1.
Epistemologia Ortodoxa
O tema da epistemologia pertence a este livro e forma seu capítulo
final, porque está ligado estreitamente à cura da alma humana. Os capítulos
precedentes mostraram que a queda, a doença e a morte do homem correspondem
precisamente à morte de sua alma, de seu nous,
seu coração e sua razão, sob a influência dos maus pensamentos. A queda é principalmente
a queda do nous. Quando a alma, o nous e o coração são curados, a pessoa
atinge o conhecimento de Deus. De fato, não é apenas quando estes se curam que
a pessoa adquire o conhecimento de Deus, mas na medida em que são curados.
Quando eles se curam por completo, na medida do possível, a pessoa alcança um
conhecimento de Deus que não admite palavras sobre Deus, mas que conhece ao
próprio Deus. Em outras palavras, é no coração curado que Deus se revela e
oferece o conhecimento de Si mesmo. Assim, fica claro que a epistemologia
Ortodoxa está diretamente ligada à terapia da alma. O conhecimento de Deus
aumenta na medida em que a cura progride, e o puro conhecimento de Deus é
concedido à pessoas que foi inteiramente purificada e curada.
Para vermos isso mais claramente, vemos nos concentrar nos
ensinamentos de dois Padres da Igreja: Santo Isaac o Sírio e São Gregório
Palamas. Veremos primeiro os três graus do conhecimento de acordo com Santo
Isaac e então o conhecimento de Deus de acordo com São Gregório Palamas.
1.1. Os
três graus do conhecimento segundo Santo Isaac o Sírio
Santo Isaac o Sírio desenvolve o tema dos três graus do conhecimento
nos capítulos 52 e 53 de suas Homilias Ascéticas.
Ele começa por contrastar o conhecimento com a fé. O conhecimento
humano é caracterizado pelo fato de que ele não estabelece uma autoridade sobre
nada “sem investigação e exame”, e que ele deve investigar o que deseja na
medida em que isso seja possível. No conhecimento humano existe uma grande
participação da inteligência, principalmente da inteligência decaída que é quem
opera, por ter excedido seus limites naturais. Ou seja, é o tipo de
inteligência que dominou o nous. A
fé, naturalmente, possui limites diferentes, e nisso parece residir sua grande
diferença em relação ao conhecimento humano, e também seu grande valor. Santo
Isaac diz que quando usamos a palavra “fé” não queremos nos referir à expressão
de verdades dogmáticas sobre as Pessoas da Santíssima Trindade, ou sobre Cristo
ter se tornado homem, ou sobre a assunção da natureza humana pela Segunda
Pessoa da Trindade, “embora essa fé seja também muito eminente”; mas o
principal significado daquilo a que chamamos fé é “essa luz que, pela graça,
amanhece na alma e fortifica o coração pelo testemunho da mente, dando-lhe a
certeza por intermédio da segurança da esperança”. Essa fé espiritual não
ensina os mistérios por uma tradição ouvida, “mas, com olhos espirituais, ela
contempla os mistérios escondidos na alma, e os tesouros secretos e divinos
ocultos dos olhos dos filhos da carne, mas que são revelados pelo espírito
àqueles que são convidados à mesa de Cristo por seu estudo de Suas leis”. Vale
dizer que enquanto o conhecimento humano é adquirido através da atividade da
inteligência e por meio de pesquisas humanas, o conhecimento divino é adquirido
através da fé. Essa fé é principalmente aquela que amanhece na alma pela luz da
graça, e por intermédio de cujo poder a pessoa aprende todos os mistérios que
jazem ocultos dos olhos dos homens carnais de nossa época. Assim, “a fé é mais
sutil do que o conhecimento, como o próprio conhecimento é mais sutil do que as
coisas palpáveis”. A fé, que é o conhecimento divino, é mais sutil do que o
conhecimento humano.
