1.
Patologia Ortodoxa
João Evangelista, no preâmbulo de sua descrição da cura milagrosa que
o Senhor fez do paralítico, nos deu uma descrição da piscina de Bethesda e da
situação que acontecia ali durante a visita do Senhor. Bethesda possuía cinco
pórticos. “Nesses ficava uma grande multidão de doentes, cegos, coxos,
paralíticos, esperando pela subida da água[1]”.
Também a Igreja é uma Piscina, a Bethesda espiritual. Todos nós, seus
membros, derrotados pela morte e a decadência, pela corruptibilidade e a
mortalidade com todas as suas consequências, esperamos junto a essa Piscina,
esperando por nossa cura espiritual.
São João Crisóstomo interpreta o milagre realizado pelo Senhor em
Bethesda. Ele levanta a questão: “Que modo de cura é este? Que mistério está
sendo insinuado a nós?”. Ele responde que a piscina figura e tipifica o que
acontecerá no futuro, que será de fato o batismo. “Ele estava a ponto de
ministrar o batismo, que tem muito poder e consiste num grandíssimo dom, o
batismo que lava de todo pecado e traz o homem à vida, depois de ter estado
morto”.
Dado que o batismo é o Mistério (sacramento) “introdutório”, por meio
do qual se entra para a Igreja, podemos estender o simbolismo para dizermos que
a Igreja é a Bethesda espiritual, um sanatório e um hospital espiritual. Todos os
Cristãos, tendo experimentado o amor e a caridade de Deus para com a
humanidade, ao mesmo sentem sua própria pobreza espiritual. Devido ao fato de
que Deus lança uma luz sobre a nossa condição interior, podemos ver a força das
paixões em nós e a lei do pecado em nossos membros. Por isso nos sentimos
doentes. Essa sensação é o começo da cura, ou, para nos expressarmos melhor, é
o começo da visão de Deus, uma vez que o arrependimento e a aflição interior
são impossíveis num homem carnal. Apenas quem partilha da graça de Deus
experimenta essa realidade interior.
Os hospitais possuem clínicas patológicas especializadas. E a Igreja,
que é o hospital espiritual, o sanatório espiritual, possui sua própria clínica
patológica. Não queremos criar confusão a respeito desses termos, mas
acreditamos firmemente que o estudo das paixões e uma patologia. Sendo assim,
iremos nos deter agora longamente sobre o tema das paixões. Devemos definir
‘paixão’, estabelecer distinções entre as paixões, e então examinar de forma
tão analítica quanto possível a cura das paixões.
Essa explicação é necessária porque ela constitui o ethos Ortodoxo. Estamos convencidos de
que o que é dito a respeito de ser Ortodoxo deve incluir diversos elementos
básicos. O primeiro se refere à queda do homem da vida divina, e à tragédia de
seu estado decaído. Assim, devemos falar de um renascimento por meio do santo
batismo, e da continuação desse renascimento que prossegue na Igreja. O
ensinamento sobre o renascimento não será Ortodoxo se implicar um evento
momentâneo que acontece fora da fé em Cristo, porque o renascimento acontece ao
longo de toda a nossa vida, e não existem limites à perfeição, a qual não
conhece fronteiras. Temos o caso do Apóstolo Pedro, a quem foi dado ver a Luz
incriada no Monte Tabor. Seus olhos foram transformados e ele pôde ver a glória
do Senhor. Mesmo assim, poucos dias depois, ele negou a Cristo. Certamente, o
grande momento da Teofania o levou ao arrependimento e ao pranto. De qualquer
modo, observamos aqui que o poder da lei do pecado era tão forte que o levou à
queda mesmo depois de ter certeza sobre a Divindade de Cristo. Pode-se
considerar como uma circunstância mitigatória o fato de que quando Pedro viu a
glória do Senhor, isto se deu antes do Batismo que viria a acontecer no dia de
Pentecostes. A natureza do Apóstolo ainda não havia sido empoderada pela
energia do Espírito Santo.
O mesmo podemos dizer do Apóstolo Paulo. Apesar de sentir sua comunhão
próxima a Cristo, a tal ponto de dizer: “Não sou mais eu quem vive, mas Cristo
vive em mim[2]”,
ele disse também, expressando toda a dor da humanidade: “Eu vejo outra lei em
meus membros, que faz a guerra contra a lei de minha mente, e me conduz ao
cativeiro da lei do pecado que está em meus membros. Pobre homem sou eu! Quem
me libertará deste corpo de morte?[3]”.
A seguir tentaremos lançar um olhar sobre essa lei do pecado, a “outra
lei”. Acreditamos que este capítulo a que denominamos ‘Patologia’ será um dos
mais básicos deste libro. Em alguns pontos tentaremos ser mais analíticos,
listando as paixões conforme Cristo, os Apóstolos e os Padres as apresenta,
porque queremos apontar a temível realidade que nos flagela e da qual,
infelizmente, permanecemos a maior parte do tempo inconscientes.
1.1. O
que são as paixões
‘Paixão’ deriva do verbo grego ‘pascho’,
‘sofrer’, e indica uma moléstia interior. De acordo com Filoteu o Sinaíta: “A
paixão, no sentido estrito, é definida como sendo aquilo que se embosca
ardentemente dentro da alma por um longo período”. A seguir veremos como um
pecado se torna uma paixão. Aqui queremos sublinhar particularmente o fato de
que quando um pecado é repetido costumeiramente e se tocaia em nossa alma por
um longo período, ele passa a se chamar ‘paixão’. Os Padres foram longe na
interpretação das diferenças entre paixão e pecado. Paixão é “o movimento que
tem lugar na alma”, enquanto que a prática pecaminosa “é aquela que se
manifesta no corpo”.
O Senhor explicou seu ensinamento sobre a paixão em muitos pontos, que
estão relatados nos Evangelhos. Vamos sublinhar algumas passagens aqui, e
voltaremos a elas mais adiante. Em resposta à pergunta do Fariseu: “Porque seus
discípulos não caminham de acordo com a tradição dos antigos e comem o pão sem
lavar as mãos?”, o Senhor dirigiu a atenção para o homem interior: “Do
interior, do coração do homem, provêm os maus pensamentos, a fornicação, o
roubo, o assassinato, o adultério, a cobiça, a maldade, a fraude, a luxúria, a
inveja, a calúnia, o orgulho, a insensatez. Todas essas coisas vêm de dentro e
corrompem o homem[4]”.
Interpretando a parábola do semeador e se referindo especialmente à
semente que caiu “entre os espinheiros”, Ele disse que as paixões são aquilo
que sufoca a semente e não a deixa produzir. “Aquela semente que caiu entre os
espinheiros, representa aqueles que ouvem, mas assim que se afastam são
sufocados pelos cuidados, as riquezas e os prazeres da vida, e não conseguem
produzir fruto[5]”.
O Apóstolo Paulo também sabe que as paixões existem no coração do
homem. Falando da condição anterior ao Batismo, que ele chama de vida carnal,
ele escreve: “Enquanto vivemos na carne, nossas paixões pecaminosas,
estimuladas pela lei [do pecado] operavam em nossos membros para produzir o
fruto da morte[6]”.
Descrevendo a vida dos idólatras infiéis, ele escreve: “Por essa razão Deus deu
a eles paixões desonrosas[7]”.
Assim é que as paixões sufocam nossa alma e criam terríveis problemas
para todo o nosso ser, como poderemos constatar a seguir. De acordo com o
ensinamento de São Gregório Palamas, uma pessoa que ama o delito detesta sua
própria alma, deixa de lado e “desliga” a imagem de Deus – ou seja, sua alma –
e “experimenta um sofrimento semelhante ao do louco que impiedosamente corta
sua própria carne em pedaços, sem sentir”. Como um louco, ele “inflige
inconscientemente a pior espécie de mal e destroça sua própria beleza inata”. A
paixão é o obscurecimento, a desativação e o embaciamento da imagem, da beleza
de Deus.
Para falarmos das paixões, devemos colocar com mais precisão o que são
elas. Serão forças que penetram na alma e que devemos empurrar para fora, ou
serão potências naturais da alma que foram corrompidas pelo pecado e por nosso
afastamento de Deus? Toda a tradição bíblica e patrística acredita na segunda
hipótese. Por isso, a seguir examinaremos a alma e suas partes para que
possamos determinar de que modo essas potências foram corrompidas.
Além dessas divisões, São Gregório Palamas, Arcebispo de Tessalônica,
também emprega a divisão da alma estabelecida ao tempo dos antigos filósofos
Gregos. A alma do homem é uma, embora possua muitas potências. Ela é dividida
em três partes: a inteligência, a potência concupiscente e a potência
irascível, sendo que estas últimas constituem a parte chamada de ‘passional’ da
alma, enquanto que a palavra está na inteligência. Desta forma, na medida em
que avançarmos no tema das paixões, quando falarmos da parte passional da alma
que foi corrompida e precisa ser curada, devemos entender com isto as potências
concupiscente e irascível. Podemos acrescentar ainda aos ensinamentos desses
dois grandes Padres da Igreja, o de São Doroteus, o qual, usando a passagem de
São Gregório o Teólogo, escreve que a alma é tripartite: “Ela possui o apetite
concupiscente, a irascibilidade e a inteligência”.
Essas três potências devem estar voltadas para Deus. Essa é sua
condição natural. De acordo com São Doroteus, que concorda com Evagro, “a alma
inteligente trabalha naturalmente quando seu apetite concupiscente se volta
para a virtude, sua irascibilidade se esforça nessa direção e a inteligência se
devota inteiramente à contemplação das coisas”. E São Thalassius escreve que a
função própria da parte inteligente da alma é a devoção ao conhecimento de
Deus, enquanto que a função da parte passional (concupiscente e irascível)
consiste na busca do autocontrole e do amor. Nicholas Cavasilas, referindo-se a
esse tema, concorda com esses Padres e diz que a natureza humana foi criada
para o homem novo. Nós recebemos a razão “para que possamos conhecer a Cristo,
e nosso desejo para que possamos nos apressar indo a ele. Nós temos a memória
para que O tenhamos sempre junto a nós”, uma vez que Cristo é o Arquétipo para
o homem.
De acordo com o exposto acima, o homem não foi formado com as paixões
tais como elas funcionam hoje em dia no homem de carne, que não possui as
operações do Espírito Santo. As paixões não possuem essência nem hipóstases. Do
mesmo modo como a escuridão não possui uma essência própria, mas é a ausência
de luz, também assim é a paixão. “Foi ao se inclinar das virtudes para o amor
ao prazer que a alma preparou o caminho para as paixões e deu a elas um lugar
firme em si mesma”. Podemos esclarecer melhor isso dizendo que as paixões são
as perversões das potências da alma. Deus não formou o homem com as paixões da
desonra. Como diz São João Clímaco, “o mal ou a paixão não são algo de natural
implantado nas coisas. Deus não foi o criador das paixões. Por outro lado,
existem muitas virtudes naturais que vieram até nós provenientes dele”. A
presença das virtudes é o estado natural do homem, enquanto que as paixões são
uma condição desnaturada. Nós alteramos e pervertemos as energias da alma e as
desviamos de seu estado natural para um estado não natural. De acordo com São
João Clímaco, Deus não causou nem criou o mal. “Nós tomamos por nós mesmos os
atributos naturais e os transformamos em paixões”. O mesmo santo nos fornece
outros exemplos para deixar isso bem claro: “A semente da geração” é natural em
nós, mas nós a pervertemos em fornicação. A aversão que Deus nos concedeu
contra a serpente, para que fizéssemos a guerra contra o diabo, é natural, mas
nós a utilizamos conta nosso vizinho. Temos um ímpeto natural de exercer a
virtude, mas ao invés disso competimos no mal. A natureza colocou em nós um
desejo de glória, mas de uma glória celeste, para a alegria das bênçãos
celestiais. É natural que sejamos arrogantes – mas, contra os demônios. A
alegria é nossa por natureza, mas por causa do Senhor e com o objetivo de fazermos
o bem ao nosso próximo. A natureza nos deu o ressentimento, mas para nos
voltarmos contra os inimigos de nossas almas. Temos um desejo natural pelo
alimento, mas não para o desregramento.
Por essa razão os Padres enfatizam constantemente a verdade de que as
paixões, tais como as conhecemos no estado decaído, constituem uma vida
desnaturada, um impulso que vai contra a natureza. “Uma paixão culpável é um
impulso da alma contrário à natureza”. Ao explicar o que é esse impulso
desnaturado da alma, São Máximo o chama de “um amor ou um ódio insensato por
alguém ou por alguma coisa sensível”. Em outra passagem ele escreve que o vício
é um uso errado das nossas imagens conceituais das coisas, que leva ao uso
disfuncional das próprias coisas. Tomando o exemplo do casamento, ele diz que o
uso correto do relacionamento sexual é a geração dos filhos. Uma pessoa que
procura nisso apenas o prazer “usa mal essa dádiva, porque julga bom aquilo que
não o é. Quando uma homem se relaciona com uma mulher dessa maneira, ele abusa
dela”. O mesmo é verdade em relação a outras coisas.
A parte inteligente da alma do homem decaído é dominada pelo orgulho,
a parte concupiscente pelas perversões da carne e a parte irascível pelas
paixões do ódio, da aversão e do rancor.
São Máximo, que estava interessado na vida natural e antinatural da
alma, analisou-as exaustivamente. As potências naturais da alma, escreve ele,
são a inteligência, o desejo e a potência irascível. O uso natural da
inteligência “consiste num movimento em direção a Deus numa busca simples”, o
do desejo, é “ansiosa e solitária marcha para Deus”, e a da potência irascível
é “a luta para alcançar somente a Deus”. Vale dizer que, quando uma pessoa vive
naturalmente, ela deseja conhecer a Deus completamente, ela só deseja a Deus e
ela luta para alcançar a Deus, ou seja, para atingir a comunhão com Deus. O
resultado desse impulso natural é o amor. A pessoa que se une a Deus adquire o
bendito estado do amor, uma vez que Deus é Amor. A Sagrada Escritura diz: “Ame
ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com toda a sua
mente, com toda a sua força[8]”.
Quando uma pessoa usa as três potencias de sua alma de forma antinatural, os
resultado da inteligência é a ignorância espiritual, do desejo é o amor-próprio
e da irascibilidade é a tirania. Então a pessoa se torna completamente escrava
do diabo, e a beleza da alma é destruída.
Em outra passagem São Máximo analisa no que consiste o mau uso. O mau
uso da inteligência é a ignorância e a estupidez. O mau uso da ira e do desejo
são o ódio e a licenciosidade. O uso apropriado dessas potências produz o
conhecimento espiritual, o julgamento moral, o amor e o comedimento. É porque
nada do que foi criado por Deus é mau. O fato de que nada do que é natural é
mau significa que o mau só existe quando as potências em nós são distorcidas.
São Máximo emprega muitos exemplos. Não são os alimentos que são maus, mas a
gulodice, não a geração, mas a luxúria, não as coisas materiais, mas a avareza,
não a estima, mas a autoestima.
O mau uso das potências da alma é o pecado e a doença. O vício, de
acordo com São Doroteus, “é uma doença da alma despojada de sua saúde natural,
que é a virtude”.
Por isso falamos de uma moléstia humana que precisa ser curada. Pois a
impureza da alma é o fato de que ela “não está funcionando de acordo com a
natureza”, e essa condição gera pensamentos passionais no nous. O estado natural da alma humana, que é a saúde por
excelência, aparece quando, diante de provocações, suas partes passionais – ou
seja, as partes irascível e concupiscente – permanecem impassíveis. E uma vez
que a alma humana é uniforme e possui muitas potências, por essa razão, quando
uma potencia da alma adoece todo o resto cai com ela.
