Capítulo II
O dogma trinitário
1.
A Trindade
A Encarnação, ponto de partida da teologia, coloca imediatamente no
coração desta o mistério da Trindade. Aquele que se encarnou, com efeito, não é
outro que o Verbo, ou seja, a segunda pessoa da Trindade. Encarnação e Trindade
são assim inseparáveis, e, contra uma certa crítica protestante, contra um
liberalismo que pretende opor Evangelho e Teologia, devemos sublinhar as raízes
evangélicas da triadologia ortodoxa. De fato, podemos ler o Evangelho sem
colocar a questão: quem é Jesus? E quando ouvimos a confissão de Pedro: “Tu és
o Filho do Deus vivo[1]”,
quando São João abre para nós a eternidade com seu evangelho, nós compreendemos
que a única resposta possível é o dogma da Trindade, o Cristo, Filho único do
Pai, Deus igual ao Pai, divindade idêntica e pessoa diferente.
A principal fonte de nosso conhecimento sobre a Trindade não é outra,
com efeito, do que o Prólogo de São João (e também sua primeira epístola), e é
por isso que o autor desses textos prestigiosos recebeu na tradição ortodoxa o
nome de São João o Teólogo. Desde o primeiro versículo do Prólogo, o Pai é chamado
de Deus e o Cristo, de Verbo – e o Verbo, nesse começo que não é temporal, mas
ontológico, é ao mesmo tempo Deus – “no princípio (...) o Verbo era Deus” – e
diferente do Pai – pois “o Verbo estava junto de Deus”. Essas três afirmações
de São João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o
Verbo era Deus” constituem o germe de toda a teologia trinitária. Elas colocam
de imediato nosso pensamento na obrigação de afirmar, a respeito de Deus, a
identidade e a diversidade.
Claro, é tentador apontar a antinomia, racionalizando um ou outro
desses termos. É assim que apareceram, mais ou menos explicitamente, duas
grandes tendências heréticas, a saber, o unitarismo e o triteísmo.
O unitarismo tomou muitas vezes o aspecto de um monarquismo absoluto:
não existe senão uma pessoa em Deus, a do Pai, de quem o Filho e o Espírito não
passam de emanações ou forças. Sua mais perfeita expressão aconteceu no século
III, com o modalismo de Sabellius, no qual desaparecia inclusive a própria
noção de pessoa. Para Sabellius, com efeito, Deus era uma essência impessoal
que se manifestava diversamente ao universo. As três pessoas já não eram mais
do que três modos de ação sucessivos, três aparências para o mundo de uma mesma
mônada, em si mesma sempre simples. Em relação à criação, Deus tomaria a imagem
do Pai. O Pai seria assim o aspecto de uma primeira fase da manifestação
divina, ligado à gênese e ao estado paradisíaco. Mas o pecado viria a modificar
a relação entre Deus e o homem; a era do Pai terminava e Deus assumia outra
imagem, a do Filho, cuja manifestação plena corresponderia à Encarnação. Com a
Ascensão, o modo filial da divindade teria se reabsorvido na indistinção
essencial e um novo modo apareceria, o do Espírito. Enfim, no Julgamento,
quando o universo for divinizado, tudo retornará à mônada indivisa. Essa
Trindade sucessiva permaneceria assim sendo uma pura aparência, sem referência
alguma à realidade mesma de Deus: a natureza teria aqui absorvido inteiramente
as pessoas.
A heresia contrária, o triteísmo puro, jamais se expressou
propriamente. Mas se o absurdo de uma Trindade divergente não pode ser
formulado, observamos muitas vezes, entretanto, um certo enfraquecimento da
reciprocidade trinitária: uma Trindade sem igualdade e que acaba por se
relaxar. Antes de Nicéia, as tendências subordinativas eram poderosas no
pensamento cristão, particularmente em Orígenes. Sob a influência do
neoplatonismo, identificava-se o Pai à unidade suprema, e não se podia
distinguir o Filho a não ser subordinando-o a Ele. A divindade não lhe
pertenceria propriamente, e ele apenas participava da natureza divina do Pai. O
Logos se tornava assim um instrumento do Um, e o Espírito Santo, por seu lado,
servia de instrumento ao Filho para santificar o Pai.
Essa tendência se tornou, em Arius, uma heresia que destruía a unidade
trinitária. Arius identificava Deus com o Pai, e colocava que tudo o que não
fosse Deus seria criado. Assim, o Filho seria criado, por ser diferente do Pai,
e a diferença pessoal desembocava numa ruptura ontológica. Esse Filho criado
criava por sua vez o Espírito, e a Trindade se referiria assim a uma hierarquia
na qual o inferior servia de instrumento ao superior, e que atravessava de lado
a lado uma fissura insuperável, aquela que separa o criado do incriado. A
geração se tornava assim criação, o Filho e o Espírito se tornavam “netos”,
criaturas radicalmente distintas da divindade paterna, e assim a tríade não
subsistiria senão destruindo a mônada.
Ao contrário, a fé, cuidadosamente preservada pela Igreja, capta de um
só golpe, numa adesão imediata, a unidade e a diversidade de Deus. Mas nossa
inteligência também deve ser religiosa, e não é apenas o sentimento, mas todo o
pensamento que deve se abrir à verdade, ou antes, não é nem um nem outro separadamente,
mas nosso ser inteiro, a um tempo fervoroso e lúcido. O triunfo do pensamento
cristão é p de ter elaborado, durante os quatro primeiros séculos, e em
especial no quarto, “trinitário” por excelência, uma definição que permite
fazer entrever aos pagãos a plenitude da Trindade: isso não constituiu uma
racionalização do Cristianismo, mas uma cristianização da razão, uma
transmutação da filosofia em contemplação, saturação do pensamento por um
mistério que não é um segredo a dissimular, mas uma luz inesgotável. Essa obra
grandiosa, para a qual colaboraram Atanásio de Alexandria, Basílio, Gregório de
Nissa, também Hilário de Poitiers, permitiu finalmente à Igreja exprimir por
meio do termo omoousios o mistério da
divindade a um tempo mônada e tríade. Omoousios
significa consubstancial, idêntico em essência, co-essencial; é o adjetivo que
qualifica o Filho, Deus e outro do que “o Deus”, o mesmo, mas não o Pai.
“O Verbo estava junto de Deus”, diz o Prólogo de São João: ros ton Qeon. Pros
indica o movimento, uma proximidade dinâmica; poderíamos dizer “na direção de”,
mais do que “junto”: “O Verbo estava na direção de Deus”. Pros inclui assim uma ideia de relação: essa
relação entre o Pai e o Filho é a geração eterna, e dessa forma somos introduzidos, pelo
próprio Evangelho, à vida das pessoas divinas na Trindade.
É
também o Evangelho que nos revela a “situação” trinitária do Espírito Santo, e
as relações que sublinham sua própria unicidade pessoal. Basta ler em São João
as últimas conversas do Senhor com seus Apóstolos: “Eu pedirei ao Pai, que lhes
enviará outro Consolador [Defensor] que estará para sempre com vocês: o
Espírito da Verdade[2]”,
e também: “O Defensor, o Espírito Santo que meu Pai enviará em meu Nome[3]”.
O Espírito é assim diferente do Filho, ele próprio também Consolador, mas ele é
enviado em nome do Filho para dar testemunho dele: sua relação com o Filho não
é, portanto, nem de oposição nem de separação, mas de diversidade e de reciprocidade,
e, por conseguinte, de comunhão no Pai.
A
mesma coisa vale para a relação do Espírito com o Pai: “O Espírito de Verdade
que procede do Pai”: o Espírito é diferente do Pai, mas está unido a ele numa
relação de processão que lhe é própria e que difere da geração do Filho.
O
Filho e o Espírito aparecem assim, através do Evangelho, como duas pessoas
distintas enviadas ao mundo, uma para se unir à nossa natureza e nos regenerar,
outra para vivificar nossa liberdade pessoal. Essas duas pessoas têm cada qual
uma relação própria com o Pai: geração e processão. Elas também têm entre si
uma relação de reciprocidade: é graças à purificação da Virgem pelo Espírito
que o Filho pôde ser dado aos homens, assim como foi pela prece do Filho que
subiu à direita do Pai que o Espírito foi distribuído a eles: “O Defensor que
eu lhes enviarei desde junto de meu Pai[4]”.
E essas duas pessoas aparecem, na eternidade que se entreabre, iguais em
dignidade ao Pai e idênticas a Ele em substância. Elas transcendem o mundo onde
agem: uma e outra, com efeito, estão “junto” do Pai, o qual não vem para o
mundo, e sua proximidade com o Pai, fonte da natureza divina, acaba por situar
para nosso pensamento a Trindade em sua transcendência, sua estabilidade e sua
plenitude.
2.
Terminologia trinitária
O
grande problema do século IV foi o de expressar ao mesmo tempo a unidade e a
diversidade divinas, a coincidência em Deus da mônada e da tríade. Assistimos,
entre os Padres, a uma verdadeira transmutação da linguagem: utilizando, seja
termos filosóficos, seja palavras da linguagem corrente, eles metamorfosearam
seu sentido, até os tornar capazes de marcar essa realidade prodigiosamente
nova, e que somente o Cristianismo revelara: a pessoa. Em Deus como no homem,
porque o homem é à imagem de Deus, e na Trindade como na humanidade regenerada,
porque a Igreja reflete a vida divina.
