Capítulo I
Introdução
1.
A Teologia Cristã entre ciência e contemplação
A gnose autêntica é inseparável de um dom de ciência e de uma
iluminação pela graça que transforma a inteligência. E, como o objeto da
contemplação é uma presença pessoal, a verdadeira gnose implica o reencontro e
a reciprocidade entre o espírito e o objeto dessa contemplação; ela implica a
fé como adesão pessoal à presença pessoal do Deus que se revela.
A gnose, em Clemente de Alexandria e Orígenes, se identifica com a
contemplação. No sentido estrito, entre os ascetas do Oriente cristão, ela
constitui o ápice de uma vida de oração; ela é dada por Deus ao homem e
representa a verdadeira teologia. Conhecemos a fórmula de Evagro, que se tornou
adágio: “É teólogo aquele que tem a oração pura, e tem a oração pura aquele que
é teólogo[1]”.
Mas a oração pura implica o estado de silêncio. Os hesiquiastas são os
“silenciosos”. Reencontro e dom, a gnose se situa além do intelecto (nous), ela exige que se ultrapasse, e
mesmo que se detenha, o pensamento.
Portanto, essa noção da gnose silenciosa não corresponde diretamente à
teologia ensinada que pode e deve se exprimir pela palavra. O fundamento do
ensinamento teológico é a encarnação do Verbo, assim como acontece com a
iconografia. Pelo fato de que a Palavra se encarnou, ela pode ser pensada e
ensinada, e do mesmo modo pode ser pintada.
Mas a encarnação do Verbo não teve outra finalidade do que a de nos
conduzir ao Pai, no Espírito. Assim, um certo caráter “gnóstico” deve ser
próprio a toda teologia, na medida em que esta constitui sempre uma abertura de
nosso pensamento a uma realidade que o ultrapassa, a um novo modo de pensar no
qual o pensamento não inclui, não se apodera mas se vê incluído, captado,
mortificado e vivificado pela fé contemplativa. Dessa forma, o pensamento
teológico se situa entre a gnose (carisma e silêncio) e a episteme (ciência e
raciocínio), sendo que essas duas palavras estabelecem duas concepções
diferentes do conhecimento.
A teologia deve encaminhar o espírito para a contemplação, para a
prece pura na qual o pensamento se vê detido. Seres pensantes que somos, temos
necessidade do pensamento teológico para ultrapassarmos o pensamento em direção
ao inefável. Assim, a teologia é indispensável ao cristão pensante, consciente.
Ela é simultaneamente uma necessidade e um obstáculo. Os Padres não falam como
teólogos quando se dirigem aos simples (embora uma certa teologia sempre esteja
presente nos seus propósitos). A Revelação se dirige não apenas ao sentimento,
mas também à inteligência.
A gnose, como contemplação, é uma saída para o estado do século
futuro, uma visão daquilo que está além da história e que a realiza: a
realidade escatológica. A teologia que é ensinada, por sua vez, é feita para o
trabalho histórico deste mundo. Ela deve se adaptar aos meios e aos momentos.
Ela toca a contemplação sem se demorar nela, sem deixar o domínio do pensamento
e da palavra, mas buscando sempre pensar aquilo que está além dos conceitos,
buscando exprimir o inefável. Participando ao mesmo tempo da gnose e da
episteme, a teologia não pertence verdadeiramente nem a uma, nem à outra.
Diádoco de Foticéia escreveu: “Todos os dons de nosso Deus são
excelentes e nos trazem todos os bens, mas nenhum inflama tanto, nem move tanto
nosso coração ao amor de sua bondade como a teologia[2]”.
Assim é que a teologia deve ser louvor e nos dispor a louvar a Deus. Temos o exemplo
da poesia inspirada de São Gregório Nazianze e de São Simeão o Novo Teólogo.
São João Damasceno é também o autor de hinos magníficos que ainda hoje cantamos
em nossos ofícios litúrgicos. Mesmos suas exposições mais escolásticas deixam
espaço para voos poéticos. O intelecto, diz Diádoco, permanece aprisionado na
prece enquanto ainda não adquiriu a oração pura, e ele busca a teologia que lhe
permite “dilatar-se[3]”.
Mas é preciso saber que existe outra prece acima dessa “dilatação” – a prece
daqueles que, em toda intimidade, estão cheios da graça divina. A gnose –
oração e contemplação – é assim superior ao pensamento teológico, pois este não
passa de uma simples episteme.
***
Então, como situar de forma apropriada a teologia ensinada? A gnose
fornece um conhecimento inexprimível – veja-se São Paulo sobre as “palavras
indizíveis” que ele ouviu no terceiro céu, aquele que ultrapassa a oposição
entre o céu sensível e o inteligível, e que representa assim o próprio divino,
o incriado – enquanto que a episteme é uma eterna tentação para o teólogo.
O termo correto seria “sofia”. Claro, a Sabedoria é um atributo
divino. Mas seria preciso tomar essa palavra em seu sentido primitivo, que, na
Grécia antiga, designava uma determinada qualidade humana, sobretudo a habilidade
técnica. Em Homero, a “sofia” qualifica a habilidade do artesão, do artista ou
do poeta. Entecnos sojia, diziam os
gregos. Os Setenta traduziram por “sofia” a palavra hebraica que designa a Sabedoria
divina, sublinhando a técnica perfeita de Deus em sua obra. Sojia: espírito engenhoso. Numa ciência
qualquer, sobretudo numa técnica, ela designa a aplicação dos princípios.
Podemos evocar o mito da “sofia” dada aos homens por meio da fraude, que Platão
nos conta em seu diálogo de Protágoras[4].
Zeus havia pedido a dois irmãos dois titãs, que empoderassem as criaturas.
Tratava-se de Epimeteu (literalmente: aquele que reflete a posteriori) e de Prometeu (literalmente: aquele que reflete a priori). O primeiro distribuiu os dons
naturais aos animais, mas nada deixou para os homens. Prometeu, então, roubou
de Atenas e Hefaistos a Entecnos sojia e o fogo
que é inseparável dela. Assim o homem se tornou homo faber – engenhoso e engenheiro.
