sábado, 27 de agosto de 2016

Vladimir Lossky - Teologia Dogmática - Capítulo III

Capítulo III

O ser criado

1.       A noção absoluta de criação

O mundo foi criado pela vontade de Deus. Ele é de uma natureza diferente de Deus; ele existe fora de Deus, conforme explica São João Damasceno, “não pelo lugar, mas pela natureza[1]”. Essas simples afirmações da fé abrem para um mistério tão insondável como o do ser divino: o mistério do ser criado, a realidade de um ser exterior à onipresença de Deus, livre em relação à sua onipotência, de uma interioridade radicalmente nova diante da plenitude trinitária, em resumo, a realidade do “outro que Deus”, a irredutível densidade ontológica do “outro”.

Somente o Cristianismo, mais exatamente a tradição judaico-cristã, conhece a noção absoluta da criação. A criação ex nihilo é um dogma de fé. Ela encontra sua primeira expressão na Bíblia, no segundo livro dos Macabeus, onde uma mãe, exortando seu filho ao martírio, lhe diz: “Veja o céu e a terra e, observando tudo o que aí se encontra, você compreendera que Deus a tudo criou do nada[2]” (ex ouk ontown, segundo a tradução dos Setenta). Se nos lembrarmos que ouk constitui uma negação radical, que, diferentemente do outro advérbio de negação mh, não deixa nenhum lugar à dúvida, e que aqui ele é empregado de modo sistemático, contra as regras da gramática, poderemos medir o alcance da expressão: Deus não criou a partir de qualquer coisa, mas a partir daquilo que não é, ou seja, do “nada”.

Nada disso existe nas demais religiões ou metafísicas. Nelas, ou a criação se dá a partir de uma possibilidade de existência eternamente oferecida à ordenação demiúrgica, tal como a matéria primeira do pensamento antigo ou como a existência imutável e informe. Em si, essa matéria não existe propriamente: ela é uma pura possibilidade de existência, sem dúvida o não-ser, mas enquanto mh on, que não é um nada absoluto, o ouk on. Por reflexo, ela recebe alguma verossimilhança, uma precária evocação do mundo das ideias: tal é, sobretudo, o dualismo platônico, e também, com algumas diferenças, a formatação perpétua da matéria em Aristóteles.

Ou encontramos a ideia de criação como um processo divino. Deus cria a partir de seu próprio ser, muitas vezes por meio de uma polarização primordial que gera toda a multiplicidade do universo. O mundo é então a manifestação ou a emanação da divindade. Essa é a concepção fundamental da Índia, que encontramos no universo helenístico com a gnose, e da qual o pensamento de Plotino, que tende para o monismo, está bastante próximo. Dessa forma a cosmogonia se torna uma teogonia: o absoluto se relativiza por etapas de “condensação” descendente, ele se manifesta e se degrada no universo. O mundo é um Deus decaído que tende a se tornar Deus novamente; sua origem reside, seja numa misteriosa catástrofe que poderíamos chamar de “queda de Deus”, seja numa necessidade interna, numa estranha paixão cósmica na qual Deus busca tomar consciência de si mesmo, seja numa temporalidade cíclica de manifestações e reabsorções que parecem se impor ao próprio Deus.

Nos dois casos, a ideia de uma criação ex nihilo não existe. Pois, para o Cristianismo, a própria matéria é criada; trata-se dessa matéria misteriosa da qual Platão dizia ser inapreensível senão por conceitos “bastardos”, dessa pura possibilidade de existência – ela mesma criada, como demonstrou notadamente Santo Agostinho[3]. E, por outro lado, como poderia a criação possuir um substrato incriado, como poderia ela ser um Deus desdobrado, uma vez que ela é por essência “outra que Deus”?

A criação é assim um ato livre, um ato gratuito de Deus. Ela não responde por nenhuma necessidade do ser divino. Mesmo as motivações morais que lhe são atribuídas às vezes não passam de platitudes sem importância: o Deus-Trindade é uma plenitude de amor, e ele não tem necessidade de um “outro” para derramar seu amor, porque este “outro” já está nele, na circumincessão das hipóstases. Assim sendo, Deus é criador porque quis sê-lo: o nome de criador é secundário em relação aos três nomes da Trindade. Deus é eternamente Trindade, ele não é eternamente criador como acreditava Orígenes, que, prisioneiro das concepções cíclicas da Antiguidade, colocava-O assim na dependência da criatura. Se a ideia de criação, como ato inteiramente livre, nos aflige, é porque nosso pensamento viciado pelo pecado identifica a liberdade com o arbitrário; Deus nos aparece então como um tirano fantasista. Mas se, para nós, a liberdade, quando não está submetida às leis da criação (no interior da qual nos encontramos nós), se apresenta como uma arbitrariedade má que desagrega a existência, para Deus, que transcende a criação, a liberdade é infinitamente boa: ela suscita a existência. Na criação, com efeito, reconhecemos a ordem, a finalidade, o amor, tudo o que é contrário ao arbitrário. As qualidades de Deus, que não têm nada a ver com nossa pseudoliberdade desordenada, se manifestam aí. A própria existência de Deus se reflete na criatura e a chama a participar de sua divindade. Esse apelo e a possibilidade de responder a ele constituem para os que se encontram no interior da criação a única justificação para esta.

