Capítulo V
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem
1.
A encarnação
No prólogo de São João, que se refere a um tempo a Cristo e à
Trindade, ressoa o versículo 14 da
grande certeza cristã, aquela mesma que o jovem Agostinho buscou em vão na
filosofia de Plotino: “O Verbo de fez carne”.
Tudo o que conhecemos da Trindade conhecemos pela Encarnação, sublinha
São João. A Revelação se consuma quando uma pessoa divina, a do Filho de Deus,
se torna filho do homem e “habita entre nós[1]”.
Claro, o pensamento não cristão muitas vezes pressentiu o mistério do número
três, mas através da ambiguidade de símbolos ambíguos, e a plena Revelação da
Trindade exigia a Encarnação. A partir daí, o Antigo testamento se revela
trinitário, o mestre do universo aparece como Pai, e o homem, contemplando a
glória que um “Filho único[2]”
recebeu do Pai, vê abrir-se a natureza divina: a teologia como contemplação do
próprio Deus se torna possível
‘O Logos
sarx egeneto’: “o Verbo se fez carne[3]”.
Aqui começa a economia própria do Filho que entra na história do mundo. A
“carne”, com efeito, é o limite último da “humanização”. Não apenas a alma, mas
também o corpo, foram assumidos pelo Verbo. A palavra “carne” designa aqui a
totalidade da natureza humana. E o “devir” do Verbo “tornado carne” se
acrescenta à plenitude do ser divino, para grande escândalo dos metafísicos. O
Filho permanece Deus no seio da Trindade inalterada. Mas alguma coisa é
acrescentada à sua divindade, ele se torna homem. Paradoxo incompreensível, o
Verbo, sem mudança de sua natureza divina, que nada é capaz de diminuir, se
engaja plenamente em nossa condição a ponto de aceitar até mesmo a morte.
Suprema manifestação do amor, esse mistério não pode ser abordado senão em
termos de vida pessoal: pois a pessoa do Filho supera as fronteiras do
transcendente e do imanente para se engajar na história humana. Um devir que
ultrapassa as categorias da natureza divina, eterna, imutável, mas com a qual
não se identificam as hipóstases: é por isso que Cristo se torna homem sem que
as demais pessoas da Trindade sofram ou sejam crucificadas, e é por isso que se
pode falar numa economia própria do Filho.
Claro está que a economia é prerrogativa da vontade divina, e que esta
é única no que tange à Trindade; é claro também que a salvação do mundo é a
vontade única dos Três, e que “aquele que se vê iniciado no mistério da
Ressurreição compreende o fim pelo qual Deus criou todas as coisas no começo[4]”.
Mas essa vontade comum se realiza de modo diferente para cada uma das pessoas:
o Pai envia, o Filho obedece, o Espírito acompanha e assiste, e é por
intermédio dele que o Filho entra no mundo. A vontade do Filho é a mesma da
Trindade, mas ela se apresenta como obediência. É a Trindade que nos salva, mas
é o Filho que se encarna pata realizar no mundo a obra da salvação. Para os
patripassionistas, o Pai sofreu, o Pai foi crucificado com o Filho por causa da
unidade de naturezas. Isso equivale a confundir em Deus a natureza e a pessoa.
Mas nós percebemos bem que, se nossas distinções evitam a heresia, por outro
lado elas sublinham o mistério: caminhos rigorosamente demarcados pela fé e a
oração, sem estas últimas as distinções não passam de palavras. O mistério,
aqui, é o da obediência. Pois, em Deus, tudo é unidade. Mas em Cristo não havia
apenas a vontade divina, mas a vontade humana, e uma como que separação se
introduziu entre o Filho e o Pai: o acordo das duas vontades em Cristo sela a
obediência do Filho ao Pai, e o mistério dessa obediência é o mesmo da nossa
salvação.
O Filho se encarna para tornar possível a união do homem com Deus, que
fora não apenas interrompida, mas proibida, sem recurso humano, pelo mal. O
primeiro obstáculo a essa união, a separação das duas naturezas – a do homem e
a de Deus – foi suprimido pelo fato mesmo da Encarnação. Restaram dois outros
obstáculos, ligados a condição decaída do homem: o pecado e a morte. A obra de
Cristo consiste em vencê-los, banindo do cosmo terrestre sua necessidade. Não
se suprimi-los simplesmente, o que seria forçar a liberdade que os criou. Mas
tornar a morte inofensiva, o pecado curável pela submissão do próprio Deus à
morte e ao inferno. Deste modo a morte de Cristo retira, entre o homem e Deus,
o obstáculo do pecado; e sua ressureição rouba à morte seu “aguilhão”. Deus
desce aos abismos meônicos[5]
abertos na criação pelo pecado de Adão a fim de que o homem possa subir até a
divindade. “Deus se tornou homem para que o homem possa se tornar Deus”: o tema
aparece três vezes em Santo Irineu[6],
e depois vamos encontrá-lo em Santo Atanásio[7],
terminando por se tornar um adágio comum aos teólogos de todos os séculos. São
Pedro, primeiramente, havia escrito que nós somos chamados a nos “tornarmos
participantes da natureza divina[8]”.
O sentido profundo da Encarnação reside nessa visão física e metafísica da
natureza metamorfoseada pela graça, nessa restauração que doravante foi
adquirida pela natureza humana, nessa brecha aberta através da opacidade da
morte, e que conduz à deificação.
“O primeiro homem, Adão, se tornou uma alma viva. O último Adão se
tornou espírito vivificante [...] O primeiro homem, extraído do barro, é
terrestre; o segundo homem veio do céu. Tal como foi o terrestre, assim são os
seres terrestres; tal como foi o celeste, assim serão os celestes. E, assim
como trazemos a semelhança do homem terrestre, traremos também a semelhança do
homem celeste[9]”.
Cristo é, portanto, o Novo Adão que veio do céu, o segundo e último
homem. E este o “homem celeste”, não será ele a manifestação, sobre a nossa
terra, de outra humanidade, de uma humanidade superior nos céus, como pensaram
alguns gnósticos? Mas então, onde estaria a Encarnação? Pois se assim fosse
Cristo passaria por sua mãe sem nada receber dela. O mistério da Encarnação é o
do Deus-homem, que reúne verdadeiramente as duas naturezas e que recebe da
Virgem sua humanidade. Milagre de humildade: o Verbo aceita de sua própria
criatura, Deus solicita de Maria, no momento decisivo da Anunciação, as
primícias de sua humanidade, sua própria natureza humana.
***
A Encarnação se dá pela ação do Espírito Santo. Isso equivale a dizer,
como pretenderam alguns teólogos, que o Espírito é o esposo da Virgem, que ele
supriu o papel do esposo na concepção virginal? Isso equivaleria a racionalizar
grosseiramente o nascimento de Cristo. Pois, se podemos falar de esposo em
relação à Virgem, e isso apenas de modo metafórico, na medida em que ela
representa a Igreja ela não possui outro esposo que não seu Filho. Nessa
concepção sem semente, a emente é o próprio Verbo. E o Espírito, longe de ser o
esposo de Maria, acaba de purificar seu seio, tornando-a plenamente virgem, e
lhe confere assim, pela própria plenitude da integridade, a força para acolher
e gestar o Verbo; a mais total virgindade, que o Espírito concede como uma
pureza de todo o ser, coincide com a maternidade divina.
***
Assim, não existe uma pessoa humana em Cristo: existe a humanidade,
mas a pessoa é divina. Cristo é homem, mas sua pessoa vem do céu. Daí a
expressão paulina de “homem celeste”.
Podemos falar de união das duas naturezas, de seu “concurso” como
diziam os Padres? Os próprios Padres estão sempre se repreendendo e nos
obrigando a purificar nossa linguagem. A humanidade de Cristo jamais constituiu
uma natureza distinta e anterior, ela não veio se unir à divindade. Ela jamais
existiu fora da pessoa de Cristo, foi Ele que a criou no interior de sua
hipóstase, não ex nihilo, pois foi
preciso recapitular toda a história, toda a condição humana, mas a partir da
Virgem, purificada pelo Espírito Santo. A própria pessoa incriada criou sua
natureza humana; e esta aparece desde o princípio como a humanidade do Verbo.