A
este sentido se reúne o de “economia”, ou seja, uma certa prudência: jronhsis e sojia são assim
próximos. Precisamos ser “prudentes como as serpentes[5]”,
disse o Senhor: a serpente é sábia, prudente. Mas, ao mesmo tempo, devemos ter
a simplicidade da pomba[6]. É
necessária uma sabedoria sinuosa, tanto quanto uma simplicidade que permita
contornar o mal. Duas qualidades particularmente requeridas para os sucessores
dos Apóstolos, os bispos.
A
teologia, como sojia, se aparenta simultaneamente da gnose
e da episteme. Ela raciocina, mas busca acima de tudo ultrapassar os conceitos.
Aqui intervém um momento necessário de xeque do pensamento humano diante do
objeto que ele pretende conhecer. Uma teologia que se constitua em sistema será
sempre perigosa. Ela aprisiona numa esfera fechada de pensamento aquilo para o
que, ao contrário, o pensamento deveria se abrir.
Em
São Paulo, o conhecimento de Deus se inscreve numa relação pessoal expressa em
termos de reciprocidade: reciprocidade com o objeto da teologia (que é o
sujeito), e também para com aqueles a quem se dirige a teologia. No alto se
encontra a comunhão: eu conheço como sou conhecido. Esse mistério da comunhão
parece ausente do pensamento grego pré-cristão; não o encontramos senão em
Filon, num contexto que é parcialmente bíblico. A teologia se situa assim numa
relação de revelação na qual a iniciativa pertence a Deus, mas implica a
resposta humana – coisa que os teólogos da Reforma muitas vezes esqueceram. O engajamento
de Deus exige nosso engajamento: “Ele nos amou primeiro[7]”.
“Nisto se manifestou o amor de Deus por nós: ele nos enviou seu Filho único...[8]”.
A busca teológica supõe assim a vinda prévia daquilo que está sendo buscado –
Daquele que já deve estar presente em nós. Ela implica uma “percepção pela fé”.
Claro que a fé está presente em todos os caminhos e em todas as ciências do
espírito humano, mas como suposição, como hipótese de trabalho: o momento da fé
se inicia por uma incerteza que não será retirada a não ser pela prova. A fé
cristã, ao contrário, é a adesão a uma presença fornecida pela presença, de tal
modo que a certeza, aqui, vem primeiro.
No
batismo, dizia Santo Irineu, recebemos o “cânon imutável da verdade” (regulam veritatis immobilem)[9].
Trata-se em primeiro lugar da regra de fé que é transmitida ao iniciado. Mas
essa regula fidei (Tertuliano,
Irineu) implica a própria faculdade de recebê-la. Os heréticos, dizia Santo
Irineu, que “perverteram a regra da verdade, pregam a si mesmos” acreditando
pregar o Cristianismo[10].
Essa faculdade – a fé – se deve à presença do Espírito. A fé, enquanto
participação ontológica incluída num encontro pessoal, é a condição primeira do
conhecimento teológico.
A
teologia como sojia significa, portanto, a habilidade de
adaptar seu próprio pensamento à Revelação, de encontrar as palavras hábeis e
inspiradas para testemunhar na linguagem – mas não nos limites – do pensamento
humano ao responder às exigências do momento. Trata-se de uma reconstrução
interior de nossas faculdades de conhecer, condicionadas pela presença, em nós,
do Espírito Santo: “Vocês receberam a unção do Santo e conhecem a tudo[11]”.
“A unção que vocês receberam Dele permanece em vocês, e vocês não têm
necessidade de serem instruídos. Como sua unção os instrui em todas as coisas
(...) permaneçam Nele[12]”.
A
unção, crisma, significa aqui a presença do Espírito. Os cristãos são os
ungidos – os cristos – do Senhor. Ninguém, portanto, poderá nos ensinar a
verdade, se essa presença que nos dá todo o conhecimento já não estiver em nós.
Existe aí uma verdadeira transposição da anamnese platônica, porque o crisma
nos dá o conhecimento de todas as coisas. O cristão conhece tudo, mas a
teologia é necessária para atualizar esse conhecimento.
Entre
os profetas, sobretudo em Jeremias, encontramos já a noção do conhecimento que
será oferecido a todos os homens pelo Espírito de Deus: “Eu darei a eles leis à
sua inteligência, e as escreverei em seus corações; e serei para eles um Deus,
e eles serão para mim um povo. (...) Todos me conhecerão, do menor ao maior
dentre eles[13]”.
Fora
da fé, a teologia não tem nenhum sentido: ela não pode se fundamentar senão
sobre a evidência interior da verdade no Espírito, pois é a própria Verdade
quem ensina. A regula fidei é a
primeira atuação dessa evidência. Santo Agostinho sublinha essa evidência em
suas homilias, nas quais ele evoca o Mestre interior: “Eu falei a todos. Porém,
aqueles nos quais na unção interior não fala, os que não foram ensinados
interiormente pelo Espírito Santo retornam para suas casas sem instrução (...)
O trono daquele que instrui os corações está no céu. É por isso que Ele próprio
disse nos Evangelhos: ‘Não se intitulem mestres sobre a terra. Um só é seu
mestre, o Cristo[14]’.
(...) Que Cristo esteja em seu coração! Que sua unção esteja em seu coração, a
fim de que seu coração sedento não permaneça na solidão, privado das fontes
onde possa saciar sua sede. O mestre que ensina está no seu interior; é Cristo
quem ensina; é sua inspiração que ensina. Onde não existe nem sua inspiração,
nem sua unção, percutimos em vão nossas palavras no exterior[15]”.
Ninguém,
portanto, pode se arrogar o direito exclusivo de ensinar na Igreja. O Espírito
é dado a todos, unção do único Mestre, Cristo. O Espírito, que inspira aquele
que ensina, deve se encontrar também naqueles que escuta, do contrário eles não
entenderam nada. Eles serão assim não apenas ouvintes, mas juízes. Cada um deve
se tornar uma testemunha da verdade. O ensinamento exterior é necessário para
atualizar o dom do Espírito, para santificar nosso intelecto. A fé do carvoeiro
não basta, sobretudo em um pastor! Se quisermos que o pensamento participe
também da fé, o ensinamento é necessário. A fé deve ser consciente, ela deve
atualizar, por uma consciência existencial, a “subsistência das coisas que
esperamos[16]”,
sua presença em nós.