Para
exprimir a realidade comum aos Três, que “partilham a divindade não
partilhada”, como diz Gregório de Nazianze[5],
os Padres escolheram a palavra ousia: ela pertencia
à linguagem filosófica com o significado de “essência”, mas havia se banalizado
para designar, por exemplo, uma “propriedade” ou um “domínio”. Ela possuía uma
ressonância ontológica por ser aparentada ao verbo eimi, ser, e podia assim sublinhar a unidade ontológica da divindade.
E o melhor é que ela era encontrada no termo omoousios, já
cristianizado pelo Concílio de Nicéia, para definir a co-essencialidade do Pai
e do Filho. Omoousios e ousia, no
entanto, insistiam na identidade, e esse era um aspecto familiar ao pensamento
do helenismo tardio, centrado, como dissemos, na descoberta extática do Um. Ommousios introduzia já uma grande novidade, porque a
identidade de essência que ela expressava unia, sem as reabsorver em sua
própria unidade, duas pessoas irredutivelmente diferentes. Mas era preciso
justamente afirmar esse mistério do “outro”, dessa vez radicalmente estranho ao
pensamento antigo que valorizava ontologicamente “o mesmo” e denunciava no
“outro” uma espécie de desagregação do ser. Significativa dessa atitude no
vocabulário antigo era a ausência de toda designação de pessoa: pois o latim persona e o grego proswpon definiam o aspecto limitativo, enganoso e no
limite ilusório do indivíduo: não o rosto-abertura sobre o ser pessoal, mas o
rosto-máscara do ser impessoal. Proswpon, com
efeito, é a máscara ou o papel do ator: o “outro”, aqui, é superficial, ele não
possui como tal nenhuma densidade ontológica. Não é de se estranhar, portanto,
que os Padres tenham preferido a essa palavra fraca e talvez enganadora, uma
palavra ainda não hipotecada, cujo sentido eles remodelaram inteiramente: upostasis.
Enquanto
que ousia parece ter sido um termo filosófico
em vias de se banalizar, upostasis era uma
palavra corrente que começava a ter um sentido filosófico. Na linguagem
cotidiana, ela designava a subsistência; mas, entre alguns estoicos, ela havia
tomado o sentido de substância distinta, de indivíduo. No geral, ousia e upostasis eram
quase sinônimos, ambas relativas ao ser, a primeira referindo-se mais à
essência e a segunda à singularidade, sem que, de resto, se pudesse forçar uma
divergência (em Aristóteles, com efeito, as “primeiras ousias” designavam as substâncias individuais, e upostasis, como mais tarde notou São João Damasceno,
significava às vezes simplesmente existência). Essa equivalência relativa
favorecia a elaboração da linguagem cristã: nenhum contexto preexistente viria
a romper o equilíbrio dos dois termos com os quais os Padres pretendiam
sublinhar a igual dignidade; era possível escapar ao risco de atribuir uma
preponderância à essência impessoal. Ousia e upostasis eram praticamente sinônimos no princípio e
se referiam ambas à esfera do ser. Ao especializar seus sentidos, os Padres
puderam, sem obstáculo exterior, enraizar o ser na pessoa, e personalizar a
ontologia.
A
ousia, na Trindade, não é uma ideia abstrata da divindade, uma essência
racional que liga três indivíduos divinos, tal como, por exemplo, a humanidade
é comum a três homens. O apofatismo lhe confere a profundidade meta-lógica de
uma transcendência incognoscível; e a Bíblia a envolve na irradiação gloriosa
dos nomes divinos. Quanto à hipóstase – e é aí que se produz, sob a influência
do Cristianismo, uma verdadeira promoção do pensamento – ela já não tem nada de
individual. O indivíduo faz parte de uma espécie, ou antes, ele é uma parte
dela: ele partilha da natureza à qual pertence, poderíamos dizer que ele
resulta de sua atomização. Nada disso acontece na Trindade, na qual cada
hipóstase assume a natureza divina em sua plenitude. Os indivíduos são ao mesmo
tempo opostos e repetitivos: cada qual possui sua fração da mesma natureza,
indefinidamente dividida – embora sempre a mesma natureza – sem diversidade
autêntica. As hipóstases, ao contrário, são infinitamente uma e infinitamente
outras: elas são a natureza divina, mas nenhuma a possui, nem a destrói para
tê-la para si; é exatamente pelo fato de que cada uma se abre para as outras,
porque partilharem sem restrição a mesma natureza, que esta não se divide. E
essa natureza indivisa dá a cada hipóstase sua profundidade, confirma sua
unicidade, se manifesta nessa unidade dos únicos, nessa comunicação na qual
cada pessoa, sem confusão, participa integralmente de todas as demais: elas são
tanto mais uma quanto mais são diversas, porque nada de sua natureza comum lhes
escapa, e tanto mais diversas quanto são uma, porque sua unidade não é uma uniformidade
impessoal, mas a tensão fecunda de uma diversidade irredutível, a profusão de
uma “circumincessão sem confusão”, conforme diz São João Damasceno[6].
***
Os
atributos divinos se referem à natureza comum: inteligência, vontade, amor,
paz, concernem às três hipóstases juntas e não podem diferenciá-las. Não
podemos de modo absoluto qualificar com um Nome divino cada uma das hipóstases.
Como dissemos, a unicidade pessoal escapa a toda definição, a pessoa não pode
ser evocada senão em sua relação com algo de outro: o único meio de distinguir
as hipóstases será, portanto, precisar suas relações, e em especial suas
relações com o princípio comum da divindade, com a arch: o Pai. “Não ser gerado, ser gerado, e proceder, designam o Pai,
o Filho e Aquele que chamamos de Espírito Santo”, escreve São Gregório de
Nazianze[7]. A
“inascibilidade” do Pai sem princípio (que é a ideia fundamental da monarquia
do Pai, cuja importância veremos a seguir), a geração do Filho e a processão do
Espírito, tais são as relações que nos permitem distinguir as pessoas.
Mas
aqui é preciso fazer duas observações: a primeira, é que essas relações
designam, mas não fundamentam a diversidade hipostática. A diversidade é uma
realidade absoluta, ela está enraizada no mistério triplo e primordial das
pessoas divinas, e nosso pensamento, ao qual ela precede infinitamente, não
pode evocá-la senão de maneira negativa, declarando que o Pai sem começo não é
o Filho, nem o Espírito Santo; que o Filho gerado não é o Pai nem o Espírito
Santo, e que o Espírito que procede do Pai não é nem o Pai nem o Filho. A
segunda observação é a seguinte: essas relações não são relações de oposição
(como afirma a teologia latina), mas simples relações de diversidade: elas não
diferem a natureza em pessoas, mas constatam a identidade absoluta e a
diversidade não menos absoluta das hipóstases e, sobretudo, a respeito de cada
hipóstase, elas são ternárias e não podem jamais serem reduzidas à dualidade
que implicaria justamente a oposição. É impossível, com efeito, introduzir uma
hipóstase na díade, é impossível evocá-la sem que imediatamente surjam as
outras duas: o Pai, princípio, não é tal senão em relação ao Filho e ao
Espírito. Quanto à geração do Filho e à processão do Espírito, estas são de
certo modo simultâneas, uma implicando a outra.
Essa
recusa à oposição, essa recusa à dualidade, é, num sentido mais amplo, a
respeito da Trindade, a recusa, ou melhor: é a superação do número. Deus é
“identicamente Mônada e Tríade”, diz São Máximo o Confessor[8],
ele é ao mesmo tempo unitrinitário e triunitário, com a dupla igualdade de 1=3
e do 3=1. São Basílio evoca, em seu Tratado
de Espírito Santo, essa “metamatemática”: “De fato, nós não contamos por
adição, partindo da unidade para chegar à pluralidade, pois não dizemos: um e
dois e três, nem primeiro, segundo e terceiro. Pois ‘Eu, Deus, sou o primeiro e
o último[9]’.
Ora, até o momento nunca ouvimos falar de um segundo Deus, pois quando adoramos
um ‘Deus de Deus” confessamos a características das hipóstases e permanecemos
na monarquia[10]”.
Superação
da mônada: o Pai é dom total de sua divindade ao Filho e ao Espírito; se ele
fosse somente mônada, se ele se identificasse com sua essência em lugar de
dá-la, ele não seria plenamente uma pessoa. É por isso que o Deus do Antigo
Testamento não é o Pai: ele é pessoal, mas está fechado em si mesmo, e tanto
mais terrível na medida em que não pode entrar em contato com seres de outra
natureza; daí seu aspecto “tirânico”: entre ele e o homem não existe
reciprocidade. É por isso que São Cirilo de Alexandria estimava o nome de Pai
acima do de Deus: pois, se Deus só é tal para aqueles que não o são, o Pai o é
em relação ao Filho, que em nada lhe é inferior; na abertura da mônada bíblica,
o nome de Pai se revela como sendo um nome interior de Deus.