Para falarmos rigorosamente, não se trata de união, nem mesmo de assumpção, mas
de unidade de duas naturezas na pessoa do Verbo desde o momento de sua
encarnação. “O ilimitado, escreve São Máximo, se limita de uma maneira
inefável, enquanto que o limitado se desdobra até a medida do ilimitado[10]”.
Deus penetra na carne e a carne entra na história. O história é risco; Deus
corre um risco; Ele, plenitude, desce até os confins últimos do ser, que o
pecado destrói pouco a pouco de implenitude, para levar aos seres livres a
salvação possível sem destruir a sua liberdade.
2.
O dogma da Calcedônia
A Trindade está presente na própria estrutura intelectual do dogma
cristológico, ou seja, na distinção entre a pessoa e a natureza. A Trindade é
uma natureza em três pessoas, e Cristo é uma só pessoa em duas naturezas. A
divindade e a humanidade estão separadas pela distância infinita que se abre
entre o criado e o incriado, mas elas se reconciliam na unidade de uma pessoa.
Entre triadologia e Cristologia existe uma ligação, a
consubstancialidade: pois o termo homoousios,
primeiramente destinado a especificar a unidade entre o Pai e o Filho no
interior da Trindade, se encontra no dogma cristológico definitivamente
formulado na Calcedônia. Por um lado, Cristo é consubstancial ao Pai por sua
divindade; por outro, ele nos é consubstancial por sua humanidade. Existem
assim duas consubstancialidades, mas um só consubstancial, uma única pessoa, ao
mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A hipóstase engloba as duas
naturezas; ela permanece uma, ainda que se torne a outra, sem que a divindade
se transforme em humanidade, nem a humanidade em divindade.
O dogma da Calcedônia, que especifica esse mistério cristológico do
dois em um, é o desaguadouro de um longo combate contra as tentações de
racionalizar a Encarnação, escamoteando, seja a divindade, seja a humanidade de
Cristo. No plano de fundo se esboça a oposição das duas grandes escolas
teológicas da Antiguidade cristã: Alexandria e Antioquia. A escola de Antioquia
é uma escola de exegese literal, que se detém sobretudo no lado histórico das
Escrituras. Toda interpretação simbólica, toda gnose do evento sagrado, lhe
parece suspeita, e a presença do eterno na história muitas vezes lhe escapa.
Dessa maneira, Jesus corre o risco de aparecer como um indivíduo na história da
Judéia, numa história demasiado humana em seu enquadramento temporal. Em
Antioquia, a história se fecha sobre si mesma a ponto de talvez negligenciar a
visão grandiosa do Deus que se torna homem. Ao contrário, a escola de
Alexandria, centrada na gnose cristã, esvaziava muitas vezes o evento bíblico
de sua simplicidade concreta, em função de uma exegese muito alegórica, e
tendia a depreciar o aspecto histórico, o aspecto humano da Encarnação. Essas
duas escolas forneceram grandes teólogos, mas também grandes hereges, toda vez
que cada uma delas se abandonava à tentação daquilo que lhe era próprio.
Nascido do pensamento antioquino, o Nestorianismo dissecava Cristo em
duas pessoas diferentes. Como cada consubstancialidade suscitava um
consubstancial, dois consubstanciais apareciam: o Filho de Deus e o filho do
homem, separados enquanto pessoas. Na verdade, a terminologia não estava ainda fixada,
a distinção entre pessoa e natureza era confusa, e o pensamento de Nestorius
manteve a ilusão por muito tempo. Esse patriarca de Constantinopla pertencia à
escola de Antioquia, onde ele teve por mestres grandes teólogos, dos quais
alguns, como Teodoro de Mopsueste, tendiam claramente á heresia (Teodoro foi
condenado post mortem). Nestorius
distinguia com cuidado as duas naturezas, e sua construção parecia ortodoxa até
o momento em que ele recusou à Virgem o título de Mãe de Deus (qeotokos) e pretendeu substituí-lo pelo de
Mãe de Cristo (Cristotokos).
Nesse momento a piedade dos simples se insurgiu e Nestorius criou um escândalo.
É porque ele não conseguia captar o mistério pessoal, mas pensava a pessoa em
termos de natureza, acabando por identificar a primeira à segunda. Ele opunha
assim a pessoa do Verbo à de Jesus, unidas certamente, mas por um laço moral,
por uma eleição que fazia de Jesus como que um receptáculo do Verbo. Para
Nestorius, somente Jesus nascera da Virgem, que, por conseguinte, era mãe de
Cristo, mas não Mãe de Deus. Os dois filhos, de Deus e do homem, estavam unidos
mas não eram um em Cristo.
Ora, se Cristo não possuir unidade de pessoa, nossa natureza não
estará autenticamente assumida por Deus, e a Encarnação cessará de ser uma restauração
“física”. Se não existir verdadeira unidade em Cristo, tampouco poderá haver
entre o homem e Deus. Toda a doutrina da salvação perde seu fundamento
ontológico: nós permanecemos separados de Deus: a deificação está interditada,
Cristo não passa de um grande exemplo, e o Cristianismo se torna uma moral, uma
imitação de Jesus.
A reação da piedade, unânime no Oriente, expeliu rapidamente o
Nestorianismo, mas sua própria violência gerou a heresia oposta. Para defender
a unidade de Cristo, passou-se a expressá-la em termos de natureza, e de
natureza divina por respeito ao Verbo. São Cirilo de Alexandria, em sua
polêmica contra os nestorianos, lançou a fórmula: uma só natureza do Verbo
encarnado. Aí temos uma simples falta de vocabulário, como o mostra o contexto;
mas São Cirilo se mantém ortodoxo. Alguns de seus discípulos, porém, tomaram a
fórmula ao pé da letra: haveria uma única natureza em Cristo, sua divindade.
Daí provém o próprio nome dessa heresia: o monofisismo (de monh, um, e fusis,
natureza). Os monofisistas não negavam a humanidade de Cristo enquanto tal ,
mas ela lhes parecia dissolvida na divindade, como uma gota de vinho no oceano.
A humanidade se dissolvia na divindade, ou se volatilizava ao seu contato, como
algumas gotas de água num braseiro. “O Verbo se fez carne”, não cessavam de
repetir os monofisistas, mas este “se fez” era para eles como a água que se
torna gelo: uma aparência, uma similaridade, porque tudo permanecia divino em
Cristo.
Assim, Cristo seria consubstancial ao Pai, mas não aos homens. Ele
teria passado pela Virgem sem nada emprestar dela, mas apenas se servindo dela
para aparecer.
Por numerosas que tenham sido as suas nuanças, podemos dizer que um
ponto sempre se manteve comum aos monofisistas: o Cristo verdadeiramente Deus,
mas não verdadeiramente homem. No limite, a humanidade de Cristo não passaria
de aparência, e o monofisismo desembocava no docetismo[11].
Nestorianismo, monofisismo, manifestações de duas tendências
pré-cristãs no seio da Igreja, e que daí por diante jamais deixariam de ameaçar
o Cristianismo: de um lado, o humanismo do Ocidente, herança de Atenas e de
Roma; de outro o ilusionismo cósmico e a interioridade pura do velho Oriente,
com seu absoluto no qual tudo se reabsorve (a imagem da água e do gelo é
clássica na Índia para ilustrar a relação entre o finito e o infinito). De um
lado, o humano se fecha em si mesmo, do outro ele é engolido pelo divino. Entre
essas duas tentações contrárias, o dogma da Calcedônia definiu, em torno de
Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, as verdades de Deus e do homem, e o
mistério de sua unidade sem separação nem absorção: “Em conformidade com a
tradição dos Padres, nós proclamamos unanimemente que se deve confessar um só e
mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, sendo perfeito em divindade e perfeito
em humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, composto de uma alma
racional e de um corpo, sendo consubstancial ao Pai pela divindade e
consubstancial a nós pela humanidade, semelhante a nós em tudo, exceto no
pecado, nascido do Pai antes de todos os séculos segundo a divindade, nascido
nos últimos tempos de Maria a Virgem, Mãe de Deus, segundo a humanidade, por
nós e para nossa salvação; um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se
deu a conhecer em duas naturezas sem mistura, sem alteração, indivisivelmente,
inseparavelmente, de tal sorte que a união não destrói a diferença das duas
naturezas, mas, ao contrário, as propriedades de cada uma se tornam ainda mais
firmes quando se encontram unidas numa só pessoa e hipóstase que não se separa
nem se divide em duas pessoas, sendo o único e mesmo Filho, Unigênito, Deus Verbo,
Senhor Jesus Cristo...[12]”.