São Gregório Palamas ensina que do mesmo modo como o mau uso do
conhecimento das coisas criadas gera “a sabedoria tola”, também o mau uso das
potências da alma geram “paixões terríveis”.
Que as paixões consistem num impulso antinatural das potências da
alma, um desvio das partes passional e inteligente da alma para longe de Deus e
em direção das coisas criadas, fica demonstrado pelo fato de que quando um
homem está curado interiormente pela ação da graça divina e por sua própria
luta, as potências passionais da alma não são suprimidas, nem obliteradas, mas se
voltam para Deus; elas correm para ele e alcançam o conhecimento e a união com
ele. São Gregório Palamas, referindo-se a Barlaam, que sustentava que a dor e a
tristeza não pertenciam à oração, mas que as potências passionais, por serem
más, deveriam ser mortificadas durante a prece, ensinou que “existem paixões
benditas e atividades comuns do corpo e da alma que, longe de amarrarem o
espírito à carne, servem para guiar a carne a uma dignidade próxima àquela do
espírito”. Essas atividades são espirituais, não se movendo do corpo para o nous, mas do nous para o corpo. Por isso, quando tentamos obter a cura, não
mortificamos as paixões, mas as redirecionamos, como explicaremos adiante. As
lágrimas, a tristeza, o arrependimento e a dor, que são maneiras efetivas de
curar a alma, são as coisas que purificam as partes passional e inteligente da
alma.
Encerrando esta seção queremos enfatizar principalmente que as paixões
do corpo são energias distorcidas da alma. Quando a alma perde o amor e a
temperança, as paixões das partes irascível e concupiscente da alma ficam
distorcidas. E essas paixões são estimuladas por intermédio dos sentidos. As
paixões da vida carnal, no sentido da ausência do Espírito Santo, se colocam
num movimento antinatural da alma, e então resta apenas a agonia, a doença e a
morte.
1.2. Tipos
de paixão e seu desenvolvimento
Agora que vimos o que são as paixões, estamos prontos para observar
como elas se classificam e de que modo se desenvolvem. Ao mesmo tempo,
tentaremos empreender uma lista delas, porque acreditamos que isso pode
auxiliar os Cristãos que estão lutando a boa luta. Se quisermos nos curar das
paixões, precisamos diagnosticá-las.
O ensinamento sobre as paixões é encontrado não apenas nos escritos
patrísticos, mas também da Sagrada Escritura. O Apóstolo Paulo fala da carne. É
bem conhecido que, de acordo com o Apóstolo, o homem carnal é aquele desprovido
das energias do Espírito Santo. “Os desejos da carne vão contra o espírito e os
desejos do espírito vão contra os da carne; porque eles se opõem mutuamente[9]”.
Então ele descreve as obras da carne, que são as paixões carnais: “As obras da
carne são bem conhecidas: imoralidade, impureza, idolatria, licenciosidade,
feitiçaria, inimizade, conflito, inveja, ódio, egoísmo, dissensão, divisão,
cobiça, assassinatos, embriaguez, desregramento e coisas assim. Eu os aviso,
como já avisei antes, que aqueles que fazem essas coisas não herdarão o Reino
de Deus[10]”.
Em sua carta aos Romanos o Apóstolo Paulo lista as obras do pecado, as
paixões, que infestam toda a nossa existência. Referindo-se àqueles que
abandonaram a Deus para adorar os ídolos, ele escreve: “E uma vez que eles
desertaram do conhecimento de Deus, Deus lhes deu uma mente estreita e incapaz
de conduzi-los. E eles se encheram com todo tipo de fraquezas, males, avareza,
malícia. Encheram-se de cobiça, assassinato, conflitos, fraudes, malignidades,
eles são fuxiqueiros, difamadores, odeiam a Deus, insolentes, arrogantes e
vaidosos, inventores do mal, desobedientes a seus pais, estúpidos, infiéis, sem
coração, impiedosos[11]”.
Ele descreve ao seu discípulo Timóteo a condição das pessoas “nos
últimos dias”. “Os homens amarão apenas a si próprios, adoradores do dinheiro,
orgulhosos, arrogantes, abusadores, desobedientes aos pais, ingratos, ímpios,
desumanos, implacáveis, caluniadores, dissolutos, ferozes, odiadores do bem,
traiçoeiros, inconsequentes, inchados de vanglória, amantes dos prazeres mais
do que de Deus, propagando uma religião formal e negando a força que a
verdadeira religião possui[12]”.
Os três textos mencionados mostram toda a situação do homem que está
distante de Deus. Trata-se de um verdadeiro psicograma, uma significativa visão
de raios-X da alma do homem que é governado pelas paixões. Mas devemos agora
prosseguir na análise das obras patrísticas.
De acordo com São Máximo, a paixão básica da qual todas as demais se
originam é o amor por si mesmo. Um homem ama a si mesmo que o faz
excessivamente e idolatra a si próprio. Quando a atenção de uma pessoa é
desviada de Deus e ela se desinteressa de se unir a Ele e a fazer Sua vontade,
ela necessariamente se volta para si mesma, desejando satisfazer seus desejos
todo o tempo. “Proteja-se contra a mãe de todos os vícios, o amor por si
mesmo”, diz São Máximo. Definindo esse amor, ele diz que se trata de um “amor
demente pelo corpo”. É ele que origina as “três paixões gerais dos pensamentos
passionais”, que são a gulodice, a avareza e a autoestima. “Todos os demais
vícios se originam desses três”.
Em outra passagem, apresentando as terríveis consequências do amor por
si mesmo, ele o chama de mãe de muitas filhas. A tagarelice e a glutoneria
causam a intemperança. A avareza e a autoestima fazem com que a pessoa deteste
seu próximo. O amor a si próprio, também chamado ‘filáucia’, é a causa de ambas
essas coisas.
Em sua carta a Thalassius, São Máximo detalha a descendência da
filáucia, que ele distribui em duas categorias. Numa categoria estão as paixões
que levam ao prazer sensual e na outra aquelas que afastam a dor. Na primeira
categoria ele coloca as seguintes paixões: “gulodice, orgulho, autoestima,
pavonear-se, avareza, tirania, dar-se ares, ostentação, insensatez, frenesi,
presunção, convencimento, desdém, insulto, impiedade, frivolidade, dissolução,
licenciosidade, ostentação, inconsequência, estupidez, violência, sarcasmo,
tagarelice, palavras inoportunas e indecentes, e todas as coisas do gênero”. Na segunda categoria, ele coloca as seguintes
paixões: “ira, inveja, ódio, inimizade, rancor, prepotência, difamação,
injúria, lamentação, desconfiança, desesperança, menosprezo da providência,
indiferença, apatia, abatimento, depressão, desencorajamento, luto
intempestivo, lágrimas, melancolia, queixas, ciúmes, maldade e todas as demais
disposições que não dão ocasião ao prazer”.
São Gregório Palamas cria outra divisão. Na seção anterior nós
enfatizamos que a alma se divide em três partes, a inteligente, a irascível e a
concupiscente. O primeiro fruto da irascível parte é o amor às possessões e o
segundo é a avareza. O fruto da parte inteligente da alma é o amor à glória, e
a marca característica da parte concupiscente é a gulodice, da qual provêm
“todas as imundícies da carne”. Em outras palavras, da filáucia, que é a
senhora e a mãe de todas as paixões, nascem as três paixões gerais, o amor à glória,
a avareza e a autoindulgência. Dessas três nascem todas as demais que corrompem
a alma e o corpo do homem.
São Marcos o Asceta, esforçando-se para avaliar as paixões e para
encontrar as mães que fazem com que nasçam umas e outras, escreve que existem
três que são gigantes, e que quando essas três são vencidas e expulsas, todos
os demais poderes dos maus espíritos são facilmente removidos. Esses três
gigantes são a ignorância espiritual, que é a fonte de todo o mal, o
esquecimento, ou negligência, “seu parente próximo e ajudante”, e a preguiça,
que “tece a mortalha escura que envolve a alma nas trevas”. Preguiça,
esquecimento e ignorância, “sustentam e fortalecem as demais paixões”.
Essa diferença entre os três Padres não é essencial. A filáucia, o esquecimento,
a preguiça e a ignorância de Deus são o clima favorável no qual todas as
paixões de amor à glória, avareza e autoindulgência se desenvolvem. Cada um dos
Padres, conforme sua luta pessoal e de acordo com o tema que ele desejava
enfatizar, sublinhou uma paixão diferente. Os Padres não estavam filosofando ou
analisando todas as almas quando listaram essas paixões, mas cada um falava de
sua experiência pessoal. Mas devemos em primeiro lugar enfatizar que a filáucia
está estreitamente ligada à ignorância, ao esquecimento e à preguiça, porque
voltar a atenção para si próprio inevitavelmente traz o esquecimento e a
ignorância de Deus, o que resulta no nascimento de todos os demais pecados – as
paixões.
De acordo com São João Damasceno, a alma possui três partes: a
inteligente, a irascível e a concupiscente. Os pecados da parte inteligente são
a descrença, a heresia, a insensatez, a blasfêmia, a ingratidão, e “a
aquiescência em relação aos pecados originários da parte concupiscente da
alma”. Os pecados da parte irascível são a crueldade, o ódio, a falta de
compaixão, o rancor, a inveja, o assassinato e “a permanência em meio a essas
coisas”. Os pecados da parte concupiscente são a gulodice, a cobiça, a
embriaguez, o despudor, o adultério, a impureza, a licenciosidade, o amor pelas
coisas materiais e o desejo de glória, de ouro, de saúde e dos prazeres da
carne. O mesmo santo lista ainda os oito pensamentos que cercam o mal, e que
estão naturalmente ligados às correspondentes paixões, uma vez que é por intermédio
dos pensamentos que os pecados chegam a existir e se desenvolvem em paixões. Os
oito pensamentos são a gula, a luxúria, a avareza, o ódio, o desânimo a
indiferença, a autoestima e o orgulho.
Depois de examinarmos a divisão das paixões que é análoga às divisões
da alma, devemos agora observar outra divisão que encontramos nos ensinamentos
patrísticos. Aqui as paixões são dividias entre as do corpo e as da alma. A
alma tem suas paixões, e o corpo tem as paixões que se relacionam com a carne.
É bem conhecido no ensinamento patrístico que antes da queda a alma
humana estava aberta para Deus e era alimentada com a graça de Deus.
Certamente, o homem sempre teve que lutar para alcançar a total comunhão e
união com Deus, mas nesse tempo ele provava da graça de Deus. A alma se nutria
da graça incriada e o corpo se alimentava por meio da “alma cheia de graça”.
Todo o homem experimentava os dons de Deus. Desde a queda, a alma, separada de
Deus, a verdadeira fonte da vida – “buscou alimento no corpo. E assim nasceram
as paixões (...) Por seu lado, o corpo, não encontrando vida na alma, se voltou
para as coisas exteriores, e, como é natural, se tornou escravo da matéria e
prisioneiro do ciclo de corrupção. Então apareceram as paixões do amor ao
prazer corporal, por cuja causa o homem passou a tentar dirigir sua vida no
sentido de desfrutar das coisas materiais”. Nisso consiste a morte do corpo, e,
especial, da alma. Se, por outro lado, por meio do ascetismo e da vida em
Cristo, nos esforçamos para voltarmos nossa alma para Deus para sermos
alimentados por ele, o corpo voltará a ser alimentado pela “alma cheia de
graça” e então todo o homem será santificado. Vemos isso nos santos da Igreja,
nos quais às vezes as funções corporais estão suspensas.
De acordo com São Máximo, algumas paixões pertencem ao corpo, e outras
à alma. As paixões corporais são ocasionadas pelo corpo, enquanto que as da
alma são ocasionadas pelos objetos exteriores. Encontramos a mesma distinção
entre as paixões nos ensinamentos de Elias o Presbítero, que diz: “As paixões
do corpo são uma coisa, as da alma outra”.
São João Damasceno desenvolveu uma lista das paixões do corpo e da
alma. As da alma são o esquecimento, a preguiça e a ignorância, por meio das
quais o olho da alma se obscurece e a alma é dominada pelas demais paixões.
Estas são a impiedade, os falsos ensinamentos e todo tipo de heresias, a
blasfêmia, o ódio, a raiva, o azedume, a irritabilidade, a desumanidade, o
rancor, a calúnia, o criticismo, o desânimo insensato, o medo, a covardia, a
turbulência, o ciúme, a inveja, a autoestima, o orgulho, a hipocrisia, a
falsidade, a descrença, a cobiça, o amor pelas coisas materiais, os maus
desejos, a ligação com os interesses mundanos, a apatia, o desencorajamento, a
ingratidão, os queixumes, a vaidade, a empáfia, a pomposidade, a ostentação, o
amor ao poder, o amor à popularidade, a fraude, a falta de vergonha, a
insensibilidade, a bajulação, a perfídia, a pretensão, a indecisão, “a
aquiescência em relação aos pecados originários da parte concupiscente da alma
e que passam a se estabelecer nela permanentemente”. E ainda os pensamentos
divagantes, a filáucia, a avareza – raiz e fonte de todos os males – e,
finalmente, a malícia e a trapaça.
As paixões do corpo, de acordo com São João Damasceno, são a gulodice,
a ganância, a autoindulgência, a embriaguez, comer escondido, uma vida fácil, a
falta de castidade, o adultério, a licenciosidade, a impureza, o incesto, a
pederastia, a bestialidade, os desejos impuros e todas as paixões brutais e
antinaturais, o roubo, o sacrilégio, o furto, o assassinato, todo tipo de
luxúria física e de gratificação dos caprichos da carne, em especial quando o
corpo está com boa saúde. Outras paixões corporais são: consultar oráculos,
lançar sortes, buscar presságios e agouros, enfeitar-se, ostentar, exibir-se
ridiculamente, usar cosméticos, pintar o rosto, perder tempo, sonhar acordado,
trapacear, além do mau uso passional dos prazeres deste mundo. Outras paixões
consistem numa vida dedicada ao conforto corporal, “que embrutece o nous e o torna rude e animalesco, não o
deixando se erguer em direção a Deus e à pratica das virtudes”.
São Gregório do Sinai resume todo o ensinamento dos Padres sobre as
paixões do corpo e as da alma. Ele escreve: “As paixões recebem diferentes
nomes, mas elas se dividem entre as paixões da alma e as do corpo. As paixões
corporais são subdivididas entre as dolorosas e as pecaminosas; as dolorosas se
subdividem entre as relativas às enfermidades e as referentes à punição. As
paixões da alma se dividem entre aquelas irascíveis, as concupiscentes e as da
parte inteligente. As da parte inteligente se subdividem em imaginação e razão.
Todas elas podem ser voluntárias, resultantes do abuso, ou involuntárias, da
necessidade. Essas também são chamadas de paixões não vergonhosas, que os
Padres descrevem como sendo causadas pelo ambiente e por características e
disposições naturais. Algumas paixões são do corpo, outras da alma; algumas são
da parte concupiscente, outras da parte irascível, outras da inteligente,
algumas do nous e outras da razão.
Todas podem combinar entre si de várias maneiras e afetar umas às outras: as
corporais sobre as concupiscentes, as da alma sobre as irascíveis, as da
inteligência sobree o nous e as do nous sobre as paixões da razão e da
memória”.
Independentemente da enumeração e da divisão das paixões, devemos
observar que as paixões não estão separadas umas das outras como em
compartimentos. Cada uma está intimamente ligada às demais, de modo a que a
pessoa se encontre completamente corrompida e condenada. Por causa das paixões
da alma se torna doente e o nous
definha. Assim, a pessoa se torna idólatra e já não pode herdar o Reino dos
céus. O Apóstolo Paulo é claro e categórico a respeito: “Estejam certos disso,
que nenhum homem imoral ou impuro, nenhum que seja avarento – pois o avarento é
um idólatra – terá a menor herança no Reino de Cristo e de Deus[13]”.