Santo Isaac explica a diferença entre o conhecimento humano e a fé. O
conhecimento humano não pode aprender sem exame, enquanto que a fé “requer um
modo de pensar que é simples, limpidamente puro e simples, distante de qualquer
desvio ou métodos inventivos (...) A morada da fé é um pensamento infantil e um
coração simples”. Enquanto que o conhecimento humano tem seu centro na
inteligência, a fé possui o coração simples e sincero. O conhecimento humano
“se mantém dentro dos limites da natureza”, enquanto que a fé “faz sua viagem
acima da natureza”. Vale dizer que o conhecimento humano constitui uma condição
puramente natural, que trabalha dentro dos limites naturais, enquanto que a fé
consiste numa condição supranatural. Da mesma forma, o conhecimento humano não
é capaz de fazer nada sem a matéria; ele se move num mundo material, enquanto
que a fé possui a autoridade, a partir da semelhança com Deus, para realizar
uma nova criação. O conhecimento humano não ousa nem pretende ultrapassar os
limites da natureza, enquanto que a fé “os transgride com autoridade”. Isso
fica demonstrado pelas vidas de todos os santos que, pelo poder da fé,
“entraram no meio das chamas e refrearam o poder incendiário do fogo,
caminhando desarmados no meio deste, e andaram sobre as ondas do oceano como se
estivessem em terra seca”. E todas essas coisas que faz a fé estão acima da
natureza e são contrárias aos modos do conhecimento humano. O conhecimento
humano “permanece dentro dos limites da natureza”, enquanto que a fé “vai além
da natureza”. O conhecimento humano sempre procura meios “para salvaguardar os
que o adquiriram”, ou seja, sempre toma medidas protetoras e busca proteger os
homens por meios humanos. Mas a fé vive inteiramente em Deus. “O homem que ora
com fé nunca emprega meios e procedimentos, nem se envolve com isso”. O
conhecimento humano não inicia uma obra sem examinar como ela irá terminar,
enquanto que a fé diz: “Tudo é possível para quem acredita. Pois para Deus nada
é impossível”.
É verdade, de acordo com Santo Isaac, que o conhecimento humano não é
falho, mas a fé voa mais alto. O conhecimento é perfeccionador pela fé, uma vez
que “o conhecimento é um passo por meio do qual o homem pode se elevar às
eminentes alturas da fé”. Quando chega a fé, aquilo que é parcial é abolido. A
partir daí, “será por nossa fé que aprenderemos as coisas que não podem ser
compreendidas pela investigação e pelo poder do conhecimento”. Todas as obras
de justiça que são as virtudes, ou seja, o jejum, as esmolas, as vigílias, a
santidade e “todas as demais obras realizadas pelo corpo” e todas as realizadas
pela alma, ou seja, o amor ao próximo, a humildade do coração, o perdão “aos
que pecaram”, a lembrança das boas coisas, a investigação dos mistérios ocultos
nas Escrituras, a ocupação da mente com as boas coisas, o refreamento das
paixões da alma e as demais virtudes, “tudo isso requer conhecimento”. O
conhecimento “as guarda e ensina sua ordem”. E todas essas coisas são passos
por meio dos quais a alma ascende “às mais elevadas alturas da fé”. Por isso,
“o modo de vida na fé é mais exaltado do que ao trabalho das virtudes, e ele
não consiste em trabalho, mas num repouso perfeito, na consolação, e se realiza
no coração e dentro da alma”.
Todas essas coisas indicam que, de acordo com o ensinamento de Santo
Isaac e de outros santos Padres, a fé é mais elevada do que o conhecimento
humano, mais elevada inclusive do que o conhecimento adquirido com a prática
das virtudes. Pois a fé é uma condição carismática, a comunhão com Deus; ela
consiste “no entendimento e na visão do coração”; é a vida que se desenvolve na
alma com a chegada da luz da divina graça. Na próxima seção, no ensinamento de
São Gregório Palamas, veremos esse conhecimento de Deus, que é realmente uma
“comunhão no ser”, a comunhão e a união do homem com Deus. Esse é um
conhecimento que está acima de qualquer conhecimento humano, mesmo daquele
obtido com a prática das virtudes, por meio do qual encontramos o próprio
Cristo, que se esconde na profundidade dos mandamentos.
Santo Isaac o Sírio fala de três tipos de conhecimento. Vamos examinar
no que eles diferem, pois pensão que isso mostrará o quanto a tradição Ortodoxa
difere da tradição cultural humana, e o quanto o conhecimento divino difere do
conhecimento humano.
Existem três modos concebíveis pelos quais o conhecimento ascende ou
desce. Esses modos são o corpo, a alma e o espírito. Quando os Padres falam de
corpo, alma e espírito eles não estão se referindo às três partes do homem,
mas, com o termo ‘espírito’ eles querem dizer o dom da graça, dessa divina
graça com a qual o homem é abençoado. Sem a graça de Deus o homem pode ser dito
um homem de corpo ou de alma, enquanto que com a presença da graça ele é
chamado de espiritual. Ao mesmo tempo em que a natureza do conhecimento é uma,
ela é refinada e muda seus modos de acordo com esses três reinos inteligíveis e
sensíveis. Então, assim como existem três modos sencientes e inteligíveis –
corpo, alma e espírito- existem três tipos de conhecimento relacionados a eles.
