GREGÓRIO PALAMAS
CARTA À MONJA XÊNIA
DECÁLOGO DAS LEIS DE
CRISTO
SOBRE OS SANTOS
HESIQUIASTAS
SOBRE A PRECE E A
PUREZA DO CORAÇÃO
150 CAPÍTULOS
FÍSICOS, TEOLÓGICOS,
ÉTICOS E PRÁTICOS
TOMO HAGIORITA SOBRE
OS SANTOS HESIQUIASTAS
Gregório palamas
Gregório palamas
Nosso Pai entre os Santos Gregório de Tessalônica viveu sob o reinado
de Andrônico II Paleólogo, por volta do ano da graça de 1340. Deixando o mundo
inteiro e tudo o que é do mundo, ele partiu de sua pátria, Constantinopla, para
levar a vida monástica no Monte Athos. Dedicando-se à mais dura ascese, ligado
apenas a Deus na mais extrema hesíquia, ele foi, como Deus, o espelho do
Espírito Santo. Mais do que qualquer outro, ele alcançou o cume da ação e da
contemplação. Sua inteligência iluminada pelos esplendores da visão de Deus,
ele deixou à Igreja, como uma coluna da ortodoxia, escritos transbordantes de
sabedoria e teologia. Alguns extratos dos seus escritos foram inseridos neste
livro. Eles confiam ao leitor tesouros do verdadeiro conhecimento divino, de
sabedoria espiritual e de perfeição. Pois não apenas este vidente, esta
inteligência celeste escolheu o que se deve ler dos antigos santos, como,
propondo o que ele conheceu sobrenaturalmente por si próprio por sua longa
experiência e bem-aventuradas provações, ele fez de seus escritos o próprio
fruto da beleza dos népticos, de tal modo que ninguém pode imaginar que se
trata aí de frutos de uma inteligência humana. Na verdade, a inteligência de
Cristo e as vozes de Deus ultrapassam todo entendimento e toda reflexão. Por
meio de seus escritos ele combateu corajosamente pelos santos hesiquiasta e
pelos que se dedicam à sobriedade, à vigilância e à prece do intelecto. E por
meio de suas demonstrações ele respondeu com muita ciência às palavras vazias e
contrárias dos adversários quando estes tentaram destruir a verdade.
*
A vida de Gregório Palamas se passou inteira nestes três lugares onde
se concentrou e onde foi recapitulada, logo antes da catástrofe histórica, a
herança milenar do Oriente cristão: Constantinopla, o Monte Athos e
Tessalônica. Nascido em Constantinopla em 1296, monge no Monte Athos por volta
de 1317, arcebispo de Tessalônica em 1347 até sua morte nesta mesma cidade em
1359, Gregório Palamas passou todo o seu tempo a ilustrar e a defender o que
havia de mais secreto e mais puro na herança, e também o mais duro: o
fundamento teológico e a experiência existencial do hesiquiasmo, esta
interiorização das causas e dos efeitos da anacorese.
Iniciado por Teolepto e Nicéforo, Gregório Palamas poderia, e deveria,
como todos os hesiquiastas, não passar de um monge consagrado ao silêncio, à
solidão, à edificação, com o intelecto todo absorto na prece do coração e na
compaixão. Mas naquela ocasião o hesiquiasmo foi atacado diretamente em sua
própria linha de frente – em Constantinopla, no Monte Athos e em Tessalônica –
pelos adeptos de uma perspectiva intelectual que rompia com a densa rede de
referências e de reflexões tecida durante dez séculos de tradição teológica e
de exercício monástico. Gregório Palamas foi chamado a fazer frente, tanto na
adversidade e na perseguição como no reconhecimento e na responsabilidade
eclesiástica. Sua obra foi assim marcada em grande parte por uma controvérsia
crucial sobre a relação entre o incriado e o criado, sobre o sentido do
intelecto, sobre a compreensão de Deus, sobre o conhecimento do mundo e,
finalmente, sobre o curso e a finalidade da civilização: um debate críptico,
mas fundamental, na aurora dos tempos modernos.
A Filocalia oferece desta obra considerável um conjunto de textos onde
se cruzam a edificação e a controvérsia. Pela ordem: a carta a Xênia, o
Decálogo das leis de Cristo, um extrato da Defesa dos santos hesiquiastas, três
capítulos sobre a prece e a pureza do coração, os 150 capítulos físicos,
teológicos, éticos e práticos e enfim o Tomo hagiorítico.
A carta a Xênia,
provavelmente escrita por volta de 1345, é uma exortação ao mesmo tempo
delicada e rigorosa endereçada a uma velha higoumena para a instrução de suas
monjas. Gregório Palamas fala aí das escolhas e dos combates: a virgindade, o
estado de hesíquia, a morte para o mundo, a rejeição de toda vanglória, a
renúncia a todo desejo que não se relacione com a glória de Deus. E ele define
os fundamentos: a pobreza e a aflição, ou o luto, que chamam para as virtudes
da humildade, da contrição, da temperança e, finalmente, para a transfiguração
de toda pobreza e de toda aflição na beatitude, na consolação íntima, no Reino
dos céus, aqui e então. Uma apologia clássica da vida monástica.