Existe ainda outra divisão entre as paixões, desta vez entre monges e
pessoas do mundo. Uma vez que o modo de vida dos monges que praticam o
ascetismo nos mosteiros é diferente do das pessoas do mundo, algumas paixões
dominam numa situação e outras na outra. São João Clímaco escreve que nas
pessoas que vivem no mundo a raiz de todos os males está na avareza, mas entre
os monges está na gula. Para explicar isso ele observa que algumas paixões
começam de dentro e se manifestam no corpo, enquanto outras vêm de fora para o
interior da alma. As primeiras cometem os monges, “devido à falta de estímulos
exteriores”, enquanto o segundo caso costuma ser encontrado entre aqueles que
vivem no mundo. Quando as pessoas do mundo adoecem, elas sofrem das paixões da
gula e da fornicação. Os monges, tendo sua subsistência garantida, são
devastados principalmente pelos demônios do abatimento e da ingratidão. Vemos
assim que nem todos os homens recebem as mesmas tentações. Isso depende de sua
condição espiritual, seu estilo de vida e outros fatores. O diabo é cheio de
recursos e combate cada pessoa de acordo com sua condição.
Já apontamos que algumas paixões são apontadas como mães e outras como
filhas: algumas paixões fazem nascerem outras, enquanto que certas paixões são
os rebentos de outras. São João Clímaco aprendeu com um homem sábio que a
gulodice é a mãe da falta de castidade, e que a autoestima é a mãe da
indiferença. Vale dizer que quando a indiferença se apodera de nós, podemos
estar certos de que a paixão da autoestima está trabalhando para isso. Da mesma
forma, o desprezo e a raiva são filhas dessas três mencionadas. A autoestima é
a mãe do orgulho. Também é dito que nas pessoas inconsequentes não existe
discernimento nem ordem, mas desordem e confusão. Brincadeiras inoportunas às
vezes nascem da falta de castidade, às vezes da autoestima. O excesso de sono
provém de uma vida fácil, mas às vezes do jejum, da apatia ou de uma
necessidade natural. O tagarelar nasce às vezes da gulodice, às vezes da
autoestima. A indiferença pode nascer da vida fácil ou da falta de temor a
Deus. A blasfêmia é propriamente filha do orgulho, mas às vezes surge da
prontidão em condenar o próximo ou inveja inoportuna dos demônios. A falta de
coragem pode provir de comer até a saciedade, mas, mais frequentemente, deriva
da insensibilidade e do apego. O apego, que consiste numa adesão a alguma coisa
sensível, provém da falta de castidade, da avareza e da autoestima, entre
outras coisas. A malícia provém do convencimento e da raiva. A hipocrisia vem
da independência e do autodirecionamento. De modo geral, o prazer sensual e a
malícia são os geradores das paixões.
É importante agora que investiguemos de que modo um pecado se
transforma numa paixão. Os Padres, especialistas nessa luta interior, não se
contentaram em simplesmente listar as paixões, mas nos relataram suas causas e
seu desenvolvimento. De acordo com Thalassius, as paixões são incentivadas por
essas três coisas: “a memória, o temperamento do corpo e os sentidos”. A pessoa
que fixa seu nous nas coisas
sensoriais, afastando-se do amor espiritual e do autocontrole e aceitando as
ações do demônio, se torna um objeto de provocação. “É quando o autocontrole e
o amor espiritual faltam, que as paixões são estimuladas pelos sentidos”.
Quando o reinado dos sentidos soberanos afrouxa, acontece um levante
das paixões, “e a energia das paixões mais servis é posta em movimento”. Quando
a irracionalidade dos sentidos perde as cadeias do autocontrole, está criada a
causa das paixões. De fato, como já observamos, quando o nous do homem vadia com alguma coisa sensível, “ele rapidamente se
apega a ela por meio de alguma paixão, como o desejo, a irritação, a raiva ou o
rancor”. Por isso o esforço descrito por todos os Padres é no sentido de não
permitir que o nous seja capturado
por qualquer coisa ou ideia sensorial, porque a isso se segue imediatamente a
paixão e o desastre. As sementes da tragédia são lançadas ao solo da alma
quando o nous é capturado.
Igualmente, fora o aprisionamento do nous, nosso desejo desempenha um importante papel em impulsionar as
paixões. São Tiago, o irmão do Senhor, descreve essa condição: “Cada pessoa é
tentada quando se é enganada e atraída por seu próprio desejo. O desejo, ao ser
gerado, dá nascimento ao pecado; e o pecado, ao crescer, leva à morte[14]”.
Quando um irmão perguntou ao Abade Sisoé: “O que devo fazer com relação às
paixões?”, o Ancião respondeu: “Cada pessoa é tentada quando se é enganada e
atraída por seu próprio desejo”.
Mais analiticamente, o desenvolvimento das paixões se dá como descrito
a seguir. De acordo com São Máximo, primeiramente a memória traz para o nous um pensamento não passional. Na
medida em que esse pensamento persiste, a paixão se põe em movimento. O próximo
passo é o consentimento. E este leva a cometer o pecado em ato.
Hesíquio o Presbítero mostra em seguida o caminho que segue a paixão.
Primeiro vem a provocação. Em seguida nos juntamos a ela enquanto nossos
pensamentos se misturam com os pensamentos do demônio. Então vem o
consentimento, e, depois dele, “a ação concreta, ou seja, o próprio pecado”. E,
quando um pecado é repetido muitas vezes, a paixão passa a existir.
São Gregório Palamas, dentro da tradição Ortodoxa do tratamento
terapêutico, escreve que a autoindulgência é o princípio das paixões corporais
e uma doença da alma. Nesse caso, “o primeiro a sofrer é o nous” – ou seja, ele é o primeiro a ser assaltado. Então ele coloca
em movimento as más paixões. Por meio dos sentidos ele leva a imaginação das
coisas sensoriais para a alma e as direciona pela os pecados. A impressão
dessas imagens vem principalmente pelos olhos.
São João Clímaco descreve analiticamente como esse pensamento se
desenvolve até se transformar numa paixão. Provocação, ligação, consentimento,
cativeiro, luta e paixão são coisas diferentes. Analisando essas coisas, ele
escreve que a provocação é uma palavra ou uma imagem casual simples que aparece
no coração pela primeira vez. Isso não é pecaminoso. A ligação é a comunhão com
essa primeira aparição, seja com ou sem paixão. Muitas vezes esse estado não é
censurável. O consentimento é a permissão de bom grado da alma em relação
àquilo que ela encontrou. Isso pode ser bom ou mau conforme a condição do
asceta. O cativeiro consiste numa “forçosa e indesejável abdução do coração,
uma união permanente com aquilo que ele encontrou”. O cativeiro e considerado
de modo diverso, dependendo se ele acontece durante o tempo de oração ou se em
outro momento. A luta implica uma força igual àquela que produziu o ataque, ou
seja, é quando a alma luta e batalha para não permitir que o pecado seja
cometido. Essa batalha pode receber um prêmio ou uma punição. Finalmente vem a
paixão, a qual, como dissemos, é algo que “permanece oculto na alma por um
longo tempo”, e que, devido a um prolongado costume, prevalece sobre a alma
para rendê-la. A paixão requer um arrependimento apropriado ou uma futura
punição.
Em acréscimo a essa descrição de como os pensamentos se transformam em
paixões, os Padres também descrevem outro desenvolvimento: de como as paixões
se desdobram com a idade. São Gregório Palamas diz que as paixões se
desenvolvem desde a mais tenra infância, na seguinte ordem. Primeiro vêm as
paixões da parte concupiscente da alma, ou seja, a possessividade e a cobiça.
As crianças pequenas querem pegar as coisas, e logo que crescem um pouco querem
dinheiro. Mais tarde “com o avanço da idade”, desenvolvem-se as paixões do amor
à glória. O amor à glória é visto de duas maneiras: a primeira é o amor mundano
à glória, que busca “cosméticos e roupas finas”, e o segundo é essa autoestima
que ataca o direito e se manifesta como prepotência e hipocrisia, através da
qual o inimigo trama desmontar a saúde espiritual da alma. Finalmente, depois
da possessividade e do amor à glória, desenvolve-se a autoindulgência – ou
seja, a gulodice, “da qual provêm todo o tipo de impurezas da carne”. Ao mesmo
tempo, São Gregório Palamas faz uma observação interessante. Embora a
autoindulgência “e outros impulsos naturais para a procriação já aparecem nas
crianças de peito”, essas coisas “ainda não são indícios de uma alma doente”,
pois as paixões naturais não são censuráveis, uma vez que foram criadas por
Deus “para que, por intermédio delas, possamos executar as boas obras”. A
paixão é má “quando fazemos provisões para a carne para satisfazer seus
caprichos”. Resumindo, podemos dizer que, de acordo com São Gregório, as
paixões da possessividade e da cobiça se desenvolvem nos bebês, as paixões do
amor à glória surgem na infância, e só depois começam as da autoindulgência.
É verdade que tanto as paixões do corpo como da alma são difíceis de
discernir. Isso se deve ao fato de que os demônios que as provocam normalmente
se escondem e não conseguimos distingui-los. Por isso um bom terapeuta é
necessário, alguém que conheça a vida interior e que seja um vaso do Espírito
Santo de modo a discernir e curar. Esse discernimento é um dos grandes dons da
graça do Espírito Santo. São João Clímaco, referindo-se ao exemplo de que
quando retiramos muitas vezes a água de um poço, acabamos inadvertidamente
trazendo para fora um sapo, relaciona isso com as virtudes. Quando adquirimos
as virtudes podemos às vezes nos envolver com vícios que estão
imperceptivelmente entrelaçados com elas. Ele nos oferece alguns exemplos. A
gulodice pode vir junto com a hospitalidade; a luxúria com o amor; a astúcia
com o discernimento; a malícia que soa como julgamento; a duplicidade, a
procrastinação, o desmazelo, a teimosia, o voluntarismo e a desobediência com a
mansidão; a recusa em aprender pode se misturar ao silêncio; a empáfia com a
alegria; a preguiça com a esperança, a severidade também pode ser confundida
com o amor; a apatia e a preguiça com o repouso; a amargura com a castidade; a
familiaridade com a humildade. Fica claro, assim, que é preciso muita atenção
para descobrir as paixões. Pois podemos pensar que estamos sendo virtuosos
quando na verdade estamos trabalhando para o diabo, cultivando paixões. Devemos
vigiar o sapo, que usualmente é a paixão da autoestima. Essa paixão corrompe a
obediência e os mandamentos.
De acordo com o mesmo santo, o demônio da avareza muitas vezes simula
a humildade. E o demônio da autoestima e da autoindulgência encorajam as
esmolas. Por isso devemos, acima de tudo, estar atentos para discernir a
astúcia do demônio mesmo quando estamos cultivando as virtudes. Ele menciona o
caso no qual ele foi assaltado pelo demônio da preguiça e pensou em abandonar
sua cela. Mas quando diversas pessoas foram a ele e o louvaram por viver uma
vida de hesiquiasta, “minha preguiça se transformou em autoestima”. Então ele
ficou espantado com a maneira como o demônio da autoestima enfrentou todas as
astúcias dos demais demônios. Do mesmo modo, o demônio da avareza luta contra
aqueles que são por completo desprovidos de posses. Quando ele não consegue
vencê-los, eles começam a argumentar sobre o quão miseráveis são as condições
da pobreza, e então tentam induzi-los “a se preocupar com as coisas materiais”.
Outro ponto mencionado pelos santos Padres consiste no modo como podemos
detectar a presença das paixões. Certamente, um Ancião prudente e impassível
terá uma grande importância em observar os impulsos de nossa alma e
corrigi-los. Mas, além disso, existem outros meios de perceber a presença das
paixões operando em nós. É sinal da existência de uma paixão voluntária quando
a pessoa fica contrariada ao ser reprovada ou corrigida a respeito. Quando ela
aceita calmamente a reprimenda, é um sinal de que ela estava desatenta e foi
vencida pela paixão. Em outras palavras, a contrariedade ou a calma mostram a
presença da paixão, e também se ela é voluntária ou involuntária. “As paixões
mais ilícitas se escondem em nossas almas; elas só são trazidas à luz quando
examinamos nossas ações”.
Em seu esforço para descrever com precisão no que consiste uma paixão,
São Máximo escreve que uma coisa, uma imagem conceitual e uma paixão são coisas
diferentes entre si. Um homem, uma mulher, o ouro, etc., são coisas; uma imagem
conceitual constitui “um pensamento não passional dessas coisas”; uma paixão é
“uma afeição insensata ou um ódio indiscriminado por alguma dessas mesmas
coisas”. O Abade Doroteus, distinguindo entre pecado e paixão, escreve que as
paixões são o ódio, a autoestima, a autoindulgência, a raiva, os desejos
malignos e coisas do gênero. Os pecados são as ações das paixões. Assim, é
possível a uma pessoa “ter paixões e não as colocar em movimento”. A partir
dessa passagem podemos entender que é possível a uma pessoa estar cheia de
paixões e não se dar conta disso, porque eventualmente ela não comete nenhum
pecado. É por isso que um conselheiro espiritual experimentado é necessário
para uma completa cura das paixões.
Para encerrar essa sessão, devemos sumarizar as terríveis
consequências das paixões. Já dissemos anteriormente que as paixões matam o nous. Vamos agora desenvolver o tema.
A ressurgência das paixões “num corpo adulto e numa alma consagrada”
constitui uma conspurcação da alma.
Assim como quando um pardal preso pelas pernas tenta voar e cai
novamente por terra, também o nous,
se não se tornar impassível, “é preso pelas paixões e cai novamente por terra”.
As paixões amarram a pessoa ao terrenal.
As paixões repreensíveis acorrentam o nous, “amarrando-o aos objetos sensíveis”.
As paixões corrompem a alma depois de um tempo, assim como certos
alimentos que prejudicam o corpo só trazem a enfermidade depois de algum tempo,
e mesmo passados muitos dias. Em qualquer caso, é evidente que as paixões
adoecem a alma.
A alma de uma pessoa passional é “uma oficina para os demônios”. E uma
alma maligna se torna um estoque de maldades.
O nous é morto pelas paixões
e se torna impermeável a conselhos. Ele não aceitará nenhuma correção
espiritual. “Toda paixão traz consigo a semente da morte”.
As paixões são o inferno. A alma passional é punida todo o tempo por
causa de seus próprios maus hábitos, tendo sempre amargas lembranças e
murmurações dolorosas de suas paixões queimando-a e consumindo-a. esse tormento
é apenas o começo, um pequeno gosto dos tormentos que a esperam nos lugares
temíveis “onde os corpos que serão punidos recebem variados tormentos e os
infligem à alma, num fogo indizível e na escuridão”.
A recompensa dos esforços pela virtude são a impassibilidade e o
conhecimento espiritual, que são os mediadores do Reino dos céus, da mesma
forma como “as paixões e a ignorância são as mediadoras do castigo eterno”.
São Gregório Palamas, interpretando a passagem que diz como os demônios
deixaram o endemoniado e entraram na vara de porcos que se atiraram ao mar,
escreve que “a vida suína” simboliza “todas as paixões, devido à sua impureza.
Mas em especial aquelas que rodeiam uma túnica suja por causa da carne suína”.
Finalmente, as paixões matam completamente o nous e causam nossa punição. A cura espiritual é necessária para
que o nous se liberte e se regozije
em Deus. Voltaremos agora ao tema da terapia.