“Sem mistura, sem alteração, indivisivelmente, inseparavelmente”, é
assim que estão unidas as duas naturezas na pessoa de Cristo, sendo que os dois
primeiros termos visam os monofisistas e os dois últimos os nestorianos. De
fato, as quatro definições são negativas: asugcutws,
atreptws, adiairetws, acwpistws.
Elas encerram apofaticamente o mistério da Encarnação, e nos impedem de
imaginar “como”. Cristo é plenamente Deus: criança no berço ou agonizando sobre
a cruz, ele não cessa de participar da plenitude trinitária e de governar o
universo por seu poder onipresente. “Ó Cristo, presente de corpo no túmulo e de
alma nos infernos, Tu estavas, enquanto Deus, no paraíso com o ladrão e sobre o
trono com o Pai e o Espírito, Tu, o infinito que a tudo preenche”, exclamamos
na liturgia de São João Crisóstomo[13].
Pois, por outro lado, a humanidade de Cristo é plenamente a nossa: ela não Lhe
é própria por seu nascimento eterno, mas sua divina pessoa a suscitou em Maria.
Cristo possui assim duas vontades, duas inteligências, duas maneiras
de agir, mas sempre unidas numa só pessoa. Em cada um de seus atos ele porá
duas energias em jogo: a energia divina e a energia humana. Seria, portanto,
pueril construir uma psicologia de Cristo e reconstituir seus “estados de
alma”, escrevendo “vidas de Jesus”. Nós não podemos conjecturar – e esse é
também o sentido das quatro negações do concílio de Calcedônia –, “como” o divino e o humano coexistem numa
mesma pessoa. Ainda mais que Cristo, repetimos, não é uma “pessoa humana”. Sua
humanidade não possui sua própria hipóstase, dentre as inumeráveis hipóstases
dos homens. como nós, Ele possui um
corpo, como nós uma alma, como nós um espírito, mas nossa pessoa não é este
conjunto, ela vive através e além do corpo, da alma e do espírito, que não
constituem jamais senão sua natureza. E, enquanto que o homem, por sua pessoa, pode
sair do mundo, é por sua pessoa que o Filho de Deus pode nele penetrar; pois
sua pessoa, cuja natureza é divina, “enipostasia” a natureza humana, como dirá
Leôncio de Bizâncio no século VI.
As duas naturezas de Cristo, sem se misturar, contemplam entretanto
uma certa interpenetração. As energias divinas irradiam da divindade de Cristo
e penetram sua humanidade: esta é, assim, deificada desde o momento da
Encarnação, tal como um ferro em brasa que se torna fogo ao mesmo tempo em que
permanece ferro por sua natureza. A Transfiguração revela parcialmente aos
Apóstolos esse flamejamento das energias divinas irradiando a natureza humana
de seu Mestre. Essa interpenetração das duas naturezas, a um tempo penetração
da divindade na carne e possibilidade doravante adquirida por esta de penetrar
na divindade, é chamada de “pericorese”, perixwrhsis
pros allhlas,
como escreveu São Máximo o Confessor[14],
ou, em latim, communicatio idiomatum,
o “intercâmbio de propriedades”. Ao se identificar com o Verbo segundo a
hipóstase, “a carne se tornou Verbo sem perder o que possuía”, diz São João
Damasceno[15].
Cristo se torna homem por amor ao mesmo tempo em que permanece Deus, e o fogo
de sua divindade abrasa para sempre a natureza humana: é por isso que os
santos, ao mesmo tempo em que permanecem homens, podem participar da divindade
e se tornarem Deus pela graça.
3.
“Forma de Deus” e “forma de servidor”
“Tenham em vocês os mesmos sentimentos que devemos ter em Cristo; Ele
que possuía a forma divina não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas
despojou-se de Si mesmo, tomando a forma de um escravo e se fazendo semelhante
aos homens. Tendo assim se revestido do aspecto de um homem, Ele se rebaixou
ainda se tornando obediente até a morte, e morte sobre a cruz. Por isso Deus O
exaltou soberanamente e Lhe deu o Nome que está acima de todo nome, a fim de que,
diante do Nome de Jesus, todo joelho se dobre, nos céus, na terra e nos
infernos, e que toda língua professe que Jesus Cristo é o Senhor, na glória de
Deus Pai[16]”.
Essa célebre passagem “kenótica” da epístola aos Filipenses define a
exinanição do Verbo: estando na “forma de Deus” (morfh
Qeou), ou seja, na própria condição de Deus, sendo de natureza divina,
ele se esvaziou, se despojou, se humilhou (ekenwsen),
tomando a condição de servidor (morfh doulou).
O Filho de Deus, por meio de um prodigioso rebaixamento, pelo mistério de sua “kenosis”, desceu até uma condição de
anulação – não no sentido do “nada” original, mas do abismo meônico aberto pela
decadência do homem. Ele uniu paradoxalmente a plenitude integral de sua
natureza divina à implenitude não menos integral da natureza humana decaída.
Essa passagem deve ser comparada com o texto de Isaías sobre o “homem
do sofrimento[17]”,
sobre a predição, escandalosa para tantos Israelitas, não de um Messias em
glória, mas de um “Servidor de Yahvé”, sofredor e humilhado, entregando-se em
silêncio ao “sacrifício expiatório[18]”
e “traspassado por nossas infidelidades[19]”.
São Cirilo de Alexandria perguntou-se longamente a respeito dessa “kenosis” divina. Deus, disse ele, não
poderia, ao se encarnar, despojar-se de sua natureza, senão não seria mais Deus
e não poderíamos falar de Encarnação. É que o objeto da kenosis não foi a natureza divina, mas a pessoa do Filho. Ora, a
pessoa se realiza no dom de si: ela se distingue da natureza, não para “se
prevalecer” de sua condição natural, mas para renunciar a si totalmente; é por
isso que o Filho “não se prevaleceu de sua igualdade com Deus”, mas “ao
contrário, despojou-se de Si mesmo”, coisa que não constituiu uma decisão
súbita nem um ato, mas a manifestação de seu próprio ser, de sua pessoa, e que
tampouco foi de sua vontade própria, mas sua própria realidade hipostática como
expressão da vontade trinitária, vontade da qual o Pai é a fonte, o Filho a
realização obediente e o Espírito a realização gloriosa. Existe assim uma profunda
continuidade entre o ser pessoal do Filho como renúncia e sua kenosis terrestre. Abandonando uma
condição gloriosa da qual ele jamais “se prevaleceu”, ele aceitou a vergonha, a
ignomínia, a maldição. Ele assumiu as condições objetivas do pecado e se
submeteu à nossa condição mortal. Despojando-se de suas prerrogativas reais,
ele mergulhou sua glória mais e mais no sofrimento e na morte. Pois foi preciso
que ele descobrisse em sua própria carne o quanto o homem que ele criara à sua
imagem perfeitamente bela se deformara pela corrupção.
A kenosis é, portanto, a
Encarnação em seu aspecto de humilhação e de morte. Mas Cristo mantém
completamente sua natureza divina, e sua exinanição é voluntária: permanecendo
Deus, ele aceita se tornar mortal; pois o único modo de vencer a morte era
deixá-la penetrar no próprio Deus onde ela não poderia encontrar lugar.
A kenosis consiste no
rebaixamento do servidor que não busca sua própria glória, mas a do Pai que o
enviou. Cristo não afirma jamais, ou quase nunca, sua divindade. Renunciando a
si totalmente, deixando não aparente sua natureza divina, abandonando toda
vontade própria a ponto de dizer que “o Pai é maior do que eu[20]”,
ele realizou sobre a terra a obra de amor da Trindade. E, pelo respeito
infinito que ele demonstrou para com a liberdade humana, a ponto de não mostrar
aos homens senão o rosto dolorosamente fraternal do escravo e a carne
dolorosamente fraternal da cruz, Ele despertou no homem a fé como uma resposta
ao amor: pois somente os olhos da fé reconhecem a forma de Deus sob a forma do
escravo e, decifrando sob um rosto humano a presença de uma pessoa divina,
aprendem a perceber virtualmente em todo rosto o mistério da pessoa criada à
imagem de Deus.