A criação ex nihilo é obra da vontade de Deus. É por isso que São João Damasceno se opõe à geração do Verbo: “Pelo fato de que a geração, diz ele, é uma obra da natureza e procede da própria substância [de Deus], é preciso que ela seja necessariamente sem começo e eterna, caso contrário o gerador sofreria uma mudança, e haveria um Deus anterior e um Deus posterior: Deus aumentaria. Quanto à criação, ela é obra da vontade de Deus, e assim ela não é co-eterna a Deus. Pois não é possível que aquilo que foi trazido do nada à existência seja co-eterno àquilo que existe sem começo e desde sempre[4]”. Essa obra é contingente: Deus poderia não tê-la criado. Mas, contingente em relação à própria existência da Trindade, ela impõe aos seres criados uma necessidade de existir, e de existir para sempre: contingente para Deus, a criação é necessária para si mesma, pois Deus, livremente, dez do ser criado aquilo que deve ser.

Assim nos aparece o sentido positivo da gratuidade divina. Para falarmos analogicamente – e essa analogia constitui o próprio sentido da criação – é como a gratuidade do poeta. “Poeta do céu e da terra”, poderíamos denominar a Deus, traduzindo palavra por palavra o texto grego do Credo. Assim podemos penetrar no mistério do ser criado: criar não consiste em se refletir num espelho, ainda que este fosse a matéria prima, não consiste em se dividir inutilmente para tudo reunir em si mesmo, mas é fazer surgir o novo, poderíamos dizer: arriscar o novo. Quando Deus suscita fora de si mesmo um sujeito novo, um sujeito livre, é este o apogeu do seu ato criador: a liberdade divina se realiza ao criar esse risco supremo: uma outra liberdade.

A relação de Deus para com sua criação não pode ser concebida senão a posteriori, quando a criação existe. De fato, não podemos opor nada a Deus, sequer um nada que seriam como que uma matéria da criação. O próprio nada só existe em relação ao ser criado. É por oposição ao ser que podemos conceber o nada, mas sem concebê-lo. Podemos falar ao mesmo tempo do ser criado e do nada das criaturas. Deus cedeu, por assim dizer, o lugar às criaturas, ele como que se retirou, sem se limitar. As criaturas possuem em relação a Deus uma exterioridade desejada por Deus, porque Deus quis criar um sujeito novo que fosse chamado a um grande destino. O nada se impôs na medida em que o ato da criação teve lugar. O que foi criado do nada é o “outro que Deus”, que existe porque Deus assim o quis.

É por isso que não podemos objetivar o nada original. Nihil, aqui, quer dizer simplesmente que nada “antes” da criação existia “fora” de Deus. Ou antes, que esse “fora” e esse “antes” são absurdos, porque foi justamente a criação que os estabeleceu. Pensar esse “fora” significa tocar o nada, ou seja, não ser mais capaz de pensar. Ele não existe senão pela criação, ele é esse mesmo “espaçamento” que constitui a criação. Da mesma forma, não podemos evocar o que existia “antes” da criação: o “começo” não faz sentido em Deus, ele nasce com o ser criado, é a criação que constitui o tempo do qual antes e depois são apenas termos. Da mesma forma que o “fora”, o “antes” suprime o pensamento. Ambos, diriam os Alemães, são “conceitos limite”. Assim, toda a dialética do ser e do nada é absurda: o nada não possui existência própria (de resto, isso seria uma contradição in adjecto), ele é correlativo à própria existência das criaturas; estas não estão fundadas nem em si mesmas, nem na essência divina, mas unicamente sobre a vontade de Deus. Essa ausência de fundamento próprio é o nada. O estável, o permanente para a criatura, é, por conseguinte, sua relação com Deus; em relação a si mesma, ela se reporta ao nada.

O “novo” da criação não acrescenta nada à existência de Deus. Nossos conceitos procedem por justaposição, segundo uma imagética seletiva, mas não podemos adicionar Deus e o mundo. O pensamento deve proceder aqui por analogia, de modo a sublinhar a um tempo a relação e a diferença; pois a criatura não existe senão em Deus, nessa vontade criadora que, justamente, a torna diferente de Deus, ou seja, criatura. “As criaturas são colocadas sobre a palavra criadora de Deus como sobre uma ponte de diamante, sob o abismo da infinitude divina, e acima do abismo de seu próprio nada”, disse Filaretes de Moscou[5].



2.       Trindade Criadora e ideias divinas

A criação é a obra da Trindade. O Credo denomina o Pai como “criador do céu e da terra”, o Filho como “por quem tudo foi feito” e o Espírito Santo como “criador da vida”: zwopoion. A vontade é comum aos Três, e é ela a criadora: portanto, o Pai não pode ser criador sem que o Filho e o Espírito Santo o sejam também. “O Pai criou o Verbo no Espírito Santo”, diz o adágio patrístico[6], e Santo Irineu chama o Filho e o Espírito Santo de “as duas mãos do Pai[7]”. Trata-se da manifestação econômica da Trindade. As três pessoas criam juntas, mas cada qual de uma maneira que lhe é própria, e o ser criado é o fruto de sua colaboração. Segundo São Basílio, o Pai é “a causa primordial de tudo o que foi feito”, o Filho “a causa operativa” e o Espírito “a causa aperfeiçoadora”[8]. Enraizada no Pai, a ação da Trindade se apresenta como a dupla economia do Filho e do Espírito: aquele, fazendo passar à existência a vontade do Pai, este realizando-a em bondade e beleza; um chamando a criatura para conduzi-la ao Pai – e seu chamado lhe confere sua densidade ontológica – o outro ajudando a criatura a responder a esse chamado e comunicando a ela a perfeição.

Quando os Padres tratam da manifestação econômica da Trindade, eles preferem, ao invés do nome de “Filho”, que designa mais as relações intertrinitárias, o de “Verbo”. Com efeito, o Verbo é a revelação, a manifestação do Pai: a todos, e, por conseguinte, aquilo que liga a noção de Verbo ao domínio da economia. São Gregório de Nazianze analisa, em seu quarto Discurso Teológico, essa função do Verbo. O Filho é o Logos, diz ele, porque, ao mesmo tempo em que permanece unido ao Pai, ele O revela. O Filho define o Pai. “O Filho é assim uma declaração breve e simples da natureza do Pai[9]”.