O
esforço do pensamento inspirado atualiza aquilo que está presente em nós. A fé
faz frutificar o intelecto mediante uma nova relação ontológica com Deus, uma
relação própria ao cristão, que coloca em nós o critério da verdade. Deus nos
dala por seu Filho, que realiza a Revelação por meio da Encarnação. Esta se
revela, e ela constitui a própria Revelação. Pensar teologicamente não é pensar
essa revelação, é pensar através dela.
2.
Os dois monoteísmos
Deus
não é objeto de uma ciência, e a teologia se diferencia radicalmente do
pensamento dos filósofos: o teólogo não busca a Deus como quem procura um
objeto, mas é arrebatado por ele como somos arrebatados por uma pessoa. E é por
ter sido primeiro encontrado por Deus – porque Deus, por assim dizer, foi
buscá-lo no encontro com a Revelação – que ele pode então buscar a Deus, como
quem busca uma presença com todo o seu ser (portanto, com toda a sua
inteligência). O Deus do teólogo é um “Tu[17]”,
é o Deus vivo da Bíblia, certamente o Absoluto, mas um Absoluto pessoal que se
pode apalpar na prece.
Fora
da tradição judaico-cristã, também podemos encontrar a relação “eu-Você” entre
o fiel e um deus pessoal. Mas nesses casos esse deus não é o Deus supremo e
único, em geral ele não passa de um dos numerosos personagens divinos de algum
politeísmo. No mais das vezes o politeísmo constitui um aspecto inferior do
monoteísmo; mas o absoluto no qual os “deuses” são reabsorvidos jamais é
pessoal. Os “deuses”, e mesmo, como no caso da Índia, o deus “pessoal”, não são
senão aspectos, não passam de manifestações de um absoluto impessoal;
manifestações tão contingentes, para o Oriente não cristão, quanto o mundo para
o qual se apresentam, como elas chamado a desaparecer, reabsorvido na pura
interioridade, numa identidade total. E essa identidade ignora o “outro”,
engolindo toda relação pessoal.
Da
mesma forma, na religião da Grécia antiga, os deuses deviam se submeter a uma
“Necessidade” anônima e dominante. Os filósofos colocavam acima de seus deuses
não uma pessoa, mas um universo superior de estabilidade e luz, a esfera de
beleza de um ser impessoal. Era assim em Platão, nos estoicos e mesmo em
Aristóteles. E o neoplatonismo
Acabou
por desembocar numa “mística” da absorção que não deixa de lembrar a Índia.
Podemos
nos deter um pouco em Plotino, que representa talvez o ápice da Antiguidade não
bíblica, e cujo pensamento será assimilado e utilizado por numerosos Padres
(recebendo por intermédio deles uma verdadeira realização).
Para
Plotino, o primeiro grau do conhecimento se situa na “Alma do mundo”, que
integra a unidade diversa do cosmo e da qual os deuses são os correspondentes
aspectos.
Acima
disso, tanto no homem como no coração do mundo, está a “Inteligência”, o grau
mais elevado da unidade. Este nível do “Nous” é também o do ser, ou antes,
existe uma identidade entre o Nous e o ser, entre o pensamento e seu objeto; o
objeto existe porque é pensado, e o pensamento, porque o objeto, em definitivo,
se remete a uma essência inteligível. Essa identidade, porém, não é absoluta,
porque ela se transcreve numa reciprocidade alternada na qual ainda subsiste
uma alteridade. Para se conhecer plenamente o Um, é preciso assim transcender o
Nous.
Quando
se ultrapassa o pensamento e a realidade pensada, a última díade do ser e da
inteligência, caímos na não-inteligência e no não-ser, numa negação que aqui
sublinha um “mais”, uma transcendência. Mas então impõe-se o silêncio: não se
pode nomear o Um inefável, porque ele não se opõe a nada, dado que nada o
limita. O único meio de atingi-lo é não conhecê-lo: o não-conhecimento, varando
além de tudo, é o êxtase. A filosofia culmina e se suicida no umbral do
desconhecível. Não se pode conhecer o Um antes e depois do êxtase, o que
significa que não se pode conhecê-lo, porque não existe unidade fora do êxtase.
E durante o êxtase não existe o “outro”, ou seja, conhecimento. Em quatro
ocasiões em sua vida Plotino conheceu o êxtase, nos conta Porfírio. Mas esse
conhecimento da natureza divina se realiza e se anula ao mesmo tempo na
impessoalidade do desconhecimento.
Face
à maior parte das religiões e das metafísicas nas quais a relação “eu-Você”
desaparece a partir do momento que se aborda a esfera própria da divindade, a
Bíblia afirma a originalidade irredutível do Deus pessoal, a um tempo absoluto
e pessoal. Mas então aparece outra limitação em relação à revelação plena do
Cristianismo: o Deus dos Judeus esconde as profundezas de sua natureza; ele não
se manifesta senão por sua autoridade, e seu próprio Nome é impronunciável. Ele
está envolto numa luz inacessível e o homem não pode vê-lo sem morrer: nem
reciprocidade verdadeira, nem um face-a-face são possíveis entre essa
terrificante Mônada divina e a humildade do criado. Vinda de Deus somente, a
palavra; vinda do homem, somente a obscuridade da obediência e da fé. A
“teologia”, no sentido próprio, como a entendem os Padres, se manteve fechada
para Israel.
Assim,
fora do Cristianismo, vemos se opor:
®
Entre os Judeus (e mais tarde no Islamismo,
que é “abrahâmico”) um monoteísmo que afirma o caráter pessoal de Deus, mas que
ignora a sua natureza: o Deus vivo, mas não a vida divina;
®
No mundo helênico (e hoje nas tradições
estranhas ao semitismo), um monoteísmo ou “henoteísmo” metafísico que apresenta
a natureza do Absoluto, mas que não pode acessar o Absoluto senão dissolvendo a
própria noção de pessoa.