Porém, antes que a kenosis
de Cristo chegasse ao fim com sua Ressurreição, produziram-se duas teofanias
por intermédio de sua humanidade: uma no Batismo, outra na Transfiguração. Em
cada uma dessas ocasiõs, Cristo se manifestou não na “forma de escravo”, mas na
“forma de Deus”, e deixou que irradiasse através de sua humanidade deificada –
pois, segundo São Máximo o Confessor, sua humanidade economicamente corruptível
era naturalmente incorruptível – sua natureza divina, ou seja, sua unidade com
o Pai e o Espírito. A voz do Pai, a presença do Espírito Santo sob a forma da
nuvem ou da pomba, fizeram dessas duas manifestações da “forma de Deus” duas
teofanias trinitárias. O kontakion da
festa da Transfiguração sublinha que os discípulos viram a glória divina de
Cristo “segundo sua capacidade”, a fim de que “quando vissem a Cristo
crucificado, compreendessem que sua paixão foi voluntária[21]”,
e não o efeito de uma necessidade de natureza.
Que essa luz da Transfiguração “não tenha começo nem terá fim[22]”,
deve nos tornar ainda mais sensíveis à realidade da kenosis. Cristo aceitou total e voluntariamente as consequências de
nosso pecado desde a Encarnação até a morte. Ele conheceu todas as
enfermidades, todas as limitações de nossa condição, mas não as paixões
destruidoras que dependem de nossa liberdade. Inclusive, este Segundo Adão,
para se “configurar” por inteiro tal como o primeiro, permitiu a aproximação do
tentador, e dessa vez não no paraíso, mas na condição de homem decaído. Somente
em Cristo a não-existência se tornaria sofrimento e amor, e não mal e ódio: é por
isso que o tentador foi rejeitado por Aquele que trazia em Si mais do que o
paraíso, por “Aquele que é”.
4.
Duas energias, duas vontades
As definições de Calcedônia não visaram somente o Nestorianismo e o
monofisismo, mas, na medida em que especificaram que Cristo, como homem
perfeito, se compunha de uma alma racional e de um corpo, atingiram outra
heresia ainda: o apolinarismo.
Apolinário de Laodicéia viveu no século IV e os grandes Capadócios
lutaram contra ele. Ele foi um típico representante da escola de Alexandria, na
qual se afirmava acima de tudo a unidade de Cristo. Oitenta anos antes do
monofisismo, que seu pensamento não deixou de preparar, ele se perguntava como
conciliar essa unidade com a dualidade, nela, do divino e do humano. Pensava
ele que não podia se tratar de duas naturezas perfeitas, pois, segundo o
pensamento helenístico do qual ele permanecia prisioneiro, “dois perfeitos não
podem se tornar um só”, dois princípios perfeitos não podem se unir para formar
uma terceira natureza, perfeita também. Ou essas duas naturezas não são
perfeitas, ou sua unidade não passa de justaposição. Em suma, Apolinário
hipostasiava as duas naturezas e refutava desde logo o Nestorianismo, pois é
evidente que duas pessoas não podem, através de sua união, abolirem-se numa
terceira. Como a unidade de Cristo é perfeita, seria preciso supor que um de
seus constituintes não o fosse; como a divindade não estava em causa,
Apolinário concluía que a humanidade de Cristo, para dar lugar à sua divindade,
deveria ser imperfeita. O homem se aperfeiçoa pelo intelecto: assim parecia
evidente a Apolinário que Cristo não possuía um intelecto, um nous humano, e que, para selar sua
unidade, o espírito humano nele cedia lugar ao Logos divino. O Verbo unia assim
a divindade a uma humanidade incompleta, e a divindade completaria a
humanidade. Dessa forma, o Cristo de Apolinário era menos um Deus-homem do que
um animal que se somava a Deus. Esse foi o germe do monofisismo, que não
cessaria de retomar, a respeito de Cristo, a ideia de uma humanidade
incompleta, que seria completada, e mesmo absorvida pelo Logos.
Em última análise, toda a construção de Apolinário se fundamenta sobre
a identificação entre a pessoa humana e o nous;
é a grande tentação dos metafísicos de associar à parte superior da natureza, o
intelecto, aquela que lhes é mais familiar, o mistério da pessoa, não sem uma
nora de desprezo pelo sentimento e o corpo.
Calcedônia escapou ao problema estabelecendo uma distinção entre
pessoa e natureza. Essa distinção, que colocava a liberdade da pessoa em
relação ao conjunto da natureza, permitia afirmar a unidade dos dois princípios
perfeitos, unidade que não extingue, mas confirma “as propriedades de cada
natureza”. A natureza humana conserva sua “enipostasia”, e que não é criada,
mas divina. O Logos não substitui um elemento da natureza humana: ele é a
pessoa que a assume em sua totalidade.
Cristo é, portanto, o homem perfeito, a um tempo corpo e alma
racional. Aqui o termo “racional” deve ser tomado no sentido forte que lhe
deram os Padres: a “alma racional” se identifica ao nous, o intelecto, e se distingue do corpo animado que podemos
desdobrar em corpo e alma viva. Assim, a dicotomia da Calcedônia recorta a tricotomia
paulina e tradicional do corpo, alma e espírito.
***
Depois de Calcedônia apareceram novas formas de monofisismo que, ao
mesmo tempo em que submetiam à letra do símbolo, buscavam esvaziar seu
conteúdo. Esse longo esforço para “descalcedonizar” Calcedônia foi devido, seja
ao tenaz instinto monofisista da espiritualidade oriental, seja à busca, acima
de tudo política, de um compromisso com os monofisistas verdadeiros. A primeira
motivação explica a doutrina do monoenergismo que se desenvolveu no final do
século V e início do VI. Seus partidários reconheciam duas naturezas, mas
afirmavam que sua operação, ou seja, a energia que as manifestava, permanecia
única. A distinção entre a humanidade e a divindade já não passava de uma
abstração: ou as duas naturezas se confundiriam, ou a humanidade seria
inteiramente passiva e apenas a divindade agiria.
Essa doutrina foi refutada no século VII por muitos Padres, dentre os
quais se destacou São Máximo o Confessor. É preciso conceber em Cristo ao mesmo
tempo duas operações distintas e um só objetivo, um só ato, um só resultado.
Cristo age por meio de suas duas naturezas como uma espada levada ao rubro pelo
fogo corta e queima ao mesmo tempo. Cada natureza coopera com o ato único
segundo o modo que lhe é próprio. “Não foi a natureza humana que ressuscitou
Lázaro, e não foi a força divina que chorou diante de seu túmulo”, escreverá
São João Damasceno[23].
***
Outra forma de compromisso, dessa vez consciente, com o monofisismo,
foi o monotelismo. Também este admitia duas naturezas, mas uma só vontade, a
vontade divina, à qual a vontade humana adere até ser engolida por ela. Os
representantes dessa doutrina eram sobretudo hábeis políticos; como pano de
fundo, as províncias orientais do Império, marcadas pelo monofisismo e pela
vontade imperial de união. Três patriarcas: Ciro de Alexandria, Sérgio de
Constantinopla e Honório, papa de Roma, se misturaram na elaboração,
passavelmente artificial, dessa doutrina; talvez Honório, mais ou menos iludido
pelos outros dois, tenha sido o único sincero; aliás, após sua morte ele foi
julgado herético pelo sexto concílio ecumênico.
São Sofrônio, patriarca de Jesrusalém, ainda teve tempo, malgrado sua
idade avançada, de protestar antes de sua morte. Depois os sucessores de
Honório, os papas São Martinho e Santo Agatão esboçaram uma reação. Mas quem
salvou de fato a Igreja foi um simples monge, já grande adversário do
monenergismo, São Máximo o Confessor. Junto com São Martinho, ele foi exilado.
O papa morreu no exílio; Máximo recusou solenemente aderir ao compromisso que a
Igreja parecia adotar. “Mesmo que todo o universo concordasse com vocês, eu
sozinho continuaria não concordando[24]”,
declarou ele em essência, fortemente, contra toda a hierarquia, proclamando a
evidência da verdade. Como consequência disso ele foi cruelmente mutilado e
reenviado ao exílio, onde acabou por morrer. Mas sua resistência havia salvado
a verdade, que não tardou a se impor a toda a Igreja. Contra o monotelismo,
assim, basta seguir a argumentação de Máximo, na qual abundam profundos dados
antropológicos.