Toda coisa criada possui seu “logos”, sua “razão essencial”: “Ora, diz São Gregório, pode existir alguma coisa que não se apoie sobre o Logos [divino]?[10]”. Não existe nada que não esteja fundamentado sobre a “Razão de ser” por excelência, o Logos. Por ele tudo foi feito, é Ele quem deu ao mundo criado não somente a ordem cujo significado é dado por seu nome, como também a realidade ontológica. O Logos é o foco divino de onde partem os raios criadores, os logoi (logoi) específicos das criaturas, essas palavras permanentes de Deus que a um tempo suscitam e chamam os seres. Cada ser possui assim sua “ideia”, sua “razão” em Deus, no pensamento do Criador que o produziu não por capricho, mas com “razão” (e esse é ainda outro sentido de Logos). As ideias divinas são as razões eternas das criaturas. Aqui o pensamento dos Padres parece receber uma ressonância platônica. Estaríamos nós diante de um platonismo cristão? Uma breve comparação nos permitirá compreender que os Padres, se utilizaram alguns elementos da filosofia grega, renovaram por completo seu conteúdo, que se fez em definitivo muito mais bíblico do que platônico.

Em Platão, as “ideias” representam a própria esfera do ser. O mundo sensível não possui uma verdade, apenas uma verossimilhança: ele não é real senão na medida de sua participação às ideias. Para contemplá-las, é preciso escapar do universo precário da mudança, ao fluxo das gerações e das corrupções. As ideias representam, assim, o nível superior do ser, não Deus, mas o divino. Os daimones, os deuses, lhes são, de fato, inferiores. A “criação” de que fala o Timeu permanece sendo um mito, pois o mundo sempre existiu: eternamente o “demiurgo” o modela copiando-o do modelo do mundo ideal, do mundo verdadeiro. O neoplatonismo, que, segundo a expressão de Jean Wahl, hipostasia as hipósteses de Platão, instaura o Um inefável acima do kosmos nohtos: as ideias, doravante, serão aquelas da Inteligência divina, desse Nous que emana do Absoluto superior ao próprio ser. Santo Agostinho, depois de haver lido alguns extratos traduzidos para o latim da Eneida, se deixou fascinar por esses temas típicos de Plotino. Mas os Padres gregos, que conheciam muito melhor os filósofos, dominaram mais facilmente seu pensamento, e o utilizaram com toda liberdade. Para eles, Deus não era apenas uma inteligência contendo as ideias divinas: sua essência transcenderia infinitamente as ideias. Trata-se de um Deus livre e pessoal que criou tudo pela sua vontade e sua sabedoria, e as ideias de todas as coisas estão contidas nessa vontade e nessa sabedoria, e não na essência divina. Por conseguinte, os Padres gregos recusaram ao mesmo tempo introduzir no ser interior de Deus o mundo inteligível, e de separar este último do sensível. Seu sentido do ser divino os fez recusar um Deus inteligível, seu sentido do criado os fez proibir reduzi-Lo a uma cópia de má qualidade.

O próprio Santo Agostinho, no fim de sua vida, em suas Retratações, rejeitou o dualismo implícito de seu “exemplarismo[11]” estático: não existem dois mundos, ele passou a afirmar[12]. Entretanto, seu ensinamento sobre as ideias contidas no próprio ser de Deus, ao mesmo tempo como determinações da essência e como causas exemplares das criaturas, se impôs à teologia ocidental e recebeu um lugar de honra na sistematização tomista. Para a ortodoxia, ao contrário, é impensável que Deus, para criar, tenha se contentado em produzir uma réplica de seu próprio pensamento, de Si mesmo, em definitivo. Isso equivaleria a retirar do mundo criado sua originalidade e seu valor, depreciar a criação, e também a Deus enquanto criador. Ora, toda a Bíblia, e sobretudo o livro de Jó, os Salmos, os Provérbios sublinham a novidade absoluta e esplêndida da criação, diante da qual os anjos gritavam de alegria, a criação-bênção do Gênesis, a criação-jogo da Sabedoria, o “hino composto maravilhosamente ao poder que mantém o universo”, como escreveu São Gregório de Nissa[13].

Os Padres gregos viram assim no platonismo a descoberta, embora parcial e perigosa, de uma realidade: não o dualismo, mas a transparência do visível ao invisível. Eles não hesitaram em utilizar sua linguagem, em falar em “paradigmas” e “ideias”. Mas eles impregnaram essa linguagem de um respeito inteiramente bíblico pelo sensível e pelo Deus vivo. Eles aproximaram o Logos da “palavra” evocada pelos Salmos, e, sobretudo, pelas palavras criadoras que ressoam no Gênesis. As ideias já não são mais uma determinação necessária do ser divino, mas a vontade criadora, a palavra viva de Deus. Elas já não constituem um “mundo subjacente”, mas a profundeza mesma da criatura, seu modo de participação da energia divina, sua vocação para o mais alto amor. A vontade criadora de Deus implica ordem e razão, ela insemina com ideias vivas o “espaçamento” da criação, ela exige para se derramar um “fora” da natureza divina. São João Damasceno, em sua exposição A Fé Ortodoxa, fala dessa maneira da criação em termos de ideias-vontades, ou antes, de pensamentos volitivos[14]. Assim as ideias divinas se tornam inseparáveis da intenção criadora. Sem dúvida Deus pensou o mundo eternamente, mas apenas em relação a esse “outro” que deveria começar, ou seja, fundar o tempo. Assim, segundo as Escrituras, foi a Sabedoria que estabeleceu os sete pilares da morada. Aqui retorna o mundo ideal de Platão: trata-se de um instrumento, não um além, da criação. Deus, para criar, pensa a criação, e esse pensamento concede realidade à existência das coisas. As ideias são a sabedoria dentro da obra divina, ou antes, são a sabedoria trabalhando: exemplarismo, se o quisermos, mas dinâmico, aquele de uma vontade-pensamento, de uma vontade-palavra, na qual se enraízam os logoi das coisas: pela palavra divina, o mundo é suspenso sobre seu próprio nada, e existe uma palavra para cada coisa, uma palavra em cada coisa, que representa sua norma de existência e sua via de transfiguração. O santo, cuja vontade criada opera livremente com a vontade-ideia de Deus – que a um tempo a funda e a solicita – percebe, pela contemplação desembaraçada de toda natureza, o mundo como uma “ordenação musical”: em cada coisa ele escuta uma palavra do Verbo, e as coisas já não são para ele, nessa decifração fervorosa do “Livro do mundo”, mais do que uma palavra permanente, pois “passarão o céu e a terra, mas não passarão as minhas palavras[15]”.