De
um lado, uma mística da absorção na qual o conhecimento de Deus é considerado
impossível porque sua própria pessoa deve se reabsorver no inefável, e, de
outro, uma obediência pessoal ao Deus impessoal, mas sem uma noção da natureza
divina, um conhecimento interditado para a pessoa, como se encerrado sobre si
mesmo, de Deus.
De
um lado, a natureza sufocando a pessoa, de outro a pessoa divina escondendo a
natureza. Assim se opõem, fora do Cristianismo, um conhecimento impossível
(porque nega o conhecido e o conhecedor) e um conhecimento proibido (por não
existir uma medida comum, de mediação, entre Criador e criatura).
O
Cristianismo liberta o homem dessas duas limitações, ao revelar plenamente, a
um tempo, o Deus pessoal e a sua natureza. Ele realiza dessa forma o melhor de
Israel e o melhor das demais religiões ou metafísicas, não como uma síntese
cultural, mas como um “fato dogmático” em Cristo e por Cristo: nele, com
efeito, se unem a humanidade e a divindade, e a natureza divina se comunica com
a natureza humana para deificá-la: é a resposta a Israel. Mas o Filho é
consubstancial ao Pai e ao Espírito, e essa é a resposta às metafísicas
impessoais; sua plenitude, ao contrário, reside na comunicação total das
pessoas divinas entre si, e sua comunicação com o homem se faz também numa
relação pessoal.
Mas
essas respostas são difíceis de entender e essa realização em Cristo é também
“escândalo” e “loucura”:
®
“Escândalo para os Judeus[18]”:
como poderia o único, o Transcendente, o Deus sem medida comum com o homem, ter
um Filho, ele próprio Deus, e, no entanto, homem, humilhado e crucificado?
®
“Loucura para os Gregos[19]”:
como o Absoluto impessoal poderia se encarnar numa pessoa, como a Eternidade
imóvel poderia entrar no tempo? Como poderia Deus se tornar justamente aquilo
que deve ser ultrapassado para se fundir Nele?
Assim
é que o Cristianismo realiza e escandaliza ao mesmo tempo. Mas, seja qual for a
atitude dos “gregos” e dos “judeus” que recusam Cristo, na Igreja – vale dizer,
no corpo desse Verbo que recapitula todas as coisas, que retoma, purifica e
coloca em seu devido lugar toda verdade – não deve haver nenhuma diferença
entre Gregos e Judeus.
Aqui
aparecem dois perigos: o primeiro consiste em que o teólogo seja um “grego”
dentro da Igreja, que se deixa dominar por seus modos de expressão a ponto de
intelectualizar a Revelação, e de perder ao mesmo tempo o sentido bíblico do
concreto e esse caráter existencial do encontro com Deus que o aparente
antropomorfismo de Israel oculta. A esse perigo, que vai da escolástica aos
teólogos eruditos do século XIX corresponde em nossa época um risco inverso: o
de um biblicismo mal construído, que pretende opor a tradição hebraica à
filosofia grega, e que tenta refazer a teologia em categorias puramente
semíticas.
Mas
a teologia deve ser uma expressão universal. Não é por acaso que Deus escolheu
os Padres da Igreja num meio grego: a exigência de lucidez da filosofia e a
exigência de profundidade da gnose os fizeram purificar e santificar a
linguagem dos filósofos e dos místicos para expressar a mensagem cristã, que em
todo o seu alcance universal inclui, mas ainda ultrapassa, o velho Israel.
3.
Via negativa e via positiva
Deus
é conhecido na Revelação como numa relação pessoal. A Revelação é sempre
revelação a alguém, ela é feita de encontros que se organizam numa história. A
Revelação em sua totalidade é, assim, uma história, ela é a realidade sagrada
da história, da criação até a Parúsia.
A
Revelação é, portanto, uma relação “teocósmica” que nos inclui. Não apenas não
podemos conhecer a Deus fora dela, mas sequer podemos julgá-la “objetivamente”
desde fora: a Revelação não conhece um “desde fora”, ela é essa relação entre
Deus e o mundo no interior do qual, queiramos ou não, nos encontramos.
Mas
na imanência da Revelação, Deus se afirma transcendente em relação à criação.
Se definirmos como transcendente aquilo que escapa ao campo de nosso
conhecimento e de nossa experiência, devemos dizer que Deus não apenas não faz
parte deste mundo como ainda transcende sua própria revelação.
Deus
é imanente e transcendente ao mesmo tempo: a imanência e a transcendência não
estão mutuamente implicadas. A pura transcendência é impossível: se concebermos
a Deus como a causa transcendente do universo, ele não pode ser puramente
transcendente porque a própria ideia de causa implica a de efeito. Na dialética
da Revelação, a imanência nos permite nomear a transcendência. Mas não poderia
existir imanência alguma se a transcendência não fosse, no fundo, inacessível,
além da oposição entre “transcendente” e “imanente”.
É
por isso que não podemos pensar em Deus em si mesmo, em sua essência e em seu
secreto. Tentar pensar em Deus em si nos reduz ao silêncio, pois nem o
pensamento nem a linguagem podem aprisionar o infinito em conceitos que, para
definir, limitam. É por isso que os Padres gregos recorreram à via negativa
para o conhecimento de Deus.
A
via negativa (apofática) se esforça por conhecer a Deus não naquilo que ele é
(ou seja, em relação à nossa experiência enquanto criaturas), mas naquilo que
ele não é. Ela procede por uma série de negações. Os neoplatônicos e a Índia
utilizam a mesma técnica, pois ela se impõe a todo pensamento que tende para
Deus, que se eleva em Sua direção. Ela culmina em Plotino no suicídio da
filosofia, na metamorfose do filósofo em místico. Mas fora do Cristianismo ela
não desemboca senão numa despersonalização de Deus e do homem que o busca.
Existe um abismo que separa essa busca da teologia cristã, mesmo quando esta
parece seguir a via de Plotino. Um Gregório de Nissa, com efeito, ou um
Pseudo-Denis o Areopagita (em seu tratado de Teologia Mística) não veem no apofatismo a Revelação, mas uma
condição necessária para receber a Revelação: eles desembocam na presença
pessoal do Deus oculto. Neles, a via negativa não se resolve num vazio onde se
reabsorveriam sujeito e objeto; a pessoa humana não se dissolve, mas ascende a
um face-a-face com Deus, a uma união sem confusão segundo a graça.