O monotelismo pressupunha, como a maior parte das heresias dessa tipo,
uma definição da pessoa por uma de suas qualidades: aqui, era a vontade que se
atribuía à hipóstase.
Para elucidar o problema das duas vontades em Cristo, São Máximo
partiu dos dados triadológicos estabelecidos. Na Trindade, existem três pessoas
em uma natureza; ora, a vontade é comum às três, e não existe senão uma
vontade. A vontade se liga assim à noção de natureza, e não à de pessoa; caso
contrário, seria preciso estabelecer três vontades no seio da Trindade.
Essa transcendência da pessoa em relação à vontade fere nossas
concepções habituais; é porque elas se referem ao indivíduo, o qual,
certamente, atribui a si mesmo uma vontade para afirmar seu “ego”. São Máximo
analisa aqui com muita sutileza o conceito de vontade. Ele distingue duas
espécies de vontade: a primeira, a “vontade natural” (qelhma fusikon ou qelhsis fusikh), consiste na tendência da natureza
para aquilo que lhe convém, “uma força natural que tende para o que é conforme
à natureza, força que abarca todas as propriedades essenciais da natureza[25]”.
A natureza em seu estado “natural”, ou seja, não desfigurado pelo pecado, não
pode desejar senão o bem, porque ela é “racional”, vale dizer que ela tende
para Deus. A vontade de uma natureza perfeita é consciente do bem, sendo,
portanto, uma adesão ao bem. Mas a queda obscurece essa consciência; daí por
diante a natureza tende cada vez mais a ir “contra a natureza”; sua aspiração
se atola no pecado. Porém, o homem é dotado de outra vontade, qelhsis
gnwmikh, a “vontade deliberativa”, própria, desta vez, da pessoa. É a
vontade de escolha, o julgamento pessoal que eu aplico sobre a vontade natural
para aceitá-la, recusá-la ou dirigi-la para outro objetivo, para torná-la
realmente natural purificando-a do pecado.
A própria utilização dessa vontade deliberativa se torna necessária
por causa da adulteração de nossa verdadeira liberdade. O livre arbítrio
corresponde ao estado ao qual o pecado nos reduziu; é pelo fato de que estamos
em pecado, que devemos escolher o tempo todo.
É por isso que, em Cristo, existem duas vontades “naturais”, mas não
existe um “livre arbítrio” humano. As duas vontades naturais não podem entrar
em conflito na sua pessoa, não sendo essa pessoa uma hipóstase humana que deva escolher
sem cessar entre o bem e o mal por ter provado do fruto fatal, mas uma
hipóstase divina cuja escolha foi feita de uma vez por todas: a escolha da kenosis, da obediência incondicional à
vontade do Pai.
A natureza humana de Cristo é, portanto, completa, mas aquilo que, no
homem, pertence à pessoa, em Cristo pertence ao Verbo, pessoa divina. A
humanidade que este assumiu é, portanto, semelhante numa certa medida àquela de
Adão antes do pecado. Mas a kenosis
do Verbo é também a kenosis dessa
humanidade paradisíaca submetida pela vontade redentora do Salvador às
condições objetivas do pecado, condições às quais ela não deve reagir pelo
livre arbítrio, mas pelo sofrimento e o amor. Por outro lado, se a vontade do
Filho é idêntica à do Pai, a vontade humana que se tornou a do Verbo é própria
deste: e nessa vontade própria reside todo o mistério de nossa salvação.
5.
Dualidade e unidade em Cristo
O sexto concílio ecumênico, reunido em 680 e 681 em Constantinopla,
explicitou as definições cristológicas da Calcedônia. Ele reafirmou a unidade e
a dualidade de natureza, e precisou a existência em Cristo de duas vontades
naturais que não podem se opor, pois a vontade humana se submete à vontade
divina como à de Deus. Citando uma passagem de Santo Atanásio, extraída de um
tratado perdido sobre as palavras de Cristo: “Agora minha alma está perturbada
[...] Pai, preserva-me desta hora[26]”,
os Padres do concílio sublinharam que a vontade humana, na Encarnação,
constitui a vontade própria do Verbo. Que o Filho possua então uma vontade
própria, e que sua vontade, por conseguinte, não seja somente a do Pai, provoca
como que uma separação entre o Pai e o Filho. Toda a economia da salvação de
estrutura na submissão dessa vontade própria do Verbo, sua vontade humana, à do
Pai. Pois a vontade humana, “enipostatizada” pelo Verbo, não é destruída, assim
como a carne de Cristo, embora deificada, mantém sua realidade de criatura. “E
nós atribuímos, conclui o concílio, a uma única e mesma pessoa tanto os
milagres (operados pela energia da divindade) como os sofrimentos (sofridos
através da humanidade)[27]”.
Por trás dessas definições, encontramos a antropologia de São Máximo.
Esta distingue a vontade natural (qelhsis fusikh) da vontade deliberativa (qelhsis
gnwmikh), que não consiste numa tendência da natureza, mas numa
possibilidade de decisão livre, ou seja, numa dimensão da pessoa. A vontade
deliberativa, como escolha, estabelece o caráter pessoal do ato moral. Ela não
existe em Cristo senão como liberdade divina; mas não podemos, a propósito de
Deus, falar em livre arbítrio, pois a decisão única do Filho é a kenosis, a assumpção de toda condição
humana, a submissão total à vontade do Pai. A vontade própria do Verbo, sua
vontade humana, se submete ao Pai, mostrando por meios humanos que não se trata
de oscilações entre o sim e o não, mas do sim, mesmo através do não do horror e
da revolta, a adesão do Novo Adão a seu Deus: “Pai, preserva-me desta hora. Mas
foi justamente para esta hora que eu vim; Pai, glorifica teu Nome[28]”
“Pai, se for possível, afasta de mim este cálice. Entretanto, faça-se a tua
vontade e não a minha[29]”.
Assim, a própria atitude de Cristo implica uma liberdade, embora São Máximo
negue que nele exista o livre arbítrio.
Mas essa liberdade não é uma escolha perpétua que decompusesse o
Salvador; desde o princípio, não se trata de uma necessidade constante, para
Cristo, de submeter, por uma escolha cada vez deliberada, sua carne deificada
às limitações de nossa condição decaída, como o sono e a fome, porque isso
seria fazer de Jesus um ator. A liberdade aqui é regida pela consciência
pessoal, portanto única, de Cristo; é a escolha definitiva e permanente de
assumir a implenitude de nossa condição até a última fatalidade da morte. é a
escolha, consentida desde a eternidade, de deixar penetrar em si, até o fundo,
tudo aquilo que constitui nossa condição, ou seja, nossa decadência, e esse
fundo é feito de angústia, morte e descida aos infernos. Contrariamente ao
esquema ascendente das doutrinas “kenóticas”, se existe um progresso de
consciência em Cristo, ele está na descida, não na subida. Para os
“kenotistas”, com efeito, Cristo cresce sem cessar na consciência de sua
divindade. Assim, teria sido no Batismo que ele se deu conta de ser Filho de
Deus, por uma espécie de “reminiscência”. Ao contrário, lendo o Evangelho,
vemos a consciência do Filho descer cada vez mais baixo, e abrir-se cada vez
mais para a decadência humana. O nascimento fôra virginal, aparição quase
paradisíaca de uma carne deificada; a infância, de silenciosa sabedoria,
triunfara sem dificuldade sobre os doutores; e o primeiro milagre em Caná foi
um milagre de núpcias. Depois, tudo foi engolido em direção à “hora” para a
qual Cristo veio, e para Ele o verdadeiro caminho da Cruz foi essa tomada de
consciência cujo objeto não foi outro do que sua humanidade, essa exploração
descendente de nosso abismo. Seria ilusório que o Verbo tomasse consciência de
sua divindade; mas é terrivelmente necessário que ele tomasse consciência de
nossa perdição, e que fizesse em Si como que a suma disto. Pois, aceitando todo
o pecado, deixando-o penetrar em Si, que era sem pecado, ele o anulou. As
trevas da Cruz penetraram numa pureza que elas apagar; o sofrimento da cruz
penetrou numa unidade que ele não foi capaz de despedaçar.
