do primeiro e do último limite. Mais ainda do que os
Alexandrinos, São Basílio desenvolveu essas noções sublinhando que diante desse
mistério não devemos nos ajoelhar no domingo, pois esse é o momento em que
escapamos da temporalidade do escravo para entrarmos simbolicamente no Reino
onde o homem, em pé, salvo, participa da filiação do Ressuscitado.
É
preciso evitar as categorias do tempo quando falamos em eternidade. Se a Bíblia
acaso as utiliza, é para sublinhar por meio de um rico simbolismo a
positividade do tempo no qual amadurecem os encontros entre Deus e o homem, sua
autonomia ontológica como aventura da liberdade humana, sua possibilidade de
transfiguração. Os Padres o sentiram tão fortemente, que evitaram definir a eternidade
como o contrário do tempo. Se as categorias do tempo são o movimento, a
mudança, a passagem de um estado a outro, não é possível opô-los termo a termo
à imobilidade, à imutabilidade, à invariabilidade de uma eternidade estática:
essa seria a eternidade do mundo inteligível de Platão, mas não a do Deus vivo.
Se Deus vive na eternidade, essa eternidade viva deve ultrapassar a oposição
entre o tempo móvel e a eternidade imóvel. São Máximo sublinha que a eternidade
do mundo inteligível é uma eternidade criada; proporções, verdades, estruturas
imutáveis do cosmos, geometria das ideias que ordenam a criação, rede das
essências matemáticas – esse é o éon, a eternidade eônica, que começou com o
tempo (donde seu nome, pois ele toma seu princípio “no século”, en aiwni, ao passar do não-ser ao ser), mas que
permanece sem mudança, submetido a uma existência intemporal. Essa eternidade
eônica é estável, imutável; é ela que dá coerência e inteligibilidade ao mundo.
Sensível e inteligível, tempo e éon aderem um ao outro, pois, tendo ambos um
começo, são mensuráveis. O éon é o tempo imóvel, o tempo é o éon em movimento.
E somente sua coexistência, sua interpenetração, podem tornar o tempo pensável.
O
éon está em estreita relação com o mundo angélico. Anjos e homens participam
uns e outros do tempo e do éon, mas de maneiras diferentes. Enquanto que a
condição humana é temporal, mas dentro de um tempo tornado inteligível pelo
éon, os anjos só conheceram a livre escolha do tempo no momento de sua criação:
uma espécie de temporalidade instantânea de onde saíram para um éon de louvor e
serviço, ou de revolta e aversão. Entretanto, existe um processo no éon, pois a
natureza angélica pode crescer sem cessar na aquisição dos bens eternos, embora
sem sucessão temporal. Assim é que os anjos aparecem como universos
inteligíveis que participam da função organizadora da eternidade eônica.
Quanto
à eternidade divina, ela não pode ser definida nem pela mudança própria do
tempo nem pela imutabilidade própria do éon. Ela transcende a ambos. O recurso
necessário à apófase nos proíbe pensar o Deus vivo segundo a eternidade das
leis matemáticas.
Dessa
forma a teologia ortodoxa não conhece um inteligível criado. Senão a
corporeidade, a única criada, apareceria como um mal relativo. O incriado
ultrapassa todas as oposições, notadamente aquelas entre o inteligível e o
sensível, entre o temporal e o eterno. E o problema do tempo nos liga a esse
nada de onde a vontade divina nos suscita para fazer entrar um “outro que Deus”
na eternidade.
4.
Criação: ordem cósmica
“No
princípio criou Deus o céu e a terra[20]”.
O céu e a terra de que se trata no primeiro dia da criação não são estes que
vemos; pois o primeiro não apareceria senão com o “firmamento” do segundo dia,
ou mesmo com os “luminares” do quarto dia, e a segunda com a separação do seco,
ao terceiro dia. O “céu e a terra” do primeiro dia significam o conjunto do
universo, o visível e o invisível, o inteligível e o corporal. O céu é toda a
imensidão dos mundos espirituais que contêm nossa existência terrestre, as
inumeráveis esferas angélicas. O relato do Gênesis os menciona, mas depois
parece se desinteressar deles para falar apenas da terra. Algumas breves
indicações sobre esses universos espirituais pontuam, mas sem se demorar
muitos, os dois Testamentos. Assim é que São Gregório de Nissa verá nas noventa
e nove ovelhas deixadas sobre a montanha[21]
um símbolo do pleroma angélico[22].