1.3. A cura das paixões
Agora que estamos conscientes da grande destruição trazida para nossa
existência pelas paixões, devemos nos debruçar sobre o tema da terapia. Essa é
uma parte fundamental do presente capítulo. Muitos de nós se dão conta de que
estão doentes, temos a sensação de estarmos espiritualmente enfermos, mas somos
parcial ou completamente ignorantes sobre o modo de nos curarmos. Creio que a
Ortodoxia, por ser uma ciência terapêutica, é capaz de responder esses tópicos
essenciais. Estou certo de que uma das mensagens que a Igreja Ortodoxa deve
oferecer ao mundo contemporâneo perplexo é a de que ele está doente e, ao mesmo
tempo, a de lhe oferecer a cura. É sobre isso que trataremos a seguir.
Primeiro devemos esclarecer algumas coisas. Uma, é que a cura das
paixões, conforme já descrevemos, consiste basicamente em transformá-las. Uma
vez que as paixões impassíveis, as paixões naturais e impecáveis, são
pervertidas, é de se esperar que esse estado de coisas possa ser mudado com um
tratamento terapêutico adequado. É nisso que reside a cura das paixões. O Abade
Poêmio disse ao Abade Isaac: “Nós não temos que assassinar o corpo, mas as
paixões”. Quanto a “assassinar as paixões”, isso deve ser entendido no sentido
de convertê-las. Outra observação é que os Padres nos oferecem uma grande
quantidade de tratamentos terapêuticos em seus escritos. Qualquer um que leia
as “Centúrias sobre o amor” de São Máximo verá que elas contêm muito material
terapêutico. Devo confessar que quando li esse trabalho, esperava encontrar
algumas regras sobre o amor e o valor do amor. Mas logo percebi que São Máximo
dá mais atenção ao tema dos pensamentos, das paixões da cura das paixões. Ele
dá grande importância à cura do homem, porque o amor a Deus e ao homem “nasce
da impassibilidade”. Um coração comandado pelas paixões é incapaz de amar.
Outra observação é de que quando os Padres falam da cura do homem eles primeiro
estabelecem os princípios básicos para isso. Vale dizer, eles têm em vista o
homem universal e fornecem várias prescrições ou métodos de terapia. Devemos
mencionar isso a seguir, mas por ora enfatizamos que toda pessoa necessita de
seu próprio método terapêutico. Esse método deve ser fornecido por uma
terapeuta experiente e cuidadoso a qualquer um que o procure, com humildade,
obediência e disposição para ser curado. Por isso iremos agora estabelecer as
regras gerais do tratamento terapêutico. “Todo indivíduo deve praticar sua
própria terapia sob a orientação espiritual de organismos vivos
contemporâneos”.
A cura das doenças de nossa alma é absolutamente necessária. Já vimos
isso. Já estabelecemos o estado de deformação que as paixões criam em nós.
Muitas passagens da Escritura se referem a isso.
O Apóstolo Paulo dá o seguinte conselho aos Colossenses: “Façam morrer
tudo o que existe de terrenal em vocês: a incontinência, as impurezas, as paixões,
os desejos malignos e a cobiça, que é uma idolatria (...). E ainda a raiva, o
ódio, a malícia, a calúnia, as conversas vãs, afastem-nas de suas bocas. Não
mintam uns para os outros, se vocês despediam a antiga natureza com suas
práticas e saudaram a nova natureza que renasce no conhecimento segundo a
imagem de seu criador[15]”.
De acordo com São Máximo, nessa passagem o Apóstolo chama de “terra”
aos desejos da carne. A “incontinência” é a palavra para o pecado cometido em
ato. Cometer o pecado em ato equivale a consentir em agir de acordo com ele e
fazê-lo existir. “Impureza” é como ele designa o consentimento ao pecado.
“Paixão” é o termo utilizado para os pensamentos passionais. Por “desejo
maligno” o Apóstolo designa “o simples ato de aceitar o pensamento e o desejo”.
“Cobiça” é o nome dado “àquilo que gera e promove as paixões”. As coisas
“terrenais”, que são parte do desejo da carne, devem ser deixadas a morrer.
Quando elas são postas à morte – e mais adiante veremos como – e transformadas,
ou seja, oferecidas a Deus, então a velha natureza, com seus feitos e desejos,
é descartada, e a nova natureza é assumida. Ela será feita à imagem e
semelhança de Deus: uma pessoa.
Em outra epístola, o inspirado Apóstolo dá as mesmas instruções: “A
imoralidade e toda impureza ou rapacidade não devem sequer ser mencionadas
entre vocês, como convém a santos. Que não haja indecência, nem conversas vãs,
nem futilidade, que são coisas que não convêm; ao contrário, deve haver ação de
graças[16]”.
Em outra epístola ainda ele escreve: “Não devemos ter empáfia, nem
provocar os demais, nem ter inveja uns dos outros[17]”.
Todas essas coisas mostram a necessidade da terapia. O Cristão é um
lugar para a morada do Espírito Santo, e como tal deve estar limpo, ou antes,
para se tornar o templo do Espírito Santo e para que Deus habite nele, o
Cristão deve previamente ter sido espiritualmente purificado, e, depois de se
tornar um templo para o Espírito Santo, ele deve se manter puro.
Isso também demonstra a finalidade da terapia. Não estamos lutando
apenas para sermos boas pessoas, ajustadas à sociedade. O objetivo do
tratamento terapêutico não é tornar as pessoas sociáveis, nem ser um exercício
antropocêntrico, mas sim conduzir à comunhão com Deus, e que essa visão de Deus
não seja um fogo devorador, mas uma luz que ilumine. Os Padres estão
nitidamente conscientes desse objetivo do tratamento terapêutico, mas eles
também conhecem os objetivos que diferentes pessoas se colocam. São Máximo diz
que algumas pessoas se abstêm de paixões “por causa do temor humano”, outras
por meio do autocontrole, e outras se libertam das paixões “pela divina
providência”. O Abade Doroteus toca nesse ponto dizendo que a pessoa não deve
querer se livrar da paixão “para escapar ao seu tormento, mas por realmente odiá-la,
conforme foi dito: ‘Eu as odiei com perfeita aversão’”. Os santos sabem que
algumas pessoas desejam se libertar das paixões porque elas causam muita dor.
Mas não é esse o objetivo verdadeiro do tratamento terapêutico Ortodoxo.
Seu objetivo básico é o de alcançar a comunhão com Deus. Sabemos bem
que existem idades espirituais diferentes e diferentes condições dentro da
Igreja. Alguns, como ensinam os Padres, guardam a palavra de Deus por medo do
inferno, outros para ganhar o Paraíso e outros o fazem por amor a Cristo. Os
primeiros são escravos, os segundos são operários assalariados, e os terceiros
são os filhos de Deus. Nós aceitamos essas idades espirituais, mas enfatizamos
que lutamos para alcançar a terceira categoria, e que prosseguimos no tratamento
até que o objetivo final seja atingido.
Devemos deixar claro que a cura das paixões não é um trabalho só do
homem ou só de Deus. Os dois devem trabalhar juntos: essa é a sinergia entre
Deus e o homem. Tudo em nossa Igreja é “teândrico”. Primeiramente a graça de
Cristo deve ser concedida. A purificação do homem, que é a cura, começa com a
energia de Cristo que é oferecida por intermédio de toda a vida espiritual que
o Cristão vive dentro da Ortodoxia. Em suas epístolas o Apóstolo Paulo muitas
vezes desenvolve esse tema. O homem de carne tem em si as energias das paixões.
Mas quando ele recebe a graça de Cisto, ele se liberta desse mundo antigo, o
mundo do pecado. “Enquanto nós vivíamos na carne, nossas paixões pecaminosas,
estimuladas pela lei, trabalhavam em nossos membros para dar o fruto da morte.
Mas agora nos livramos da lei, e da morte que nos mantinha cativos, de modo que
já não servimos sob o antigo código escrito, mas numa vida nova no Espírito[18]”.
Apenas o povo de Cristo, aqueles que vivem em Cristo, estão livres da
carne e das paixões da carne, que constituem o mundo do pecado: “E aqueles que
pertencem a Jesus Cristo crucificaram a carne junto com suas paixões e desejos.
Se vivemos pelo Espírito, devemos também caminhar pelo Espírito[19]”.
Quando uma pessoa caminha pelo Espírito, ela possui a graça da Santíssima
Trindade e está interiormente curada: “Eu digo, caminhem pelo Espírito, e não
satisfaçam os desejos da carne (...) Se vocês forem guiados pelo Espírito vocês
não estarão sob o jugo da lei[20]”.
E sabemos bem, conforme já indicamos, que as obras da carne são as paixões[21].
Mover a guerra contra o pecado e as paixões, “lutar, sim, continuar
lutando e infligir golpes“, esse é o nosso trabalho, mas desenraizar as
paixões, transformá-las de modo essencial, esse é o trabalho de Deus. Assim
como um homem não é capaz de ver sem olhos nem falar sem língua, ouvir sem
ouvidos, caminhar sem pés ou trabalhar sem mãos, também ele não pode “ser salvo
sem Jesus, nem entrar no Reino dos céus”. Porque a alma pode se contrapor ao
pecado, mas sem Deus ela não consegue conquistar nem desenraizar o mal.
O sentido de amor a Deus, que é uma comunhão com a graça de Deus, e
nosso próprio amor a Deus, que é um fruto do Espírito Santo, são as coisas que
podem transformar e curar as paixões. Mortificar a parte passional da alma não
significa encerrá-la “inútil e imóvel dentro de nós mesmos”, mas sim que
desviamos sua conexão com o mal “para o amor a Deus”. Mas essa mudança para o amor
a Deus não acontece sem uma vida de amor. Quando uma pessoa se inflama de amor
a Deus, que é uma inspiração divina, todo o seu mundo interior se transforma,
se aquece pela graça divina e se vê santificado. “Quando o amor a Deus domina o
nous, ele o liberta de seus limites,
persuadindo-o a se erguer não apenas acima das coisas sensíveis, mas até acima
dessa vida transitória”. Essas coisas mostram que a cura das paixões acontece
quando a divina graça, o amor de Deus, opera. Essa divina graça só é oferecida
por intermédio dos santos sacramentos. Assim, é preciso sublinhar que a divina
Eucaristia e a Comunhão do Corpo e Sangue de Cristo são uma ajuda efetiva ao
esforço da pessoa no sentido de purificar sua alma. A Santa Comunhão é uma
medicina para a imortalidade.
Mas além do poder de Cristo, que desempenha um papel fundamental, o
homem também deve cooperar. Se isso não acontece, é praticamente impossível a
uma pessoa superar as paixões, superar substancialmente os demônios, uma vez
que “aquele que conquista as paixões fere os demônios”, e que “a pessoa
expulsará o demônio cuja paixão tenha sido dominada”. A seguir veremos essa
cooperação da vontade humana.
Acima de tudo, o autoconhecimento é necessário. Ele é muito
importante, para que estejamos conscientes de nossa condição espiritual. A
ignorância de nossa enfermidade faz com que sejamos permanentemente incuráveis.
João Evangelista escreve: “Se dissermos que não temos pecado, estamos nos
iludindo, e a verdade não está em nós[22]”.
Pedro Damasceno, especificando as oito contemplações espirituais, das
quais sete pertencem a esse século e a oitava pertence ao século futuro,,
considera o conhecimento como a segunda: “o conhecimento de nossas próprias
faltas e da bondade de Deus”. Ou seja, o conhecimento de nossas próprias faltas
e da bondade de Deus consiste na theoria.
Uma vez que o orgulho vem entretecido com a coragem, “devemos estar
sempre em guarda contra a complacência para com um pensamento simples, para
obtermos algum bem”. Os Padres sabem, por causa da grande experiência
espiritual pela qual passaram, que os sintomas das paixões não são fáceis de
diagnosticar com precisão, porque estamos doentes e elas parecem unidas à nossa
natureza. Por isso os Padres nos aconselham a vigiar constantemente nossas
paixões. “Vigie continuamente os sinais das paixões e você descobrirá que
existem muitas dentro de você”. Observando todas as paixões e todas as
virtudes, e em especial as paixões, devemos “sondar a nós mesmos
incessantemente para ver onde estamos, se no começo, no meio ou no fim”. É
essencial fazer isso, porque a vida espiritual é uma jornada contínua e a cura
não tem fim. Estamos constantemente nos purificando para poder alcançar a
comunhão com Deus. Isso é indispensável, porque a estagnação e a
autossuficiência estão constantemente de emboscada em nosso caminho espiritual.
O autoconhecimento é indispensável também porque existem três
condições no homem: “a ativação da paixão, a restrição da paixão e o
desenraizamento da paixão”. Ou seja, não é o bastante empregar diversos meios
terapêuticos para deter o trabalho da paixão, mas é preciso transformá-la em
amor a Deus e ao homem. Para obtermos um bom autoconhecimento devemos ter
quietude exterior. É preciso dar um basta ao cometimento do pecado em ato.
Enquanto os sentidos funcionarem carnalmente, o autoconhecimento é impossível.
“Portanto, é preciso vigiar o nous na
presença das coisas e discernir para quais delas se manifesta a paixão”.
O conhecimento de nossas paixões está intimamente relacionado ao
arrependimento e à confissão. O primeiro estágio do arrependimento é o
conhecimento de nossos pecados, a sensação da moléstia de nossa alma. A
expressão do arrependimento é a confissão dos erros. Estamos falando aqui da
santa confissão.
Devemos dizer que nos textos bíblicos e patrísticos existem duas
formas de confissão. A primeira é a confissão noética que fazemos em oração a
Deus, e a segunda é a confissão que fazemos ao nosso médico espiritual, que é
também nosso terapeuta. São João Clímaco define a compunção como “um eterno
tormento da consciência que traz consigo o esfriamento do fogo através da
confissão noética”. A confissão noética produz a compunção, e a compunção traz
consolo ao coração do homem. Além disso, a confissão é um arrependimento
irrestrito e deve se colocar numa atmosfera de arrependimento. É a aflição do
coração, que produz o “esquecimento da natureza”. “A confissão é o esquecimento
da natureza porque por causa dela o homem até se esquece de comer seu pão”.
De acordo com São Diádoco de Foticéia, devemos em primeiro lugar
oferecer ao Senhor uma confissão estrita mesmo de nossas faltas involuntárias,
e não parar até que “nossa consciência tenha a certeza de ter sido perdoada,
por meio de lágrimas de amor”. Mais ainda, os santos nos exortam a estarmos
atentos para que nossa consciência “não se iluda por acreditar que uma
confissão feita a Deus seja adequada”. Ele diz isso porque quando oramos a Deus
e confessamos nossos pecados, muitas vezes o fazemos de forma inadequada, e
seguimos vivendo satisfeitos por termos confessado. Isso é uma autoilusão, e
por isso devemos estar em constante prontidão, pois, se não confessarmos
convenientemente, poderemos ser tomados por um medo causado pela doença na hora
de nossa morte.
A confissão a Deus por meio da prece não substitui a confissão de
nossos pecados feita a nosso pai espiritual, nem a confissão ao terapeuta
espiritual substitui a confissão pela prece. É essencial que os dois tipos de
confissão estejam ligados. Em qualquer circunstância, a confissão pela prece
deve ser seguida daquela ao pai espiritual. Deus deu a eles o poder de perdoar
os pecados: “Receba o Espírito Santo. Se você perdoar os pecados de alguém,
eles lhe serão perdoados; se você os mantiver, eles serão mantidos[23]”.