No Decálogo das leis dadas por
Cristo, Gregório Palamas remonta os mandamentos de Deus ao amor e à
liberdade evangélica. Todas as leis de Moisés cabem no primeiro mandamento:
“Amarás o Senhor teu Deus”. Ora, o Senhor é Cristo. As proibições da lei não
fazem mais do que balizar o caminho apertado que conduz à porta estreita: as leis
encontram sua finalidade em Jesus Cristo. A partir daí a conduta cristã é menos
guiada pela observância do que pela imantação. A lei não foi dada senão para
ser cumprida em estado de graça. A exigência evangélica a empurra para além de
seus próprios limites, onde já não cabe se impor à vida. Daqui por diante é a
vida que passa a ser consagrada a Deus na pessoa de Cristo. “Guarde os
preceitos, diz Palamas, para depositar na alma os tesouros da piedade”.
O extrato do tratado Pela defesa
dos santos hesiquiastas, escrito por volta de 1338, trata do exercício do
intelecto. Estamos aqui no coração do debate que opôs Gregório Palamas e os
hesiquiastas ao seu primeiro adversário, o calabrês Barlaam. O intelecto deve
ser exercido naturalmente em seu “movimento retilíneo”, através dos sentidos
para o exterior, na direção do mundo, ou, ao contrário, em seu “movimento
circular”, fundamentalmente retornando ao lugar de Deus, ao coração, por um
“enovelamento que unifica”? Aqui
Gregório Palamas retoma e justifica o “método” de Nicéforo: a prece hesiquiasta
não é outra, para ele, do que a oração do Publicano, a única comprovada pelo
Evangelho. O intelecto humano se une ao intelecto divino, ao intelecto
anterior, sem outro conhecimento, daqui em diante, do que o do fogo, o qual,
diz ele, “retorna à origem”.
Os três capítulos Sobre a prece
e a pureza do coração lembram em primeiro lugar as condições desta prece e
desta pureza, que são a humildade e o luto. A partir daí eles significam o
encaminhamento e a finalidade. “O divino, diz Palamas, é compaixão e abismo de
doçura”. Ora, é impossível descobrir a compaixão sem a prece do coração, e é
impossível chegar à prece do coração sem um “retorno do intelecto sobre si
mesmo”, a única coisa capaz de manter o coração puro e de permitir, com a ajuda
da oração, o arrebatamento contemplativo: “Unir-se à unidade trinitária da
divina origem”.
Redigidos provavelmente por volta de 1350, os 150 capítulos físicos, teológicos, éticos e práticos constituem
certamente, junto com as Tríades para a
defesa dos santos hesiquiastas, a obra maior de Gregório Palamas, então
arcebispo de Tessalônica. Obra sem medida comum com a monumental suma teológica
que acabara de adotar o Ocidente cristão, mas que drenava e assumia um milênio
de herança, apresentando as conexões que unem Deus incriado (a teologia), o
mundo criado (a física) e a meditação humana entre o criado e o incriado (a
ética e a prática, ou ascese), até a deificação do homem diretamente na luz
incriada, não na essência inacessível de Deus, mas nas suas energias
participáveis. Os primeiros capítulos (de 1 a 33) são consagrados ao mundo
natural criado, conhecimento “parcial” que passa pelo homem e desemboca no
próprio homem. O homem é assim chamado a conhecer a si mesmo, e esta é, segundo
Gregório Palamas, “um conhecimento mais elevado do que o estudo da natureza”. O
homem, imagem de Deus, passa a se devotar ao conhecimento de Deus, à teologia,
à sua consagração pessoal a Deus por meio da ética e da ascese (capítulos de 34
a 63). O final da obra (capítulos de 64 a 150) retoma, talvez palavra por
palavra, as controvérsias anteriores com Barlaam e sobretudo com o bizantino
Gregório Acindino e seus adeptos, a quem a Filocalia trata como “adversários”.
Sobre a essência e as energias incriada de Deus, sobre as Hipóstases divinas,
sobre a luz do Tabor, sobre a deificação, Gregório Palamas, citando
abundantemente os Padres da Igreja, recorda e estabelece lhanamente a doutrina
ortodoxa.
O Tomo hagiorítico (ou Tomo da Montanha Sagrada) foi escrito
para ser apresentado no Sínodo de Constantinopla em 1341, e responde às
acusações de Barlaam. Gregório Palamas chama aqui os monges do Montes Athos
para sustentar o combate que junto com eles conduz para demonstrar o perfeito
fundamento da doutrina ortodoxa sobre a osmose cristã do criado e do incriado.