De fato, em nossa decadência, não somos capazes sequer de situar nosso universo
dentre essas imensidões espirituais.
Esse
silêncio relativo das Escrituras é significativo. Ele sublinha a importância
central da terra, e define um geocentrismo. Este não é o resíduo de uma
cosmologia primitiva – e em que medida não serão essas cosmologias também
simbólicas? – que contrastasse com nosso universo pós-copernicano. Porque não se trata de um geocentrismo
físico, mas espiritual: a terra é espiritualmente central, porque ela é o corpo
do homem, e porque o homem, perfurando a indefinição do visível para religar ao
invisível, é o ser central da criação, o ser que reúne em si o sensível e o
inteligível, e que assim participa, de modo mais rico do que os anjos, de todas
as ordens da “terra” e do “céu”. No centro do universo bate o coração do homem,
e somente o santo, cujo coração purificado engloba as nebulosas mais
longínquas, poderá saber se essas “esferas estraladas” não são como que os
reflexos dos éons angélicos, que, por conseguinte, não precisam ser salvos.
Os
mistérios da economia divina se desenvolvem, assim, sobre a terra, e é por isso
que a Bíblia no liga à terra. Ela não apenas nos proíbe de nos dispersarmos
pelas imensidões cósmicas – que, de resto, nossa natureza decaída é incapaz de
captar senão sob seu aspecto de desagregação –, não apenas tenta nos subtrair à
usurpação dos anjos decaídos para nos ligar a Deus somente, mas ainda, quando
ela nos fala dos anjos, ela os mostra a nós voltados para a história terrestre
na qual se insere a economia divina, como servidores (ou adversários) dessa
economia.
Os
seis dias do Gênesis nos descrevem assim o desenvolvimento da criação de um
modo geocêntrico; seus seis dias, que simbolizam os dias da semana, são etapas
menos cronológicas do que hierárquicas; diferenciando os elementos criados
simultaneamente no primeiro dia, eles definem as esferas concêntricas da
existência no centro das quais se encontra o homem que, virtualmente, as
recapitula.
“Ora,
a terra (aqui, o conjunto do nosso cosmo) estava deserta e vazia, e as trevas
cobriam o abismo[23]”:
trata-se da mistura dos elementos ainda indiferenciados. “O espírito de Deus
planava sobre as águas”: como um pássaro chocando, diz São Basílio[24],
e as águas designam aqui (tal como no Batismo) a plasticidade dos elementos.
“Deus
disse: faça-se a luz. E a luz foi feita[25]”.
Esta é a primeira ordem de Deus: sua palavra se introduz nos elementos
primários e suscita, como primeira “informação” da existência, a luz. A luz
constitui assim a essência do ser criado, a “força luminosa” suscitada pelos “logoi-vontades” que irradiam do Verbo e
vão fecundar as trevas. Trata-se, por conseguinte, menos de uma vibração física
do que de uma luz intelectual.
E
Deus suscita a polaridade entre a luz e as trevas. “Deus separou a luz das
trevas”. Estas pertencem ao ser criado e não devemos confundi-las com o “nada” original,
esse misterioso limite ao qual se atribui hoje uma grosseria substancialidade.
As trevas – às quais Deus chamou “noite” – que aparecem na última fase desse
“primeiro dia” são o momento potencial da existência (ou do ser) criado. Elas
representam uma realidade inteiramente boa, frutífera, como a terra que faz
germinarem os grãos. Deus não produziu nada que fosse mau, e não existe lugar
na existência primigênia para as trevas negativas. As trevas positivas do
primeiro dia exprimem o mistério uterino da fertilidade, o princípio do
mistério da vida que é próprio da terra e do ventre, a tudo o que é gerador no
sentido positivo do termo, a toda substância de vida.
No
segundo dia, Deus separou definitivamente as águas inferiores e as superiores,
ou seja, o cosmo terrestre, limitado visualmente pela abóboda do firmamento,
dos éons angélicos dos quais o Gênesis não voltará a falar.