Uma
vez aberta a mônada, a plenitude pessoal de Deus não pode se estabilizar sobre
a dríade, porque a dualidade implica oposição e limitação recíproca; o “dois”
dividiria a natureza divina e situaria no infinito a raiz do indefinido, a
primeira polarização de uma criação que se tornaria, como nos sistemas
gnósticos, manifestação. A realidade divina, portanto, é impensável em duas
pessoas. A superação do “dois”, ou seja, do número, se faz por meio do “três”:
não se trata de um retorno à origem, mas do desabrochar da existência pessoal.
O três, aqui, não representa o total de uma adição; três realidades
completamente absolutamente diversas não podem ser contadas, três absolutos não
podem se adicionar uns aos outros. O três, além de todo cálculo, além de toda
oposição, instaura a diversidade absoluta. Transcendendo o número, ele não
inicia nem encerra uma série, mas a abre, para além do dois, ao infinito: não
se trata da opacidade do em-si, a absorção do retorno ao Um, mas o infinito
aberto do Deus Vivo, a profusão inesgotável da vida divina. “A mônada é
colocada em movimento em virtude de sua riqueza; a díade é ultrapassada, pois a
divindade está acima da matéria e da forma; a tríade se fecha na perfeição,
pois ela é a primeira que ultrapassa da composição da díade[11]”.
O mistério que Gregório de Nazianze evoca nesses termos típicos de Plotino nos
abre um novo domínio, para além de toda lógica e de toda metafísica. Aqui a fé
alimenta o pensamento além de seus limites, até uma contemplação cujo objetivo
justamente não é outro do q eu a participação à vida divina da Trindade.
A
teologia trinitária abre assim para nós um novo aspecto da realidade humana: o
da pessoa. A filosofia antiga não ia além de uma concepção “atômica” do
indivíduo; o pensamento romano, caminhando da máscara ao papel, definia a persona por meio de suas relações
jurídicas. Somente a revelação da Trindade, único fundamento da antropologia
cristã, pôde situar a pessoa de um modo absoluto. Para os Padres, com efeito, a
pessoa é a liberdade em relação à natureza: ela escapa a todo condicionamento,
seja ele psicológico ou moral. Todo atributo é repetitivo, ele pertence à
natureza e se encontra em outros indivíduos, mesmo um agrupamento de qualidades
pode ser encontrado em outras partes. A unicidade pessoal é aquilo que subsiste
quando se retira todo o contexto cósmico, social e individual, tudo o que pode
ser conceituado. Escapando aos conceitos, a pessoa não pode ser definida. Ela é
incomparável, ela é completamente outra. Só podemos adicionar indivíduos, nunca
pessoas. A pessoa é sempre única. O conceito objetiva e coleciona. Somente um
pensamento “desconceituado” pela apófase pode evocar o mistério da pessoa. Pois
esse resto irredutível a toda natureza não pode ser definido, mas designado.
Ele não pode ser captado senão numa relação pessoal, numa reciprocidade análoga
à das hipóstases da Trindade, numa abertura que ultrapassa a opaca banalidade
do mundo dos indivíduos. Pois a aproximação da pessoa é a penetração em um
universo pessoal, ao mesmo tempo assumido e averto: é o das mais altas criações
artísticas, aquele que é sobretudo – talvez humilde, mas sempre único – de uma
vida ofertada e dominada.
3.
Processões das pessoas e atributos divinos
A
teologia cristã não conhece uma divindade abstrata: Deus não pode ser concebido
fora das três pessoas. Se os termos ousia e upostasis são quase sinônimos, isso serve para quebrar
nossa razão, para nos impedir de objetivar a essência divina fora das pessoas e
de seu “eterno movimento” de amor, como diz São Máximo o Confessor. Um Deus
concreto, pois a divindade única é ao mesmo tempo comum às três hipóstases e
própria de cada uma: ao Pai como fonte, ao Filho como gerado e ao Espírito
enquanto procedente do Pai.
O termo de “monarquia do Pai” é corrente na
grande teologia do século IV: ele significa que a própria fonte da divindade é
pessoal. O Pai é a divindade, mas, justamente porque ele é o Pai, ele a confere
plenamente às duas outras pessoas; e estas recebem sua origem do Pai, monh arch, único princípio, de onde procede o termo
“monarquia”. A “Divina fonte”, é como Denis o Areopagita chama a Deus[12].
Com efeito, é dessa fonte que jorra, é nela que se enraíza a divindade idêntica
e não partilhada, mas diferentemente comunicada, do Filho e do Espírito Santo.
A noção de monarquia estabelece assim numa só palavra a unidade e a diferença
em Deus, a partir de um princípio pessoal. O maior teólogo da Trindade, São
Gregório de Nazianze, não pôde evocar esse mistério senão por meio de verdadeiros
poemas, os únicos capazes de sugerir algo além das palavras. “Eles não estão
divididos em vontade, escreve ele, eles não estão separados em poder[13]”,
nem em nenhum outro atributo. “Numa palavra, a divindade é não partilhada por
aqueles que dela partilham: da mesma forma, entre três sóis que se
interpenetram, a fusão da luz é única[14]”.
Pois o Verbo e o Espírito são dois raios de um mesmo sol[15],
ou antes, são dois sóis novos.
Assim,
a própria Trindade é o mistério inicial, o Santo dos Santos da realidade
divina, a própria vida do Deus oculto, do Deus vivo. Somente a poesia pode
evocá-la, justamente porque ela celebra e não pretende explicar. Toda
existência e todo conhecimento são posteriores à Trindade e nela encontram seu
fundamento. A Trindade não pode ser captada pelo homem: é ela que capta o homem
e nele suscita o louvor. Fora do louvor e da adoração, fora da relação pessoal
da fé, nossa língua, ao falar da Trindade, é sempre falsa. Se São Gregório o
Teólogo escreve a respeito dos Três, que “eles não estão divididos em vontade”,
isso é porque nós não podemos dizer que o Filho foi gerado pela vontade do Pai;
nós não podemos pensar o Pai sem o Filho: ele é o Pai com um Filho, e isso
desde a eternidade, pois não existe ato no interior da Trindade, e mesmo falar
de um estado implicaria uma passividade incabível. “Quando miramos a divindade,
a causa primeira, a monarquia, o um nos aparece; e quando miramos aqueles em
quem está a divindade e que procedem do princípio primeiro na mesma eternidade
e glória, nós adoramos os Três[16]”.
Mas
a monarquia do Pai não implicaria uma espécie de subordinação do Filho e do
Espírito? Não, porque um princípio não pode ser perfeito a menos que seja
princípio de uma realidade que o iguale. Ao Padres gregos falavam do
“Pai-causa”, mas isso não passa de um termo analógico cuja deficiência pode ser
medida a partir da utilização purificadora do apofatismo: nas nossas
experiências, a causa é superior ao efeito; em Deus, ao contrário, a causa,
como realização do amor pessoal não pode produzir efeitos inferiores: ela exige
que estes sejam iguais em dignidade, sendo assim ela a causa de sua igualdade.
De resto, em Deus não existe “extraposição” da causa e do efeito, mas
causalidade no interior de uma mesma natureza. A causalidade aqui não suscita
um efeito exterior como no mundo material, nem um efeito que é reabsorvido em
sua causa, como nas hierarquias ontológicas da Índia e do neoplatonismo, ela é
apenas uma imagem impotente de uma comunhão inexprimível. O Pai “não seria o
Princípio (arch) senão de coisas mesquinhas e
indignas, e mais ainda, ele não seria princípio senão de um modo mesquinho e
indigno, se ele não fosse o princípio da divindade e da bondade que
contemplamos no Filho e no Espírito: em um enquanto Filho e Verbo, no outro enquanto
Espírito que dele procede sem separação[17]”.
O Pai não seria uma verdadeira pessoa se não fosse pros, “para”, inteiramente voltado para as demais pessoas,
inteiramente em comunhão com elas a quem ele tornou pessoas, portanto iguais,
pela integralidade de seu amor.
A
Trindade não é assim o resultado de um processo, mas um dado primordial. Ela
não tem princípio fora dela, nada acima dela: nada lhe é superior. A arch, a monarquia, não se manifesta senão dentro, para e pela
Trindade, na relação entre os Três, numa relação que é sempre ternária, à
exclusão de toda oposição e de toda díade.
Já
São Atanásio afirmava que a geração do Filho é uma obra da natureza [de Deus].
E São João Damasceno, no século VIII, distingue entre a obra da natureza, a
geração e a processão, e a obra da vontade, que é a criação do mundo. A obra da
natureza, de resto, não é uma obra no sentido próprio, mas o próprio ser de
Deus; pois Deus é, por sua natureza, Pai, Filho e Espírito Santo. Deus não tem
necessidade de se revelar a Si mesmo, por meio de uma espécie de tomada de
consciência do Pai no Filho e no Espírito Santo, como acreditava Bulgarov. A
Revelação não pode ser pensada senão em função do “outro que Deus”, ou seja, na
criação. Assim como não existe na existência trinitária o resultado de um ato
de vontade, é impossível ver aí o processo de uma necessidade interna.