Apoiando-se no testemunho dos Padres da Igreja e na experiência dos santos, ele
afirma que a graça deificante do Espírito, em suas energias incriadas, pode
tocar o homem desde já, além de toda imitação e de toda disposição natural, mas
que em nenhum caso poderia ser deificado diretamente dentro da essência
inacessível de Deus. Assim ele denuncia a inconsequência dos que, recusando a
possibilidade real e atual da osmose deificante graças ao caráter incriado e
participável das energias do Espírito Santo – ou seja, a possibilidade do
impossível – prometiam transgredir o impossível, ou a fazer do possível um
impasse. Um texto claro e cabal, que contribuiu para as decisões do Sínodo.
Gregório Palamas se coloca aqui como fizeram Diádoco de Foticéia e
Máximo o Confessor. Assim como Diádoco, no século V, sustentava na ortodoxia os
anacoretas egípcios, no século XIV Palamas defendeu os hesiquiastas athonitas
em nome da mesma ortodoxia. E, como Máximo no século VII, ele proclamou a fé
ortodoxa até a arena política onde se debatia o futuro da herança bizantina.
Ele próprio conheceu a prisão. Mas seu testemunho era fiel e verdadeiro. Ele
prolongou, recapitulou e realizou dez séculos de tradição teológica e ao final
obteve o ganho de causa. Porém a civilização bizantina, incapaz a esta altura
de se manter sozinha, não podia deixar de desaparecer, e o máximo que pode foi
manifestar, profeticamente, seu último baluarte: a vida e a obra de Gregório
Palamas.
DE NOSSO PAI ENTRE OS SANTOS GREGÓRIO, METROPOLITA DE TESSALÔNICA
À NOBRE MONJA
XÊNIA
SOBRE AS PAIXÕES E AS
VIRTUDES,
E SOBRE
O QUE GERA O
EXERCÍCIO DO INTELECTO
Os que pretendem verdadeiramente viver na solidão devem ter não apenas
uma aversão ao contato com a multidão, mas até ao contato com aqueles que levam
uma vida semelhante à sua própria. Pois este contato interrompe a continuidade
da relação tão agradável que temos com Deus e quebra a unidade do intelecto,
esta unidade que faz o verdadeiro monge, o monge interior: ele desdobra esta
unidade, e às vezes a rompe. É por isso que um Padre, interrogado sobre a razão
de fugir aos homens, respondeu: “Eu não consigo estar com Deus ao mesmo tempo
em que em encontro com os homens[1]”.
Outro, que explica esta reação pela própria experiência, colocou em questão não
só o contato com os homens, mas o próprio fato de vê-los, na medida em que isto
pode destruir o equilíbrio e a calma dos pensamentos dos que vivem a hesíquia.
E, se levarmos este exame com todo o rigor, mesmo a lembrança da relação ou a
espera pela visita e pelo reencontro tiram do repouso os pensamentos da alma.
Quanto ao que confia suas palavras à escrita, este cerca seu intelecto
de um cuidado mais atento. Caso faça parte dos que progrediram e que adquiriram
o amor de Deus para dar força à sua alma, aquele que escreve possui em si este
amor ativo, mas não de forma pura e diretamente. E se faz parte dos que ainda
caem nas numerosas enfermidades e paixões da alma – como eu próprio – e que
precisam constantemente clamar a Deus “Cure-me, por que pequei[2]”,
não é razoável que tal homem relaxe a oração antes de ser curado, e que se
ocupe voluntariamente de outra coisa. Por outro lado, através do que escreve
ele se dirige a pessoas que não estão presentes e transmite a um grande número
de homens e épocas, às vezes até a quem não desejaria, a mensagem contida
nestes textos feitos para permanecer depois de sua morte. É por isso que muitos
Padres que chegaram ao cume da hesíquia não se dedicaram a escrever, embora
pudessem ter exposto grandes coisas e coisas muito úteis.
Quanto a mim, desprovido de rigor nas coisas, sempre tive o hábito de
escrever, mas pela pressão da necessidade. Ora, atualmente, alguns que viram
com maus olhos meus textos e que procuraram motivos para me prejudicar, me
tornaram ainda mais reservado. Tais pessoas, segundo o grande Denis[3],
têm um pendor pelos elementos e pelos textos ininteligíveis, assim como por
sílabas e palavras desconhecidas, que não penetram na inteligência de suas
almas. Ora, é irrazoável e descabido, e não é próprio de quem pretende
compreender o divino, ligar, não para o poder do objetivo, mas para as
palavras. Mas eu suporto sua reprovação com toda justiça, por que sei que não
escrevo em desacordo com os Padres, pois a tradição, pela graça de Cristo, está
guardada em meus escritos, e que escrevi sobre coisas das quais não sou digno,
como se fosse Oza, que tentou endireitar pela palavra o carro tombado da
verdade[4].