3.       Criação: tempo e eternidade

“No princípio era o Verbo”, escreveu São João, e o Gênesis afirma: “No princípio criou Deus o céu e a terra”. Orígenes identifica esses dois documentos: Deus, diz ele, criou tudo em seu Verbo, portanto Nele próprio, por toda a eternidade[16]. Maître Eckhart faz a mesma aproximação: o princípio evocado no duplo in principio é para Deus como que o intelecto que contém tanto o Verbo como o mundo. Arius, ao contrário, confundindo os termos gregos quase homônimos gennhsis (nascimento) e genesis (criação), interpreta São João em termos de gênese, e transforma o Filho em criatura.

Os Padres, para sublinhar simultaneamente a incognoscibilidade da essência divina e a divindade do Filho, distinguiram esses dois começos: distinção entre a obra da natureza, existência primordial de Deus, e a obra da vontade que implicou uma relação com o outro que estabeleceu essa mesma relação. São João evoca assim um começo eterno, o do Verbo, e a palavra, aqui analógica, denota uma relação eterna. Ao contrário, ela recebe todo o seu sentido no texto do Gênesis onde o surgimento do mundo suscita o tempo. Ontologicamente, o Gênesis vem depois em relação ao Prólogo de São João: os “dois começos” diferem, se que por isso sejam estranhos um ao outro, se nos lembrarmos do caráter intencional das ideias divinas, da Sabedoria a um tempo eterna e voltada para esse “outro” que deveria, no sentido próprio, começar. Pois a própria sabedoria proclamou: “O Senhor me deu as primícias de seus caminhos, como prelúdio de suas obras, desde sempre[17]”.

O “começo” do primeiro versículo do Gênesis significa, portanto, a criação do tempo. Assim se estabelece a relação entre o tempo e a eternidade, problema que é correlato ao da criação ex nihilo.

É preciso descartar dois obstáculos. O primeiro seria a tentativa de ser “grego”, vale dizer, colocar-se como um puro metafísico diante dos dados bíblicos, tentando reduzir pela razão o mistério de seu simbolismo, a ponto de tornar inútil o “salto da fé”. A teologia não precisa mendigar explicações aos filósofos: ela pode responder sozinha os seus problemas, não contra o mistério e a fé, mas alimentando a intelecção do mistério, transformando-a, pela fé, num engajamento completo da pessoa. A verdadeira teologia ultrapassa e transfigura a metafísica.

O outro obstáculo seria, para desgosto dos filósofos, o de ser unicamente “judeu”, ou seja, tomar ao pé da letra o simbolismo concreto da Escritura. Alguns exegetas modernos, sobretudo (mas não exclusivamente) os protestantes, pretendem cuidadosamente banir tudo o que possa lembrar, por pouco que seja, a filosofia. Assim Oscar Cullmann, em seu livro Cristo e o tempo, pretende rejeitar como platônicos ou helênicos todos os problemas da eternidade, e pensar a Bíblia exclusivamente a partir da rasa leitura de seu texto. Ora, a Bíblia é profundidade, mas suas partes mais antigas, sobretudo o Gênesis, procedem segundo uma lógica arcaica que não separa o concreto do abstrato, a imagem da ideia, o símbolo da realidade simbolizada. Uma lógica poética, se assim o quisermos, ou sacramental, cuja simplicidade não é senão aparente, prenhe que é que uma Palavra que dá à carne – indissociavelmente das palavras e das coisas – uma transparência incomparável. Nossa linguagem já não é assim: talvez ela seja menos total, mas é mais consciente e mais rigorosa, e assim ela despoja a intelecção arcaica de sua envoltória de carne, ela a captura no nível do pensamento: não do raciocínio, repetimos, mas da intelecção contemplativa. Um homem de nosso tempo, ao interpretar a Bíblia, deve ter a coragem de pensar: pois não se brinca de criança impunemente; se recusarmos abstrair a profundidade, abstrairemos, apesar disso, a superfície, em virtude da própria linguagem utilizada, e cairemos desse modo não no maravilhamento infantil do autor arcaico, mas em posições infantis. Então a eternidade se torna linear, como o tempo; nós a pensamos como uma linha indefinida! A existência temporal do mundo, da criação até a Parúsia, não passa de uma porção finita dessa linha... a eternidade se refere a um tempo sem começo nem fim, o infinito se reporta ao indefinido. Mas então, o que acontece com a transcendência? Para sublinhar a pobreza dessa filosofia (pois é disso que se trata) basta lembrar que o finito não tem medida comum com o infinito.

Nem gregos nem judeus, mas cristãos, os Padres deram a esse problema uma resposta que, longe de blasfemar a Bíblia pelo raciocínio ou pela platitude, a captou em sua profundidade.