De acordo com o tipo de conhecimento que um homem possui, ele mostra seu progresso
espiritual e sua condição espiritual. Ademais, o tipo de conhecimento que
alguém possui é uma indicação de sua purificação e sua cura. Quando a pessoa
não é saudável ela possui o conhecimento corporal, enquanto que a pessoa que
está sendo curada possui o conhecimento da alma, e aquela que foi curada possui
o conhecimento espiritual. Esse último mostra os mistérios do Espírito, que são
incompreensíveis e desconhecidos para o homem de carne.
O primeiro conhecimento é adquirido por um estudo constante e pelo
aprendizado diligente, o segundo provém de um modo de vida puro e bom e da fé
mental, e o terceiro é “concedido apenas pela fé; pois pela fé o conhecimento é
abolido, as obras chegam ao fim, e o emprego dos sentidos se torna supérfluo”.
A partir dos ensinamentos de Santo Isaac, vamos nos debruçar mais
analiticamente sobre esses três tipos de conhecimento que indicam a doença ou a
saúde da alma da pessoa.
Em primeiro lugar, o conhecimento corporal. Alguns dos elementos
característicos do conhecimento humano que estão conectados com os desejos da
carne são a riqueza, a vanglória, o adorno, o descanso do corpo, a diligência
na sabedoria racional, tal como é adequada ao governo do mundo e que cria as
invenções, as artes e das ciências. Esse conhecimento se opõe à fé, conforme já
explicamos, porque ele considera que “todas as coisas são realizadas por sua
própria providência”. A sabedoria e o conhecimento das coisas do mundo, sem os
outros dois tipos de conhecimento são inúteis e acabam criando muitos problemas
para o homem. Esse tipo de conhecimento é raso e rude, pois “está despido de
tudo o que se refere a Deus”. Ele se refere apenas ao mundo, e por ser
controlado pelo corpo, “introduz na mente uma impotência irracional”.
Muitos homens de nosso tempo, que não se curaram na alma, possuem esse
conhecimento e o cultivam continuamente. Toda a civilização contemporânea, que
criou tantas anomalias da alma e do corpo, se encontra nesse estado. Além
disso, esse conhecimento unilateral cria muitos problemas, conforme descreve
Santo Isaac. O homem que possui o conhecimento corporal está sujeito ao
desencorajamento, à angústia, ao desespero, ao medo dos demônios, ao
sobressalto diante dos homens, aos rumores de ladrões e ao relato de mortes, à
ansiedade diante das enfermidades, à preocupação com os desejos e o não
atendimento das necessidades, ao medo da morte e dos sofrimentos, dos animais
selvagens e outras coisas do gênero, que configuram o mar da vida presente. O
homem que possui esse conhecimento humano e corporal não sabe como se abandonar
à misericórdia de Deus, mas tenta resolver todos os problemas por seus próprios
meios. E quando ele não consegue chegar a soluções, por várias razões, ele
“antagoniza com os outros homens, como se eles impedissem ou se opusessem” a
esse conhecimento. Ele começa a se indispor com os homens porque eles
atrapalham a aquisição dos bens do conhecimento corporal.
Esse conhecimento corporal, as preocupações mundanas, erradicam por
completo o amor. Ele faz com que a pessoa examine os pequenos pecados e erros
dos outros, suas causas e suas fraquezas, faz com que a pessoa dogmatize e se
oponha à palavras dos demais, se torne maldosa para com todas as ações do outro
e procure meios para desonrar os demais. Esse conhecimento contém a presunção e
o orgulho.
Vemos claramente que o conhecimento corporal é típico da civilização
contemporânea. Com intuição profética Santo Isaac apresenta as causas e a
vocação desse homem carnal, descreve suas lutas e sua angústia, e ainda
apresenta os temíveis resultados desse conhecimento corporal. Os distúrbios dos
relacionamentos interpessoais, a falta de amor, a obstinação e a malícia em
todas as ações são coisas que definem o homem contemporâneo que se encontra
doente da alma e longe de Deus.
O segundo conhecimento é aquele da alma. Quando um homem renuncia ao
primeiro, o conhecimento corpóreo e carnal, ele se volta para os desejos e as
conversações da alma, e a isso seguem-se todas as boas ações do conhecimento da
alma. Essas são o jejum, a prece, a misericórdia, a leitura das Escrituras, os
modos da virtude, a batalha com as paixões, etc. Todas essas ações são
perfeccionadas pelo Espírito Santo. Elas não acontecem pelo poder do homem, mas
pelo trabalho conjunto do homem com o Espírito Santo. Existem estágios na
aquisição do conhecimento. O segundo grau de conhecimento é tornado perfeito
“quando lançou as fundações de sua ação no isolamento em relação aos homens, na
leitura das Escrituras e na oração”. Ou seja, o possuidor desse conhecimento da
alma vive na paz, com tudo o que ela implica, conforme descrevemos no capítulo
precedente. Ele ora a Deus incessantemente e estuda as Escrituras nessa santa
atmosfera de repouso e paz, de modo a alimentar sua alma, não para aprender as
palavras de Deus por curiosidade. Essa categoria inclui as pessoas que estão em
processo de cura das chagas psíquicas e das feridas de suas almas. Essa cura
oferece um conhecimento que pode ser chamado de etapa preliminar e antessala do
seguinte, o conhecimento espiritual, que aparece com a vida da graça de Deus no
coração do homem.