Assim,
é preciso distinguir cuidadosamente a causalidade do Pai, que estabelece as
três hipóstases em sua diversidade absoluta e sem que se possa estabelecer um ordem
qualquer entre elas, de sua revelação ou manifestação. O Espírito, pelo Filho,
nos conduz ao Pai no qual descobrimos a unidade dos Três. O Pai, segundo a
terminologia de São Basílio, se revela pelo Filho no Espírito[18].
Aqui se afirma um processo, uma ordem da qual resulta a dos três nomes: Pai,
Filho e Espírito Santo.
Da
mesma forma, todos os nomes divinos, que a vida comum aos Três no comunicam,
nos vêm do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. o Pai é a fonte, o Filho é a
manifestação e o Espírito a força que manifesta. Assim, o Pai é a fonte da
Sabedoria, o Filho é a própria Sabedoria, e o Espírito é a força que nos
permite apropriarmo-nos da Sabedoria. Ou ainda, o Pai é a fonte do amor, o
Filho é o amor que se revela, e o Espírito é o amor que se realiza em nós. Ou,
segundo a fórmula admirável do Metropolita Filarete de Moscou, o Pai é o amor
que crucifica, o Filho o amor crucificado e o Espírito o amor triunfante. Os
nomes divinos são o fluxo da vida divina cuja fonte é o Pai, que o Filho nos
mostra e o Espírito nos comunica.
A
teologia bizantina chama de energias esses nomes divinos; a palavra convém
especialmente a essa irradiação eterna da natureza divina: melhor do que os
atributos da teologia escolar, ela evoca para nós essas forças vivas, esses jorros,
esses transbordamentos da Glória divina. Pois a teoria das energias incriadas é
profundamente bíblica: a Bíblia evoca com frequência a Glória flamejante e
trovejante que permite conhecer a Deus fora de si mesmo, dissimulando-o sob uma
profusão de luz. São Cirilo de Alexandria fala do esplendor da essência divina
que se manifesta. Os termos luminosos, que aqui não têm nada de metafórico, mas
que exprimem a experiência da mais alta contemplação, retornam sem cessar para
designar o resplendor de uma beleza efervescente. A Glória divina é multiforme.
“Jesus fez muitas outras coisas; se fôssemos escrever sobre cada uma delas,
penso que o mundo inteiro não poderia conter os livros que seriam escritos[19]”.
Da
mesma forma, o mundo inteiro não é capaz de conter os inumeráveis nomes da
Glória. Dinameis, diz o Pseudo-Denis: e ele fala
tanto no plural como no singular. Aqui o número não tem lugar. Nem um, nem
muitos, mas a infinidade dos nomes divinos. Deus é Sabedoria, Amor, Justiça...
não porque ele queira, mas porque ele é. Aqui não existe máscara: Deus mostra
aquilo que ele é. Não podemos conhecer até o fundo a essência divina, mas
conhecemos essa irradiação de glória que é verdadeiramente Deus: pois se
chamamos de essência a natureza divina na medida em que ela é uma inesgotável
transcendência, e se a chamamos de energia na medida em que ela se manifesta
gloriosamente, ela não deixa de ser sempre a mesma natureza. “Pai, glorifica-me
com essa glória que eu possuía antes que o mundo existisse[20]”.
A manifestação energética não depende, portanto, da criação: ela é a irradiação
desde sempre, que não condiciona absolutamente a existência ou a inexistência
do mundo. Claro, nós a descobrimos na criatura, pois “desde a criação do mundo,
as obras [de Deus] tornaram visíveis à inteligência seus atributos invisíveis”:
a criatura está marcada com o selo da divindade. Mas essa presença divina é uma
glória permanente, eterna, uma manifestação não contingente da essência,
incognoscível enquanto tal. É a luz que, desde a eternidade, banha a plenitude
em si perfeita da vida trinitária.
4.
Processão do Espírito Santo
A
monarquia do Pai, entre os Capadócios, é uma doutrina trinitária, um ensaio que
teve como objetivo esquematizar nossa concepção da Trindade ao fazer do Pai o
centro da unidade de Três. O Filho e o Espírito procederiam do Pai, “[único
princípio” (monh arch). Conforme sublinha Gregório de
Nazianze, cada qual é Deus por causa da consubstancialidade, e os três são Deus
por causa da monarquia. O Pai é Aquele a quem está relacionada a
consubstancialidade do Filho e do Espírito.
Nas
discussões entre o Oriente e o Ocidente, bem antes do Filioque, encontramos uma crítica dos Ocidentais visando a noção de
causa (aitia) a propósito do Pai: eles preferiam o
termo principium. Na querela do Filioque, a noção de causa será
reprovada aos Gregos como sendo herética: como a causa seria exterior ao
efeito, as duas pessoas que procedem seriam exteriores ao Pai.
De
fato, o termo “causa” designa o princípio, ou seja, a “Divindade fonte” (phgaia Qeoths). Os Latinos não compreenderam o excesso de
cultura filosófica dos Padres gregos: para estes, todo termo é inadequado
quando se fala de Deus. Os termos filosóficos relativos à causalidade devem ser
ultrapassados, alegorizados. Toda linguagem se torna alegórica quando se fala
da Trindade. Quanto mais o termo é grosseiro – como é o termo “causa” – mais
ele mostra que é preciso transcender todo conceito para se falar da Trindade.
Depois do século IX, os Latinos se tornaram como que noviços em filosofia –
“recém-chegados”, que adoram corrigir os outros – sem perceber a liberdade
daqueles que estavam banhados numa grande cultura filosófica. O Ocidente não
conheceu senão parcialmente a filosofia grega até o século XII; antes ele
utilizava traduções de Aristóteles com comentários árabes. No século XIII, o
Ocidente foi submerso por Aristóteles, e foi preciso São Tomás para dominá-lo.
Este último, no entanto, acusou os Gregos de empregar na teologia trinitária
esse termo de “causa”, válido para o mundo criado.
Quanto
aos modos de origem (tropoi uparxews) que
distinguem entre si as pessoas trinitárias, elas foram sistematizadas por São
João Damasceno e designam os “modos de subsistência” do Filho e do Espírito que
extraem sua origem do Pai.
Podemos
perguntar se essa aproximação entre o Pai e a divindade não acontece em
detrimento das demais pessoas. Em São João, a palavra Deus, com o artigo (o Qeos) se aplica ao Pai. Não é a monarquia então uma preeminência da
pessoa do Pai? A resposta nos é dada pelos Capadócios que popularizaram o termo
de “monarquia”. A fonte, causa, princípio, se assim o é em estado perfeito, não
pode produzir efeitos que lhe sejam inferiores; do contrário, haveria uma
degradação da Divindade, e isso mostraria uma imperfeição da causa, a qual não
poderia, de certa forma, se reproduzir de modo algum, nem suscitar um outro
si-mesma. Existe a unidade da natureza em Deus, e é nessa unidade que as demais
Pessoas são produzidas. A perfeição da causa reside no fato de produzir efeitos
que são idênticos a ela em natureza: outros “si-mesma”. Pelo fato de que existe
uma Trindade, não podemos verdadeiramente falar de causa e efeito, porque não
podemos opor a causa ao efeito, nem a causa aos efeitos (na medida em que estes
são diferentes). Essa teogonia é pessoal; é por isso que a palavra arch não é suficiente, mas apenas sublinha o “movimento” da mônada à
tríade.
No
mundo criado, a geração biológica mostra que um homem gera um filho que é igual
a ele – que participa da mesma natureza humana. Existe igualdade de natureza
entre esses dois indivíduos. Mas aqui a causa não pode se exprimir plenamente
de uma vez por todas, numa única geração. O mesmo pai pode gerar muitos filhos
– e muitas filhas – o que mostra uma falha da causa segundo a filosofia
aristotélica! E a série de gerações se perpetua infindavelmente: o pai gera uma
série de indivíduos. Podemos falar em uma pluralidade de pessoas, mas sem
identidade de natureza. Aqui existe multiplicidade, enquanto que a Trindade não
é um número, mas a perfeição do ser pessoal. Na humanidade, existe unidade de
natureza e multiplicidade; a unidade nunca será perfeita, sempre existirá um
devir em direção a ela, mais um tornar-se unidade do que ser pleroma, um número transfinito.
A
palavra “causa”, portanto, não exalta o Pai acima das outras pessoas. Enquanto
pessoa, o Pai estabelece a Trindade de pessoas. Ele é essa mônada que se coloca
em movimento. É Ele a mônada-origem e também a finalização das outras pessoas.
A relação Pai-Filho é uma relação triádica que implica a processão do Espírito
Santo. O Pai deve ser concebido como produzindo o Espírito Santo ao mesmo tempo
em que gera o Filho. Da mesma forma, a relação Pai-Espírito exige que encaremos
ao mesmo tempo a geração do Filho. Se não for assim, caímos nas oposições que a
própria realidade pessoal da Trindade deve excluir.