A partir desta passagem, fica claro “quão grande é a honra que o Espírito Santo
concedeu aos sacerdotes”. De acordo com São João Crisóstomo, os sacerdotes que
vivem na terra “foram empoderados com a custódia das coisas celestiais”, uma
vez que “aquilo que eles fazem na terra, Deus ratifica nos céus. O Mestre
confirma as decisões de seus escravos”. Por isso precisamos recorrer aos
médicos espirituais para nossa cura. “Acima de tudo devemos fazer nossa
confissão ao nosso bom juiz, e apenas a ele”. E se o bom juiz nos ordenar que
confessemos perante o povo, devemos fazê-lo, pelo princípio básico de que as
feridas que se tornam conhecidas são curadas. “As feridas mostradas em público
não irão mais piorar, mas serão curadas”. Para que a cura seja bem sucedida, um
bom médico é essencial. Todos os confessores são capazes de realizar o sacramento
da confissão, mas nem todos podem curar, porque a alguns falta o sacerdócio
espiritual, conforme dissemos no capítulo anterior.
“Se o diagnóstico da doença corporal é mal feito, e isso acontece em
muitos casos, mais ainda o é para as moléstias espirituais”. “O diagnóstico das
almas é impreciso”. As paixões da alma “são difíceis de entender”. Quando um
sacerdote as considera impossíveis de seres curadas, devemos recorrer a outro
sacerdote, pois “sem um médico, poucos se curam”.
O valor da confissão foi indicado por muitos psiquiatras
contemporâneos. É fundamental que a pessoa esteja aberta, não fechada em si
mesma. Na linguagem da Igreja dizemos que quando uma pessoa sabe como se abrir
para Deus por intermédio do confessor, ela consegue evitar muitas doenças
psíquicas e mesmo a insanidade. Sentimos o valor da confissão na prática. A
existência de um único pecado nos exaure, e podemos até ficar fisicamente
doentes. Quando decidimos fazer uma confissão, começa o estágio da cura. A alma
e o corpo são invadidos pela calma. Mas é claro que é preciso seguir adiante e
fazer uma confissão real.
Dado que o diabo conhece o valor da confissão, ele faz o possível para
nos pressionar a não confessarmos ou a fazer isso como se outra pessoa houvesse
cometido os pecados, ou ainda para que imputemos a responsabilidade a outrem. É
claro, é preciso coragem para que uma pessoa revele sua ferida ao médico
espiritual. São João Clímaco aconselha: “Desnude sua ferida àquele que pode
curá-la”. E, juntamente com a revelação de sua moléstia, tome toda a culpa
sobre si mesmo, dizendo humildemente: “Essa é a minha ferida, pai, essa é minha
injúria. Ela aconteceu por causa da minha negligência e por nenhum outro
motivo. Ninguém pode ser culpado dela, nenhum homem, espírito, ente ou coisa
parecida. Foi tudo apenas pela minha negligência”. Ninguém deve se envergonhar,
ou melhor, é preciso superar a vergonha do pecado e colocá-lo a nu. Ao
revelarmos nossas feridas internas ao nosso diretor espiritual, devemos nos
parecer, nos comportarmos e pensarmos como uma pessoa condenada. Mais uma vez,
São João aconselha: “Se você puder, molhe com suas lágrimas os pés de seu juiz
e médico, como se fosse o próprio Cristo”. O mesmo santo afirma que ele viu
homens em confissão que mostraram tamanha humildade e que confessaram com olhos
tão lacrimejantes e gritos de desespero que abrandaram a dureza do juiz e
“transformaram sua ira em misericórdia”.
É natural sentir vergonha quando temos que confessar uma ferida, mas
devemos superar isso. “Não esconda seus pecados”. Imediatamente depois de
confessar, posto a nu, começa uma paz interior. Conta-se que um zeloso monge,
dominado por um pensamento blasfemo, mortificou sua carne com jejuns e vigílias
e mesmo assim não conseguir sentir nenhuma ajuda. Quando decidiu confessar esse
pensamento ao seu médico espiritual e o descreveu num papel, ele foi
imediatamente curado. “O monge me assegurou que ainda antes de deixar a cela do
ancião, sua enfermidade se fora”. Isso mostra a verdade de que a confissão não
consiste num esforço humano, mas opera pelo poder de Deus. A alma é curada pela
graça divina. Nem o jejum, nem a vigília ajudam, a menos que estejam ligadas à
confissão.
Normalmente os médicos espirituais recebem ataques daqueles que se
confessam, quando estes não fazem sua confissão com humildade e
autoconhecimento. Uma operação espiritual começa junto com a confissão, e então
o paciente resiste. Mas o conselho dos Padres a ele é bem claro: “Não se irrite
com a pessoa que inadvertidamente opera em você como um cirurgião; antes, veja
a abominação que foi removida e, culpando a si mesmo, bendiga-o, porque ele
prestou esse serviço a você, pela graça de Deus”. A confissão extrai tudo o que
é repulsivo de nossa alma e nos move, por um lado, a uma compaixão para conosco
mesmos, e, de outro, a uma gratidão em relação ao médico espiritual. Quem
rejeita a crítica revela no mínimo a existência da paixão, enquanto que aquele
que aceita a crítica “se livra do aguilhão”.
Mais uma vez devemos enfatizar que o arrependimento ligado à santa
confissão cura a ferida. O arrependimento, que nos é inspirado pelo Consolador,
queima o coração, e onde nasce a tristeza todas as feridas são curadas. Uma
pessoa neste estado possui o grande tesouro da virgindade. Nicetas Stethatos
aconselha: “Não diga a si mesmo: ‘Não me é possível recuperar a pureza da
virgindade porque de muitas maneiras eu caí na corrupção e nas paixões
corporais’”. Mesmo que uma pessoa tenha perdido a sua virgindade, ela pode
adquiri-la novamente por meio das lágrimas de um segundo batismo com o
arrependimento. Por isso o mesmo santo Padre prossegue: “Porque onde as dores
do arrependimento são superadas pela mortificação e o aquecimento da alma, e
rios de lágrimas correm por causa da compunção, todas as defesas do pecado caem
por terra, todo fogo das paixões é extinto, surge um renascimento celestial
através da vinda do Consolador, e mais uma vez a alma se torna um palácio de
pureza e virgindade”.
O renascimento de um homem não pode acontecer sem a submissão ao pai
espiritual que deverá curá-lo em Cristo: “Se a pessoa não se submete ao seu pai
espiritual”, em imitação a Cristo, que se submeteu a seu Pai sob a morte na
cruz, “ela não poderá renascer”. Pois esse renascimento “acontece por
intermédio da submissão ao pai espiritual”.
Mas muitas vezes as amaldiçoadas paixões da alma não se curam
imediatamente depois da confissão. É preciso uma grande batalha e muito
ascetismo para que a alma se liberte de suas paixões. Essencialmente, não é uma
confissão formal, feita talvez debaixo de grande pressão psicológica, que trará
o perdão dos pecados, mas a libertação das paixões. Uma pessoa que não tenha se
libertado das paixões pela graça de Cristo “ainda não recebeu o perdão”. Assim
como uma pessoa que passou anos doente não adquire a saúde instantaneamente,
também não é possível superar as paixões – nem ao menos uma delas – “num breve
instante”. O Tempo, e em especial uma vida ascética, são coisa necessárias,
porque “as paixões realizadas na prática devem ser também curadas com a
prática”. Portanto, a impassibilidade é obtida por meio de “refreamento,
autocontrole, trabalho e lutas espirituais”.
A seguir tentaremos descrever a cura das três partes da alma, as
paixões do corpo e da alma, e quais coisas precedem e quais sucedem.
Descreveremos aqui os métodos gerais de cura da alma.
Em outra seção nós enfatizamos que São Gregório Palamas, ao dividir a
alma em três partes – inteligente, irascível e concupiscente – disse que,
quando um homem se afasta de Deus, todos os poderes de sua alma adoecem, assim
como a alma por inteiro. Assim é que a cura se torna necessária. A cura repousa
na pobreza espiritual, que o Senhor abençoou. “Sejamos ‘pobres em espírito’
depois de nos humilharmos, sofrendo na carne e nada possuindo de nosso”, para
que possamos herdar o Reino dos céus. Com a humildade poderemos curar a
inteligência, onde grassam as paixões da ambição; a parte concupiscente, onde
residem as paixões do amor às posses e da avareza, desembaraçando-nos de todas
as nossas posses; e a parte irascível, devastada pelas paixões carnais, por
meio do ascetismo e do autocontrole. É bem característico que São Gregório
inclua a solidão e a hesíquia noética entre os métodos de cura das paixões da
ambição. “A solidão e a permanência na cela são de grande ajuda na cura dessas
paixões”. E as paixões carnais não são curadas senão mediante o sofrimento do
corpo e uma prece proveniente do coração humilde, que é o significado de ‘pobre
em espírito’.
A vida na tríplice pobreza faz nascer a tristeza divina, que está
ligada a uma súplica adequada. A tristeza gera as lágrimas. O valor da tristeza
na purificação do nous é muito
grande. A pobreza corporal quebranta o coração, “O coração quebrantado é obtido
mediante a tripla restrição do sono, da comida e do conforto do corpo; a alma,
liberta do diabo e do amargor por meio dessa quebra, recebe em seu lugar a
alegria espiritual”. A autorreprovação, que desempenha um importante papel na
vida espiritual do homem, nasce dessa humildade e dessa tristeza corporal.
A pobreza material consiste na
não possessão unida á pobreza em espírito, e ela purifica o nous. De acordo com São Gregório
Palamas, quando o nous se liberta dos
sentidos e se eleva acima da corrente ruidosa das coisas terrenas, voltando-se
para si mesmo, ele vê “a máscara horrível que ele adquiriu enquanto buscava as
coisas mundanas”, e se apressa a limpá-la com a tristeza. Desse modo o nous atinge a pureza e desfruta da paz
dos pensamentos. Quando o nous
experimenta a bondade do Espírito Santo, “a graça começa a pintar a semelhança
na imagem”. Então o homem se torna uma pessoa, porque a experiência de saber o
que é essa semelhança nos torna pessoas. De início a tristeza é dolorosa,
porque ela está ligada ao temor a Deus, mas na verdade ela é benéfica. Com o passar
do tempo, gera-se o amor a Deus, e com ele vem a semelhança. E quando alguém
vive profundamente aflito, “ela recebe como fruto a doce e santa consolação da
bondade do Consolador”. O começo da santa tristeza e “como tentar conseguir
noivar com Deus”. Mas como esse noivado com Deus parece impossível, os que amam
a Deus batem no peito e oram. O fim da tristeza consiste “na união nupcial pura
e perfeita” da alma com Deus.
Por isso, de acordo com São Gregório Palamas, a cura da alma
tripartite só é alcançada por meio da correspondente pobreza tripartida. A
pobreza gera a tristeza, que encontra muitas expressões antes de conduzir a
pessoa à comunhão com Deus. A tristeza é como um purgante para o nous e o coração.
Também São João Damasceno, como vimos, divide a alma em três
potências, a saber, a inteligente, a irascível e a concupiscente. A terapia e a
cura da parte inteligente se dá por meio de “uma fé inabalável em Deus e na
verdade, de um seguimento irredutível dos ensinamentos ortodoxos, do estudo
contínuo das proclamações inspiradas do Espírito, da prece pura e incessante e
das ações de graças a Deus”. A cura e a terapia da parte irascível da alma se
dão pela “simpatia profunda para com o próximo, o amor, a gentileza, a afeição
fraterna, a compaixão, da paciência e da ternura”. E a terapia e cura da parte
concupiscente consistem “no jejum, no autocontrole, das dificuldades, do total
desprendimento das posses e sua distribuição aos pobres, do desejo pelas
bênçãos imperecíveis, na nostalgia do Reino de Deus e na aspiração à filiação
divina”.
A formulação de São João Clímaco é concisa: “Devemos nos armar com a
Santíssima Trindade, contra os três, através dos três”, ou seja, em aliança com
a Santa Trindade devemos nos armar contra a autoindulgência, a avareza e o amor
à glória, mediante o autocontrole, o amor e a humildade.
Já mencionamos que os Padres chamam os aspectos irascível e
concupiscente de “passionais”. Assim é que a alma possui uma parte inteligente
e uma parte passional. A parte inteligente é purificada por meio das leituras e
da oração, e a parte passional pelo amor e o autocontrole.
São Marcos o Asceta, conforme observamos, considera as paixões do
esquecimento, da ignorância e da preguiça como as três gigantes. Ele nos exorta
a curarmos o esquecimento pela “lembrança constante de Deus”, a expulsarmos as
trevas destruidoras da ignorância “por meio da luz do conhecimento espiritual”
e a afastar a preguiça “através do verdadeiro ardor por tudo o que é bom”.
Existe ainda uma distinção entre as paixões da alma e as do corpo.
Essas paixões são curadas pelas práticas espirituais correspondentes. Os
apetites do corpo e os caprichos da carne são detidos por meio do autocontrole,
do jejum e das batalhas espirituais. As inflamações da alma e “o inchaço do coração
são esfriados pela leitura da Sagrada Escritura e por uma humilde e constante
oração; e todas essas coisas são acalmadas com o azeite da compunção”.
Em seu ascetismo curativo os Padres estabelecem também a ordem segundo
a qual deve se dar a guerra contra as paixões. De acordo com Nicetas Stethatos,
as paixões básicas são a autoindulgência, a avareza e o amor pela glória, que
correspondem aos três aspectos da alma. Como existem três paixões, existem três
modos de lutar contra elas: o inicial, o intermediário e o final. “O iniciante
que acaba de entrar no caminho da luta pela piedade” deve lutar contra o
espírito de autoindulgência. Ele deve dobrar a carne por meio do jejum,
dormindo no chão, fazendo vigílias e preces à noite. Ele afogará a alma com a
lembrança das punições do inferno e pela lembrança da morte. Aquele que está no
estágio intermediário, ou seja, que já foi limpo das paixões da
autoindulgência, “pegará em armas contra o espírito da maldita avareza”. E
“aquele que passou do estágio intermediário com contemplação e
impassibilidade”, que penetrou nas trevas da teologia, lutará contra o espírito
de amor pela glória. Portanto, a autoindulgência será atacada em primeiro
lugar, depois a avareza e finalmente o amor pela glória. Essa é a ordem da terapia.
Até agora listamos os meios terapêuticos que usamos para curar as três
partes da alma, falamos das paixões físicas e psíquicas, das três paixões
gigantes, etc. Agora vamos verificar os métodos terapêuticos gerais que podemos
aplicar a essas paixões.
Em primeiro lugar, a pessoa não deve ficar agitada nessa batalha
espiritual. A agitação é muito prejudicial à alma que luta. Quando a paixão
explode dentro de nós, não devemos ficar angustiados: “Permitir-se ficar
perturbado por essas experiências é uma completa ignorância e também uma forma
de orgulho, porque não estamos reconhecendo nossa própria condição e preferimos
fugir ao trabalho”. Devemos ser pacientes, lutar e chamar por Deus.
Em seguida, é essencial não depositar muita confiança em nós mesmos,
mas nos voltarmos para Deus. “Por sermos passionais, não devemos em absoluto
confiar no nosso coração; porque um dirigente trapaceiro transforma mesmo as
coisas mais retas em tortas”.
Outro método consiste em lutar contra as paixões enquanto elas ainda
são pequenas. Quando a ofensa é pequena “arranque-a antes que se espalhe e
cubra os campos”. Se uma pessoa é negligente quando uma falta parece leve, mais
tarde ela lhe parecerá “um senhor desumano”. Um homem que luta contra uma
paixão desde o início “logo a dominará”. Porque obviamente “uma coisa é
arrancar uma muda, outra arrancar uma árvore”. Cortar as paixões no começo é
fácil, e requer apenas um pequeno esforço, enquanto que, depois que elas
crescem, passado um bom tempo, “elas exigem mais trabalho”. Quanto mais tenras
forem, mais fácil é lutar contra elas.