No
terceiro dia, sob a ordem divina, os elementos cósmicos cuja indistinção havia
sido simbolizada pelas águas, começam a se separar. As águas, no sentido
próprio, se reúnem, e a terra aparece. Ela recebe a ordem de produzir as
plantas, ou seja, as primeiras formas de vida.
E
a terra obedece ao Logos, princípio da vida, a um tempo segunda pessoa da
Trindade e potência ordenadora da Trindade como um todo.
No
quarto dia, aparecem os astros e sua revolução regular: a ordem do Logos se
increve na ordem do céu visível. A vida, que surgiu no “dia” precedente, exige
o tempo, e o ritmo dos dias e das noites. A simultaneidade criadora dos
primeiros dias se torna, para a criatura, sucessão.
No
quinto dia, a Palavra suscita o surgimento dos peixes e das aves: e é a água,
do [elemento] úmido, que recebe de produzi-los. Uma aproximação curiosa se
estabelece assim entre os seres que nadam e os que voam (cujas formas, de
restos, não deixam de ter similaridades), entre a água e o ar, ambos fluídos e
úmidos. Percebemos claramente aqui que não se trata de uma cosmogonia
científica, no sentido moderno do termo, mas de outra visão da existência e de
suas hierarquias, visão pela qual o mistério da forma, as “qualidades segundas”
do sensível (que a ciência tanto negligencia) possuem um significado decisivo
que reenvia para as profundezas inteligíveis, para os “logoi” da criação. Essa visão se tornou muito difícil para a nossa
natureza decaída, mas podemos reencontrá-la na “nova criação” eclesial,
simultaneamente nos cosmos litúrgico e sacramental, e na contemplação da
natureza (qewria jusikh) dos ascetas.
No
sexto dia a terra – o elemento terra – por sua vez recebeu a ordem de produzir
os animais. Mas, subitamente, o tom do relato se modifica e um novo modo de
criação aparece: “Façamos”, disse Deus. O que significa essa mudança?
A
criação dos espíritos angélicos foi feita “em silêncio”, segundo Santo Isaac o
Sírio[26].
A primeira palavra foi a luz. Em seguida Deus ordenou e abençoou: “Deus viu que
aquilo era bom”. Mas, no sexto dia, depois da criação dos animais, quando Deus
diz: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança[27]”,
parece que ele se detém e que as pessoas da Trindade se acordam. O plural que
aparece aqui mostra que Deus não é solitário. Trata-se do “Conselho divino”,
cuja deliberação prova que a criação não é obra da necessidade, nem do
arbítrio, mas é um ato livre e refletido. Por que a criação do homem, ao invés
de uma simples ordem à terra – como aconteceu com a dos animais – exigiria esse
Conselho dos Três? É porque o homem, ser pessoal, exige a afirmação do aspecto
pessoal do Deus de quem ele será a imagem. As ordens de Deus suscitam as diversas
partes da existência criada. Mas o homem não é uma parte, pois uma pessoa
contém a tudo em si. Livre totalidade, ele nasce do “reflexo” de Deus como
livre totalidade.
“E
Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; ele o criou
homem e mulher[28]”.
É assim que o mistério do singular e do plural no homem reflete o mistério do
singular e do plural em Deus: assim como o princípio pessoal em Deus exige que
a natureza una se expresse na diversidade das pessoas, o mesmo acontece com o
homem, criado à imagem de Deus. A natureza humana não pode consistir na posse
de uma mônada, ela exige não a solidão, mas a comunhão. A boa diversidade do
amor. Pois a ordem divina: “Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e
submetam-na[29]”,
estabelece uma determinada correspondência entre a sexualidade e a dominação
cósmica do primeiro casal, e a misteriosa superação em Deus da dualidade pela
tríade. Mas esse “eros” paradisíaco
teria sido tão diferente de nossa sexualidade decaída e devoradora quanto a
realeza sacerdotal do homem sobre a existência criada o foi da entredevoração
atual. Pois Deus especifica: “E a todos os animais selvagens (...) eu dou a
verdura das plantas como alimento[30]”.