A agonia de Cristo muito espantou as pessoas e as escandalizou. São
João Damasceno se detém um pouco sobre isso: “Quando (em sua vontade humana)
Ele se recusou a aceitar a morte, escreve ele, que sua vontade divina desejava
e concedia, então o Senhor, em conformidade com a sua natureza humana, estava
em luta e atemorizado, e pedia para ser afastado da morte. e quando sua vontade
divina desejou que sua vontade humana aceitasse a morte, o sofrimento se tornou
voluntário (para a humanidade de Cristo)”. O Filho de Deus devia aceitar a
morte, resultado e tributo do pecado, por sua vontade humana. Ora, nele não
existia a raiz do pecado; assim, Ele não deveria conhecer seu fruto de morte.
O homem, ao contrário, traz consigo essa raiz, e a morte, podemos
dizer, lhe é “natural”, ou seja, biologicamente lógica e psicologicamente
aceitável no estado infranatural no qual Deus deteve sua queda e onde Ele
introduziu uma lei que é justamente a da morte. Assim, as palavras do bom
ladrão ao mal ladrão: “Para nós é a justiça, porque nós recebemos o merecido
por nossos atos; mas este homem não fez nada de repreensível[30]”
– adquirem um alcance ontológico. E o bom ladrão morre mais facilmente do que
Cristo. Mas este, ao aceitar o resultado terrível do pecado, quando, descendo
ao fundo de nosso abismo meônico, ele toma consciência da morte, vê sua
humanidade deificada se revoltar contra essa maldição contra a natureza. E
quando a vontade própria do Verbo, ou seja, sua humanidade se submete, ela
conhece uma angústia espantosa diante da morte, pois a morte lhe é estranha.
Somente Cristo conheceu o que é verdadeiramente a morte, porque sua
humanidade deificada não poderia morrer. Somente ele pôde medir todo o tamanho
da agonia, porque a morte se apoderava do seu ser desde fora, ao invés de surgir
como uma fatalidade de seu íntimo, ao invés de ser, como para o home decaído, o
nó irredutível de um ser misturado ao não-ser, quando a doença e o tempo
corroeram sua polpa de carne. E por essa morte desmesurada, ou antes, a única
mensurável, o pecado foi negado, ele se consumiu na unidade pessoal de Cristo
em contato com a divindade onipotente: pois a redenção não é outra coisa do que
a abertura para a última separação entre o homem e Deus, Daquele que permanecia
inseparavelmente homem e Deus.
6.
Redenção
“Foi preciso que Deus se encarnasse e morresse para que nós
revivamos”, escreveu São Gregório de Nazianze[31].
E Santo Atanásio siblinha que não foi por ter nascido que Deus morreu, mas que
foi para morrer que ele nasceu[32].
A fatalidade da morte, com efeito, não estava enraizada na natureza humana de
Cristo; mas seu próprio nascimento humano introduziu na sua pessoa divina um
elemento que poderia se tornar mortal. A Encarnação suscitou como que um
“espaçamento” entre o Pai e o Filho, um vazio que permitiu a livre submissão do
Verbo feito carne, o lugar espiritual da redenção. Pela derrelição, pela
maldição, uma pessoa inocente assumiu todo o pecado, se “substituiu” àqueles
que seriam justamente condenados e por eles sofreu a morte. “Eis o Cordeiro de
Deus, que toma sobre si os pecados do mundo[33]”,
diz São João Batista, repetindo Isaías[34].
Toda a tradição sacrificial de Israel, desde o sacrifício de Isaac substituído
por um cordeiro, culmina aqui. E toda a tipologia do cativeiro, toda a espera
pela libertação de um “resto” se cumpre aqui. São Paulo pode escrever: “Cristo
nos resgatou da maldição da Lei tornando-se ele próprio maldição por nós[35]”.
***
Momento central da economia do Filho, a redenção não deve ser separada
do conjunto do plano divino. Este jamais mudou; seu objetivo nunca deixou de
ser a união com Deus, com toda liberdade, dos seres pessoais tornados
plenamente eles mesmos hipóstases do cosmo terrestre, para os homens, ou do
cosmo celeste, para os anjos. O amor divino persegue sempre a mesma realização:
a deificação dos homens e, através deles, de todo o universo. Mas a queda
exigiu uma mudança, não no objetivo de Deus, mas nos meios, na “pedagogia”
divina. O pecado destruiu o plano original, o de uma subida direta do homem
para Deus. Uma fissura catastrófica se abriu no cosmo; é preciso curar essa
ferida e recapitular a história rompida do homem para um novo começo: estes são
os fins da redenção.
A redenção aparece então como a face negativa do plano divino: ela
supõe uma realidade anormal, trágica, “contra a natureza”. Seria absurdo
encerrá-la sobre si mesma, fazer dela um objetivo em si. Pois o resgate que se
tornou necessário por causa de nosso pecado não é um fim, mas um meio, um meio
para o único fim possível: a deificação. A própria salvação não passa de um
momento negativo: a única realidade essencial permanece sendo a união com Deus.
Que importa ser salvo da morte, do inferno, se não for para se perder em Deus?
Assim, colocada em seu lugar no plano divino, a redenção se reveste de
muitos momentos progressivamente mais abertos sobre a plenitude da Presença;
ela começa com a abolição dos obstáculos radicais que separam o homem de Deus,
sobretudo o pecado que submete a humanidade ao demônio e permite a dominação
dos anjos decaídos sobre o cosmo terrestre. Essa libertação da criatura cativa
se faz acompanhar em seguida de uma restauração de sua natureza, que se torna
capaz de receber a graça e de ir “de glória em glória” até a semelhança que a
assimila à natureza divina e que lhe permite transfigurar o cosmo.
A imensidão dessa obra de Cristo, obra incompreensível para os anjos,
como nos diz São Paulo, não poderia se fechar numa única explicação, nem numa
única metáfora. A própria ideia de redenção se reveste de um claro aspecto
jurídico: trata-se do resgate do escravo, da dívida paga em benefício daqueles
que permanecem na prisão por não poder quitá-la. Jurídico também é o tema do
mediador que, por meio da cruz, reúne o homem com Deus. Mas essas duas imagens
paulinas, largamente retomadas pelos Padres, não devem ser endurecidas: isso
seria construir entre Deus e a humanidade uma indefensável relação de direito.
Antes seria preciso substituí-las dentro da multiplicidade quase indefinida de
outras imagens, das quais cada uma é como uma faceta de um evento em si
inefável. Surgindo do Evangelho, são essas imagens a do Bom Pastor que sai a
buscar a ovelha perdida, a do “homem forte” que triunfa sobre o ladrão, o
amarra e retoma seu butim, a da mulher que encontra e limpa a moeda na qual a
imagem de Deus estava impressa sob a sujeira do pecado. Os textos litúrgicos,
em especial durante a Semana Santa, têm como leitmotiv o tema do guerreiro vitorioso que destrói a fortaleza do
inimigo e arrebenta as portas do inferno, por onde, como escreve Dante, “entram
triunfalmente suas bandeiras[36]”.
Abundam também entre os Padres as imagens de ordem física: a do fogo que
purifica, e principalmente a do médico que cura as enfermidades de seu povo:
assim, desde Orígenes, Cristo é o Bom Samaritano que cura e restaura a natureza
humana que os bandidos, isto é, os demônios, haviam ferido[37].
Por fim, o tema do sacrifício é muito mais do que metafórico: é a conclusão de
uma tipologia que participa da própria realidade que ela anuncia, do “sangue de
Cristo que ofereceu a si mesmo a Deus com um Espírito de eternidade[38]”,
como está na epístola aos Hebreus, onde essa imagem completa, em profundidade,
o simbolismo jurídico.
***
Substituindo-nos voluntariamente, Cristo “se tornou maldição por nós[39]”,
escreveu São Paulo aos Gálatas. A derrelição de Cristo sobre a cruz é, assim,
necessária, pois Deus se afasta do maldito, do separado a quem todos abandonam.
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?[40]”.
essa total nudez da angústia possui também um valor tipológico, pois o último
grito do Crucificado não é outra coisa que o primeiro verso do Salmo 21, a
oração do justo sofredor. O começo desse Salmo proclama o desespero humano: “Eu
sou como a água que escorre, e todos os meus ossos estão desconjuntados”.
Depois vem a célebre passagem profética, as mãos e os pés perfurados, as vestes
divididas, a túnica lançada à sorte. Assim, por meio de uma tipologia interior,
a Paixão de Cristo responde e corresponde ao abandono, à agonia da natureza
humana devastada por sua decadência. E o final do Salmo, como um anúncio da
Ressurreição, canta o triunfo e o poder salvador de Deus.