O
apofatismo consiste em negar aquilo que Deus não é; eliminamos em primeiro
lugar todo o criado, mesmo a glória cósmica dos céus estrelados e a luz
inteligível dos céus angélicos. Depois excluímos os atributos mais elevados, a
bondade, o amor, a sabedoria. Por fim excluímos o próprio ser. Deus não é nada
disso; em sua própria natureza, Ele é incognoscível, Ele “não é”. Mas – e eis
todo o paradoxo cristão – ele é este Deus a quem eu digo “Você”, que me chama,
que eu conheço como o Pessoal, o Vivo. Na liturgia de São João Crisóstomo,
antes do Pai Nosso, rezamos: “E concede-nos, Senhor, ousar invocá-lo com
confiança e, sem temor, chamá-lo de Pai, a Você o Deus celeste...”. O texto
grego diz exatamente: “epouranion qeon” – ou
seja, o Deus supraceleste, que não se pode nomear, o Deus apofático. Oramos
para ter a audácia e a simplicidade de dizer “Você” a este Deus incognoscível
que ultrapassa todos os nomes.
Assim
é que, ao lado da via negativa, se abre a via positiva, “catafática”. Deus, que
é o Deus oculto, para além daquilo que O revela, é também Aquele que se revela.
Ele é Sabedoria, Amor, Bondade. Mas sua natureza permanece incognoscível em si
mesma, e é justamente por isso que Ele se revela. A memória permanente do
apofatismo deve corrigir a via catafática. Ela deve purificar nossos conceitos
pelo contato com o inacessível, e impedir que eles se fechem em seu sentido
limitado. É claro que Deus é sábio, mas não no sentido banal de um paisano ou
de um filósofo. E sua sabedoria, no limite, não é uma necessidade interna de
sua natureza. Os nomes mais altos, mesmo o amor, não exprimem nem esgotam a
essência divina. Eles constituem os atributos por meio dos quais a divindade se
comunica sem que jamais sua fonte secreta, sua natureza possa secar, possa se
objetivar sob nossa visão. Nossos conceitos purificados podem nos aproximar de
Deus, os nomes divinos nos permitem inclusive, de certa forma, penetrar Nele,
mas jamais somos capazes de captar Sua essência, caso contrário Ele seria
determinado por seus atributos: ora, Ele não é determinado por nada e é
justamente porque Ele é pessoal.
São
Gregório de Nissa comentou o Cântico dos
Cânticos nesse sentido, vendo o matrimônio místico da alma – e da Igreja –
com Deus. A noiva que segue o noivo é a alma que busca seu Deus. O bem-amado
surge e escapa, assim como Deus: quanto mais a alma o conhece, mais ele lhe
escapa, e mais ela o ama. Quanto mais Deus a sacia com sua presença, mais ela
tem sede de uma presença mais total e se lança à sua procura. Quanto mais ela
se enche com Deus, mais ela o descobre transcendente. Assim a alma se penetra
da presença divina, e cada vez mais mergulha em direção à essência inesgotável,
inacessível enquanto essência. Desse modo essa “perseguição” se torna infinita,
e nessa dilatação infinita da alma, na qual o amor se acumula e se renova “de
começo em começo por começos que não têm fim”, Gregório vê a noção cristã da
beatitude. Se conhecêssemos a própria natureza de Deus, seríamos Deus. A união
da criatura com o Criador é esse voo sem limites no qual a alma, quanto mais
agraciada, mais sente alegremente essa distância sempre mais curta e sempre
infinita entre ela e a essência divina, distância que permite e que atrai o
amor. Deus nos chama e nos incluímos nesse apelo que O revela e O esconde a um
só tempo; e não podemos esperá-Lo senão dentro dessa relação que, para existir,
exige que Deus em sua essência permaneça para sempre fora de alcance.
O
próprio Antigo Testamento conhece esse momento negativo: trata-se da imagem,
tantas vezes utilizada pelos contemplativos cristãos, da treva. “Ele fez das
trevas sua morada”, canta o Salmo 17, e Salomão, em sua prece de consagração do
Templo, diz a Deus: “Tu que quisestes habitar na treva[20]”.
Pensemos ainda nas trevas do Sinai.
A
experiência dessa transcendência é típica da vida mística do cristão. Assim,
mesmo quando a alma se encontra unida a Deus, explica São Macário, “Ele é o
Senhor, ela a serva, Ele o Criador, ela a criatura, Ele o artesão, ela a obra;
nada existe em comum entre a natureza de um e de outra”. Já não se trata da
fusão inefável do êxtase em Plotino, mas de uma relação pessoal que, longe de
diminuir o absoluto, o revela como “outro”, ou seja, sempre novo, inesgotável.
É a relação entre a pessoa de Deus, natureza, como tal, inacessível – a ideia
de essência, aqui, não coloca fronteiras ao amor, ao contrário, mas representa
a impossibilidade lógica de uma “passagem ao limite” que envolvesse e como que
esgotasse a Deus –, e a pessoa do homem, que, em seu próprio vazio como pessoa
que não é abolido na união, mas que se transfigura e permanece, ou melhor, se
torna plenamente uma pessoa. Caso contrário, não é possível existir religio, ou seja, ligação, relação.
A
fonte da verdadeira teologia cristã é assim a confissão da encarnação do Filho
de Deus. Pela Encarnação, com efeito, uma pessoa reúne em si a natureza
transcendente e incognoscível da divindade à natureza humana. A união das duas
naturezas em Cristo equivale à do supraceleste e da terra, até o túmulo, até o
inferno. Em Cristo, a transcendência se torna imanência e nos dá a
possibilidade de falar a respeito de Deus, ou seja, de nos tornarmos teólogos.
Aí reside todo o mistério, que o home tenha visto (e que veja) a Deus em
Cristo, que ele tenha visto (e veja) e, Cristo a irradiação da natureza divina.
Essa união sem mistura da divindade com a humanidade numa só pessoa exclui uma
apófase, uma negação metafísica que varreria a Trindade para se afogar no
impessoal: ao contrário, ela acaba por colocar a Revelação como um encontro,
como uma comunhão.