O terceiro conhecimento é o espiritual. Quando o conhecimento do homem
se eleva acima das preocupações mundanas e começa a olhar internamente “o que
está oculto aos olhos”, e quando ele despreza as coisas “das quais nascem a
perversidade das paixões” e se esforça em sua ânsia pelas promessas do século
futuro e em sua busca pelos mistérios ocultos, “então a própria fé devora o
conhecimento, transforma-o e faz nascer um novo, de tal modo que o torna total
e completamente espírito”.
A partir daí ele pode voar pelos espaços dos anjos incorpóreos; ele
conhece os mistérios espirituais, a governança do espiritual e do corpóreo. Ou
seja, ele conhece os princípios internos dos seres. Então os sentidos
interiores despertam e a alma recebe a ressurreição que lhe dá a certeza da
ressurreição futura do homem. Santo Isaac, que possuía esse conhecimento
espiritual – que é a vida na fé –, escreve: “Então ele pode planar nos reinos
incorpóreos e tocar a profundidade de um oceano insondável, contemplando as
maravilhosas e divinas obras de Deus sobre as criaturas inteligíveis e
corporais. Ele procura por nossos mistérios espirituais que só são percebidos
por um nous simples e sutil. Então os
sentidos internos despertam para a ação espiritual, de acordo com a ordem que
haverá na vida imortal e incorruptível. Pois desde já ele recebeu, como num
mistério, a ressurreição inteligível como um testemunho verdadeiro da renovação
universal de todas as coisas”.
Esse conhecimento foi possuído por todos os santos de Deus, como
Moisés, Davi, Isaías, os Apóstolos Pedro e Paulo, e todos os santos que foram
considerados dignos desse conhecimento perfeito, “no grau possível para a
natureza humana”. Na realidade, esse conhecimento provém da visão de Deus e da
luz incriada, das divinas revelações, ou, como coloca Santo Isaac, “das
diversas contemplações e revelações divinas, pela visão eminente das coisas
espirituais e dos mistérios inefáveis”. Então o conhecimento é engolido por
essas visões de Deus e a pessoa se sente como poeira e cinzas. Ela adquire o
abençoado estado de humildade e de simplicidade. Então o conhecimento
espiritual, ou seja, o conhecimento de Deus, é fruto da theoria. Ele é recebido pela pessoa que progrediu do conhecimento
carnal para o da alma e daí para o conhecimento espiritual.
Em resumo, podemos dizer que o primeiro conhecimento “torna a alma
fria para as obras da busca de Deus”. O segundo conhecimento aquece a alma para
uma corrida veloz “no nível da fé”. O terceiro conhecimento é o descanso das
obras, “que é o tipo do século futuro, pois a alma extrai seu prazer apenas da
meditação da mente sobre os mistérios das boas coisas que virão”.
Esse ensinamento de Santo Isaac é muito relevante para o tema que
estamos tratando, pela seguinte razão. No começo do livro nós mencionamos que
os membros da Igreja não se dividem em bons e ruins, morais e imorais, tomando
a ética humana como critério, mas em doentes na alma, em processo de cura e
curados. Precisamente essas três categorias correspondem aos três graus de
conhecimento. Aqueles cuja alma está doente possuem o conhecimento corporal e
mundano, os que estão em processo de cura são os que, em diferentes graus,
estão adquirindo a sabedoria e o conhecimento da alma, e os que foram curados são
os santos de Deus, que possuem o conhecimento espiritual e o verdadeiro
conhecimento de Deus. Muitas pessoas de nosso tempo, que estão doentes da alma
porque não conhecem nada do nous e do
coração, se mantêm no primeiro conhecimento, o carnal. Outras pertencem ao
segundo conhecimento, porque lutam para serem curadas pelos meios da método
ascético disponível na Igreja Ortodoxa. E os santos, que mesmo hoje ainda
existem, pertencem ao terceiro conhecimento, pois foram curados de suas
enfermidades e adquiriram o conhecimento de Deus.