Se Cristo retoma esse Salmo, é porque Ele assume toda a nossa condição
até esse sentimento de ser abandonado por Deus que os moribundos conhecem
quando morrem religiosamente: “Não te afaste de mim, porque a angústia me toma,
aproxima-te, porque não há quem me ajude[41]”,
quando experimentam a morte como uma passagem na qual se quebra a natureza
limitada, exteriorizada, decaída desde o nascimento. Ora, não existe sofrimento
nem tragédia no Verbo, eternamente consubstancial ao Pai. E é por isso que,
penetrando em Cristo, o sofrimento e a tragédia chegam ao fim. Quando Cristo
estava prisioneiro voluntariamente, a morte sofria as dores do parto, escreveu
São João Damasceno num sermão de Páscoa: ela não pôde resistir, ela explodiu,
ela nos libertou[42].
E Máximo o Confessor resume assim a obra redentora: a morte de Cristo sobre a
Cruz foi o julgamento do julgamento[43].
Não podendo se exercer na pessoa do Filho de Deus, a maldição se torna bênção;
pela cruz, todas as condições do pecado se tornam condições de salvação. Daí
por diante, nem o pecado, nem a morte, nos separam mais de Deus, pois o Batismo
nos sepulta na morte de Cristo para nos ressuscitar com ele, a penitência pode
sempre nos conduzir a Deus, e a morte, cotidianamente assumida pela penitência,
nos abre para a vida divina.
A maldição da morte jamais foi uma vingança de Deus. Ela foi a punição
de um Pai amoroso, não a cólera obtusa de um tirano. Seu caráter foi educativo
e reparador. Ela impediu a perpetuação de uma vida dissoluta, a instalação
irresponsável numa condição contra a natureza. Não apenas ela colocou um limite
à decomposição da nossa natureza, como ainda, pela angústia da finitude, ajudou
o homem a tomar consciência de sua condição, para que ele se volta para Deus.
Da mesma forma, a vontade injusta de Satanás não poderia se exercer senão com a
justa permissão de Deus. A arbitrariedade de Satanás não apenas ficou limitada
pela vontade divina, como ainda foi utilizada por ela, como vemos pelo caso de
Jó.
Assim, nem a morte, nem a dominação de Satanás, jamais foram puramente
negativas. Desde o começo elas foram sinais e meios do amor divino.
Mas, no momento da redenção, os poderes demoníacos foram cassados e
uma transformação interveio nas relações entre o homem e Deus. Deus, poderíamos
dizer, modificou sua pedagogia: ele retirou de Satanás o direito de dominar a
humanidade; o pecado foi expulso, a dominação do Maligno foi enterrada. A
palavra “resgate” adquiriu agora outro sentido: o de uma dívida reembolsada ao
demônio, conforme sublinha a literatura patrística dos primeiros séculos. Deus
concedeu um poder ao demônio e depois retirou-lhe esse poder, por haver
transgredido seus direitos ao assaltar um inocente. Irineu, Orígenes, Gregório
de Nissa mostram como Satanás, pretendendo colocar sob seu poder o único ser
sobre o qual ele não possuía nenhum poder, foi justamente despojado. Alguns
Padres, em especial Gregório de Nissa, propuseram o símbolo de uma armadilha
divina: debaixo do anzol de sua divindade, a humanidade de Cristo foi a isca; o
diabo se atirou sobre a presa, mas foi perfurado pelo anzol: ele não pôde
engolir a Deus e morreu[44].
Dívida paga a Deus, dívida paga ao diabo: duas imagens que só têm
valor juntas, para encerrar o ato, no fundo incompreensível, por meio do qual
Cristo nos concedeu a dignidade de filhos de Deus. Uma teologia empobrecida
pelo racionalismo, e que recua diante dessas imagens dos Padres, perde
necessariamente a perspectiva cosmológica da obra de Cristo. Ao contrário,
devemos alargar nosso sentido da redenção. Pois não foi apenas o demônio, mas
também os anjos que foram relativamente despojados: no Segundo Adão, o próprio
Deus se uniu diretamente à humanidade, fazendo-a participar de sua infinita superioridade
sobre os anjos. A redenção é uma realidade grandiosa que se estende ao conjunto
do cosmo, visível ou não. O “julgamento do julgamento” reconciliou o cosmo
decaído com Deus: sobre a cruz, Deus estendeu seus braços para a humanidade.
Como escreveu São Gregório de Nazianze: “Algumas gotas de sangue reconstituíram
o universo inteiro[45]”.
***
O diabo foi pisoteado, mas sem que seu direito tenha sido por assim
dizer lesado. A lei da natureza mortal foi revogada, mas sem que nada,
tampouco, tenha lesado a justiça divina. Com efeito, não devemos representar
Deus como sendo um monarca constitucional submetido a uma justiça que o
ultrapassa, nem como um tirano cuja fantasia criasse uma lei sem ordem nem
objetividade. A justiça não é uma realidade abstrata superior a Deus, mas uma
expressão de sua natureza. Assim como Ele criou livremente, mas se manifesta na
ordem e na beleza da criação, também ele se manifesta na justiça: Cristo, que é
a própria justiça, afirma em sua plenitude a justiça de Deus. Não se trata,
para o Filho, de exercer uma justiça derrisória que traga uma satisfação
infinita à vingança não menos infinita do Pai. “Por que, se pergunta Gregório
de Nazianze, seria o sangue do Filho agradável ao Pai, que não quis aceitar
Isaac oferecido em holocausto por Abrahão, substituindo então o sacrifício
humano pelo de um cordeiro?[46]”.
Cristo não executou a justiça, mas a manifestou: ele manifestou aquilo
que Deus espera da criatura, a plenitude da humanidade, o “homem máximo”, para
usarmos a expressão de Nicolas de Cues[47].
Ele cumpre a vocação do homem, que foi traída por Adão: viver somente de Deus e
nutrir o universo com Deus. Essa é a justiça de Deus. O Filho, idêntico ao Pai
por sua natureza divina, adquire a possibilidade de realizá-la por meio da
Encarnação; pois então ele pode se submeter ao Pai como se estivesse afastado
dele, renunciar à sua vontade própria – que lhe foi dada por sua humanidade – e
se entregar totalmente até a morte, para que o Pai seja glorificado. A justiça
de Deus consiste em que o homem não seja mais separado de Deus, ela é a
restauração da humanidade em Cristo, o verdadeiro Adão. “Não é evidente que o
Pai aceitou o sacrifício, não porque ele exigia ou porque fosse necessário, mas
por economia?, conclui Gregório de Nazianze. Era preciso que o homem fosse
santificado pela humanidade de Deus, era preciso que Ele próprio nos libertasse
triunfando sobre o tirano com sua própria força, que Ele nos chamasse para Si
por intermédio de seu Filho que é o Mediador que a tudo realiza em honra de seu
Pai, a quem ele obedece em tudo [...]. Que o resto seja venerado pelo silêncio[48]”.
7.
Ressurreição
O Pai aceitou o sacrifício do Filho “por economia”: “Era preciso que o
homem fosse santificado pela humanidade de Deus[49]”.
A kenosis culmina e se realiza com a
morte de Cristo, para santificar toda a condição humana, inclusive a morte.
“Cur Deus homo?” – por que
Deus se fez homem? Não apenas por causa de nossos pecados, mas para nossa
santificação, para introduzir todos os momentos de nossa vida decaída na
verdadeira vida, aquela que jamais conhece a morte. Pela ressurreição de Cristo,
a vida total é inserida na árvore seca da humanidade para revivificá-la.
A obra de Cristo apresenta assim uma realidade física, podemos dizer
até biológica. Sobre a cruz, a morte foi engolida pela vida. Em Cristo, a morte
penetra na dignidade e nela se consome, porque “ela não encontra espaço ali”. A
redenção significa, assim, a luta da vida contra a morte e o triunfo da vida. A
humanidade de Cristo constitui as primícias da criação nova; por meio dela uma
força de vida se introduz no cosmo para ressuscitá-lo e transfigurá-lo na
destruição final da morte. Desde a Encarnação e a Ressurreição, a morte foi
esgotada e já não é absoluta. Tudo converge para a restauração integral de tudo
o que foi destruído pela morte, em direção ao abrasamento de todo o cosmo pela
glória de Deus que se tornará tudo em todos, sem excluir dessa plenitude a
liberdade de cada pessoa diante da consciência plena de sua miséria, que lhe
será comunicada pela luz divina.