Para São Basílio, o primeiro momento do tempo ainda não é o tempo. “Assim como o começo de um caminho ainda não é o caminho, nem o começo de uma casa é uma casa, também o começo do tempo não é ainda o tempo, nem mesmo uma parte mínima do tempo[18]”. Esse primeiro momento é impensável para nós, se definirmos o instante como sendo um ponto do tempo – representação falsa, como mostrou Santo Agostinho, porque o devir se torna passado sem cessar, sem que jamais possamos captar o presente dentro do tempo. Ora, o primeiro momento não é divisível: ele nem sequer é infinitamente pequeno, sem medida segundo o tempo: trata-se de um momento como um limite, portanto, sem duração.

Então, o que é o momento? Esse problema já havia preocupado o pensamento antigo. No impasse de uma racionalidade impiedosa, Zenon ligava o tempo ao absurdo, porque ele era, ou antes, deveria ser simultaneamente movimento e repouso. Mais sensível ao mistério, Platão teve pensamentos notáveis a respeito do “súbito” que, dizia ele, não constitui um tempo, mas um limite, e, como tal, uma abertura para a eternidade. O presente sem dimensão, sem duração, se revelava como presença da eternidade.

Este é justamente, para São Basílio, o primeiro momento no qual aparece todo o conjunto da existência, simbolizada pelo “céu e a terra”. A criatura surge num “súbito”, simultaneamente eterno e temporal, no limite entre a eternidade e o tempo. O “começo”, logicamente análogo à noção geométrica de limite (entre dois planos, por exemplo), é uma espécie de instantaneidade em si intemporal, mas cuja explosão criadora suscita o tempo. É o ponto de intersecção da vontade divina com aquilo que, daí por diante, virá e durará. A própria origem da criatura é assim uma mudança, um “começo”, e é por isso que o tempo é uma forma de existência criada, enquanto que a eternidade pertence propriamente a Deus. Mas essa contingência original não diminui absolutamente o ser criado: a criatura não desaparecerá jamais, porque a palavra de Deus é indestrutível[19].

O mundo assim criado permanecerá para sempre, mesmo depois que o tempo for abolido, ou antes, por ser ele em si uma criatura, ele se transformará na eterna novidade da epectase (lit. extensão, alongamento), da tensão do homem e seu progresso em direção a Deus.

Assim se unem no mesmo mistério o primeiro e o oitavo dia, que coincidem no domingo. Pois este é ao mesmo tempo o primeiro e o oitavo dia da semana, aquele da entrada na eternidade. O ciclo semanal se fecha no sábado, no repouso divino do sabbat; para além fica o domingo, dia da criação e da recriação do mundo, dia da Ressurreição, que é como o “súbito” da eternidade, o do primeiro e do último limite. Mais ainda do que os Alexandrinos, São Basílio desenvolveu essas noções sublinhando que diante desse mistério não devemos nos ajoelhar no domingo, pois esse é o momento em que escapamos da temporalidade do escravo para entrarmos simbolicamente no Reino onde o homem, em pé, salvo, participa da filiação do Ressuscitado.

É preciso evitar as categorias do tempo quando falamos em eternidade. Se a Bíblia acaso as utiliza, é para sublinhar por meio de um rico simbolismo a positividade do tempo no qual amadurecem os encontros entre Deus e o homem, sua autonomia ontológica como aventura da liberdade humana, sua possibilidade de transfiguração. Os Padres o sentiram tão fortemente, que evitaram definir a eternidade como o contrário do tempo. Se as categorias do tempo são o movimento, a mudança, a passagem de um estado a outro, não é possível opô-los termo a termo à imobilidade, à imutabilidade, à invariabilidade de uma eternidade estática: essa seria a eternidade do mundo inteligível de Platão, mas não a do Deus vivo. Se Deus vive na eternidade, essa eternidade viva deve ultrapassar a oposição entre o tempo móvel e a eternidade imóvel. São Máximo sublinha que a eternidade do mundo inteligível é uma eternidade criada; proporções, verdades, estruturas imutáveis do cosmos, geometria das ideias que ordenam a criação, rede das essências matemáticas – esse é o éon, a eternidade eônica, que começou com o tempo (donde seu nome, pois ele toma seu princípio “no século”, en aiwni, ao passar do não-ser ao ser), mas que permanece sem mudança, submetido a uma existência intemporal. Essa eternidade eônica é estável, imutável; é ela que dá coerência e inteligibilidade ao mundo. Sensível e inteligível, tempo e éon aderem um ao outro, pois, tendo ambos um começo, são mensuráveis. O éon é o tempo imóvel, o tempo é o éon em movimento. E somente sua coexistência, sua interpenetração, podem tornar o tempo pensável.

O éon está em estreita relação com o mundo angélico. Anjos e homens participam uns e outros do tempo e do éon, mas de maneiras diferentes. Enquanto que a condição humana é temporal, mas dentro de um tempo tornado inteligível pelo éon, os anjos só conheceram a livre escolha do tempo no momento de sua criação: uma espécie de temporalidade instantânea de onde saíram para um éon de louvor e serviço, ou de revolta e aversão. Entretanto, existe um processo no éon, pois a natureza angélica pode crescer sem cessar na aquisição dos bens eternos, embora sem sucessão temporal. Assim é que os anjos aparecem como universos inteligíveis que participam da função organizadora da eternidade eônica.

Quanto à eternidade divina, ela não pode ser definida nem pela mudança própria do tempo nem pela imutabilidade própria do éon. Ela transcende a ambos. O recurso necessário à apófase nos proíbe pensar o Deus vivo segundo a eternidade das leis matemáticas.