Isto por que a sanção viria para mim não pela cólera, mas como uma correção na
medida do que tivesse escrito. É por isso que aqueles que nos atacaram nada
puderam nos fazer. E mesmo isto está ligado à minha indignidade: por que eu não
fui digno nem capaz de sofrer pela verdade, nem de participar desta maneira da
felicidade dos santos. Não foi o que aconteceu como nosso Padre Crisóstomo, ele
que nos céus foi unido à Igreja dos primogênitos[5]
quando ainda vivia revestido de um corpo, por haver ilustrado com seus escritos
a piedade com toda certeza, com clareza e uma doçura de mel, não foi ele, este
tão grande homem, afastado da Igreja e condenado ao exílio, acusado de escrever
e de professar as opiniões de Orígenes? E Pedro, o corifeu do coração eminente
dos discípulos do Senhor, disse que os ignorantes de então desnaturavam, para
sua própria perdição, o que era de difícil compreensão nas cartas de Paulo[6].
Devido à pequena agressão por parte dos que me atacaram, embora tenham
sido todos derrubados, eu teria podido, pensei, renunciar totalmente a
escrever, se não tivesse você naquele momento, ó santa anciã, me pedido em
cartas e bilhetes, até me persuadir a por mãos a obra enviando a você palavras
de encorajamento, ainda que você não precise de exortação. Pois você possui,
pela graça de Cristo, com a velhice trazida pela idade, a inteligência
venerável e a lei dos santos mandamentos que lhe foram dados pela ação e a
experiência de muitos anos ao longo dos quais você dividiu sua vida todo o
tempo entre a hesíquia e a obediência, tendo, por meio delas, tornado as tábuas
da alma lisas e próprias para receber e conservar os caracteres divinos. Esta é
a cidadela da alma, a cidadela fortificada pelo desejo do ensinamento
espiritual, jamais saciada. É por isso que a sabedoria diz de si mesma: “Os que
se alimentam de mim ainda terão fome[7]”.
E o Senhor, que coloca este desejo nas almas, disse a respeito de Maria que a
boa parte que ela escolheu jamais lhe seria tirada[8].
E é a você igualmente que devemos aplicar estas palavras, para as filhas do
grande Rei que levam a vida sob a sua conduta, e em especial para a
inteligência com que você deseja ser esposa d’Aquele que dispensa a
incorruptibilidade. É verdade que você o imita. Assim como ele tomou
verdadeiramente por nós a nossa forma, também você toma hoje o rosto daqueles a
quem você conduz e que pedem para ser ensinadas. E eu também, embora não me
seja fácil fazer discursos e ainda mais estes discursos, mas por causa da
obediência e do mandamento de dar a quem pede[9],
irei agora desenvolver minha exposição, quitando a dívida do amor de Cristo.
Saiba então, santa anciã, ou antes, as jovens monjas que com você
aprendem a levar a vida segundo Deus: existe uma morte da alma imortal por
natureza. Assim é que o bem-amado Teólogo disse: “Existe um pecado que conduz à
morte, e um que não leva à morte[10]”.
Ele se referia aqui, com certeza, à morte da alma. Também o grande Paulo disse:
“A tristeza segundo o mundo suscita a morte[11]”;
mais uma vez, trata-se da morte da alma. E ainda: “Desperte, você que dorme,
levante-se de entre os mortos e Cristo o cumulará de luz[12]”
De entre quais mortos lhe é ordenado levantar? Certamente, de entre aqueles que
estão mortos sob o poder das concupiscências da alma, estas concupiscências que
fazem guerra à alma[13].
É por isso que o Senhor chama de mortos aos que vivem neste mundo vão.
Ao discípulo que o interrogou ele sequer permitiu que fosse enterrar o
próprio pai, ordenando que o seguisse, deixando que os mortos enterrassem seus
mortos[14].
O Senhor chamou aqui de mortos aos vivos que estão mortos em suas almas. Pois,
assim como a separação da alma em relação ao corpo significa a morte para o
corpo, também a separação de Deus em relação à alma representa a morte da alma.
Esta morte, a da alma, é que é propriamente a morte. É a esta morte que Deus se
referiu no mandamento dado no Paraíso, quando disse a Adão: “No dia em que você
comer do fruto da árvore proibida, você morrerá[15]”.
Foi então que a alma de Adão, separada de Deus, foi levada à morte pela
transgressão. A partir daí ele viveu em seu corpo até a idade de 930 anos[16].
Ora, a morte que sobreveio na alma pela transgressão não apenas corrompeu a
própria alma, tornando o homem maldito, como ainda oprimiu o corpo com penas e
paixões, tornando-o corruptível e levando-o finalmente à morte. Então, de fato,
depois da morte do homem interior por causa da transgressão, Adão ouviu: “A
terra será maldita pelas suas obras. Ela dará espinhos e ervas daninhas. Você
comerá seu pão com o suor do seu rosto, até que retorne à terra de onde você
foi tirado. Pois você é terra, e à terra voltará[17]”.