Ao
relacionarmos o Filho ou o Espírito com o Pai, não devemos jamais esquecer o
outro. Examinar a relação Pai-Filho isolando-a da processão do Espírito
equivale a esquecer da Trindade. Isso é impossível de conceber, mas é preciso
justamente proibirmo-nos de racionalizá-la, dividindo-a, isolando-a. Não
podemos “construir” a Trindade, porque partimos do dado da Revelação. Toda
formulação, aqui, deve ser transformada pela graça. Só podemos conceber a
unicidade de cada pessoa se ao mesmo tempo estabelecermos as três relações, o
que é quase impossível para o nosso espírito, que só é capaz de pensar por
oposições. Seja lá qual for a pessoa pela qual se comece, é preciso sempre
estabelecer a tríade.
As
relações trinitárias se colocam, mas não se opõem jamais. É isso que São Marcos
de Éfeso sublinhou fortemente no Concílio de Florença em 1439. Os tomistas,
disse ele, procedem por oposições; ora, as relações são de diversidade, não de
oposição[21].
Esse discurso de São Marcos de Éfeso é primordial: ele representa, em pleno
século XV, o espírito dos Padres. Ele dá testemunho de um excelente
conhecimento da tese latina, que é apreciada, mas considerada insuficiente para
convir à verdade trinitária. Marcos é um grande humanista que pratica a crítica
dos textos sobre os manuscritos patrísticos. Ele está longe de ser o fanático
que alguns tentaram pintar.
A
questão da relação Filho-Espírito foi colocada desde cedo. Já os Capadócios a
responderam. Qual é a relação entre a geração do Filho e a processão do
Espírito Santo, entre essas duas pessoas, para que possamos distingui-las? Os
Padres recusam, aqui, definir a diferença: ela é absoluta, mas especificá-la
traria consigo inevitavelmente um erro. Não é uma preguiça intelectual que os
detém. São Gregório de Nazianze e São Gregório de Nissa afirmam ao
questionador: “O que é a processão? Diga-me o que significa para o Pai ser
não-gerado, e, como bom fisiólogo, eu lhe direi o que são a geração do Filho e
a processão do Espírito; então ambos poderemos delirar nos inclinando sobre os
mistérios de Deus[22]”.
Que consiste a geração do Filho é o mesmo que isolar a díade Pai-Filho. Do
mesmo modo, buscar a relação Filho-Espírito significa permanecer dentro da
díade. A geração e a processão são modos de subsistência. A teologia latina as
transformou em diferenças de origem, destruindo assim a monarquia do Pai. Nela,
o Filho procede do Pai e o Espírito Santo do Pai e do Filho, como se fossem um
só princípio: como a terceira pessoa não foi colocada na primeira relação, o
Pai e o Filho precisam se fundir para a expiração[23].
O único meio de conservar um só princípio consiste em recobrir as duas
primeiras pessoas pela comunhão de naturezas. A unidade natural substitui a
monarquia do Pai, de onde deriva uma preeminência da natureza sobre as pessoas.
A antinomia unidade-trindade fica comprometida, porque as pessoas vêm de certa
forma “depois” da unidade natural. As pessoas são pospostas à natureza. A
partir da natureza é que juntamos as pessoas. O pensamento ocidental sucumbiu a
essa tentação de subordinar as pessoas à essência no final do século XIII, no
Concílio de Lyon (1274), que anatematizou todos os que não reconheciam que o
Espírito procede do Pai e do Filho como de um único princípio. Mas a própria
fórmula do Filioque pode ser
interpretada num sentido ortodoxo. Houve muitas flutuações na teologia
ocidental depois da entrada em cena do Filioque
– muitas doutrinas, das quais algumas são aceitáveis. A doutrina de Lyon
constitui um erro dogmático que os Orientais não podem aceitar. O acordo
assinado em Lyon foi repelido pelo povo e o clero de Constantinopla. Gregório
de Chipre sublinhou na ocasião que essa fórmula não poderia ser aceita por
causa da sua pressuposição intrínseca da origem não pessoal das pessoas.
Costuma-se
afirmar que Santo Agostinho é a fonte do filioquismo. De fato, os teólogos
romanos leem num sentido filioquista o De
TRinitate e outros textos agostinianos. Ora, no próprio Santo Agostinho,
cujo pensamento não é muito seguro, ao lado de fórmulas que parecem filioquistas,
outros textos vão em sentidos bem diferentes. No próprio De Trinitate: “O Espírito é o Espírito do Pai e do Filho (...) mas
Cristo não disse: ‘o Espírito que meu Pai enviará depois de mim’ e sim: ‘o
Espírito que eu lhes enviarei desde junto do meu Pai’, querendo com isso dizer
que a origem de toda realidade divina está no Pai[24]”.
Contra os Arianos, ele escreveu: “O Espírito pode nos ensinar tudo o que o
Filho disse, porque ele proveio do mesmo Pai”. Assim, vemos que o filioquismo
de Agostinho é complexo, e não é o mesmo de Anselmo de Canterbury.
A
primeira inquietação do Oriente sobre a fórmula está no século VII: Máximo o
Confessor está em Roma, única cidadela da ortodoxia contra o monotelismo[25].
Depois da falência dogmática do Papa Honório, o Papa São Martinho defendeu
firmemente a verdade. Martinho se tornaria confessor da fé, assim como Máximo.
Ora, um certo Marinho de Chipre, sacerdote amigo de Máximo, escreveu-lhe
dizendo que numa dada encíclica papal havia uma passagem inquietante a respeito
do Espírito proceder do Pai e do Filho. Máximo consultou-se junto ao Papa e
vários teólogos romanos, e estes lhe asseguraram que entendiam a fórmula no
sentido estritamente ortodoxo. A carta de São Máximo a Marinho[26]
mostra o temor, em Constantinopla, de que, para o Papa, o Espírito procedesse
também do Filho. Mas os teólogos de Roma apresentaram passagens de Agostinho e
de Cirilo de Alexandria, nos quais mostraram que esses Padres não constituíam o
Filho como causa do Espírito, pois reconheciam uma única causa para o Filho e o
Espírito – o Pai –, causa do primeiro por modo de filiação e do segundo por
modo de processão. Eles quiseram sublinhar apenas que o Espírito foi enviado
pelo Filho, que ele lhe é consubstancial e que não difere dele em divindade.
O
reverendo padre Venance Grumel, no artigo consagrado a Máximo no Dictionnaire de théologie catholique,
declara que este, em sai carta a Marinho, justifica a fórmula latina[27]!
Ora, Máximo mostra que se trata apenas de economia. No século IX, numa época em
que alguns Ocidentais já professavam opiniões inaceitáveis, Anastácio o
Bibliotecário, grande dignitário da Cúria romana e erudito helenista, escreveu a
respeito dessa carta de Máximo, numa correspondência endereçada em latim a João
o Diácono: “Nós traduzimos uma passagem da epístola de São Máximo a Marinho, na
qual ele diz que os Gregos erram em nos acusar, porque nós não pensamos que o
Filho seja a causa do Espírito, mas queremos apenas mostrar a unidade da
substância: como o Espírito procede do Pai, da mesma forma podemos dizer que
ele procede do Filho, mas entendendo com isso a missão (missionem) do Espírito Santo[28]”.
“Dessa forma, conclui Anastácio, Máximo mostrou em que sentido o Espírito
procede e em que sentido ele não procede do Filho, e assim ele afastou a
dificuldade devida à ignorância recíproca das línguas[29]”.
Resulta daí que, para Anastácio, os ataques dos teólogos gregos não fazem
sentido. Para ele, a única causa é o Pai; o Filioque
define uma missão. Na Patrologia de Migne, o editor do texto da carta de
Anastácio (que precede a carta de Máximo a Marinho) introduz aqui uma pequena
nota na qual assinala que convém ler emissionem
onde o texto indica missionem – do
contrário se está de acordo com os Gregos cismáticos[30]!
A
fórmula do Filioque foi acrescentada de uma doutrina inaceitável numa data
precisa da história da teologia: o Segundo Concílio de Lyon (1274). Dois
séculos antes, em 1098, quarenta e quatro anos depois da separação, em grande
parte convencional, de 1054, que nascera de uma briga e não de uma discussão
teológica, no Concílio de Bari, Santo Anselmo de Cantorbery interveio numa
discussão entre Gregos e Latinos. Essa discussão era amigável, havia
concelebrações e quase não se percebia a ruptura. Em Bari estavam reunidos
bispos gregos e latinos. No momento em que os Latinos fraquejavam diante dos
Gregos que afirmavam que o Filioque
era contrário à Escritura, Anselmo interveio fazendo uso de uma especulação já
pré-escolástica: o que é Deus? Uma substância absolutamente simples. Para falar
da Trindade é preciso, portanto, considerar as Pessoas como uma relação dentro
da essência, para não introduzir uma composição nessa substância. A essência,
considerada em si mesma, se coloca como Filho, por ser inteligente e
inteligível. Quanto ao Espírito, não é possível colocá-lo senão opondo-o ao Pai
e ao Filho, considerados como um único princípio. O Espírito mostra sua
unidade. Esse modo inteiramente novo de raciocínio triunfou. O Espírito
resultaria assim da oposição da terceira pessoa em relação às duas primeiras,
tomadas estas sem conjunto. Nós falamos em “Espírito do Filho”, mas não em
“Filho do Espírito”. É por isso que é o Filho, e não o Espírito, que se deveria
opor aos dois outros. Essa especulação propriamente filosófica seria verificada
pelos dados da Revelação, pois, do contrário, seria possível falar em “Filho do
Espírito”.