Dessa forma a teologia ortodoxa não conhece um inteligível criado. Senão a corporeidade, a única criada, apareceria como um mal relativo. O incriado ultrapassa todas as oposições, notadamente aquelas entre o inteligível e o sensível, entre o temporal e o eterno. E o problema do tempo nos liga a esse nada de onde a vontade divina nos suscita para fazer entrar um “outro que Deus” na eternidade.


4.       Criação: ordem cósmica

“No princípio criou Deus o céu e a terra[20]”. O céu e a terra de que se trata no primeiro dia da criação não são estes que vemos; pois o primeiro não apareceria senão com o “firmamento” do segundo dia, ou mesmo com os “luminares” do quarto dia, e a segunda com a separação do seco, ao terceiro dia. O “céu e a terra” do primeiro dia significam o conjunto do universo, o visível e o invisível, o inteligível e o corporal. O céu é toda a imensidão dos mundos espirituais que contêm nossa existência terrestre, as inumeráveis esferas angélicas. O relato do Gênesis os menciona, mas depois parece se desinteressar deles para falar apenas da terra. Algumas breves indicações sobre esses universos espirituais pontuam, mas sem se demorar muitos, os dois Testamentos. Assim é que São Gregório de Nissa verá nas noventa e nove ovelhas deixadas sobre a montanha[21] um símbolo do pleroma angélico[22]. De fato, em nossa decadência, não somos capazes sequer de situar nosso universo dentre essas imensidões espirituais.

Esse silêncio relativo das Escrituras é significativo. Ele sublinha a importância central da terra, e define um geocentrismo. Este não é o resíduo de uma cosmologia primitiva – e em que medida não serão essas cosmologias também simbólicas? – que contrastasse com nosso universo pós-copernicano.  Porque não se trata de um geocentrismo físico, mas espiritual: a terra é espiritualmente central, porque ela é o corpo do homem, e porque o homem, perfurando a indefinição do visível para religar ao invisível, é o ser central da criação, o ser que reúne em si o sensível e o inteligível, e que assim participa, de modo mais rico do que os anjos, de todas as ordens da “terra” e do “céu”. No centro do universo bate o coração do homem, e somente o santo, cujo coração purificado engloba as nebulosas mais longínquas, poderá saber se essas “esferas estraladas” não são como que os reflexos dos éons angélicos, que, por conseguinte, não precisam ser salvos.

Os mistérios da economia divina se desenvolvem, assim, sobre a terra, e é por isso que a Bíblia no liga à terra. Ela não apenas nos proíbe de nos dispersarmos pelas imensidões cósmicas – que, de resto, nossa natureza decaída é incapaz de captar senão sob seu aspecto de desagregação –, não apenas tenta nos subtrair à usurpação dos anjos decaídos para nos ligar a Deus somente, mas ainda, quando ela nos fala dos anjos, ela os mostra a nós voltados para a história terrestre na qual se insere a economia divina, como servidores (ou adversários) dessa economia.

Os seis dias do Gênesis nos descrevem assim o desenvolvimento da criação de um modo geocêntrico; seus seis dias, que simbolizam os dias da semana, são etapas menos cronológicas do que hierárquicas; diferenciando os elementos criados simultaneamente no primeiro dia, eles definem as esferas concêntricas da existência no centro das quais se encontra o homem que, virtualmente, as recapitula.

“Ora, a terra (aqui, o conjunto do nosso cosmo) estava deserta e vazia, e as trevas cobriam o abismo[23]”: trata-se da mistura dos elementos ainda indiferenciados. “O espírito de Deus planava sobre as águas”: como um pássaro chocando, diz São Basílio[24], e as águas designam aqui (tal como no Batismo) a plasticidade dos elementos.

“Deus disse: faça-se a luz. E a luz foi feita[25]”. Esta é a primeira ordem de Deus: sua palavra se introduz nos elementos primários e suscita, como primeira “informação” da existência, a luz. A luz constitui assim a essência do ser criado, a “força luminosa” suscitada pelos “logoi-vontades” que irradiam do Verbo e vão fecundar as trevas. Trata-se, por conseguinte, menos de uma vibração física do que de uma luz intelectual.

E Deus suscita a polaridade entre a luz e as trevas. “Deus separou a luz das trevas”. Estas pertencem ao ser criado e não devemos confundi-las com o “nada” original, esse misterioso limite ao qual se atribui hoje uma grosseria substancialidade. As trevas – às quais Deus chamou “noite” – que aparecem na última fase desse “primeiro dia” são o momento potencial da existência (ou do ser) criado. Elas representam uma realidade inteiramente boa, frutífera, como a terra que faz germinarem os grãos. Deus não produziu nada que fosse mau, e não existe lugar na existência primigênia para as trevas negativas. As trevas positivas do primeiro dia exprimem o mistério uterino da fertilidade, o princípio do mistério da vida que é próprio da terra e do ventre, a tudo o que é gerador no sentido positivo do termo, a toda substância de vida.

No segundo dia, Deus separou definitivamente as águas inferiores e as superiores, ou seja, o cosmo terrestre, limitado visualmente pela abóboda do firmamento, dos éons angélicos dos quais o Gênesis não voltará a falar.

No terceiro dia, sob a ordem divina, os elementos cósmicos cuja indistinção havia sido simbolizada pelas águas, começam a se separar. As águas, no sentido próprio, se reúnem, e a terra aparece. Ela recebe a ordem de produzir as plantas, ou seja, as primeiras formas de vida.

E a terra obedece ao Logos, princípio da vida, a um tempo segunda pessoa da Trindade e potência ordenadora da Trindade como um todo.

No quarto dia, aparecem os astros e sua revolução regular: a ordem do Logos se increve na ordem do céu visível. A vida, que surgiu no “dia” precedente, exige o tempo, e o ritmo dos dias e das noites. A simultaneidade criadora dos primeiros dias se torna, para a criatura, sucessão.