O relato da criação, não o esqueçamos, se exprime nas categorias do mundo:
decaído. Ora, a queda alterou até mesmo o sentido das palavras. A sexualidade,
essa “multiplicação” que Deus ordenou e abençoou, aparece ao nosso universo
como algo irremediavelmente ligado à morte e à separação. É porque a condição
do homem conheceu, até em sua realidade biológica, uma mutação catastrófica.
Mas o amor humano não estaria prenhe de tal nostalgia paradisíaca se nele não
subsistisse dolorosamente a lembrança de uma condição primeira na qual o outro
e o mundo eram conhecidos desde o interior, onde, portanto, a morte não
existia.
“E
Deus viu tudo o que Ele havia feito, e viu que tudo era muito bom[31]”:
dupla bênção, mas que assimila o homem às demais criaturas terrestres surgidas
também no sexto dia.
Agora,
após esse relato da criação, que constitui o primeiro capítulo do Gênesis,
aparece um novo relato no capítulo segundo. O desenvolvimento da criação
encontra-se aqui em termos completamente diferentes. Para a crítica bíblica,
trata-se da justaposição de tradições diversas, de dois relatos separados e
costurados a posteriori. Isso sem
dúvida é verdadeiro no plano material da formação do texto, mas para nós essa
própria justaposição é obra do Espírito: não existe acaso na Bíblia e tudo nela
está carregado de sentido. A Bíblia não nasceu da vontade nem das contingências
humanas, mas do Espírito Santo, que lhe deu sua coerência profunda. Não podemos
separar a Bíblia da Igreja, nem compreendê-la fora dela. O que nos interessa,
portanto, não é saber como dois relatos da criação foram costurados, mas
porque, e qual o sentido profundo que transparece dessa aproximação.
Ora,
justamente, enquanto que o primeiro relato assimilava, numa bênção comum, o
homem aos demais seres terrestres, e sublinhava, sobre o plano da natureza, a
unidade antropocósmica, o segundo relato define claramente o lugar do homem.
Com efeito, sua perspectiva é completamente diferente: o homem aparece aqui não
apenas como o ápice, mas também como o princípio da criação. Desde o início,
somo informados de que as plantas não existiam porque o homem ainda não havia
sido criado: “Não existia o homem para trabalhar a terra[32]”.
Em seguida, a criação do homem é relatada em detalhe: “Então Deus formou o
homem a partir do pó da terra e soprou em suas narinas o sopro da vida, e o
homem se tornou uma alma viva[33]”.
O homem foi assim moldado pelo próprio Deus, por suas mãos, como sublinharam os
Padres, e não suscitado apenas por seu Verbo – o que nos remete ao “Conselho”
do primeiro relato, porque o Filho e o Espírito, segundo Santo Irineu, são as duas
“mãos” de Deus – e foi o próprio sopro de Deus que transformou esse barro em
“alma viva”.
Alguns
pretenderam ver nessa “alma viva” a alma espiritual do homem, e assim fazer de
nosso intelecto uma emanação de Deus. Mas, se nossa alma fosse incriada, nós
seríamos o próprio Deus, apenas acrescido do peso do barro terrestre, e toda a
criação não passaria de um jogo ilusório. E, no entanto, São Gregório de
Nazianze pode falar com justeza da presença de uma “parcela de divindade[34]”
no homem. É que a mesma graça incriada está implicada no próprio ato criador, e
a alma recebe ao mesmo tempo a vida e a graça: pois a graça é o sopro de Deus,
o “jorro da invisível Divindade”, a presença vivificante do Espírito Santo. Se
o homem se torna vivo quando Deus lhe insuflou o sopro da vida, é porque a
graça do Espírito Santo é o verdadeiro princípio de nossa existência. Quanto à
aproximação entre o sopro e as narinas, portanto entre o sopro de Deus e a
respiração humana, ela se fundamenta sobre o simbolismo concreto da cosmologia
bíblica, e não representa uma metáfora, mas uma analogia real que encontra hoje
em dia sua aplicação na ascese ortodoxa.
O
mundo animal, no segundo relato, aparece depois do homem e em relação a ele,
para que ele não esteja só e que tenha “um auxiliar que lhe seja semelhante[35]”.