Devemos cortar as provocações e causas que evocam as paixões. Já
descrevemos como um pensamento se transforma numa paixão. Quando vigiamos
nossos pensamentos e rejeitamos as propostas do maligno, evitamos gerar paixões
e as matamos. Quem repele as provocações “corta pela raiz tudo o que poderia
advir daquilo”. Quando nosso nous flerta
com um objeto sensual, as paixões nascem e se desenvolvem naturalmente. É
preciso se desvencilhar do objeto pelo qual o nous se tornou cativo. A menos que o nous se desvencilhe dessa coisa, “ele não será capaz de se libertar
da paixão que virá afetá-lo”. Nessa contenda espiritual devemos nos afastar dos
atos e desejos vis “e demonstrar que estamos trocando-os pelo bem”.
É um ensinamento patrístico comum que devemos cortar as causas e
impulsos do pecado. Deus, o Médico das almas e corpos, não nos incita a
abandonar “o contato com as pessoas”, mas para cortar as causas do mal em nós
mesmos. “Aquele que odeia as paixões se afasta de suas causas”. Se nos
opusermos ao pensamento, “a paixão crescerá fraca e será incapaz de lutar e de
nos atormentar”, e assim, “pouco a pouco, lutando com a ajuda de Deus, seremos
capazes de suplantar a própria paixão”. Para sintetizar o tema do corte das
causas das paixões e impulsos, podemos lembrar o conselho geral dos Padres: “a
qualquer momento em que uma paixão o atacar, corte-a imediatamente”.
De modo a diminuir as paixões precisamos enfrentar uma árdua luta, e
para tanto será preciso uma vigilância espiritual “a fim de que ela não cresça
mais”. Mais uma vez, é preciso lutar para adquirir as virtudes e então ser
vigilante para mantê-las. Portanto, todos os nossos esforços serão no sentido
de lutar e vigiar.
A batalha é grande. Não é uma coisa fácil transformar a si mesmo,
limpar-se das paixões e se encher de virtudes. Pois a purificação do homem é
tanto negativa quanto positiva. De acordo com os Padres, a guerra espiritual é
feita guardando-se os mandamentos de Cristo, e sabemos que quando uma pessoa
luta para sujeitar sei corpo e sua alma a Deus, nela se produzem as virtudes do
corpo e da alma. No homem decaído o corpo é alimentado pela matéria, pelas
coisas materiais, e a alma é alimentada pelo corpo. Agora é o contrário que
deve acontecer. Devemos nos afastar do estado antinatural. Nossa alma deve
aprender a tomar seu alimento da graça de Deus, e o corpo deve se alimentar da
alma “cheia de graça”, e então nosso organismo entrará em equilíbrio. Podemos
adquirir essa condição nos esforçando para obter virtudes tais como a
humildade, o amor, o jejum, o ascetismo, a prece, a obediência, etc. Agora
vamos apontar algumas das virtudes que são essenciais para a transformação.
Uma vida levada no amor expulsa as paixões: “Esforce-se por amar a todos
os homens por igual e simultaneamente
você expulsará as paixões”.
A prece incessante, “chamando incessantemente pelo Nome de Deus
constitui um remédio que destrói não apenas todas as paixões, como ainda seu
comportamento”. E, assim como um médico coloca um curativo na ferida do
paciente, e este funciona de um modo que o paciente ignora, também chamar pelo
Nome de Deus “remove as paixões sem que saibamos como nem porque”.
São João Clímaco diz que o remédio para todas as paixões é a
humildade. “Aqueles que possuem essa virtude vencem a batalha inteira”. O
profeta e rei Davi, referindo-se aos animais da floresta, diz: “Quando o sol se
levanta, eles se recolhem e se deitam em seus covis[24]”.
E São João Clímaco interpreta isso dizendo que quando o sol se levanta em nossa
alma “atravessando as trevas da humildade”, então “os animais selvagens se
recolhem aos seus lugares, no coração sensual e não no nous”. O sol de justiça brilha através da humildade, e todas as
bestas selvagens das paixões são postas a correr.
Subjugar as potências da alma com as virtudes nos libertarão da
tirania das paixões.
A subordinação ao pai espiritual, unida ao autocontrole, subordina as
bestas selvagens das paixões.
O Cristão luta “para reprimir seus sentidos por meio da frugalidade e
seu nous por meio da prece monológica
de Jesus”, e “assim desligado das paixões ele se verá arrebatado pelo Senhor
durante a prece”.
“Se você quer se livrar de todas as paixões, pratique o autocontrole,
o amor e a oração”. Existem certas ações que detêm o movimento das paixões e
não permitem que elas cresçam, e outras que as submetem e as fazem diminuir.
Por exemplo, quando se trata do desejo, o jejum, o trabalho e a vigília não
permitem o crescimento da paixão, enquanto que o retiro, a theoria, a prece e uma intensa saudade de Deus a submetem e a fazem
desaparecer. Em relação ao ódio, a paciência, a gentileza e a falta de rancor,
por exemplo, o detêm e evitam que cresça, enquanto que o amor, os atos de
caridade, a ternura e a compaixão fazem com que diminua. Que renunciou
genuinamente às coisas mundanas, e serve ao seu próximo amorosa e sinceramente
“logo se liberta de todas as paixões e participa do amor e do conhecimento de
Deus”.
A vigilância, a refutação e a prece afastam as provocações e
tentações, e tudo permanece inativo, ou seja, a provocação não encontra lugar
nem paixão que lhe corresponda: “Se o nous
está atento e vigilante e repele imediatamente a provocação contra-atacando,
refutando e invocando o Senhor Jesus, a provocação ficará inoperante”.
Deus concedeu ao homem dois grandes dons de graça por meio dos quais
ele pode se salvar e “se libertar de todas as paixões do homem velho: a
humildade e a obediência”.
A palavra de Deus também constitui um meio para nos ajudar na
purificação e na libertação das paixões. O Apóstolo Paulo, falando da armadura
espiritual que todo Cristão deve ter, refere-se à palavra de Deus: “Tome a
espada do Espírito, que é a palavra de Deus[25]”.
Precisamos ter a palavra de Deus continuamente diante de nossos olhos. “Dedique-se
sem cessar à palavra de Deus: sua aplicação destrói as paixões”. Em outra
passagem, São Thalassius nos diz para nos esforçarmos para cumprir
integralmente os mandamentos, “para que possamos nos libertar das paixões”. Os
mandamentos de Deus se referem à alma tripartite. O mandamento de Cristo
“legisla sobre a alma tripartite e parece fortalecê-la por meio daquilo que é
ordenado. E não apenas parece fortalecê-la, como de fato provoca este efeito”.
São Filoteus menciona muitos exemplos para tornar isso mais claro. Em relação
ao aspecto irascível ele se refere ao mandamento “Todo aquele que tiver raiva
do seu irmão será levado a julgamento[26]”;
em relação ao aspecto concupiscente, ele mostra o mandamento “Aquele que olha
para uma mulher com luxúria já cometeu adultério com ela em seu coração[27]”;
e quanto ao aspecto inteligente, o mandamento “Quem não renuncia a tudo e me
segue não é digno de mim[28]”.
De acordo com São Filoteus, Cristo legisla sobre a alma tripartite por meio de
seus mandamentos. E o diabo luta contra a alma tripartite, e por isso ele luta
também contra os mandamentos de Cristo. Se cumprirmos os mandamentos de Cristo
nos lavamos de nossas paixões, que são as más disposições de nosso “homem
interior”.
Já enfatizamos anteriormente a tristeza, o arrependimento e a
confissão dentre as armas mais eficazes contra as paixões. “Aqueles que estão
nublados pelo vinho podem ser lavados com água, e os que estão nublados pelas
paixões são lavados pelas lágrimas”.
As várias provas e tentações de nossas vidas, ou seja, as “causas
involuntárias” são também um suplemento para o arrependimento. O vírus do mal é
grande e requer o fogo purificador do arrependimento través das lágrimas. Pois
nós nos lavamos da corrupção do pecado tanto pelos sofrimentos voluntários do
ascetismo como por provas involuntárias. Quando os sofrimentos voluntários do
arrependimento vêm antes, os involuntários, ou seja, as grandes provações, não
chegam a acontecer. Deus fez as coisas de tal maneira que, se o ascetismo
voluntário não produzir a purificação, então as causas involuntárias “ativarão
de forma mais aguda nossa restauração em direção à beleza original”. Isso
significa que muitas das provas que nos acontecem ocorrem porque não nos
arrependemos voluntariamente. Tomar a cruz do arrependimento voluntariamente
evita que carreguemos a cruz das tentações e provas involuntárias e
indesejadas.
Oura arma excelente contra as paixões é a hesíquia, em especial o
repouso do nous, sobre o que
falaremos em outro capítulo. O Apóstolo Paulo assegura que “Ninguém que esteja
mergulhado no esforço de guerra se enredará nos assuntos desta vida”. E São
Marcos o Asceta comenta que quem deseja conquistar as paixões ao mesmo tempo em
que se envolve nos assuntos mundanos se parece a alguém que tenta apagar o fogo
com palha. Certamente o tema da hesíquia e do retiro é extenso e delicado. O
retiro não é bom para todos. Pois se alguém tem uma paixão oculta em sua alma,
ele não poderá se curar no deserto, porque ali não existem objetos para evocar
tal paixão. São João Clímaco diz que quando um homem doente de uma paixão da
alma tenta a vida solitária, é como alguém que salta do navio para o mar e
tenta chegar à praia agarrado a uma prancha.
O conselho dos Padres sobre a hesíquia não é contraditório. A hesíquia
é “habitar em Deus”. É a pureza do nous.
Essa é a chamada hesíquia noética. O esforço para minimizar os estímulos dos
sentidos e para se dedicar à prece ajuda no sentido de se libertar das paixões.
Mas quando uma pessoa, sem nenhum preparo especial, nem as bênçãos de um
diretor espiritual experiente, se afasta dos homens e vai para o deserto, ela
pode não se curar. Porque o deserto esconde as paixões do homem que para lá se
dirige sem a preparação necessária para a cura.
Até agora falamos de diversos meios para curar as paixões em geral.
Agora vamos apresentar algumas terapias específicas para curar determinadas
paixões.
De acordo com São João Cassiano de Roma, existem oito pensamentos
maus: a gula, a luxúria, a avareza, o ódio, a acídia, a apatia, a vanglória e o
orgulho. Como poderão ser curados esses oito pensamentos, que correspondem a
oito paixões?
A gula é curada pelo controle do estômago, “evitando comer além da
conta e encher o ventre”, por meio de um “dia de jejum” e para “não se perder
pelos prazeres do palato”.
A luxúria é curada pela guarda do coração “contra pensamentos baixos”.
Ela é curada pela contrição do coração e “uma intensa prece a Deus, uma
frequente meditação das Escrituras, esforço e trabalho manual”. “A humildade da
alma ajuda mais do que tudo”.
A avareza se cura com a renúncia e a pobreza, como ensinam os Padres e
as Escrituras.
O ódio, que cega os olhos do coração, é curado com a paciência para
com o próximo. A paz interior, que é o oposto do ódio, “não se adquire com a
paciência que os demais mostram para conosco, mas através de nosso próprio
padecimento em relação ao nosso próximo”. Não é suficiente evitar o ódio em
relação aos homens, mas também “em relação aos animais e aos objetos
inanimados”. O ódio também se cura reprimindo “não apenas a expressão exterior
da raiva, mas também os pensamentos raivosos”. Não devemos apenas refrear nossa
língua no momento da tentação, mas “purificar nosso coração do rancor e não
abrigar pensamentos maliciosos contra nossos irmãos”. A cura final consiste em
“realizar que não devemos sentir aversão por nada por nenhuma razão, quer nos
pareça justa ou injusta”.
A acídia é curada fazendo uma guerra dirigida “contra as paixões
interiores”. Devemos lutar “contra o demônio da acídia que atira nossa alma no
desespero. Ele deve ser expulso de nosso coração”. Devemos cultivar apenas a
tristeza “que provém do arrependimento do pecado e que é acompanhada da
esperança em Deus”. Vale dizer, a acídia é expulsa e curada quando, pela graça
de Deus e com nossa própria coragem, a transformamos na tristeza espiritual, na
tristeza do arrependimento. Essa tristeza divina nos prepara e nos torna
obedientes e ávidos por toda boa obra, “acessíveis, humildes, gentis,
tolerantes e pacientes em suportar todo sofrimento ou tribulação que Deus nos
enviar”.
A apatia não pode ser curada “senão através da prece, evitando as
conversas vãs, através do estudo das Santas Escrituras, e com paciência diante
das tentações”. Também se requer o trabalho físico. Os santos Padres do Egito
“não permitiam que os monges ficassem sem trabalhar em momento algum”. Eles não
apenas trabalhavam por suas necessidades, “mas com seu trabalho atendiam os
hóspedes, os pobres e os prisioneiros, considerando que essa caridade
constituía um santo sacrifício agradável a Deus”.
A vanglória é multiforme e sutil, e requer muita atenção. Todos os
métodos devem ser empregados para suplantar essa “besta multiforme”. A pessoa
não deve fazer nada com vistas a ser louvada pelas outras pessoas e “sempre
rejeitando os pensamentos de autoestima que penetram no coração, considerar a
si mesma como nada diante de Deus”.
Finalmente, o orgulho implica uma luta “mais sinistra e feroz do que
tudo o que vimos até aqui”. Ele só pode ser curado mediante a humildade, que se
adquire pela fé e o temor a Deus, a gentileza e o desprendimento de todas as
posses. É por meio dessas coisas que se atinge o amor perfeito.
Mas o inimigo de nossa salvação, o diabo, é engenhoso. Por isso, o
Cristão que luta nessa batalha deve ser também engenhoso. A astúcia de um homem
é demonstrada pelo modo como ele ilude o demônio. Nos escritos patrísticos
encontramos muitos relatos de habilidades por meio das quais o diabo foi
enganado e a alma foi curada.
Usualmente, as paixões tendem a retornar. Quando parece que elas foram
curadas e nos abandonaram, elas voltam mais fortes do que antes. As palavras de
Cristo sobre o espírito impuro são bem conhecidas: “Quando um espírito impuro
sai de um homem, ele vaga por espaços desertos, buscando descanso, e não encontra.
Então ele diz, ‘vou voltar para a casa de onde vim’. E quando ele retorna, ele
a encontra vazia, varrida e em ordem. Então ele vai e volta com outros sete
espíritos ainda piores do que ele, e eles todos passam a habitar nela; e o
último estado do homem se torna pior do que o primeiro[29]”.
Os santos têm consciência disso e tomam todas as precauções necessárias.
A seguir, vamos apresentar alguns métodos e sugestões dos Padres.
Devemos lutar principalmente contra a paixão dominante, pois, “enquanto
esse vício em especial não for varrido, será inútil para nós dominarmos as
demais paixões”.
Quando estamos lutando com duas paixões ao mesmo tempo, devemos
preferir nos deixar subjugar pela mais branda, para não sermos conquistados
pela segunda. São João Clímaco nos oferece dois exemplos. Às vezes, quando
estamos rezando, podem chegar alguns irmãos. Então devemos escolher entre duas
coisas: ou não receber os irmãos, pois estamos rezando, ou paramos de rezar,
para receber os irmãos. Devemos preferir parar de rezar, porque “o amor é maior
do que a prece”. Um dia, conta o santo, ele estava na cidade e, ao sentar-se à
mesa para comer ele foi afligido por pensamentos de gula e de vanglória; ele
preferiu ceder à vanglória (ou seja, ser temperante e sentir-se satisfeito como
quem jejua), porque ele tinha mais receio da gulodice: “Conhecendo e temendo o
desfecho da gulodice (a luxúria), ele preferiu ceder à vanglória”.