No quinto dia, a Palavra suscita o surgimento dos peixes e das aves: e é a água, do [elemento] úmido, que recebe de produzi-los. Uma aproximação curiosa se estabelece assim entre os seres que nadam e os que voam (cujas formas, de restos, não deixam de ter similaridades), entre a água e o ar, ambos fluídos e úmidos. Percebemos claramente aqui que não se trata de uma cosmogonia científica, no sentido moderno do termo, mas de outra visão da existência e de suas hierarquias, visão pela qual o mistério da forma, as “qualidades segundas” do sensível (que a ciência tanto negligencia) possuem um significado decisivo que reenvia para as profundezas inteligíveis, para os “logoi” da criação. Essa visão se tornou muito difícil para a nossa natureza decaída, mas podemos reencontrá-la na “nova criação” eclesial, simultaneamente nos cosmos litúrgico e sacramental, e na contemplação da natureza (qewria jusikh) dos ascetas.

No sexto dia a terra – o elemento terra – por sua vez recebeu a ordem de produzir os animais. Mas, subitamente, o tom do relato se modifica e um novo modo de criação aparece: “Façamos”, disse Deus. O que significa essa mudança?

A criação dos espíritos angélicos foi feita “em silêncio”, segundo Santo Isaac o Sírio[26]. A primeira palavra foi a luz. Em seguida Deus ordenou e abençoou: “Deus viu que aquilo era bom”. Mas, no sexto dia, depois da criação dos animais, quando Deus diz: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança[27]”, parece que ele se detém e que as pessoas da Trindade se acordam. O plural que aparece aqui mostra que Deus não é solitário. Trata-se do “Conselho divino”, cuja deliberação prova que a criação não é obra da necessidade, nem do arbítrio, mas é um ato livre e refletido. Por que a criação do homem, ao invés de uma simples ordem à terra – como aconteceu com a dos animais – exigiria esse Conselho dos Três? É porque o homem, ser pessoal, exige a afirmação do aspecto pessoal do Deus de quem ele será a imagem. As ordens de Deus suscitam as diversas partes da existência criada. Mas o homem não é uma parte, pois uma pessoa contém a tudo em si. Livre totalidade, ele nasce do “reflexo” de Deus como livre totalidade.

“E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; ele o criou homem e mulher[28]”. É assim que o mistério do singular e do plural no homem reflete o mistério do singular e do plural em Deus: assim como o princípio pessoal em Deus exige que a natureza una se expresse na diversidade das pessoas, o mesmo acontece com o homem, criado à imagem de Deus. A natureza humana não pode consistir na posse de uma mônada, ela exige não a solidão, mas a comunhão. A boa diversidade do amor. Pois a ordem divina: “Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e submetam-na[29]”, estabelece uma determinada correspondência entre a sexualidade e a dominação cósmica do primeiro casal, e a misteriosa superação em Deus da dualidade pela tríade. Mas esse “eros” paradisíaco teria sido tão diferente de nossa sexualidade decaída e devoradora quanto a realeza sacerdotal do homem sobre a existência criada o foi da entredevoração atual. Pois Deus especifica: “E a todos os animais selvagens (...) eu dou a verdura das plantas como alimento[30]”. O relato da criação, não o esqueçamos, se exprime nas categorias do mundo: decaído. Ora, a queda alterou até mesmo o sentido das palavras. A sexualidade, essa “multiplicação” que Deus ordenou e abençoou, aparece ao nosso universo como algo irremediavelmente ligado à morte e à separação. É porque a condição do homem conheceu, até em sua realidade biológica, uma mutação catastrófica. Mas o amor humano não estaria prenhe de tal nostalgia paradisíaca se nele não subsistisse dolorosamente a lembrança de uma condição primeira na qual o outro e o mundo eram conhecidos desde o interior, onde, portanto, a morte não existia.

“E Deus viu tudo o que Ele havia feito, e viu que tudo era muito bom[31]”: dupla bênção, mas que assimila o homem às demais criaturas terrestres surgidas também no sexto dia.

Agora, após esse relato da criação, que constitui o primeiro capítulo do Gênesis, aparece um novo relato no capítulo segundo. O desenvolvimento da criação encontra-se aqui em termos completamente diferentes. Para a crítica bíblica, trata-se da justaposição de tradições diversas, de dois relatos separados e costurados a posteriori. Isso sem dúvida é verdadeiro no plano material da formação do texto, mas para nós essa própria justaposição é obra do Espírito: não existe acaso na Bíblia e tudo nela está carregado de sentido. A Bíblia não nasceu da vontade nem das contingências humanas, mas do Espírito Santo, que lhe deu sua coerência profunda. Não podemos separar a Bíblia da Igreja, nem compreendê-la fora dela. O que nos interessa, portanto, não é saber como dois relatos da criação foram costurados, mas porque, e qual o sentido profundo que transparece dessa aproximação.

Ora, justamente, enquanto que o primeiro relato assimilava, numa bênção comum, o homem aos demais seres terrestres, e sublinhava, sobre o plano da natureza, a unidade antropocósmica, o segundo relato define claramente o lugar do homem. Com efeito, sua perspectiva é completamente diferente: o homem aparece aqui não apenas como o ápice, mas também como o princípio da criação. Desde o início, somo informados de que as plantas não existiam porque o homem ainda não havia sido criado: “Não existia o homem para trabalhar a terra[32]”. Em seguida, a criação do homem é relatada em detalhe: “Então Deus formou o homem a partir do pó da terra e soprou em suas narinas o sopro da vida, e o homem se tornou uma alma viva[33]”. O homem foi assim moldado pelo próprio Deus, por suas mãos, como sublinharam os Padres, e não suscitado apenas por seu Verbo – o que nos remete ao “Conselho” do primeiro relato, porque o Filho e o Espírito, segundo Santo Irineu, são as duas “mãos” de Deus – e foi o próprio sopro de Deus que transformou esse barro em “alma viva”.