1.2. O
conhecimento de Deus de acordo com São Gregório Palamas
Agora que explicamos o ensinamento de Santo Isaac o Sírio a respeito
dos três graus do conhecimento, podemos nos debruçar sobre o conhecimento de
Deus de acordo com o santo Athonita, Gregório Palamas. Quando uma pessoa se
eleva do conhecimento corporal para o da alma e daí para o conhecimento
espiritual, ela vê a Deus e possui o conhecimento de Deus, que é a salvação. O conhecimento
de Deus, como será explicado adiante, não é intelectual, mas existencial. Ou seja,
todo o ser é preenchido com o conhecimento de Deus. Mas para que seja possível
atingir isso, o coração da pessoa deve ter sido purificado, ou seja, a alma, o nous e o coração devem ter sido curados.
“Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus[1]”.
Vamos ver as coisas mais analiticamente.
Conforme indicamos, Barlaam insistia em que o conhecimento de Deus não
dependia da visão de Deus, mas do entendimento da pessoa. Ele dizia que podemos
adquirir o conhecimento de Deus por meio da filosofia, e considerava que os
profetas e apóstolos que viram a luz incriada, estavam abaixo dos filósofos. Ele
dizia que a luz incriada era sensorial, criada e “inferior ao nosso
entendimento”. Entretanto, São Gregório Palamas, que trazia em si a Tradição e
era um homem da revelação, sustentou o ponto de vista oposto. Em sua teologia
ele apresentou o ensinamento da Igreja de que a luz incriada, ou seja, a visão
de Deus, não é apenas uma visão simbólica, nem sensorial nem criada, muito
menos inferior ao conhecimento, mas ela consiste na deificação. Através da
deificação o homem é considerado digno de ver a Deus. E essa deificação não é
um estado abstrato, mas uma união do homem com Deus. Vale dizer que o homem que
contempla a luz incriada a enxerga porque está unido a Deus. Ele a vê com os
olhos interiores, e também com seus olhos corporais, os quais foram alterados
pela ação de Deus. Consequentemente, a theoria
é a união com Deus. E essa união é o conhecimento de Deus. A essa altura a
pessoa é agraciado com o conhecimento de Deus, que está acima do conhecimento
humano e acima dos sentidos.
São Gregório explica toda essa teologia ao longo de todos os seus
escritos. Mas como não é nossa intenção neste capítulo de fazer uma exposição
sistemática desse ensinamento a respeito do conhecimento de Deus, vamos nos
limitar a analisar o ponto central tal como ele o apresenta em sua obra
fundamental “Sobre os santos Hesiquiastas”, conhecida como “As Tríades”. Salientamos
que não iremos apresentar todo o ensinamento, tal como se encontra nesse livro,
mas apenas os pontos centrais.
Eis uma passagem característica, na qual ele apresenta seu
ensinamento: “Aquele que limpou sua alma de toda conexão com as coisas desse
mundo, que se desvinculou de tudo por meio da guarda dos mandamentos e pela
impassibilidade que isso traz, e que passou além da atividade cognitiva por
intermédio de uma prece contínua, sincera e imaterial, e que foi abundantemente
iluminado pela luz inacessível numa união inconcebível, somente este homem,
transformando-se em luz, contemplando através da luz e vendo a luz, na visão e
no deleite dessa luz, reconhece que Deus é transcendentalmente radiante e além
da compreensão; ele glorifica a Deus não apenas além do poder de compreensão do
nous humano – pois muitas das coisas
criadas estão além daí – mas até além da união maravilhosa que é o único meio
pelo qual o nous se une com aquilo
que está além das coisas inteligíveis, ‘imitando divinamente os nous supracelestiais’”.
Encontramos nessa passagem o ensinamento central de São Gregório. Para
alcançar a visão da luz incriada, a pessoa deve cortar todas as conexões entre
a alma e aquilo que está abaixo dela, desvinculando-se de tudo pela observância
dos mandamentos de Cristo e por meio da impassibilidade que provém daí, e
transcender toda atividade cognitiva “por intermédio de uma prece contínua,
sincera e imaterial”. Para isso, ele já deve estar curado, por meio da guarda
dos mandamentos de Cristo e pela libertação de sua alma de toda conexão
pecaminosa com as coisas criadas. Ele será iluminado pela luz inacessível “abundantemente
através de uma união inconcebível”. Ele vê a Deus através dessa união. Assim ele
se torna luz e vê a luz. Ao ver a luz incriada, ele reconhece a Deus e adquire
o conhecimento Dele, porque agora “ele reconhece verdadeiramente que Deus está
acima da natureza e além da compreensão”.
São Gregório desenvolve esse ensinamento em outras passagens das Tríades.