O Abade José ensina que às vezes é preferível deixar que as paixões
penetrem em nós e então lutar contra elas, e outras vezes é melhor cortá-las
desde o início. Por isso ele respondeu a um irmão que lhe pergunto a esse
respeito: “Deixe que venham, e então combata”, dizendo que isso era preferível.
Mas a outro irmão ele respondeu a mesma questão – se deveria permitir que a
paixão se aproximasse, ou se deveria cortá-la de longe – dizendo: “Não deixe
que a paixão se aproxime, mas corte-a imediatamente”. Isso mostra que o
terapeuta espiritual é aquele que é capaz de assinalar a cada um o modo
apropriado de lutar e se bater, e a cada um seu método, porque cada pessoa é
diferente e cada caso é único.
São João Clímaco menciona alguns meio para derrotar os demônios; mas
esses meios são extremos, e é preciso notar que nem todos podem aplicá-los, mas
apenas aqueles “que derrotaram as paixões”. Em outras palavras, quem é puro de
coração tem meios para ferir os demônios.
Um irmão que sofrera uma desgraça não se sentia perturbado com isso,
mas orava sem cessar em seu coração. Mas ele começou a protestar e se lamentar
a respeito da desonra que sofrera, de modo que simulando uma paixão ele se
manteve impassível.
Outro irmão fingia inveja da posição do padre superior, quando na
verdade ele não queria essa posição para si.
Outro irmão ganhou um pacote de uvas. E depois que o irmão que lhe
dera o presente se foi, o eremita as comeu, parecendo se empanturrar, quando na
verdade não sentia nenhum prazer com aquilo, e dessa maneira ele enganou os
demônios “que imaginaram que ele era um glutão”.
Essas coisas foram feitas pelos chamados Loucos em Cristo, de modo a
iludir o demônio e beneficiar os irmãos de várias maneiras. Mas isso requer uma
pureza particular, uma bênção especial e a graça de Deus. Por isso São João
Clímaco, em vista dessas circunstâncias, escreve que as pessoas que utilizam
esse método devem estar muito atentas “pois em seu esforço para enganar o
demônio elas podem estar enganando a si próprias”.
Depois de uma dura luta, pela graça de Deus, um homem pode curar suas
paixões, as dores de sua alma, e se tornar um rei. O atleta da batalha
espiritual experimenta esses dons, de maneira que ele pode repetir com o Abade
José: “Hoje eu sou um rei, porque eu reino sobre as paixões”. Ele assim
desfruta da vida em Cristo, pois “aquele que deu morte às paixões e suplantou a
ignorância caminha da vida para a vida”.
Mas enquanto vivemos essa vida e trazemos em nós a corruptibilidade e
a mortalidade, temos que lutar continuamente. Por isso, mesmo quando uma homem
superou “praticamente todas as paixões”, permanecem ainda dois demônios que
lutarão contra ele, homem de Deus. Um deles perturba a alma “distraindo-a de
seu grande amor por Deus através de um zelo descabido, de modo que a pessoa não
quer que nenhuma outra alma agrade tanto a Deus quanto ela própria”. O outro
demônio, com a permissão de Deus, “inflama o corpo com o desejo sexual”. O
Senhor permite essa tentação a alguém que é cheio de virtudes, “para que o
asceta veja a si próprio como mais baixo do que os que vivem no mundo” e, por
meio da humildade e da compunção, ele alcance sua salvação. Devemos lutar
contra a primeira dessas tentações com muita humildade e amor, e contra a
segunda por meio do autocontrole, da ausência de raiva, e de uma intensa
meditação da morte. Deus permite que sejamos combatidos pelo demônio ao longo
de nossas vidas, para que nos mantenhamos humildes.
Um irmão disse ao Abade Poêmio: “Meu corpo está ficando doente, mas
minhas paixões não se enfraquecem”. A despeito dessas coisas, em seu esforço
para se purificar, o homem experimenta o abençoado estado da impassibilidade.
Vamos então estudar agora a bendita vida de impassibilidade.
1.4. Impassibilidade
Vamos nos esforçar para fazer um estudo breve sobre a impassibilidade,
porque o que já foi dito nos mostra o suficiente sobre como atingir esse estado
abençoado.
O valor da impassibilidade para a vida espiritual é muito grande. O
homem que a obtém está muito próximo de Deus e unido a ele. A comunhão com Deus
mostra que existe impassibilidade, que, de acordo com o ensinamento dos Padres,
é a própria “saúde da alma”. Se as paixões constituem a doença da alma, a
impassibilidade é seu estado saudável. A impassibilidade é “a ressurreição da
alma anterior à do corpo”. Um homem é impassível quando purificou sua carne de
toda corrupção, elevou seu nous acima
de todo o criado, tornando-o mestre de todos os sentidos; quando ele mantém sua
alma na presença do Senhor. Portanto, a impassibilidade é a entrada para a
terra prometida. O Espírito derrama sua luz sobre quem se aproxima das
fronteiras da impassibilidade e ascende, na medida de sua pureza, da beleza das
coisas criadas para o Criador. Em outras palavras, a impassibilidade tem um
grande valor e é exaltada pelos Padres, pois ela consiste na liberação do nous. Se as paixões capturam e
escravizam o nous, a impassibilidade
o liberta e o conduz ao conhecimento espiritual dos seres e de Deus. “A
impassibilidade estimula o nous a
alcançar o conhecimento espiritual dos seres criados”. Por isso ela conduz ao
conhecimento espiritual. O resultado do conhecimento espiritual é que a pessoa
adquire o grande dom da discriminação. Um homem em estado de graça pode
distinguir o mal do bem, as energias criadas das incriadas, as energias
satânicas daquelas de Deus. “A impassibilidade gera a discriminação”.
Nossos contemporâneos atribuem uma grande importância à questão da
riqueza e da pobreza. Mas o erro de muitos consiste em limitar a pobreza aos
bens materiais e esquecer que existe algo mais além dessas coisas. Quando o nous do homem se liberta de todas as
coisas criadas e cessa de ser escravo delas, ele se ergue em direção a Deus e
então ele experimenta a pobreza verdadeira. Essa pobreza verdadeira do espírito
é a que o homem impassível obtém: “A pobreza espiritual é a completa
impassibilidade; quando o nous
alcança esse estado ele abandona todas as coisas mundanas”.
Mas devemos definir o que é a impassibilidade. Nos tempos antigos os
filósofos Estóicos falavam da impassibilidade como a mortificação da alma
passional. Nós sublinhamos que a parte passional da alma consiste nos aspectos irascível
e concupiscente. Quando esses são mortificados, de acordo com a interpretação
antiga, acontece a impassibilidade. Porém, quando os Padres falam em
impassibilidade, eles não querem dizer a mortificação da parte passional da
alma, mas sua transformação. Uma vez que é por causa da queda do homem que as
potências de nossa alma se encontram num estado antinatural, será por meio da
impassibilidade, ou seja, por meio da libertação das paixões, que nossa alma se
encontrará em seu estado natural.
De acordo com os ensinamentos dos Padres, a impassibilidade é um
estado no qual a alma não cede a nenhum impulso maligno; e isso é impossível
sem a misericórdia divina. De acordo com São Máximo, “a impassibilidade é uma
condição de paz da alma na qual esta não é facilmente movida pelo mal”. Isso
implica que a impassibilidade significa que a pessoa já não é afetada pelas
imagens conceituais das coisas. Vale dizer, a alma está livre de pensamentos
movidos pelos sentidos e pelas coisas em si. Assim como nos tempos longínquos a
sarça ardeu sem se consumir, também o homem impassível, “por pesado e febril
que seja seu corpo”, esse calor do corpo “não o perturba nem prejudica, nem
fisicamente nem em seu nous”. Porque
nesse caso “a voz do Senhor afasta as chamas da natureza”. Assim é que a pessoa
impassível possui um nous livre e não
é perturbada por nada que seja terrestre, nem pelo calor de seu corpo.
Certamente essa liberdade do nous em
relação a todos os impulsos da carne e imagens conceituais das coisas é
inconcebível para aqueles que não vivem num estado de impassibilidade, mas
pelas energias das paixões. Para o homem de Deus, porém, aquilo que o mundo
chama de natural é antinatural, e ele experimenta como natural o que é
considerado antinatural pelo mundo. São Simeão o Novo Teólogo, confrontado por
acusações de que é impossível aos homens viverem nesses estados supranaturais,
viverem livres da carne, escreveu que quem não é impassível desconhece o que
seja a impassibilidade, “e não pode crer que alguém na terra possa possuí-la”.
E isso, de certa forma, é natural “pois um homem só pode julgar os assuntos de
seu próximo, se bons ou maus, com base em sua própria condição”. Cada qual
julga de acordo com o conteúdo de sua vida e o modo como vive. De qualquer modo
é certo, para os que têm experiência,
que o sinal característico da pessoa impassível é “permanecer calma e destemida
diante de todas as coisas”, porque ela recebeu de Deus “a força para realizar
qualquer coisa”.
Tudo isso para sublinhar a verdade de que a impassibilidade é um
estado inteiramente natural; ele consiste na transformação da parte passional
da alma e seu retorno à vida natural. Esse foi o tema de uma grande discussão
no século XIV entre São Gregório Palamas e o filósofo Barlaam. Este último,
condenado o tipo de prece praticado pelos hesiquiastas de então e de hoje,
insistia que a impassibilidade consistia na mortificação da parte passional.
Mas São Gregório, por ter uma experiência pessoal na matéria e expressando a
experiência integral da Igreja, refutou esse ponto de vista. “Nós, filósofo, dizemos
que a impassibilidade não consiste em mortificar a parte passional da alma, mas
em retirá-la do mal e colocá-la no bem, e em dirigir suas energias para as
coisas divinas, desviando-a das coisas ruins para as coisas boas. Um homem
impassível é aquele que é marcado pelas virtudes, assim como o homem passional
é marcado pelos prazeres malignos”. O homem passional sujeita sua razão às
paixões, enquanto que o home impassível sujeita a parte passional da alma, ou
seja, seus aspectos irascível e concupiscente, “às faculdades do conhecimento,
do julgamento e da razão na alma”. Com a parte inteligente da alma, por meio do
conhecimento das coisas criadas, do entendimento espiritual, ele adquirirá o
conhecimento de Deus, e com a parte passional ele praticará “as virtudes
correspondentes: com a potência concupiscente ele abraçará o amor, e com a
irascível praticará a paciência”. Portanto, a impassibilidade é a transformação
da parte passional, sua sujeição ao nous,
que deve governar por sua própria natureza, para que a pessoa se volte sempre
para Deus, como é o correto, “por uma ininterrupta lembrança Dele”. Então a
pessoa “chegará a possuir a disposição divina e sua alma progredirá em direção
ao mais elevado de todos os estados, o amor a Deus”. Assim entendemos que a
parte passional não foi mortificada, mas passa a possuir vida e um grande
poder. Em outra passagem, São Gregório ensina que crucificar a carne “junto com
as paixões e desejos” não implica mortificar cada energia do corpo e cada
potência da alma, ou seja, cometer suicídio, mas se retirar dos apetites e
práticas vis “e demonstrar inequivocamente que se retirou delas”, ou seja,
jamais retornar a tais práticas e apetites, tornando-se assim um homem com
desejos espirituais, seguindo em frente corajosamente, a exemplo de Lot, que
partiu de Sodoma. Em resumo, podemos dizer que, de acordo com São Gregório
Palamas, aqueles que são impassíveis não mortificaram a parte passional de sua
alma, mas “a mantiveram viva e trabalhando pelo melhor”.
Portanto, a impassibilidade está ligada ao amor e é vida e movimento.
De acordo com São João Clímaco, assim como a luz, o fogo e a chama “se unem
para produzir uma atividade”, o mesmo acontece com o amor, a impassibilidade e
a adoção. “O amor, a impassibilidade e a adoção se distinguem pelo nome, e
apenas pelo nome”. A impassibilidade está intimamente ligada ao amor e à
adoção: ela é vida e comunhão com Deus.
Certamente, quando dizemos “impassibilidade” isso não significa que a
pessoa não esteja sob o ataque dos demônios. O inimigo de nossa vida continua a
empestear mesmo o homem mais impassível; pois ele chegou até a tentar o Senhor
no deserto com as conhecidas três tentações. Mas a impassibilidade consiste em
“permanecer invencível quando o demônio ataca”.
Existem muitos estágios e graus de impassibilidade no ensinamento dos
Padres, que devemos mencionar.
São Máximo estabelece quatro graus de impassibilidade. O primeiro tipo
de impassibilidade pode ser observado nos iniciantes e consiste na “completa
abstenção de cometer pecado em ato”. Nesse estágio o homem não comete atos
exteriores. A segunda impassibilidade, que acontece nos virtuosos, inclui a
completa rejeição da mente em concordar com pensamentos malignos. A terceira
impassibilidade, que é a completa tranquilidade do desejo passional, é
encontrada nos deificados, e a quarta é a total ausência até das imagens
isentas de paixão, naqueles que são perfeitos. Nessa passagem transparece que a
impassibilidade se manifesta correspondentemente ao estado de purificação do
homem.
São Simeão o Novo Teólogo divide a impassibilidade em duas categorias.
Uma é a da alma e a outra, a do corpo. “A primeira pode até santificar o corpo
com seu próprio brilho e a irradiação do Espírito, mas a do corpo, sem a da
alma, não beneficia em nada o homem que a possui”. Assim, mesmo que a pessoa
pratique todas as virtudes possíveis, ela não deve assumir que atingiu a
impassibilidade.
São João Clímaco, dentro da tradição da Igreja, escreve que um homem é
impassível, mas que outro pode se mais impassível ainda. O primeiro detesta o
mal, enquanto que o outro possui “a bênção de um estoque inesgotável de
virtudes”. Aqui se demonstra que a impassibilidade não consiste apenas num
trabalho negativo, mas também positivo. Ela é a aquisição das virtudes, que é
um fruto do Espírito Santo.
Nicetas Stethatos divide a impassibilidade em duas partes. A primeira
chega aos candidatos depois de terem completado a filosofia pratica, ou seja,
depois da própria disputa, quando as paixões foram mortas e os impulsos da
carne estão inativos e as forças da alma se movem para seu estado natural. A
segunda e mais perfeita impassibilidade chega com a inspiração depois do começo
da theoria natural.
A impassibilidade perfeita, que “se ergue do repouso espiritual dos
pensamentos para um estado de paz do nous,
nos torna clarividentes e previdentes”. O nous
da pessoa impassível se torna perceptivo das coisas divinas, das visões e
revelações dos mistérios de Deus, e pode prever os assuntos humanos, quando vê
as pessoas que chegam até ele.
Os Padres geralmente aconselham a que se tome muito cuidado com a
impassibilidade, porque é possível que a pessoa não esteja sendo perturbada
pelas paixões, apenas porque os objetos que as estimulam estão ausentes, mas
quando estes estão presentes, as paixões voltem a distrair o nous. Isso é uma impassibilidade
parcial. A impassibilidade tem graus, e uma pessoa que luta por adquiri-la não
deve parar nunca, mas lutar continuamente, porque a perfeição não tem fim. Devemos
enfatizar em geral que a remissão dos pecados é uma coisa, e a impassibilidade,
outra. São João Clímaco escreve: “Muitos foram rapidamente perdoados em seus
pecados. Mas ninguém adquiriu a impassibilidade rapidamente, porque ela requer
muito tempo e muita perseverança, e Deus”. Por isso sublinhamos em outra parte
o fato de que a confissão sozinha não é suficiente, mas que a alma precisa ser
curada, ou seja, que é preciso adquirir uma impassibilidade parcial e até
completa.