E,
no entanto, a teologia do século XII – sobretudo a cisterciense – ao utilizar o
Filioque, ignorou a doutrina de
Anselmo. São Bernardo perseguiu injustamente Abelardo, porque esse ousara
especular sobre a Trindade. O Espírito procede “principaliter” do Pai, dizem esses teólogos, com o auxílio de uma
fórmula que é um pouco ingênua, mas que salvaguarda a monarquia do Pai; assim,
não podemos ignorar a processão do Espírito quando falamos na geração do Filho.
O Filho é princípio, mas não como um princípio único, mas segundo uma relação
trinitária com a criação. Essa teologia dá continuidade a Agostinho, na grande
tradição patrística. Quanto à teologia de Anselmo, ela será retomada e
aperfeiçoada somente no século XIII, por São Tomás de Aquino, no momento em que
no Filioque é introduzido no próprio
dogma.
5.
Princípios da teologia trinitária Ortodoxa
Podemos
agora colocar em evidência cinco grandes princípios da teologia Ortodoxa:
Primeiro
princípio: a plenitude não limitada.
Quando evocamos as coisas de Deus, este princípio exige que evitemos
rebaixá-las com nossas categorias humanas, com nosso pensamento terrestre. Três
aplicações decorrem daí:
·
A apófase:
trata-se de uma maneira negativa de pensar, quando desejamos atribuir a Deus
uma perfeição que não conhecemos aqui em baixo. Em sua plenitude pessoal, Deus
está sempre além, sempre outro, sempre infinitamente mais.
·
A exigência de jamais pensar em Deus por
oposição. Trata-se de um princípio de não-oposição,
correção necessária da apófase que opõe o positivo e o negativo: Deus não pode
ser pensado por oposição a seja lá o que for. Deus não é jamais outra coisa:
nas palavras de Nicolas de Cues, “Deus nos est aliud[31]”.
Nada se opõe a Deus, nem mesmo o nada. O nada não é um vazio absoluto perante o
ser. Como tal, o nada não existe. É a criação que o estabelece, pelo simples
fato de que a criatura não possui uma substância própria; ela não existe senão
pela vontade de Deus e sua existência é analógica.
·
A coerência
universal do pensamento teológico: não podemos isolar um tema cortando-o
dos outros. O método cartesiano – more geometrico
– não pode ser aplicado à teologia, na qual todos os temas convergem e se
interpenetram. Podemos concentrar nossa atenção sobre um deles, mas jamais
isolando-o da plenitude. É o envolvimento total da verdade que dá sentido a
cada tema. De certo modo, é preciso “contrair” a plenitude em relação a cada
tema. Daí decorre também a necessidade de recusar toda sistematização. A
Revelação é o corpo (único) da verdade, dizia Santo Irineu de Lyon[32].
O mesmo acontece com a teologia: ela é um corpo vivo que não se pode dissecar
como se fosse um cadáver.
O
segundo princípio é a redução ao concreto. O pensamento teológico não deve
jamais ser abstrato, o que se traduz segundo três aspectos:
·
A historicidade
da Revelação: a revelação cristã é a única, na história da humanidade, que está
ligada à história de um povo. É por isso que a história desse povo se tornou o
livro sagrado de toda a humanidade.
·
O momento soteriológico: a teologia não
constitui uma doutrina distante, mas uma realidade que toca a cada um
pessoalmente. Trata-se da nossa salvação eterna, não de um jogo psicológico. A
teologia se refere à minha pessoa, à minha situação pessoal no mundo – do
contrário, ela se torna uma doutrina abstrata. O existencialismo não passa de
uma degenerescência de um tema cristão.
·
O momento da atualidade: as fórmulas
teológicas não fazem sentido se não puderem ser expressas para os homens de
hoje. É preciso re-expressar os dogmas antigos – sempre vivos na consciência da
Igreja – para que os homens de hoje sintam que eles estão vivos. É preciso
responder às preocupações dos homens de hoje em dia.
O
terceiro princípio é o da distinção não
conceitual. A teologia não deixa de distinguir, mas é preciso sempre
ultrapassar o sentido do conceito. Assim, os termos de ousia e upostasis eram quase sinônimos no tempo dos
Capadócios. Eles os escolheram para mostrar que a distinção colocada assim
recobre uma realidade – que ela é outra coisa do que conceitual.
O
quarto princípio é o do julgamento que
contrabalança as antinomias. As antinomias são um critério da retidão de
nosso pensamento. No que se refere à doutrina da Trindade, arriscamo-nos de
pender para o unitarismo ou para o trinitarismo separador. A antinomia evita
esses erros: Um e Três – e esses dois momentos são equivalentes. Mas aqui
existe a necessidade de considerar a vida pessoal de Deus, que contrabalança a
antinomia ao mesmo tempo em que a preserva. Nosso julgamento se refere à
contemplação do mistério, e toda a teologia trinitária decorre dela.
O
quinto princípio: ultrapassar a oposição
no terceiro termo. A raiz dessa superação se encontra na Trindade, como
sublinha Gregório de Nazianze: “A mônada é colocada em movimento em virtude de
sua riqueza; a díade é superada, pois a divindade está acima da matéria e da
forma; a tríade se encerra na perfeição, pois ela é a primeira a superar a
composição da díade[33]”.
Ora,
esse momento trinitário por excelência se encontra em toda parte onde existe o
mistério do ser pessoal. Em sua obra teológica, São Photius emprega a imagem de
uma balança para descrever a Santa Trindade: o Pai é a agulha, enquanto que o
Filho e o Espírito aparecem como os dois pratos[34].
Na agulha, vertical, coincidem pessoa e natureza. Porém, se o equilíbrio dos
pratos é comprometido – se o Filho for considerado como princípio do Espírito
junto com o Pai – a agulha se inclinará no mesmo sentido, e a equivalência
natureza-pessoa será rompida, com a natureza primando sobre a pessoa.
Mas
também podemos romper o equilíbrio num sentido oposto, quando a pessoa se torna
primordial e a natureza passa ao segundo plano: trata-se da tentação de
considerar a Trindade unicamente num sentido pessoal. Assim é que o padre Serge
Boulgakov pretendeu deduzir a Trindade a partir de uma noção puramente pessoal.
Sua crítica do Filioque é muito
justa: ele mostra a pessoa acrescentando-se à essência como uma relação de
essência. Mas ele denuncia um racionalismo semelhante entre as teologias
Ortodoxas: essas conduziriam a Trindade aduas dualidades, o que não
seria a Trindade, mas a justaposição da geração e da processão. Ele não
observou que os teólogos ortodoxos empregam o conceito ao mesmo tempo em que
ultrapassam o conceito. Para ele, a fórmula de São Gregório não queria dizer
nada. O momento apofático empregado no conceito permaneceu fechado para o padre Boulgarov.
Ele buscou então outro fundamento para o dogma trinitário, vendo na teologia
tradicional um pensamento decadente da Antiguidade, um pensamento não
personalista. Agora, a grande filosofia alemã nos permitiria melhor expressar o
mistério pessoal. Ele pretendeu fazer tabula rasa do passado, sem reconhecer
que, no pensamento alemão, o que encontramos é a degeneração filosófica de
temas cristãos! O momento pessoal sobrepuja agora o momento essencial. Não
podemos, para Boulgakov, utilizar as relações para distinguir as pessoas. Para
ele, a verdadeira relação entre as pessoas é a manifestação: a pessoa não se
coloca em relação, ela se manifesta para a outra. Assim, a manifestação se
torna a chave do mistério trinitário. A antinomia essência-pessoa é perdida
desde o início. A essência não passa de uma manifestação ou objetivação da
pessoa. Logicamente, a essência vem depois. A pessoa toma consciência de seu
conteúdo e o manifesta como essência – o “eu”. O Pai se objetiva idealmente no
“Tu” do Filho, e esse conteúdo ideal se torna real no “Ele” da terceira pessoa.
A manifestação se torna plena no Espírito Santo. A essência una é a Sabedoria
divina (Sophia). Ela é colocada e
objetivada como um conteúdo da vida divina que corresponde a esse processo
trinitário no qual o Pai estabelece as outras duas pessoas, manifestando-se
nelas. Deus se torna um sujeito único com três centros pessoais, uma “hipóstase
tri-hipostática”, um sujeito que é um e trino ao mesmo tempo, sendo seu
conteúdo ideal o Filho e seu conteúdo real o Espírito. A natureza se torna
assim objeto desse sujeito. Toda a filosofia moderna – e, sobretudo, o
idealismo alemão – se encontra em segundo plano. Para Fichte, ao conhecer a mim
mesmo, eu projeto o universo; existe assim uma objetivação do sujeito.