Alguns pretenderam ver nessa “alma viva” a alma espiritual do homem, e assim fazer de nosso intelecto uma emanação de Deus. Mas, se nossa alma fosse incriada, nós seríamos o próprio Deus, apenas acrescido do peso do barro terrestre, e toda a criação não passaria de um jogo ilusório. E, no entanto, São Gregório de Nazianze pode falar com justeza da presença de uma “parcela de divindade[34]” no homem. É que a mesma graça incriada está implicada no próprio ato criador, e a alma recebe ao mesmo tempo a vida e a graça: pois a graça é o sopro de Deus, o “jorro da invisível Divindade”, a presença vivificante do Espírito Santo. Se o homem se torna vivo quando Deus lhe insuflou o sopro da vida, é porque a graça do Espírito Santo é o verdadeiro princípio de nossa existência. Quanto à aproximação entre o sopro e as narinas, portanto entre o sopro de Deus e a respiração humana, ela se fundamenta sobre o simbolismo concreto da cosmologia bíblica, e não representa uma metáfora, mas uma analogia real que encontra hoje em dia sua aplicação na ascese ortodoxa.

O mundo animal, no segundo relato, aparece depois do homem e em relação a ele, para que ele não esteja só e que tenha “um auxiliar que lhe seja semelhante[35]”. E Adão nomeou os animais que Deus levou até ele. Pois o mundo foi feito por Deus para ser perfeito para o homem. E o homem conhece desde o interior os seres vivos, ele exprime seu segredo, ele ordena sua profusão: poeta e sacerdote, poeta para Deus, pois Deus “os levou ao homem para ver como ele os chamaria[36]”. Então a linguagem coincidia com o próprio ser das coisas, e essa linguagem paradisíaca irremediavelmente perdida não pode ser encontrada pelos caçadores de ocultismo que a procuram, mas apenas pelos “corações caridosos” de que fala Santo Isaac o Sírio, esses corações “que se inflamam de amor por toda a criação, pelos homens, pelos pássaros, pelos animais, pelos demônios e por todas as criaturas[37]”. As feras vivem em paz ao redor dos santos, como no tempo em que Adão as nomeava.

O homem aparece assim, nesse segundo relato da criação, como a hipóstase do cosmo terrestre: a natureza terrestre é uma continuidade de seu corpo.

Mas somente um ser da mesma natureza que o homem poderia ser seu auxiliar, “um auxiliar semelhante a ele”. Então Deus fez com que o homem caísse num sono extático, e, do mais íntimo de sua natureza – o “lado” simbólico, próximo ao coração – formou uma mulher e a entregou ao homem: e o homem reconheceu que Eva era “consubstancial”, “os ossos de seus ossos e a carne de sua carne[38]”. Os Padres aproximam a processão do Espírito Santo daquilo que eles chamam de “processão” de Eva, diferente de Adão e, entretanto, da mesma natureza que ele: unidade de natureza e pluralidade de pessoas que evocam para nós os mistérios do Novo Testamento.

Assim como o Espírito não é inferior àquele do qual ele procede, a mulher não é inferior ao homem: pois o amor exige a igualdade e somente ele justifica essa polarização primordial, fonte de toda a diversidade do gênero humano.



[1] João Damasceno, A Fé Ortodoxa, I, 13.
[2] II Macabeus, 7: 28.
[3] Agostinho de Hipona, De Genesi ad litteram I, 15, 29.
[4] João Damasceno, A Fé Ortodoxa, I, 8.
[5] Citado por G. FLorovsky, As vias da teologia russa, Paris, 1937.
[6] Ver p.ex. Orígenes, Sobre os princípios I, 3, 8; Atanásio de Alexandria, Cartas a Serapião I, 24.
[7] Irineu de Lyon, Contra as Heresias IV, 7, 4.
[8] Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito Santo, XVI, 38.
[9] Gregório de Nazianze, Discurso 30, 20.
[10] Ibid.
[11] Exemplarismo: perspectiva filosófica que consiste em ver em cada realidade física a manifestação, a atualização, o símbolo de  uma realidade metafísica.
[12] Agostinho de Hipona, Retratações II, 3, 2.
[13] Gregório de Nissa, In inscriptiones Psalmorum III, 7.
[14] João Damasceno, A Fé Ortodoxa II, 2.
[15] Marcos 13: 31.
[16] Ver Orígenes, Comentários sobre São João I, XIX, 113.
[17] Provérbios 8: 22.
[18] Basílio de Cesareia, Homilias sobre o Hexameron I, 6.
[19] I Pedro 1: 25.
[20] Gênesis 1: 1.
[21] Cf. Mateus 18: 12-14.
[22] Gregório de Nissa, Homilias sobre o Cântico dos Cânticos II.
[23] Gênesis 1: 2.
[24] Basílio de Cesareia, Homilias sobre o Hexameron II, 6.
[25] Gênesis 1: 3.
[26] Isaac o Sírio, Discursos ascéticos.
[27] Gênesis 1: 26.
[28] Gênesis 1: 27.
[29] Gênesis 1: 28.
[30] Gênesis 1: 30.
[31] Gênesis 1: 31.
[32] Gênesis 2: 5.
[33] Gênesis 2: 7.
[34] Gregório de Nazianze, Poemas dogmáticos, 8.
[35] Gênesis 2: 18.
[36] Gênesis 2: 19.
[37] Isaac o Sírio, Discursos ascéticos, 74.
[38] Gênesis 2: 23.

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