E mesmo que no decurso deste novo nascimento futuro, na ressurreição
dos justos, os corpos dos iníquos e dos pecadores se levantarem, será para que
sejam atirados à segunda morte[18],
ao castigo eternos, ao verme que não dorme jamais[19],
ao ranger de dentes[20],
às trevas exteriores[21]
e tangíveis, à obscura e inextinguível Geena de fogo[22],
segundo o profeta que disse: “Os iníquos e os pecadores serão queimados, e
ninguém haverá que lhes extinga o fogo[23]”.
Pois esta é a segunda morte, como nos ensinou João no Apocalipse. E escute também
o que disse o grande Paulo: “Se, pelo espírito, vocês derem morte às obras do
corpo, viverão[24]”.
Ele fala aqui da vida e da morte no século futuro: da vida que é a fruição no
Reino eterno e da morte que é a danação perpétua. E esta é propriamente a morte:
que a alma seja separada da graça divina e unida ao pecado. É desta morte
terrível que devem fugir aqueles que têm inteligência. É também esta morte que,
mais do que os castigos da Geena, aterroriza os que procuram o bem.
Também nós fujamos desta morte com todas as nossas forças. Rejeitemos
tudo, afastemos tudo, renunciemos a tudo, às nossas relações, às nossas ações,
às nossas vontades, a tudo o que nos arrasta para baixo, que nos separa de Deus
e que pode nos causar esta morte. Pois aquele que a teme e que dela se protege
não temerá a morte que virá, a morte da carne: quem se liga ao irredutível mais
do que à morte terá em si a verdadeira vida. Pois, assim como a morte da alma é
a verdadeira morte, a vida da alma é a verdadeira vida. A vida da alma é a
união com Deus, do mesmo modo como a vida do corpo é a união com a alma. Pois,
assim como foi pela transgressão do mandamento de Deus que a alma separada
encontrou a morte, é pela obediência ao mandamento que a alma novamente unida a
Deus é revivificada. É por isso que o Senhor disse nos Evangelhos: “As palavras
que eu digo são Espírito e vida[25]”.
É também o que lhe disse Pedro, que aprendera com sua própria experiência:
“Você tem as palavras da vida[26]”.
Mas as palavras da vida eterna são para quem as escuta; para os que
transgredem, este mandamento de vida conduz à morte[27].
Foi assim com os Apóstolos: o bom odor de Cristo foi para uns um odor de morte
que levava à morte, e para outros um odor de vida que conduzia à vida[28].
De resto, esta vida não se resume à vida da alma, mas inclui também a
do corpo. Pois ela imortaliza a este igualmente pela ressurreição, a partir do
momento em que ela liberta não apenas da mortalidade, mas também da morte sem
fim – ou seja, deste castigo futuro. Com efeito, ela concede o dom da vida
eterna em Cristo, desembaraçada de toda pena, de toda enfermidade, de toda
tristeza, verdadeiramente imortal. Pois assim como a morte do corpo, a
dissolução na terra e o retorno ao pó se seguiram à morte da alma – a
dissolução e o pecado – e a condenação da alma ao inferno se seguiu à morte do
corpo, também a ressurreição do corpo novamente unido à alma seguir-se-á à
ressurreição da alma, vale dizer, o retorno ao corpo pela obediência ao
mandamento divino. E esta ressurreição será ela própria seguida pela verdadeira
incorruptibilidade e pela eternidade da qual desfrutarão com ele os que tenham
se tornados dignos de Deus, de carnais que eram tornados espirituais e levando
no céu a vida dos anjos divinos. Pois foi dito que seremos arrebatados até as
nuvens ao encontro do Senhor no espeço, e que a partir daí estaremos sempre com
o Senhor[29].
Com efeito, assim como o Filho de Deus, que se tornou homem por amor ao homem e
morreu na carne, tendo sua alma separada do corpo mas não separada da divindade
– e é por isso que seu corpo ressuscitado retornou aos céus em glória –, também
os que viveram aqui segundo Deus, quando se virem separados do corpo, mas não
separados de Deus, serão assumidos em seus corpos junto a Deus na ressurreição:
eles entrarão com indizível alegria onde Jesus entrou por nós como nosso
precursor[30],
e desfrutarão da glória que se revelará em Cristo[31].
Pois eles não participarão apenas da ressurreição, mas terão parte também na
ascensão do Senhor e em toda a vida divina.
Mas o mesmo não acontecerá com os que aqui tenham vivido segundo a
carne: na hora do êxodo eles não estarão em comunhão com Deus. Pois, se é
verdade que todos ressuscitarão, foi dito que cada um ressuscitará em sua ordem
própria[32].
Aquele que, pelo Espírito, houver levado à morte aqui em baixo as ações do
corpo, viverá no além a vida divina e verdadeiramente eterna com Cristo. Mas
quem, pelas concupiscências e paixões da carne tiver levado à morte o Espírito
aqui em baixo, será condenado no além, junto com o artesão e executor do mal, e
será entregue ao insuportável e irresistível castigo, ou seja, à segunda morte
irremediável[33]. Pois
aonde estão as raízes da verdadeira morte, aquela que suscita e provoca na alma
e no corpo a morte temporal e a morte eterna? Não estão elas no país da vida? É
por isso que imediatamente o homem foi condenado ao exílio fora do Paraíso de
Deus: sua vida trazia em si a morte e não estava de acordo com o Paraíso. Deste
modo, a verdadeira vida, aquela que suscita na alma e no corpo a vida que é
verdadeiramente imortal, terá suas raízes neste lugar: no lugar da morte.