***
Assim
é que o pensamento grego ao mesmo tempo abriu e fechou a via do cristianismo.
Ela o abriu ao celebrar o Logos e a Beleza celeste, senão de Deus, ao menos do
divino. Ela o fechou ao empurrar o sábio para uma salvação pela evasão. Já se
quis opor ao caráter sombrio do Cristianismo a “alegria de viver” do universo
antigo. Mas isso é esquecer o sentido trágico do destino no teatro grego, o
agudo ascetismo de Platão, sua equação corpo-túmulo (swma-shma), o dualismo que ele introduziu entre o
sensível e o inteligível, simples reflexo, e por convidar a fugir daí. De certa
maneira, o pensamento antigo preparou o Cristianismo, naquilo que ele se
ultrapassa, mas preparou também os dualismos mais ou menos grosseiros dos
sistemas gnósticos e do maniqueísmo, naquilo que ele sw retesa contra o Cristo.
O
que falta a esse pensamento, o que será para ele ao mesmo tempo a possibilidade
de realização e a pedra de tropeço, é a realidade da Encarnação. Santo Agostinho,
quando evoca sua juventude, é o testemunho admirável dessa confrontação entre a
antiguidade e o Cristianismo: “Eu li, escreve ele relembrando sua descoberta da
Eneida, que no princípio era o Verbo”
(ele encontra São João em Plotino), “eu i que a alma humana presta homenagem à
luz, mas que ela própria não é luz (...). Mas eu não li que o Verbo tenha vindo
para este mundo e não tenha sido recebido. Eu não li que o Verbo se fez carne e
que tenha habitado entre nós (...). Eu encontrei que o Filho pode ser igual ao
Pai, mas não que ele tenha se esvaziado e humilhado até a morte sobre a cruz
(...) e que Deus Pai lhe tenha dado o nome de Jesus. Isso eu não li[21]”.
É
desse nome, ao contrário, que parte a teologia.
4.
Transcendência e imanência de Deus
Os
Padres falam com frequência de “nossa filosofia”. Entretanto, o método dessa
“filosofia” – dessa teologia, na realidade – adota uma caminho oposto ao da
especulação.
A
teologia está sempre fundamentada sobre um fato: a Revelação. “Deus nos falou
ultimamente por intermédio de seu Filho[22]”.
Para os filósofos que especulam a respeito de Deus, o ponto de partida é uma
ideia: mesmo para a observação da natureza, é preciso abstrair uma ideia. Para
o teólogo, o ponto de partida é Cristo, e ele é também o ponto de chegada. O
filósofo se eleva até uma ideia a partir de outra ideia ou de um grupo de fatos
generalizados segundo uma ideia. Para alguns filósofos, a busca de Deus
corresponde a uma necessidade inerente ao seu pensamento: é preciso que Deus
exista para que sua concepção do universo seja coerente. Segue-se a busca de
argumentos para demonstrar a existência de Deus. Daí provêm as “provas da
existência de Deus”, que, para o teólogo, não são necessárias.
Não
é de espantar que a noção de absoluto seja tão diferente segundo os filósofos.
O Deus de Descartes é um Deus matemático: para justificar as ideias inatas das
verdades matemáticas, seria preciso um matemático supremo que houvesse
calculado toda a eternidade.
Para
Leibnitz, Deus é necessário para justificar a harmonia que está preestabelecida
entre nossa percepção e a realidade. Cada pessoa é um mundo fechado. Para que
todos esses mundos correspondam, para que eles formem um mundo único, é preciso
uma Mônada suprema para a qual convergem as mônadas em harmonia, de sorte que a
verdade de minha percepção é também a da percepção de outrem. Somente Deus, já
foi dito, poderia escrever a Monadologia.
Em
Kant encontramos a mesma necessidade de Deus. Todo o seu pensamento está
dirigido contra a metafísica: nós conhecemos apenas as nossas percepções. Para
justificar a possibilidade do conhecimento, ele procede a uma análise genial de
suas condições. Mas, no domínio moral, ele sente a necessidade de recorrer à
ideia de Deus. Para ele, em sua Crítica
da razão prática, Deus é um postulado necessário da vida moral. Em sua vida
privada, Kant era um luterano crente e praticante. Em sua metafísica, ele
recusava toda especulação sobre Deus, mas, em sua moral, ele postulava a
existência de Deus.
Quanto
ao Deus de Bergson, ele é o Deus da evolução criativa, o impulso vital, um
absoluto em devir.
É
mais difícil encontrar Deus como chave de abóboda intelectual nos filósofos da
Antiguidade. Mesmo aqui, porém, o Deus de Aristóteles é o Motor imóvel
postulado pela existência do movimento. É também, em sua especulação sobre o
ser, a substância primeira – pensamento que se pensa e se move, Ato intelectual
puro.
Platão
nunca – ou quase nunca – fala de Deus. Entretanto, ele precisa justificar uma
determinada ideia muito concreta: a possibilidade de um justo, de um sábio.
Trata-se de Sócrates, condenado pela cidade por ter praticado outra justiça, a
verdadeira. Como justificar a verdadeira justiça, como construir um Estado no
qual o justo encontre seu lugar? Elevando-se, a partir dessa exigência
fundamental, ao conhecimento das coisas que são verdadeiramente, Platão
descobre a realidade estável do mundo das ideias, a única que o pensamento pode
captar. Mais alto ainda, ele pressente “o Bem que está além do ser[23]”.
Quando Platão chega aí, ele esquece a procura por um Estado justo, e até a
justiça, em troca da contemplação. O ponto de partida, no entanto, permanece
humano. A República desemboca na
necessidade de entregar o poder aos filósofos. Ora, estes não querem retornar à
caverna, eles que conhecem a beatitude. Assim é preciso obrigá-los a governar –
ao menos durante algum tempo...
O
caminho teológico é completamente outro. Uma vez que Deus existe e se revelou a
nós, é preciso que nosso pensamento – toda a nossa atitude, nossa conversatio – responda e se conforme com
o fato da existência de Deus. Nossa concepção do universo deve partir dos dados
da Revelação.