E Adão nomeou os animais que Deus levou até ele. Pois o mundo foi feito por
Deus para ser perfeito para o homem. E o homem conhece desde o interior os
seres vivos, ele exprime seu segredo, ele ordena sua profusão: poeta e sacerdote,
poeta para Deus, pois Deus “os levou ao homem para ver como ele os chamaria[36]”.
Então a linguagem coincidia com o próprio ser das coisas, e essa linguagem
paradisíaca irremediavelmente perdida não pode ser encontrada pelos caçadores
de ocultismo que a procuram, mas apenas pelos “corações caridosos” de que fala
Santo Isaac o Sírio, esses corações “que se inflamam de amor por toda a
criação, pelos homens, pelos pássaros, pelos animais, pelos demônios e por
todas as criaturas[37]”.
As feras vivem em paz ao redor dos santos, como no tempo em que Adão as
nomeava.
O
homem aparece assim, nesse segundo relato da criação, como a hipóstase do cosmo
terrestre: a natureza terrestre é uma continuidade de seu corpo.
Mas
somente um ser da mesma natureza que o homem poderia ser seu auxiliar, “um
auxiliar semelhante a ele”. Então Deus fez com que o homem caísse num sono
extático, e, do mais íntimo de sua natureza – o “lado” simbólico, próximo ao
coração – formou uma mulher e a entregou ao homem: e o homem reconheceu que Eva
era “consubstancial”, “os ossos de seus ossos e a carne de sua carne[38]”.
Os Padres aproximam a processão do Espírito Santo daquilo que eles chamam de
“processão” de Eva, diferente de Adão e, entretanto, da mesma natureza que ele:
unidade de natureza e pluralidade de pessoas que evocam para nós os mistérios
do Novo Testamento.
Assim
como o Espírito não é inferior àquele do qual ele procede, a mulher não é
inferior ao homem: pois o amor exige a igualdade e somente ele justifica essa
polarização primordial, fonte de toda a diversidade do gênero humano.
[1]
João Damasceno, A Fé Ortodoxa, I, 13.
[2] II
Macabeus, 7: 28.
[3]
Agostinho de Hipona, De Genesi ad
litteram I, 15, 29.
[4]
João Damasceno, A Fé Ortodoxa, I, 8.
[5]
Citado por G. FLorovsky, As vias da
teologia russa, Paris, 1937.
[6]
Ver p.ex. Orígenes, Sobre os princípios
I, 3, 8; Atanásio de Alexandria, Cartas a
Serapião I, 24.
[7]
Irineu de Lyon, Contra as Heresias
IV, 7, 4.
[8]
Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito
Santo, XVI, 38.
[9]
Gregório de Nazianze, Discurso 30,
20.
[10] Ibid.
[11]
Exemplarismo: perspectiva filosófica que consiste em ver em cada realidade
física a manifestação, a atualização, o símbolo de uma realidade metafísica.
[12]
Agostinho de Hipona, Retratações II,
3, 2.
[13]
Gregório de Nissa, In inscriptiones
Psalmorum III, 7.
[14]
João Damasceno, A Fé Ortodoxa II, 2.
[15]
Marcos 13: 31.
[16]
Ver Orígenes, Comentários sobre São João
I, XIX, 113.
[17]
Provérbios 8: 22.
[18]
Basílio de Cesareia, Homilias sobre o
Hexameron I, 6.
[19] I
Pedro 1: 25.
[20]
Gênesis 1: 1.
[21]
Cf. Mateus 18: 12-14.
[22]
Gregório de Nissa, Homilias sobre o
Cântico dos Cânticos II.
[23]
Gênesis 1: 2.
[24]
Basílio de Cesareia, Homilias sobre o
Hexameron II, 6.
[25]
Gênesis 1: 3.
[26]
Isaac o Sírio, Discursos ascéticos.
[27] Gênesis 1: 26.
[28] Gênesis 1: 27.
[29] Gênesis 1: 28.
[30] Gênesis 1: 30.
[31] Gênesis 1: 31.
[32]
Gênesis 2: 5.
[33]
Gênesis 2: 7.
[34]
Gregório de Nazianze, Poemas dogmáticos,
8.
[35]
Gênesis 2: 18.
[36]
Gênesis 2: 19.
[37]
Isaac o Sírio, Discursos ascéticos,
74.
[38]
Gênesis 2: 23.
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