A visão de Deus, a theoria
da luz incriada, não consiste numa visão sensorial, mas numa deificação do
homem. Falando sobre a visão de Moisés “face a face, e não por enigmas”, ele
relembra a passagem de São Máximo o Confessor, que diz: “A deificação é uma
iluminação direta e anipostática que não tem início, mas que surge naqueles que
são dignos de algo que excede sua compreensão. Ela é de fato uma união mística
com Deus, além do nous e da razão no
momento em que as criaturas já não mais conhecerão a corrupção”. Portanto, a
visão da luz incriada corresponde à deificação do homem. Ele vê a Deus através
da deificação e não por cultivar sua inteligência. A visão da luz incriada é
chamada de dom deificante. Ela não é um dom da natureza humana criada, mas do
Espírito Santo. “Assim sendo, o dom deificante do Espírito é uma luz misteriosa
que transforma em luz aqueles que recebem esse tesouro. Ele não apenas os enche
com a luz eterna mas ainda lhes concede o conhecimento e uma vida agradável a
Deus”. Portanto, a visão de Deus não é externa, mas vem pela deificação.
Assim é que a deificação é a união e a comunhão com Deus. De acordo
com São Gregório, “a visão da luz incriada não é simplesmente uma abstração e
uma negação, ela é a união e a divinização que ocorre mística e inefavelmente
pela graça de Deus, depois de afastar todas as coisas inferiores que se
imprimem no nous, ou melhor, depois
da cessação de toda atividade noética; é algo que vai muito além da abstração”.
A contemplação da luz incriada é a “comunhão divinizante do Espírito”. “Então,
a contemplação dessa luz é uma união, ainda que ela não dure no imperfeito; mas
pode a união com essa luz ser outra coisa do que uma visão?”.
São Gregório fala do êxtase. Mas esse êxtase, no ensinamento
patrístico, não tem nada a ver com o êxtase da Pítia ou de outras religiões. O êxtase
acontece quando, na oração, o nous
abandona toda conexão com as coisas criadas: primeiro, “com tudo de ruim e de
mau, e depois com as coisas neutras”. O êxtase é principalmente uma retirada em
relação às opiniões do mundo e à carne. Com prazer sincero o nous “abandona todas as coisas criadas”.
Esse êxtase é mais elevado do que a teologia abstrata, ou seja, do que a
teologia racional, e pertence apenas àqueles que alcançaram a impassibilidade. Mas
ele ainda não constitui a união. Vale dizer que o êxtase que é a prece incessante
do nous, no qual o nous possui a lembrança contínua de Deus
e não se relaciona com o “mundo do pecado” ainda não constitui a união com Deus.
Essa união acontece quando o Paráclito “ilumina desde o alto o homem que na sua
prece atingiu o estado que é superior às mais elevadas possibilidades, e que
espera pela promessa do Pai, e que por Sua revelação é eletrizado pela
contemplação da luz”. A iluminação por Deus é aquilo que mostra Sua união com o
homem.
A visão, a deificação e a união com Deus são as coisas que oferecem ao
homem o conhecimento existencial de Deus. A partir daí o homem possui um
conhecimento real de Deus. O dom deificante do Espírito Santo, que é a luz
misteriosa, transforma em luz divina aqueles que o alcançaram, e não apenas os
enche com a luz eterna, “mas ainda lhes concede o conhecimento e uma vida agradável
a Deus”. Nesse estado a pessoa possui o conhecimento de Deus. Em resposta ao
ensinamento de Barlaam de que Deus só pode ser conhecido pelos maiores
contemplativos, os filósofos, e de que o conhecimento de Deus transmitido “pela
iluminação noética (...) de modo algum é verdadeiro”, São Gregório Palamas
declara: “Deus se dá a conhecer não apenas através daquilo que é, mas através
daquilo que não é, através da transcendência, ou seja, das coisas incriadas, e
ainda através de uma luz eterna que transcende todos os seres”. Esse conhecimento,
diz ele, é oferecido hoje como uma espécie de promessa àqueles que são dignos
dele e “os ilumina sem nunca acabar, no século que nunca acabará”. É por isso
que a visão que os santos têm de Deus é verdadeira, “e aquele que a declara
como falsa se extraviou do divino conhecimento de Deus”. Assim, qualquer um que
ignore ou desconsidere a visão de Deus, a qual oferece o verdadeiro conhecimento,
este é na realidade ignorante a respeito de Deus.
Essas coisas mostram que a visão de Deus, a deificação, a união e o
conhecimento de Deus estão intimamente ligados. Eles não podem ser entendidos
independentemente uns dos outros. Quebrar essa unidade empurra o homem para
longe de qualquer conhecimento de Deus. A base da epistemologia Ortodoxa é a
iluminação e a revelação de Deus no interior do coração purificado do homem.