Os
filósofos constroem uma ideia de Deus. Para um teólogo, Deus é alguém que se
revelou e que não pode ser conhecido fora da Revelação. É preciso encontrar
esse Deus pessoal por meio de um engajamento total: é a única maneira de
conhecê-Lo. Trata-se de um Deus concreto e pessoal. Mas ele contém o Deus
abstrato e impessoal dos filósofos, que não é uma miragem, mas um reflexo do
pensamento humano. A partir desse reflexo, ou seja, por reflexão, não é
possível conhecer o verdadeiro Deus. O caminhar da fé é necessário. Mas nesse
caso esse Deus dos filósofos tomará lugar dentro da realidade total do Deus
vivo. Como escreveu Clemente de Alexandria, Ele crescerá “até a plenitude de
Cristo[24]”.
Cristo é a medida perfeita de todas as coisas; ele traz a realização às
especulações dos filósofos.
Porém,
não podemos fazer dessas especulações uma introdução à teologia. Não podemos
partir de um tratado De Deo uno[25]
– de um Deus substância puramente intelectual acessível à razão, que possua num
grau eminente todas as perfeições, que contenha as ideias de todas as coisas,
que seja o princípio de toda a ordem e de toda a realidade. Pois nesse caso,
para passar desse Deus à Trindade, será preciso justapor – por razões de
credibilidade – o Deus da Revelação ao Deus dos filósofos. Ora, ao produzir
essas razões, permanecemos sobre o plano da “teologia natural”, e continuaremos
a jogar o jogo dos filósofos.
Não
podemos separar, nem em pensamento, o Um e o Três quando falamos de Deus.
Passar racionalmente do Um ao Três exige um esforço do pensamento, mais do que
um desenvolvimento lógico.
Portanto,
é preciso partir da fé, que é a única maneira de salvar a filosofia. A filosofia
em si mesma, no seu máximo, exige a renúncia à especulação. Ao se buscar a
Deus, atinge-se o momento de uma ignorância suprema: a via negativa na qual se
confessa o fracasso do pensamento humano. Aqui, a filosofia desemboca numa
mística e morre ao se tornar a experiência de um Deus desconhecido que sequer
pode ser nomeado.
É
esse Deus desconhecido que São Paulo foi pregar no Areópago. De fato, sabemos
que o altar ao Deus desconhecido era consagrado a algum dos múltiplos deuses
que se temia desconhecer, sendo Atenas uma grande cidade mãe. Paulo,
entretanto, conhecia sem dúvida o melhor do pensamento grego – o estoicismo,
por exemplo – e foi a esse melhor pensamento que ele quis responder.
O
ápice da filosofia é uma pergunta. A teologia deve respondê-la afirmando que a
transcendência se revelou na imanência da Encarnação. A própria noção de
revelação implica essa imanência. Mas, nessa mesma imanência, Deus se revela
como transcendente. Para evocar realmente a transcendência dentro de uma
perspectiva cristã, é preciso ultrapassar todas as noções do mundo em que
vivemos, inclusive a própria noção de causa primeira deste mundo. A causalidade
divina na criação supõe ainda uma ligação com seu efeito. Deus deve ser
concebido para além da transcendência filosófica: é preciso transcender a
transcendência dessa causa primeira que coloca Deus em relação com o mundo. É
preciso admitir que o mundo foi criado livremente por Deus, mas que Deus
poderia muito bem não tê-lo criado. A criação é um ato gratuito da vontade
divina. Na tradição platônica, Deus é sempre conhecido como o princípio de tudo
o que existe, e o mundo se desenvolve a partir Dele, sem ruptura ontológica.
Para os cristãos, não existe emanação, mas uma ruptura ontológica total: a
criação ex-nihilo é gratuita. Esse é
um dado próprio da tradição bíblica judaico-cristã.
Ainda
que o mundo não existisse, Deus continuaria sendo o que é. No Êxodo, Deus se
autoproclama: “Eu sou quem sou[26]”.
Os cristãos quiseram ver nesse Nome divino a resposta a todas as filosofias
humanas. Eles justificaram os filósofos lendo essa passagem da seguinte
maneira: o ser que não pode ser nomeado se nomeia. Esse Nome por excelência é
absolutamente independente de toda outra existência. Ele permanecerá após a
destruição do universo – “separado” de todo ser – e restaurará
escatologicamente o universo, diz a tradição rabínica. É o nome daquele que é
de uma maneira absoluta. Em suas Confissões, Santo Agostinho evoca sua
meditação sobre esse texto: “Tu me chamastes de longe, dizendo: ‘Immo vero ergo sum qui sum’. E eu ouvi
como quem escuta no coração, e já não havia do que duvidar. Eu duvidaria com
mais facilidade de estar vivo, que do fato de que a verdade existe – e que ela
pode ser contemplada através das coisas criadas[27]”.
Os seres não possuem realmente uma existência: “Eles existem porque existem por
Ti; e eles não existem, porque eles não são o que Tu és[28]”.
Esse
Nome, porém, permanece ainda dentro do domínio conceitual. Nós concebemos o ser
a partir daquilo que conhecemos como seres que somos. Não se trata de um nome
verdadeiramente “separado”. É preciso pensar Deus além de tudo o que pode ser
conhecido como ser. Como demonstrou Hegel, o conceito de ser se opõe ao de
não-ser. Ser e nada, mesmo constituindo dois conceitos limites, permanecem
ligados. Deus está além desse supremo par conceitual. A crítica de Hegel
resulta em reconhecer que o ser é a noção mais vazia de sentido, o conceito
mais abstrato e mais pobre, porque ele é idêntico ao que se opõe a ele, o
não-ser. Na noção de ser é nosso pensamento que se torna objeto de si mesmo. Os
seres concretos existem concretamente; o ser não é outra coisa do que nosso
pensamento sobre eles, sobre aquilo que lhes é comum. Segundo Hegel, para
encontrar a realidade, é preciso pensar juntamente o ser e o não-ser como
movimento; obtemos então o devir concreto, e o Deus de Hegel é a dialética
divinizada. O devir aparece como o primeiro conceito concreto.