Podemos
distinguir três momentos na teologia trinitária de Boulgakov: o “cosmos noetos”, o mundo ideal, é o
Filho. A glória, beleza e esplendor é o Espírito. A Sophia é o polo passivo desse sujeito pessoal; a ela se liga uma
certa hipostatividade a fim de que ela possa ser plenamente objetivada. Daí a
necessidade da criação, desembocadouro necessário do processo trinitário. A Sophia deve ter um aspecto criado,
plenamente objetivado fora de Deus. Esse desenvolvimento ulterior na criação
surge como necessário para que a Sophia
se torne plenamente real para Deus, e Deus plenamente real para Si mesmo.
A
teologia Ortodoxa insiste na equivalência ontológica da natureza e da pessoa. A
palavra equivalência não possui aqui um sentido quantitativo. Ela significa que
a natureza e a pessoa estabelecem igualmente a identidade e a
não-identidade no Deus pessoal. Ademais,
a teologia Ortodoxa sustenta a origem pessoal das pessoas, sendo o Pai o princípio
único das duas outras pessoas. Enquanto Pai, ou seja, outro, ele estabelece o
Filho e o Espírito. Enfim, a teologia Ortodoxa afirma o princípio da
diversidade absoluta das pessoas, que não pode ser deduzida de seja lá o que
for. Aqui é impossível recorrer à oposição: esta deve ser superada pelo
terceiro termo. Convém estabelecer aqui uma relação tal que ela permaneça
sempre trinitária: o Pai gera o Filho porque ao mesmo tempo ele faz proceder o
Espírito Santo. Existe uma simultaneidade entre o Filho e o Espírito em sua
origem, não sendo um causa do outro, porque não se pode pensar na origem de um
sem colocar a do outro; se não fosse assim, não teríamos a Trindade, mas uma
justaposição de duas díades. A Trindade é uma superação infinita da díade, e
aqui voltamos sempre à fórmula “hermética” de São Gregório.
O
Filioque não pode se integrar a essa
fórmula. A mônada se opõe a si própria enquanto díade, porque essa díade,
permanecendo mônada, irá se opor ao terceiro termo. Ou bem a mônada se abre em
díade e se encerra novamente em mônada: não temos aí o filioquismo de Anselmo
ou de São Tomás, mas o do agostinismo medieval – do qual, aliás, Santo
Agostinho não é responsável. Essa doutrina se afirma a partir do século XII. A
mônada se desdobra e depois se fecha. O Pai, conhecendo a si mesmo, gera o Filho,
e depois a mônada retorna sobre si mesma no movimento reverso do amor: o
Espírito é o “nexus amoris”, a
ligação de amor entre o Pai e o Filho, seu amor mútuo. O Espírito constitui
assim a unidade dos dois. Esse psicologismo foi emprestado da vasta coleção de
imagens mentais de Agostinho. O Filho não é outro em natureza, e essa unidade
Pai-Filho constitui o Espírito. O Espírito é o signo da unidade natural entre
Pai e Filho. A terceira pessoa, necessária no esquema de São Gregório,
desaparece aqui. A unidade entre Pai e Filho é chamada de “pessoa”. No século
XII, o Escritos dos vinte e quatro
filósofos, um texto pseudo-hermético citado por Alain de Lille, que
apresenta vinte e quatro definições de Deus atribuídas a Hermes Trimegistos –
mas que não são encontradas no Corpus
Hermeticum, e que tampouco são cristãs – declara: “Deus é a mônada que gera
uma outra mônada e que reflete sobre si mesmo seu próprio ardor[35]”.
Curioso encontro com a fórmula de São Gregório, que não era conhecida na Idade
Média ocidental, mas um encontro que acontece apenas nos termos empregados. O
Espírito se torna aqui uma função divina, não uma pessoa.
O
primado do ensinamento católico romano se ligou ao filioquismo de São Tomás. É
a teoria das “oposições de relações”: Pai-Filho, seguido de Pai e Filho como um
só princípio-Espírito. Esse esquema parece menos religioso, mas filosófico
(aristotélico) do que o precedente, que lembra mais os temas neoplatônicos.
Esses
dois esquemas são muito diferentes e não vemos como reuní-los. No esquema
platonizante, o que é precioso para as almas místicas é a circulação da vida
divina, do amor divino, mas isso lembra demasiado Proclus...
Para
a Ortodoxia, esse esquema rebaixa o momento trinitário, o mistério do ser
pessoal de Deus.
6.
Processão e manifestação divina
São
Basílio escreveu um Tratado sobre o
Espírito Santo que constitui um comentário sobre as duas doxologias
trinitárias. A primeira, que então stava mais em voga, é “vertical”: Glória ao
Pai, pelo Filho e no Espírito Santo. A segunda, que lembra Basílio e que se
reportava principalmente ao rito do Batismo, é “horizontal”: Glória ao Pai, ao
Filho e ao Espírito Santo. o objetivo de Basílio era o de mostrar que o
Espírito é uma pessoa divina e não uma força, uma energia do Pai ou do Filho, ou
dos dois: nem uma pessoa inferior, nem uma realidade criada. O Espírito Santo é
“igual em dignidade” (omotimos) ao Pai e ao Filho; ele é
consubstancial a ambos, assim como o Filho o é em relação ao Pai. Basílio evita
a polêmica, jamais pronuncia o termo omoousia ao falar
do Espírito; ele sublinha apenas que este é omotimos – que
tem a mesma honra – com o Pai e o Filho, o que implica a consubstancialidade.
Além
desse objetivo, devemos acima de tudo nos interessar pelos dois planos segundo
os quais Basílio nos apresenta a Trindade. O plano “horizontal” é propriamente
teológico, colocando em evidência o mistério da consubstancialidade, para além
de toda manifestação divina. O outro plano é necessário para dar riqueza e vida
à visão despojada, quase matemática, da “teologia”. Pois, no plano “vertical”,
Deus se revela a nós, se dá a conhecer, e toda operação provém do Pai, pelo
Filho, no Espírito Santo. A manifestação se coloca aqui na realidade da
energia. Em Si mesmo, Deus possui todos os nomes divinos e esse movimento
eterno de manifestação é próprio de Deus, além mesmo da economia. Podemos falar
de Deus em termos de Sabedoria ou de Amor, mas sem esquecer que esses nomes não
podem ser aplicados às próprias relações trinitárias. Aquilo em que Deus se
manifesta não é a essência, mas “aquilo que o cerca[36]”,
assim como a luz cerca o disco solar. Essa manifestação se faz a partir do Pai,
pelo Filho, no Espírito, estando, portanto, realmente dentro da realidade
trinitária, na irradiação desta vida. A ordem assim definida não é ontológica.
Trata-se de uma ordem de operação, na operação comum dos Três, que tem o Pai
por princípio. Este é ao mesmo tempo o princípio da Unitrindade. É do Pai que
toda manifestação vem pelo Filho no Espírito. Essa manifestação é uma energia da
natureza, mas não é impessoal. Deus é sempre um Deus pessoal. Até o século IV,
“Deus” (o qeos) significava o Pai, como no Prólogo
de São João. Não podemos considerar a essência fora das hipóstases. A energia
natural é a Trindade. É a energia da natureza comum, mas sem atribuir ao termo
“comum” um sentido impessoal. A energia possui uma fonte no Pai, e nós a vemos
no Filho pela ação do Espírito Santo.
Um
endurecimento doutrinal se produziu sobre a consubstancialidade no fim do
século IV, sem que os Padres capadócios fossem responsáveis por isso. São
Basílio reunira então os dois planos: o Espírito procede apenas do Pai, mas ele
é também a iluminação (eklamyis) da manifestação do Pai e do Filho.
Ao insistirmos na consubstancialidade, temos a tendência de perder de vista a
manifestação; os Padres dos primeiros séculos foram até mesmo acusados de
subordinacionismo. Ora, não se trata de uma subordinação ontológica, mas de uma
ação comum que é ao mesmo tempo diversificada. Em Teófilo de Antioquia, na
segunda metade do século II, o Verbo manifesta o Pai, e a Sabedoria se
identifica com o Espírito Santo. Ora, essa Sabedoria é, segundo a Bíblia, o
princípio da ordem e da vida cósmica. Também muitas vezes os Padres anteriores
a Nicéia chamaram o Espírito de “energia”. Partindo do Prólogo de João,
Hipólito de Roma escreve que ele fala de um só Deus, e especifica: “duas
pessoas (o Pai e o Filho) e, terceiramente, a economia, graça do Espírito Santo[37]”.
Ele não nega a igual dignidade dos três. Em outras ocasiões, o Espírito é
tratado simplesmente como “graça”.
Depois
do arianismo, insistiu-se sobre a igualdade entre o Pai e o Filho, mas os dois planos
foram ainda colocados no mesmo tempo por São Basílio e São Gregório de Nissa: “Nós
concebemos [...] um segundo sol saído do sol não gerado, resplendendo
simultaneamente a ele por geração, e se apresentando sob todos os aspectos da
mesma maneira pela beleza, o poder, o esplendor [...] que atribuímos ao sol. E
novamente conceberemos outra luz semelhante, não separada por um intervalo
temporal da luz gerada, mas resplendendo por ela, ao mesmo tempo em que extrai
a causa de sua hipóstase a partir da luz prototípica[38]”.