Como vimos, o conhecimento de Deus está além do conhecimento humano. A
visão da luz incriada ultrapassa toda atividade epistemológica e está “além da
intuição e do conhecimento”. Uma vez que a visão da luz incriada é oferecida apenas
aos corações dos fiéis e dos perfeitos, por essa mesma razão “ela é superior à
luz do conhecimento”. E não apenas ela é superior à luz do conhecimento humano “a
partir dos estudos Helênicos”, como ainda a luz dessa theoria difere “da luz que provém das Sagradas Escrituras”, uma vez
que a luz das Escrituras pode ser comparada a “uma lâmpada que brilha num local
escuro, enquanto que a visão da luz incriada se assemelha à estrela da manhã
que brilha durante o dia, ou seja, ao sol”. Assim sendo, a graça da deificação
transcende a natureza, a virtude e o conhecimento humano.
A visão da luz incriada e o conhecimento que dela provém não são um
desdobramento da potência racional, nem a perfeição da natureza racional, como
afirmava Barlaam, mas são coisas superiores à razão. São o conhecimento
oferecido por Deus aos puros de coração. Quem quer que afirme que o dom deificante
é um desenvolvimento da natureza racional se coloca em oposição ao Evangelho de
Cristo. Se a contemplação fosse um dom natural, todas as pessoas poderiam ser
deuses, algumas mais e outras menos. Mas “os santos deificados transcendem a
natureza”, eles são gerados por Deus, que lhes concede o poder de se tornarem “filhos
de Deus”.
A visão da luz incriada, que oferece o conhecimento de Deus ao homem,
é sensorial e suprassensorial. Os olhos do corpo são remodelados para poderem
ver a luz incriada, “essa luz misteriosa, inacessível, imaterial, incriada,
deificante, eterna”, essa “irradiação da Natureza Divina, essa glória da
divindade, essa beleza do Reino celestial”. Palamas pergunta: “Você vê que essa
luz é inacessível aos sentidos que não foram transformados pelo Espírito?”. São
Máximo, cujo ensinamento é citado por São Gregório, diz que os Apóstolos viram
a Luz incriada “por uma transformação da atividade de seus sentidos, produzida
neles pelo Espírito”.
A visão da luz incriada e o conhecimento que provém dela transcendem
não apenas a natureza e o conhecimento humano, mas também a virtude. A virtude
e a imitação de Deus nos preparam para a união divina, mas a união misteriosa
em si é efetuada pela graça.
Portanto, a deificação, que é o objetivo da vida espiritual, é uma
manifestação de Deus no coração puro do homem, essa visão da Luz incriada é o
que cria o deleite espiritual na alma. Pois, de acordo com São Gregório, a
evidência dessa luz é que a alma cessa de se entregar aos maus prazeres e às
paixões, adquirindo a paz e a quietude dos pensamentos, o repouso e a alegria
espiritual, o desdém pela glória humana, a humildade unida a um júbilo secreto,
a aversão ao mundo, o amor pelas coisas celestiais, ou melhor, o amor
exclusivamente ao Deus dos Céus, e a visão da luz incriada, mesmo que os olhos
da pessoa estejam cobertos ou tenham sido arrancados.
Daquilo que dissemos fica claro que o final da cura do homem é a visão
da luz incriada. Mas como nesse capítulo estamos falando sobre a theoria, vejamos o que diz o ensinamento
de Palamas sobre os diversos graus da theoria.
Ele diz que a theoria tem um começo,
e as coisas que se seguem a esse começo diferem em graus de escuridão ou
claridade, mas que não existe fim, pois ela progride sempre assim como o
arrebatamento da revelação, que é infinito. A iluminação é uma coisa, e a visão
contínua da luz é outra, e outra ainda é a visão das coisas nessa luz, por meio
da qual mesmo as coisas mais distantes ficam acessíveis aos olhos, e o futuro é
mostrado agora como se já existisse. Portanto existem graus de theoria e, com esses, graus de
conhecimento.
Esse ponto pode ser visto no ensinamento de São Pedro Damasceno sobre
os oito estágios da theoria. Os primeiros
sete pertencem a este século, enquanto que o oitavo pertence ao século futuro. A
primeira theoria é o conhecimento dos
desafios e tribulações desta vida. A segunda é “o conhecimento de nossas
próprias faltas e da bondade de Deus”. A terceira theoria é o conhecimento das coisas terríveis antes e depois da
morte. A quarta é o entendimento profundo da vida que nosso Senhor Jesus levou
neste mundo, e também da de Seus discípulos e santos, ou seja, das palavras e das
ações dos mártires e dos santos Padres. A quinta é o conhecimento da natureza e
do fluxo das coisas, a sexta é a theoria
dos seres criados, ou o conhecimento e o entendimento da criação visível de
Deus. A sétima é o entendimento da criação espiritual de Deus, ou seja, dos
anjos. A oitava é o conhecimento relativo a Deus, que é o que chamamos de “teologia”.