Quem não se esforça por possuir em sua alma aqui em baixo a verdadeira
vida, que não se iluda[34]
com a vã esperança de recebê-la no além. Também não espere receber neste
momento o amor que Deus dedica ao homem. Pois este será o tempo da retribuição
e do castigo[35],
não da compaixão e do amor pelo homem: o tempo da revelação do ardor, da cólera
e do justo julgamento de Deus: o tempo em que ele mostrará o poder de sua mão
erguida[36]
prestes a castigar os indóceis. Infeliz daquele que cair nas mãos do Deus vivo[37]!
Infeliz daquele que lá provar do ardor do Senhor, daquele que por temor a Deus
não tenha conhecido aqui em baixo o poder de sua cólera e que por suas obras
não tenha buscado previamente seu amor pelo homem: pois é isto que foi
assinalado ao tempo presente. E foi certamente para isto que Deus nos concedeu
esta vida, e no-la deu como um lugar de arrependimento. Pois se não fosse
assim, mal tivesse o homem pecado e já seria provado desta vida. E então, de
que serviria ela?
É por isso que tampouco o desespero tem lugar entre os homens, mesmo
se o maligno, de muitas maneiras, o inspira não apenas aos que vivem na
indiferença, mas às vezes até aos que combatem. Pois dado que o tempo da vida é
o tempo do arrependimento, esta mesma vida, embora submetida ao pecado, para
quem deseja retornar a Deus, responde ao nosso acolhimento junto a ele. Pois
aqui em baixo a liberdade e a vida andam de mãos dadas. Como a matéria, o
caminho da vida revelada do alto e o caminho da morte estão cada qual
submetidos à liberdade de escolher ou de fugir, conforme queiramos adquirir um
ou outro, na medida do possível. Onde teria lugar o desespero, se a qualquer
tempo e quando se queira, todos podem adquirir a vida eterna? Vê a grandeza do
amor que Deus dedica ao homem? Por um juízo justo, ele não usa seu poder contra
nós que fomos infiéis, mas, pacientemente, ele nos dá tempo para o retorno.
Nestes tempos de paciência, ele nos concede o poder, se assim o quisermos, de
ser adotados por ele. Eu disse adotados? Ele nos concede unirmo-nos a ele e nos
tornarmos com ele um só Espírito[38].
Mas mesmo nestes tempos de paciência, se caminharmos sobre a via
contrária e se amarmos mais a morte do que a verdadeira vida, mesmo assim Deus
não nos retirará o poder que nos concedeu. Não apenas não o retirará, como
ainda o fará reviver. Ele nos rodeará, buscando e retornando às obras da vida,
segundo a parábola da vinha[39],
da manhã até o entardecer desta existência. Mas quem é este que chama e que
paga o salário? O Pai de nosso Senhor Jesus Cristo e o Deus de toda consolação[40].
E quem chama para trabalhar nesta vinha? O Filho de Deus, que disse: “Eu sou a
vinha[41]”.
Pois ninguém pode achegar-se a Cristo, como ele próprio disse no Evangelho, se
o Pai não o atrair[42]
primeiro. E quem são os ramos? Nós. Pois ouça o que foi dito: “Vocês são os
ramos, meu Pai é o vinhateiro[43]”.
É, portanto, o Pai, que, por meio do Filho que nos reconcilia com ele sem
considerar nossas faltas[44],
nos chama, não por que trabalhamos em obras descabidas, mas por que não
trabalhamos – embora o ócio seja um pecado – pois prestaremos conta de toda
palavra vã[45].
Mas como eu disse, Deus, passando por cima das faltas cometidas por
cada qual, nos chama ainda e sempre. E para que nos chama ele? Para trabalhar
na vinha: vale dizer, para que nos ocupemos dos ramos, ou seja, de nós mesmos.
A seguir – incomparável grandeza do amor pelo homem! – ele nos promete um
salário e nos paga, a nós que penamos por nossa própria causa. Ele diz:
“Venham, recebam a vida eterna que eu concedo em abundância. Eu pagarei um
salário – pois sou eu que lhes devo – pelas penas de sua viagem e por sua
vontade de receber de mim esta vida”. Quem não deve o preço de seu resgate
Àquele que o libertou da morte? Quem não dá graças Àquele que lhe deu a vida?
Mas é ele que nos promete adiantar um salário, e um salário indizível. “Eu vim,
disse ele, para que eles tenham vida, e que a tenham em abundância[46]”.