De
fato, o ser pode significar não o supremo, mas o ínfimo. O Deus vivo deve ser
pensado além da oposição do se e do nada, além de todo conceito – inclusive o
conceito de devir. Ele não pode ser oposto a nada. Ele não conhece vazio que
possa se opor a Ele. O pensamento deve ultrapassar a si próprio para abordá-lo
– sem nomeá-Lo. Devemos captá-Lo não O captando, conhecê-Lo pela ignorância.
Esta é a única teologia natural aceitável para um cristão. Nicolas de Cues
afirma: “Attingitur inattingibile
inattingibiliter[29]”,
numa fórmula densa que podemos traduzir: “Aquele que está além de todo alcance
não pode ser alcançado senão de um modo que não o alcance”. Não se pode fixar
Deus por um conceito. Esta é a “douta ignorância”.
Deus,
portanto, permanece transcendente por sua natureza, na própria imanência de sua
manifestação. Assim é que, em consequência, a via apofática foi adotada pelos
cristãos: expressão perfeita no pseudo-Areopagita, que escreveu sua Teologia Mística no final do século V, a
via apofática, no sentido estabelecido por Denis, exige a respeito de Deus a
negação dos maiores nomes: mesmo o Um de Plotino não convém a esse Deus que
transcende toda noção humana.
Encontraremos
a mesma atitude em Agostinho: Deus é “aquele a quem conhecemos melhor não O
conhecendo[30]”:
aquele do qual não temos nenhuma ciência, senão a de saber o quanto não O
conhecemos. Em sua Doctrina Christiana,
Agostinho sublinha que sequer podemos dizer que Deus seja inefável, porque, ao
dizermos isso, dizemos alguma coisa e suscitamos uma “contradição verbal” (pugna verborum), que é preciso superar
pelo silêncio[31].
Assim
se caracteriza o fracasso do pensamento humano diante da transcendência de
Deus. A filosofia conheceu esse fracasso dentro da grande tradição platônica:
Platão, no Fedon[32],
e, sobretudo, na República[33],
evoca “o belo que ultrapassa toda possibilidade de expressão”. Em Parmênides, encontramos a primeira
hipótese sobre o Um: se o Um é verdadeiramente um, ele não é o ser, porque o pensamento
humano do ser implica uma díade. Não pode existir aí nenhuma opinião,
pensamento ou conhecimento: ele está além de tudo. Denis mencionará
literalmente esse texto, aliás, sem citar Platão. Plotino, como sabemos,
elaborou notadamente essa via negativa.
Na
Revelação, a primeira epístola de João afirma: “Ninguém jamais viu a Deus[34]”.
E São Paulo: “Deus habita na luz inacessível; nenhum homem jamais o viu, nem
poderá ver[35]”.
É
preciso compreender que a apófase da teologia oriental não constitui um
empréstimo aos filósofos. O Deus dos cristãos é mais transcendente do que o dos
filósofos. Em Plotino, o Um, o Absoluto que não se pode nomear (o Um que não
passa de uma designação) está, de certa forma, em continuidade com o intelecto,
finalmente com o mundo. Este aparece como um desenvolvimento, uma degradação do
absoluto, sem, de resto, nenhum processo catastrófico (lembremo-nos da aversão
de Plotino pelos gnósticos). A cosmogonia coincide com a teogonia. Para os
cristãos, ao contrário, a ruptura é radical entre a Trindade e o mundo, tanto
na sua modalidade inteligível como na sua modalidade sensível. Os Padres utilizaram
a técnica filosófica da negação para estabelecer a transcendência, desta vez
absoluta, do Deus vivo: o apofatismo da teologia ortodoxa não é uma técnica de
interiorização para se absorver num absoluto mais ou menos “co-natural” ao
intelecto; ela constitui uma
prosternação diante do Deus vivo, radicalmente inatingível, incognoscível e
impossível de ser objetivado, por que Ele consiste na livre plenitude da existência
pessoal. A apófase é a inscrição, nas linguagens humana e teológica, do
mistério da fé. Pois esse Deus incognoscível se revela e, por transcender, em
sua livre existência pessoal, sua própria essência, Ele pode se tornar realmente
participável. “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho único, aquele que está no seio
do Pai, nos permite conhecê-Lo[36]”.
Esse
mistério da fé como encontro pessoal e participação ontológica é o único
fundamento da linguagem teológica, linguagem que a apófase abre para o silêncio
da deificação.
[1]
Evagro o Pôntico – De oratione, 60.
[2]
Diádoco de Foticéia, Obras espirituais,
67.
[3] Ibid,. 68.
[4]
Platão, Protágoras, XI.
[5]
Mateus 10: 16.
[6] Id.
[7] I
João 4: 19.
[8] I
João 4: 9.
[9]
Irineu de Lyon, Contra as heresias I,
9, 4.
[10] Id. III, 2, 1.
[11] I
João 2: 20.
[12] I
João 2: 27.
[13]
Jeremias 31: 33-34.
[14]
Mateus, 23: 8-10.
[15]
Agostinho de Hipona, Homilias sobre a
primeira epístola de João, III, 13.
[16]
Hebreus 11: 1.
[17]
Ou um “Você”.
[18] I
Colossenses 1: 23.
[19] Ibid.
[20] I
Reis 8: 12.
[21]
Agostinho de Hipona, Confissões, VII,
9, 13-14.
[22]
Hebreus 1: 2.
[23]
Platão, República, Livro VII.
[24]
Ver Clemente de Alexandria, Stromates,
IV, 21, 132.
[25]
São Tomás de Aquino, De Deo uno.
[26]
Êxodo 3: 14.
[27]
Cf. Romanos 1: 20. Agostinho de Hipona, Confissões,
VII, 10, 16.
[28] Ibid. VII, 11, 17.
[29]
Nicolas de Cues, Idiotia de Sapientia,
I.
[30]
Agostinho de Hipona, De Ordine, II,
16, 44.
[31]
Agostinho de Hipona, De Doctrina
Christiana, I, 6.
[32]
Ver Fedon 100cd.
[33]
Ver República VI, 509a.
[34] I
João 4: 12.
[35] I
Timóteo 6: 16.
[36] João
1: 18.
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