Consequentemente, a theoria possui
muitos estágios e graus, e muitos devem vir antes da visão da luz incriada, que
é a “beleza do século futuro”, “o alimento celestial”. Dentre os graus da theoria está a lembrança da morte, que é
um dom de Deus, bem como a prece incessante, a inspiração para manter
integralmente os mandamentos de Cristo, o conhecimento de nossa pobreza
espiritual, ou seja, o entendimento de nossos pecados e de nossas paixões, e o
arrependimento que se segue a isso. Todas essas coisas provêm de uma operação
da graça divina. Certamente a theoria
perfeita é a visão da luz incriada, a qual se diferencia entre visão e visão
contínua, como diz Palamas.
Assim, a purificação que acontece pela graça de Deus cria as
precondições necessárias para atingir a theoria,
que é a comunhão com Deus, a deificação do homem e o conhecimento de Deus. O método
ascético da Igreja conduz a esse ponto. Ele não está baseado em critérios
humanos e não pretende tornar a pessoa “doce e amável”, mas sim curá-la
perfeitamente e adquirir para ela a comunhão com Deus. Enquanto a pessoa estiver
distante da comunhão e da união com Deus, ela não terá ainda alcançado a
salvação. A pessoa espiritualmente treinada que vê a luz incriada é chamada, na
linguagem dos Padres, de “deificada”. Essa expressão foi usada por São Dionísio
o Areopagita, e repetida, como vimos, por São Gregório Palamas.
A cura da alma, do nous e do
coração conduz a pessoa à visão de Deus e faz com que ela conheça a vida
divina. Esse conhecimento constitui a salvação do homem.
Devemos orar fervorosamente a Deus para que nos conceda alcançar esse
conhecimento de Deus. A exortação é clara:
“Venham, subamos a montanha do Senhor,
Até a causa de nosso Deus,
E contemplem a glória de Sua transfiguração,
Glória do Filho Único do Pai.
Possamos nós receber a luz de Sua luz,
E com os espíritos elevados
Possamos cantar louvores à Trindade consubstancial”.
Assim nos erguemos e cantamos:
“Ele se transfigurou sobre o monte, ó Cristo nosso Deus, mostrando Sua
glória aos Seus discípulos, tanto quanto estes puderam compreender. Pelas intercessões
da Mãe de Deus, que Sua luz eterna brilhe sobre nós, pecadores, o Dispensador
da luz, glória a Ti[2]”.
1.3. Orações
1.3.1.
Na busca por um médico espiritual
“Ó Senhor, que não desejas a morte do pecador, mas que todos vivam,
que vieste à terra para restaurar a vida daqueles que jazem mortos pelo pecado
e para torna-los dignos de ver Tua verdadeira luz, tanto quanto isso é possível
ao homem, envia-me um homem que Te conheça, para que, servindo-o e
submetendo-me a ele com todas as minhas forças, como se a Ti fosse, e cumprindo
Tua vontade através dele, eu possa agradar a Ti, o único e verdadeiro Deus, para
que mesmo eu, pecador, possa me tornar digno de Teu Reino[3]”.
1.3.2.
Pelo conhecimento de Deus e o amor a Ele
“Tornai-me digno, ó Senhor, de conhecer-Te e amar-Te, não com o
conhecimento exercido por um nous
disperso; mas fazei-me digno desse conhecimento para que, contemplando-Te, o nous glorifique Tua natureza, na visão
divina que retira a mente dos cuidados do mundo. Torna-me digno de me elevar
acima dos caprichos do meu olho vagabundo que engendra imaginações, e para contemplar-Te
na prisão da Cruz, na segunda parte da crucificação do nous, que voluntariamente deixa suas imagens conceituais para
habitar na Tua visão contínua que ultrapassa a natureza. Coloca em meu coração
um amor crescente por Ti, para que ele possa se retira deste mundo por um
fervoroso amor por Ti. Desperta em mim o entendimento de Tua humildade, com que
andastes pelo mundo revestido da carne que recobriu Teus membros pela mediação
da Santa Virgem, para que, com essa contínua e infalível lembrança eu possa
aceitar a humilhação de minha natureza com prazer[4]”.
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