E no que consiste esta abundância? Não apenas ser e viver com ele, mas nos
tornarmos para ele irmãos e coerdeiros. Esta abundância, ao que parece, é o
salário dado aos que correm para a vinha vivificante, que se tornam ramos desta
vinha, que penam por si próprios e cultivam a si mesmos. Mas o que fazem eles? Em
primeiro lugar, eles retiram tudo o que está demais e que não contribui para o
desenvolvimento, e também tudo o que impede a vinha de dar frutos dignos da
divina colheita. E o que é este demais? A riqueza, as delícias do mundo, a
vanglória, tudo o que flui e passa, toda paixão infame e má da alma e do corpo,
todas as inutilidades trazidas pela distração dos pensamentos, tudo o que,
naquilo que escutamos, vemos e dizemos, pode introduzir o mal em nossas almas.
Pois se não fizermos o enorme esforço de arrancar tudo isto e podar a árvore do
coração, não poderemos dar frutos na vida eterna[47].
Os que levam a vida conjugal podem se esforçar para alcançar esta
pureza, mas será bem mais difícil. É por isso que aqueles que, desde a sua
juventude, experimentaram a benevolência de Deus, podem melhor discernir esta
vida (espiritual) com os olhos de seu intelecto e são presos pelos bens que
nela se encontram, e assim fogem do casamento, uma vez que na ressurreição
ninguém casa nem desposa, mas se tornam todos como anjos de Deus[48].
Assim é que quem deseja ser como um anjo de Deus e se assemelhar aqui em baixo
ao filho desta ressurreição[49],
deve se colocar acima da união dos corpos, considerando que foi a esposa quem
manifestou o pecado dando-lhe espaço no princípio[50].
Portanto, aqueles que não querem dar por si mesmos nenhum pretexto ao
adversário[51],
devem recusar o casamento.
Mas se é difícil dominar o corpo e conduzi-lo à virtude, ou melhor, se
nos o trazemos com uma oposição inata, como, na medida em que aumentamos a
dificuldade em nos dirigirmos para a virtude, nos confiaremos a Deus, ligados
que estamos a um sem-número de outros corpos? E como poderá ter liberdade, esta
que nos é ordenado buscar com ardor, aquela que, pelos laços naturais, se liga
a um marido, aos filhos e a todos os que lhe são próximos pelo sangue? Como
poderá se colocar sem mais cuidados junto ao Senhor, aquela que está engajada
em cuidar de tantas pessoas: Como poderá estar calma, ligada que está a uma
multidão de gente? É por isso que aquela que é verdadeiramente virgem e que se
consagrou Àquele que é também ele virgem, que nasceu de uma virgem e que é o
esposo das almas que vivem na virgindade, foge não apenas do casamento da
carne, mas da própria frequentação do mundo, renunciando a todo parentesco, até
que finalmente possa dizer, como Pedro, como toda a segurança, disse a Cristo:
“Nós deixamos tudo para segui-lo[52]”.
E se uma esposa terrestre abandona pai e mãe por um esposo mortal, ligando-se a
ele, segundo a Escritura[53],
o que há de extraordinário em que uma virgem os abandone para uma morada
nupcial e um esposo que está acima do mundo? Como poderá ela ter parentescos
sobre a terra, ela cuja vida se passa nos céus[54]?
Como poderá ela, que é filha não da carne, mas do Espírito, ter pai e mãe de
carne e irmãos de sangue? Como poderá aquela que fugiu do próprio corpo e que
ainda foge tanto quanto lhe é possível, por ter rejeitado a vida na carne, numa
palavra, como poderá manter relações com corpos que lhe são estranhos? Se a
semelhança produz a amizade, como se diz, e se todo ser abraça o semelhante,
como poderá a virgem assemelhar-se aos que ama, e assim recair na doença do
amor pelo mundo? “O amor pelo mundo é inimigo de Deus[55]”,
disse Paulo, ele que enfeitou a noiva para levá-la à câmara espiritual das
núpcias. A virgem que escolher o mundo, não apenas perderá o Esposo que está
acima do mundo, como ainda correrá o risco de sentir aversão por ele.
Não se espante nem se aflija pelo fato de que a Escritura não condena
os que são casados quando estes se ocupam das coisas do mundo e não das coisas
do Senhor[56],
mas se, aos que prometeram a Deus permanecer virgens, ela proibiu tocar o que é
do mundo e a estes não permite que vivam no relaxamento. E, no entanto, é assim
que Paulo se dirige aos esposos: “O tempo é curto. Daqui em diante, é melhor
que aqueles que têm esposas ajam como se não tivessem, e que os que usufruem do
mundo ajam como se não o fizessem[57]”;
este, penso eu, é um combate mais difícil do que o da virgindade. Pois a
experiência demonstra que o jejum é mais fácil do que o é a temperança quando
se vive entre delícias e bebidas. E diremos algo justo e verdadeiro se
afirmarmos que, se alguém não escolhe ser salvo, não há o que possamos lhe
dizer. Mas a quem se preocupa de sua própria salvação, saiba que a vida levada
em virgindade é mais eficaz e menos penosa do que a vida conjugal.