É a mesma natureza que se manifesta aí: o Espírito nos mostra o Pai pelo Filho;
ele nos mostra a divindade do Filho que procede do Pai, subordinando-se aqui ao
Filho para nos revelar a natureza comum, a Trindade.
São
João Damasceno, querendo também assumir o momento “vertical”, escreveu que o
Espírito é “a força essencial contemplada na sua própria essência hipostática”.
Nós O conhecemos como uma força, uma energia da natureza, mas é preciso
contemplá-Lo como uma pessoa. É uma pessoa que nos dá essa força, mas que se
esconde e desaparece, pois sua função aqui em baixo é de manifestar a natureza
divina. O Filho mostra sua pessoa e esconde sua natureza. O Espírito esconde
sua pessoa e mostra a natureza divina ao designar o Filho. São as nossas
pessoas que são chamadas a “enipostatizar” a graça que recebemos e é por isso
que o Espírito se dissimula.
Existe
um certo anonimato da hipóstase que manifesta Deus. Nesse ponto, São Tomás de
Aquino se aproxima da tradição oriental.
Ter
a experiência da energia divina consiste em sentir o Espírito como uma manifestação
da divindade como luz, esplendor, glória e beleza. E, no entanto, essa terceira
pessoa deve ser confessada enquanto tal. Com efeito, ela pertence à própria
aparição do Deus pessoal, à afirmação triádica, que é plenamente pessoal: Deus,
ao se afirmar, estabelece uma relação perfeita com o outro; essa relação não é
de oposição, mas sim necessariamente trinitária, na superação infinita da
dualidade. O Espírito é a superação infinita da díade, a afirmação plena da
realidade pessoal, afirmação que faz com que Deus seja “aberto”. Deus está “fechado”
enquanto natureza totalmente transcendente. Não pode existir uma quarta, nem
uma quinta, nem uma milionésima pessoa da Trindade pela união dos santos com
Deus. Existem somente três pessoas divinas. Quanto às demais, elas são chamadas
à deificação. Deus também é “aberto”, porque ele se dá plenamente. Na pessoa do
Espírito Santo, esse “fechamento” de Deus é superado. Deus, e somente Deus,
rompe o muro de sua natureza. O Filho é ele mesmo no outro, imagem no espelho. Para
que aconteça a superação da mônada opondo-se a si mesma, é preciso ao mesmo
tempo a Trindade das pessoas e o jorro energético da glória que manifesta Deus.
Esse rompimento da essência é eternamente próprio a Deus, concomitante com seu
ser trinitário, e é justamente o mistério do Espírito Santo.
Os
dois termos “essência” e “substância” coincidem num certo sentido. A natureza
remete à essência. Mas a essência pertence à visão despojada da Trindade, à
co-essencialidade das três hipóstases, à “teologia”. Ao contrário, quando
falamos da natureza, falamos sobretudo da Trindade “operativa”. Trata-se assim
da mesma realidade divina considerada seja na sua manifestação (a natureza),
seja na sua transcendência inacessível (a essência).
Deus,
por sua natureza, é “Todo-poderoso” (pantodunamis). Essa onipotência
se refere à plenitude da expansão divina das energias. “Pantocrator” (pantokratwr) significa aquele que é o mestre de todas as
coisas, enquanto que a onipotência designa o pan-energismo de Deus.
“Potência”
possui aqui um sentido positivo; não é potencialidade. Potência (dunamis) e energia (energeia) são idênticas em Deus. Não se pode
atribuir a Deus um fundo obscuro que fosse uma possibilidade não realizada... Isso
é próprio a todas as visões românticas, como a de Schelling, por exemplo. Não
se pode conceber a dunamis no sentido passivo, negativo. O que
Basílio denomina como “energia” é chamado de “potência” por Denis, que viveu
mais tarde. É o termo “energia” que entrou na definição dogmática do século
XIV. Na filosofia de Aristóteles, a potência, ao contrário, se opõe ao ato. Seria
preciso então afirmar que Deus é “ato puro”, “pura energia” – que é o que diz,
por exemplo, São Tomás de Aquino – mas especificando: “um ato puro subsistente”,
um ato que é o próprio ser de Deus.
Essa
definição é legítima? Por mais que a energia e a potência devam coincidir em
Deus, nele não existe senão a energia, sem nenhuma “potência” não realizada. Mas
dizer que, por sua essência, Deus é “ato puro”, equivale a suprimir a antinomia
essência-energia. Ora, o termo “energia” não é suficiente quando se fala de
Deus. Convém distinguir a energia daquele que a opera, de sua essência. Senão,
a supressão da antinomia constitui um empobrecimento. O “ato puro” é uma
ingerência da filosofia humana na teologia. A palavra “ato” é tão imprópria
quanto a palavra “potência”. A distinção essência-energia não é uma oposição:
Palamas insiste na antinomia como uma “regra de piedade”. É preciso manter os
dois extremos, distinguindo-os sem os opor: não se pode opor a energia Àquele
que se manifesta, podemos apenas distingui-la. Existe aí uma grande dificuldade
para os que estão habituados a pensar por oposições – como os tomistas – pois,
para eles, a essência é como um fundo não manifestado, portanto um absurdo. Ora,
Deus é totalmente essência e totalmente energia, e sempre o mesmo Deus. Somente
os que O recebem se tornam deuses pela graça, sem se tornar novas pessoas da
Trindade. Deus se dá totalmente a nós e, ao mesmo tempo, ele permanece fechado
em sua essência. Ele é a um tempo totalmente “aberto” e “fechado”, totalmente
presente e totalmente transcendente. A beleza da natureza divina, seu
esplendor, não cessão de fluir, de irradiar, mas a essência das três pessoas
permanece inteiramente outra em relação a nós. Na imanência de sua revelação,
Deus é aquele que se manifesta totalmente. Mas esse “aquele que” é a Trindade
totalmente transcendente: Deus transcende não apenas a criação, mas a própria
relação com a criação, relação na qual ele se dá a conhecer.
Pode
a criação suportar a totalidade da manifestação divina? Não, o mundo não pode
conter a plenitude da glória divina. Assim sendo, quando falamos dessa
manifestação contemplando-a em relação ao mundo criado, trata-se também de uma
economia nos dois sentidos da palavra: uma construção, mas também uma
restrição, uma medida. Existem medidas na Revelação, caso contrário a criatura
seria reduzida a nada. Essa medida é regida pela vontade consciente, e aí está
a economia, a relação de Deus para com o mundo que Ele criou. Existe uma
vontade providencial no governo do mundo. Deus é a economia da morada do mundo,
o Pantocrator de que fala o Credo.
[1]
Mateus 16: 16.
[2]
João 14: 16-17.
[3]
João 14: 26.
[4]
João 15: 26.
[5]
Gregório de Nazianze, Discurso 31,
14.
[6]
João Damasceno, A Fé Ortodoxa, I, 14.
[7]
Gregório de Nazianze, Discurso 31, 9.
[8]
Máximo o Confessor, Capítulos teológicos
e econômicos, II, 1.
[9]
Isaías 44: 6.
[10]
Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito
Santo, XVIII, 45.
[11]
Gregório de Nazianze, Discurso 22, 8.
[12]
Pseudo-Denis o Areopagita, Nomes Divinos
II, 7.
[13]
Gregório de Nazianze, Discurso 31,
14.
[14] Ibid.
[15]
Ver Pseudo-Gregório de Nazianze, Carta a
Evagro.
[16]
Gregório de Nazianze, Discurso 31,
14.
[17]
Gregório de Nazianze, Discurso 2, 38.
[18]
Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito
Santo, XVIII, 47.
[19]
João 21: 25.
[20]
João 17: 5.
[21]
São Marcos de Éfeso, Capita syllogistica
adversus Latinos, 24.
[22]
Gregório de Nazianze, Discurso 31, 8.
[23]
Ato pelo qual o Espírito Santo procede do Pai e do Filho na Trindade latina.
[24]
Agostinho de Hipona, De Trinitate IV,
29.
[25]
Doutrina herética que reconhecia em Cristo duas naturezas, humana e divina, mas
uma só vontade, a divina.
[26]
Máximo o Confessor, Opúsculos teológicos
e polêmicos.
[27]
Venance Grumel, “Maxime de Chrysopolis”,
Dictionnaire de théologie
catholique, t. X-1, Paris 1928.
[28] Ex Anastasii epistola ad Joannem Diaconum,
PG 91, 133-134.
[29] Ibid.
[30] Ibid., n. 61.
[31]
Nicolas de Cues, De li non aliud, IV.
[32]
Irineu de Lyon, Contra as heresias I,
9, 4.
[33]
Gregório de Nazianze, Discurso 22, 8.
[34]
Photius, Amphilocalia, Questão 181.
[35]
Alain de Lille, Máximas teológicas,
Regula III.
[36]
Gregório de Nissa Homilias sobre as
Beatitudes, VI.
[37]
Hipólito de Roma, Contra as heresias,
14.
[38] Gregório
de Nissa, Contra Eunomo I, 2, 533.
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