É preciso então completar a imagem jurídica da redenção com uma imagem
sacrificial. A redenção é também o sacrifício por meio do qual Cristo, segundo
a epístola aos Hebreus, aparece como o sacrificador eterno, o grande sacerdote
segundo a ordem de Melquisedeque, que termina no céu aquilo que começara na
terra. A morte sobre a cruz é a Páscoa da Nova Aliança, realizando numa
realidade tudo o que a páscoa hebraica simbolizava. Pois a libertação da morte
e a introdução da natureza humana no reino de Deus realizam o único Êxodo
verdadeiro. Certamente esse sacrifício representa uma expiação, o abandono da
vontade própria que Adão não pôde consentir. Mas ele representa acima de tudo
um sacramento, o sacramento por excelência, o livre dom a Deus, por Cristo, com
sua humanidade, das primícias da criação, a realização que a humanidade nova
deverá completar, a imensa ação sacramental devolvida em primeiro lugar a Adão:
a oferenda do cosmo como receptáculo da graça. A Ressurreição opera uma mudança
na natureza decaída, ela abre uma possibilidade prodigiosa: a de sacrificar a
própria morte; daí por diante, a morte deixa de ser um impasse e se transforma
numa porta para o Reino. A graça nos é concedida, e, se a trazemos em nós como
“vasos de barro”, como receptáculos ainda mortais, nossa fragilidade possui
virtualmente uma força que vence a morte. A tranquila segurança dos mártires,
insensíveis não somente ao temos, mas à própria dor física, prova que uma
consciência eficaz da Ressurreição é doravante possível ao cristão.
São Gregório de Nissa sublinhou bem esse caráter sacramental da Paixão.
Cristo, explica ele, não esperou ser forçado pela traição de Judas, pela
malícia dos sacerdotes e pela inconsciência do povo. Ele se adiantou a essa
vontade do mal e, antes de ser obrigado, ele se entregou livremente na vigília
da Paixão, na quinta-feira santa, entregando sua carne e seu sangue[50].
É o sacrifício do Cordeiro imolado antes do começo do mundo que se realiza aqui
livremente. A verdadeira Paixão começa desde a quinta-feira santa, mas com uma
liberdade total.
Logo depois virão o Jardim das Oliveiras e a Cruz. A morte sobre a
cruz é a de uma pessoa divina: ela é vivida pela humanidade de Cristo, e
sofrida também conscientemente por sua hipóstase eterna. E a separação entre a
alma e o corpo, aspecto fundamental da morte, também intervém no Deus-homem. A
alma que desce aos infernos permanece “enipostasiada” no Verbo, assim como o
corpo pendurado na cruz. Da mesma forma, a pessoa humana permanece presente
tanto em seu corpo retomado pelos elementos como em sua alma: é por isso,
aliás, que nós veneramos as relíquias dos santos. Com mais razão ainda, em
Cristo a divindade permanece ligada tanto ao corpo que dorme no sepulcro o
“sono branco” do Sábado santo, como à alma vitoriosa que destrói as portas do
inferno. De fato, como poderia a morte destruir essa pessoa que a sofre em toda
a sua trágica dissociação, sendo essa uma pessoa divina? É por isso que a
Ressurreição já está presente na morte de Cristo. A vida brota do túmulo, ela é
manifestada pela morte e na morte mesma de Cristo. A natureza humana triunfa
sobre uma condição antinatural. Porque ela está inteiramente contraída em
Cristo, “recapitulada” por Ele, para retomarmos uma expressão de Santo Irineu[51].
Cristo é o chefe da Igreja, ou seja, da humanidade nova no seio da qual nenhum
pecado, nenhuma potência contrária poderão doravante separar definitivamente o
homem da graça. Em Cristo, uma vida de homem pode sempre recomeçar, por pesada
que esteja de pecados; um homem pode sempre abandonar sua vida a Cristo, para
que este a torne livre e intacta. E essa obra de Cristo é válida para o
conjunto da humanidade, para além dos limites visíveis da Igreja. Toda fé no
triunfo da vida sobre a morte, todo pressentimento da Ressurreição, são crenças
implícitas em Cristo: pois somente a força de Cristo ressuscita e ressuscitará
os mortos.
Depois da vitória de Cristo sobre a morte, a Ressurreição se tornou
uma lei universal para a criação: e não apenas para a humanidade, mas para os
animais, as plantas e as pedras, para o cosmo inteiro, do qual cada um de nós é
a cabeça. Somos batizados na morte de Cristo, enterrados na água para
ressuscitarmos com ele. E para a alma que foi lustrada na água batismal das
lágrimas e abrasada pelo fogo do Espírito Santo, a Ressurreição não é apenas
esperança, mas realidade presente; a Parúsia começa nas almas dos santos e São
Simeão o Novo Teólogo pôde escrever: “Sobre os que se tornarão filhos dessa luz
e filhos do dia por vir, e que podem caminhar dignamente na luz, o Dia do
Senhor não virá jamais, pois eles já estão nele desde já e para todo o sempre[52]”.
Um oceano infinito de luz se derrama do corpo ressuscitado do Senhor.
[1]
João 1: 14.
[2]
João 1: 8.
[3]
João 1: 14.
[4]
Máximo o Confessor, Capítulos teológicos
e econômicos I, 66.
[6]
Irineu de Lyon, Contra as heresias
III, 10, 2.
[7]
Atanásio de Alexandria, Sobre a
encarnação do Verbo, 54, 3.
[8] II
Pedro 1: 4.
[9] I
Colossenses 15: 45-49.
[10]
Máximo o Confessor, Cartas, 21.
[11] Doutrina
existente nos séculos II e III que negava a existência de um corpo material a
Jesus Cristo, que seria apenas espírito.
[12]
Ver Concílios Ecumênicos, tomo II: Decretos.
[13]
Oração após a preparação dos dons.
[14]
Máximo o Confessor, Opúsculos teológicos
e polêmicos.
[15]
João Damasceno, A fé Ortodoxa III,11.
[16]
Filipenses 2: 5-11.
[17]
Isaías 53: 3.
[18]
Isaías 53: 10.
[19]
Isaías 53: 5.
[20]
João 14: 28.
[21]
Ver Livro das Horas, pg. 254.
[22]
Gregório Palamas, Homilia sobre a
Transfiguração.
[23]
João Damasceno, A fé Ortodoxa III,
15.
[24]
Máximo o Confessor, Disputatio Byzae.
14.
[25]
Máximo o Confessor, Opúsculos teológicos
e polêmicos, 1.
[26]
João 12: 27.
[27] Concílios Ecumênicos, tomo II: Os Decretos.
[28]
João 12: 27-28.
[29]
Mateus 26: 39.
[30]
Lucas 23: 41.
[31]
Gregório de Nazianze, Discurso 45,
28.
[32]
Atanásio de Alexandria, Sobre a
Encarnação do Verbo, 9.
[33]
João 1: 29.
[34]
Isaías 53: 7.12.
[35]
Gálatas 3: 13.
[36]
Dante, Inferno, Canto IV.
[37]
Orígenes, Homilias sobre São Lucas
XXXIV, 3.
[38]
Hebreus 9: 14.
[39]
Gálatas 3: 13.
[40]
Mateus 27: 46.
[41]
Salmo 21: 12.
[42]
João Damasceno, Homilias sobre a Páscoa,
3.
[43]
Máximo o Confessor, Questões a Thalassius,
42.
[44]
Gregório de Nissa, Discurso catequético,
XXIV; In Christi ressurrectionem, I.
[45]
Gregório de Nazianze, Discurso 45,
29.
[46]
Gregório de Nazianze Discurso 45, 22.
[47]
Nicolas de Cues, De docta ignorantia
III, 4.
[48]
Gregório de Nazianze, Discurso 45,
22.
[49] Ibid.
[50]
Gregório de Nissa, In Christi
ressurrectionem, I.
[51]
Irineu de Lyon, Contra as heresias
III, 16, 6.
[52]
Simeão o Novo Teólogo, Tratado ético
X, 132-135.
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