Por essas coisas fica claro que existem muitos elementos que permitem
distinguir a falsa da verdadeira impassibilidade. São João Clímaco, um
entendido na vida interior da alma e a quem foi dado o dom do discernimento,
escreve que as paixões e os demônios fogem da alma, por algum tempo, ou
permanentemente. Mas poucas pessoas conhecem os meios e as causas dessa
retirada. A primeira causa consiste em fazer desaparecerem as paixões pelo fogo
divino. A graça divina, como o fogo, queima as paixões e purifica a alma. Outra
circunstância é quando os demônios se afastam para que fiquemos descuidados, e
então subitamente eles atacam e se apoderam da alma. Uma terceira é quando os
demônios se afastam quando a alma se habituou às paixões, “quando ela se torna
sua própria traidora e inimiga”. É como quando a criança é “retirada do seio da
mãe e começa a chupar o dedo porque o hábito de sugar tomou conta dela”.
Finalmente, a impassibilidade surge “de uma grande simplicidade e inocência”.
Ademais, a diferença entre a verdadeira e a falsa impassibilidade
aparece na atitude que temos em relação às pessoas. A impassibilidade está
conectada ao amor, e por isso nossa atitude para com nossos irmãos manifesta a
verdadeira ou a falsa impassibilidade. Aquele que “não consegue ignorar a falta
do companheiro quando algum julgamento acontece”, não possui a impassibilidade.
Porque quando as paixões da alma são perturbadas, elas cegam a mente, “evitando
com que ela veja a luz da verdade”. A pessoa também não consegue distinguir o
melhor do pior. A impassibilidade imutável em sua forma mais elevada só pode
ser encontrada naqueles que alcançaram o amor perfeito e que “se ergueram acima
das coisas sensoriais por meio de uma contemplação incessante, e que
transcenderam o corpo através da humildade”. A pessoa que chegou aos umbrais da
impassibilidade possui uma estima simples por todos os homens, “sempre pensando
o melhor de todo mundo, vendo a todos como santos e puros, e possuindo um juízo
correto sobre as coisas divinas e humanas”. O nous da pessoa impassível está livre das coisas materiais do mundo,
e “inteiramente absorvido nas coisas espirituais de Deus. Ele enxerga a beleza
divina e de um modo digno de Deus prefere frequentar os lugares divinos da
bendita glória de Deus, num indizível silêncio e alegria. Com todos os seus
sentidos transformados, ele se associa aos homens imaterialmente, como um anjo
num corpo material”. E quando uma pessoa impassível fala dos pecados de um
irmão ela o faz por uma de duas razões: ou para corrigi-lo ou para o benefício
de outro. Mas se alguém reporta os pecados de outrem “para abusar dele ou
ridicularizá-lo”, Deus abandonará essa pessoa e ela cairá no mesmo pecado ou em
outro e, “censurada e reprovada por outro homem, ela será desonrada”.
A perfeita impassibilidade existe quando a pessoa permanece
inamovível, tanto pelo objeto quanto pela lembrança deste. “Quando a virtude é
habitual ela mata as paixões, mas quando ela é negligenciada elas retornam à
vida”. Por isso a pessoa que às vezes está perturbada pelas paixões e às vezes
está calma e tranquila, não é impassível; o impassível “desfruta todo o tempo
da impassibilidade e, mesmo quando as paixões se apresentam no seu interior,
ele permanece inalterado diante das coisas que as provocam”.
Outro sinal da existência de uma perfeita impassibilidade num homem é
que durante a prece nenhuma imagem conceitual, nada mundano, perturba seu nous.
São João Clímaco diz que muitos orgulhosos que pensam ser impassíveis
“só se dão conta do quão fracos são realmente apenas depois da morte”.
A distinção entre a verdadeira e a falsa impassibilidade nos leva
agora a examinar quais são as características reais de uma verdadeira
impassibilidade.
O verdadeiro discernimento é uma marca da impassibilidade.
Já dissemos anteriormente que um sinal distintivo entre a verdadeira e
a falsa impassibilidade é o amor. Agora vamos ampliar essa distinção. De acordo
com São Máximo, “para quem é perfeito no amor e que alcançou o cume da
impassibilidade não existe diferença entre suas coisas e as coisas dos outros,
ou entre Cristãos e pagãos, ou entre escravos e homens livres, ou entre homem e
mulher”. Tendo em vista apenas a natureza humana, “ele enxerga todos da mesma
maneira e mostra a mesma disposição para como todos”. São Máximo também diz que
uma vez que Deus é bom por natureza e impassível, amando a todos os homens por
igual, “Ele glorifica o homem virtuoso porque em seu desejo este está unido a
Deus, e em Sua bondade Ele é misericordioso com o pecador; ao castigá-lo em
vida Ele o traz de volta ao caminho da virtude”. Quem ama faz o mesmo. Ele ama
o homem virtuoso por causa de sua natureza e de suas boas intenções; ele ama
também o pecador por causa de sua natureza e por meio da compaixão. Do mesmo
modo, o homem impassível é aquele que não guarda rancor contra alguém que o
injuriou ou feriu. O homem impassível ama todas as pessoas, “e não distingue o
que é divino do que não é”. Mais do que isso, o homem impassível sofre e ora
por seu próximo. “Não diga que um homem impassível não pode sofrer de aflição;
pois, mesmo que ele não sofra por si próprio, ele tem a obrigação de fazê-lo
por seu próximo”.
Da mesma forma, uma pessoa que se encaminha para a impassibilidade e
para Deus “considera como perdido um dia em que não tenha sido injuriado”. Vale
dizer que ele não apenas não se sente molestado pelas ofensas e insultos dos
homens, mas que se sente vexado quando não é criticado. Isso mostra a pureza de
seu coração em relação às paixões, mesmo aquelas mais ocultas.
Em geral o homem impassível está cheio dos dons do Espírito Santo: ele
é uma árvore cheia de frutos esplêndidos, os frutos do Espírito Santo, as
virtudes. Quando os Padres se referem às virtudes, eles não as consideram como
atos éticos autônomos, mas do ponto de vista ontológico. Ou seja, as virtudes
não consistem em ações ou valores abstratos, mas na pessoa, embora não
personalizadas no sentido de serem autoexistentes. O amor é a comunhão com o
verdadeiro amor, que é Cristo. A paz não é um valor abstrato, mas o próprio
Cristo. O mesmo se aplica à justiça, e assim por diante. Na medida em que a
pessoa impassível está em comunhão com Cristo, é natural que as virtudes de
Cristo se tornem também suas. Não queremos aqui nos demorar no tema das
virtudes. Diremos apenas que, do mesmo modo como existes as paixões do corpo e as
da alma, também existem virtudes da alma e do corpo. E assim como existem
estágios e graus das paixões, também os há para as virtudes. E assim como
existem mães e filhas das paixões, existem mães e filhas das virtudes. Mas não
cremos necessário listá-las aqui. Encaminhamos o leitor para a leitura dos
seguintes Padres: para as virtudes do corpo e da alma, São João Damasceno; para
as virtudes que correspondem aos três estágios espirituais – iniciantes,
intermediários e avançados –, São João Clímaco.
Quando uma pessoa não se encontra perturbada por nenhuma paixão, se
seu coração aspira mais e mais por Deus, se ela não teme a morte mas a encara
como um sono, então ela atingiu o penhor de sua salvação e “alegrando-se com
indizível felicidade, ela traz o Reino dos Céus dentro de si”.
Uma pessoa não recebe a graça da impassibilidade de modo causal. Isso requer
uma intenso esforço e uma grande luta. Por isso vamos ver agora como a
impassibilidade acontece. Claro que o que dissemos na seção precedente sobre a
luta para curar as paixões nos mostra a maneira de adquirir a impassibilidade. Agora
vamos trilhar alguns breves caminhos que nos poderão conduzir à terra da
promessa, ou seja, à terra da impassibilidade. Seremos concisos, sempre citando
as passagens patrísticas.
“A humildade provém da obediência, e da própria humildade vem a
impassibilidade”. A humildade que provém da obediência traz a impassibilidade. Se
um homem escolher outro caminho que não este, ele não encontrará o que deseja. A
impassibilidade não pode ser obtida sem amor. Como existem graus de amor, e
como as virtudes se interpenetram – porque a vida espiritual é unificada e
organicamente interligada – a vida de amor traz a impassibilidade, e esta é
estreitamente conectada ao amor. o amor e o autocontrole “mantêm o nous impassível diante das coisas e das
imagens conceituais derivadas delas”. A impassibilidade é “o prêmio do autocontrole”.
Jejuns, vigílias e orações ajudam enormemente no desenvolvimento da
impassibilidade: “Jejuns criteriosos e vigílias, unidos à meditação e à prece,
rapidamente conduzem aos umbrais da impassibilidade”, desde que a alma esteja
também de posse da humildade, cheia de lágrimas e queimando de amor por Deus.
Uma dieta seca e regular, junto com a caridade, “leva o monge rapidamente à
porta da impassibilidade”. Quando a pessoa trabalha com paciência, autocontrole
em todas as coisas e em constante súplica, ao mesmo tempo conservando o terreno
conquistado, com autorreprovação e o máximo de humildade, “no momento oportuno
ela receberá a graça da impassibilidade”. São João Clímaco diz que a impassibilidade
alcançada por meio do repouso do corpo não permanece inamovível “quando o mundo
a afeta”, enquanto que “a impassibilidade obtida pela obediência é genuína e
sempre inamovível”. O estado de pureza que provém da guarda dos mandamentos de
Deus engendra a impassibilidade. “A guarda dos mandamentos de Deus gera a
impassibilidade”.
Mas apenas mediante exercícios corporais, sem a fé, nenhum homem pode
entrar “no lugar de repouso da impassibilidade e da perfeição do conhecimento espiritual”.
São Teognosto diz também claramente que quando uma pessoa atinge a virtude
prática, ela não consegue alcançar a impassibilidade “a menos que a contemplação
espiritual confira ao seu nous o
conhecimento luminoso e o entendimento das coisas criadas”. Essa passagem é
muito importante. Pois hoje em dia existem muitos homens que dizem ser possível
alcançar a impassibilidade através da virtude prática. São Teognosto não aceita
isso. Ela deve ser necessariamente acompanhada pela contemplação espiritual,
pelo arrependimento e a prece, e, em especial, a prece noética.
A tristeza divina dá uma importante ajuda em adquirir a
impassibilidade. De acordo com São João Clímaco, “para muitas pessoas, a
tristeza preparou o caminho para a abençoada impassibilidade. Ela trabalhou
junto, lavrando o campo, e afastando a pessoa do pecado”. A tristeza é, assim,
um modo de vida. Ela lava a alma, purifica o nous e o torna capaz de receber as consolações divinas. Essa tristeza
se liga ao arrependimento, ao verdadeiro arrependimento que é a aversão ao si. O
Senhor falou de detestar nossa vida e ao mesmo tempo seguir a Cristo para
ganhar o Reino dos Céus. “Aquele que ama sua vida a perderá, e aquele que
detesta sua vida neste mundo receberá a vida eterna[30]”,
e “se alguém não detesta seu pai e sua mãe (...) e toda a sua vida, ele não
pode ser meu discípulo[31]”.
São Gregório Palamas escreve que aqueles que vivem no mundo devem se forçar a
usar as coisas deste mundo em conformidade com os mandamentos de Cristo. Esse esforço,
prolongado num hábito, torna fácil para nós aceitarmos os mandamentos de Deus e
transformar nossa disposição mutável num estado fixo. Essa condição traz uma
sólida aversão “contra os estados malignos e as disposições ruins da alma”, e a
aversão produz a impassibilidade. Portanto, a aversão ao nosso “eu” mau e
confuso se torna uma fonte de impassibilidade. E, quando um homem possui a
impassibilidade, o pecado já não consegue dominá-lo e ele descansa na liberdade
e na lei do Espírito.
Quando vemos que algumas pessoas proeminentes na vida espiritual
apresentam certas faltas e pequenas paixões, não devemos ficar escandalizados,
porque Deus, em Sua providência, muitas vezes deixa vestígios das paixões para
que elas se envergonhem de si mesmas e obtenham a riqueza da humildade que
ninguém poderá roubar.
Esse é o grande tesouro da impassibilidade. Ele está conectado com
todas as virtudes e com a vida espiritual. Por isso devemos orar para adquirir
a abençoada impassibilidade. São João Clímaco nos exorta a todos os que somos devastados
pela paixão a orar “incessantemente ao Senhor, pois todos os impassíveis
avançaram assim da paixão à impassibilidade”. E não devemos buscar a
impassibilidade com orgulho e egoísmo, a fim de recebermos grandes e
sobrenaturais dons. Pois é possível que um homem procure esse dom e o receba do
demônio, que age assim para enganá-lo em sua vaidade. Por isso São Teognosto
adverte: “Não peça a impassibilidade, porque você não é digno desse dom; peça
persistentemente pela salvação, e você receberá a impassibilidade em acréscimo”.
Apesar de nossas orações e de uma intensa luta, é possível que Deus
não permita que nos afastemos de uma paixão, para que possamos desfrutar da
impassibilidade parcialmente. Isso pode acontecer, seja porque pedimos a Deus
prematuramente, indigna ou orgulhosamente, ou porque, caso Ele nos concedesse a
impassibilidade total, isso poderia nos encher de vanglória ou nos tornaríamos
negligentes e descuidados. Portanto, não devemos nos afligir, “se no momento o
Senhor não dá ouvidos às nossas súplicas”. Deus gostaria de nos tornar
impassíveis “num instante”, mas Sua providência visa nossa salvação, como já
dissemos. Ademais, na história da Igreja tivemos casos em que homens que
obtiveram a impassibilidade pediram a Deus que lhes retirasse essa bênção, para
que eles voltassem a lutar contra o inimigo. Depois que são Efrém conquistara
todas as paixões da alma e do corpo pela graça de Cristo, “ele pediu que essa
graça lhe fosse retirada”, para que ele não caísse no ócio e não fosse
condenado por deixar de lutar contra o inimigo.
A impassibilidade total ou parcial demonstra a cura da alma. A alma
alcança a saúde. O nous, que havia
sido mortificado pelas paixões, revive e se levanta novamente. “A bendita
impassibilidade levanta o pobre nous
da terra aos céus, ergue o ladrão dos calabouços da paixão. E o amor, feliz com
isso, o faz sentar-se entre os príncipes, ou seja, entre os santos anjos, os
príncipes do povo do Senhor”.
[1]
João 5: 3.
[2]
Gálatas 2: 20.
[3]
Romanos 7: 23-24.
[4]
Marcos 7: 21-23.
[5]
Lucas 8: 14.
[6]
Romanos 7: 5.
[7]
Romanos 1: 26.
[8]
Marcos 12: 30.
[9]
Gálatas 5: 17.
[10]
Gálatas 5: 19-21.
[11]
Romanos 1: 28-31.
[12]
II Timóteo 3: 1-5.
[13]
Efésios 5: 5.
[14]
Tiago 1: 14 ss.
[15]
Colossenses 3: 5-10.
[16]
Efésios 5: 3ss.
[17]
Gálatas 5: 26.
[18]
Romanos 5: 7ss.
[19]
Gálatas 5: 25ss.
[20]
Gálatas 5: 16-18.
[21]
Cf. Gálatas 5: 19-21.
[22] I
João 1: 8.
[23]
João 20: 22ss.
[24]
Salmo 104.
[25]
Efésios 6: 17.
[26]
Mateus 5: 22.
[27]
Mateus 5: 28.
[28]
Cf. Mateus 10: 37ss.
[29]
Mateus 12: 43-45.
[30] João
12: 25.
[31]
Lucas 14: 26.
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