Mas deixemos isto de lado, virgem, esposa de Cristo, ramo da vinha da
vida, e considere o que foi dito mais acima. Pois o Senhor afirma: “Eu sou a
vinha, vocês são os ramos, meu Pai é o vinhateiro. Todo galho que em mim der
fruto, ele o podará, para que dê ainda mais[58]”.
Faça dos cuidados que ele tem para com você o signo de sua virgindade e do amor
que lhe tem o Esposo. Alegre-se, e em troca se esforce por ser-lhe dócil. É
quando acrescentamos chumbo ao ouro que podemos dizer se ele é falso ou não;
mas quando o chumbo é revestido de pó de ouro fundido, este parece ainda mais
brilhante e rutilante. Assim é que aquelas que já não são virgens a olham com
nostalgia, ó virgem, a você e às suas obras, que para elas são uma glória; mas
que você as olhe com nostalgia, seria uma desonra; por que seu desejo a faria
retornar ao mundo, primeiro por que, tendo morrido para o mundo, você estaria
mantendo relações com quem vive no mundo, vivendo com eles; segundo por que,
ligando-se a eles, você desejaria o mesmo que eles desejam para si mesmos e
para os seus próximos: abundância de toda espécie de bens que se pode ter nesta
vida, a riqueza, a aparência, a glória e a alegria que estas coisas trazem. E
desta maneira você se afastaria da vontade de seu Esposo.
Tudo isto ele próprio considerou nos Evangelhos como sendo causas de
infelicidade, ao dizer: “Infelizes de vocês, os ricos, infelizes os que se
riem, os que estão saciados, infelizes quando de vocês falarem bem todos os
homens[59]”.
Mas como coloca ele a infelicidade sobre tais pessoas? Não será porque suas
almas estão mortas? Que parentesco pode ligar aos mortos a esposa da vida? O
que pode unir aos que caminham por vias contrárias? Pois a via pela qual eles caminham
é larga e espaçosa[60].
Se estes não se detiverem, mesclando às suas vidas um pouco do que existe em
você, cairão totalmente na perdição, enquanto que você entrará pela porta
estreita e pelo caminho apertado[61]
que conduzem à vida. Ora, ninguém poderá passar pela porta estreita se se
mantiver referenciado aos faustos da glória, às efusões do prazer, aos encargos
do dinheiro e das posses. E não pense que este caminho, do qual você ouvir
dizer que é largo, escapa da tristeza, pois ele conduz a muitas e pesadas
infelicidades. Foi dito que ele é largo e espaçoso, por que muitos passam por
ele[62],
cada qual rodeado por uma mistura desordenada da matéria que escoa.
Mas, virgem, sua porta é estreita: duas pessoas não podem passar
juntas por ela. Assim é que muitas que estavam conciliadas com o mundo, ao se
tornar viúvas, sós, separadas de seus esposos, renunciaram à vida, imitando a
sua vida que está acima do mundo, e escolheram percorrer o seu caminho para
tomar parte da sua coroa: são elas a quem Paulo ordena que honremos[63],
por que perseveraram na súplica e na oração, esperando em Deus. Pois se a esta
vida está ligada uma dose de aflição, ela é também uma fonte de consolação, uma
porta para o Reino dos céus e uma causa de salvação. As delícias e as aflições
lhe são igualmente mortais. Com efeito, foi dito que a tristeza segundo o mundo
suscita a morte, mas que a tristeza conforme a Deus suscita um arrependimento
que conduz à salvação e que não lamentaremos[64].
É por isso que o Senhor louva aquilo que é contrário aos bens deste
mundo, quando diz: “Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles será o
Reino dos céus[65]”.
Mas porque, depois de haver dito “Bem-aventurados os pobres”, ele acrescentou
“em espírito”? Para mostrar que ele louva e acolhe a modéstia da alma. E porque
não disse ele “Bem-aventurados os pobres de espírito” – pois assim estaria se
referindo àquilo que está dentro dos limites do intelecto – mas
“Bem-aventurados os pobres em espírito”? Para nos ensinar que a pobreza do
corpo pode ser chamada de bem-aventurada e que ela abre para o Reino dos céus,
desde que assumida em função da humildade da alma, desde que unida a ela,
extraindo dela sua origem. Pois ao louvar os pobres em espírito, ele mostrou
admiravelmente quais são, por assim dizer, a raiz e a fonte da pobreza
manifestada pelos santos: ou seja, seu espírito.
Este espírito, que recolheu assim a graça da predicação evangélica,
faz jorrar de si mesmo a fonte da pobreza, que irriga toda a superfície da
nossa terra[66],
ou seja, o homem exterior, e o transforma em paraíso de virtudes. É esta
pobreza que Deus chama de bem-aventurada[67].
Ao reduzi-la a uma única palavra sobre a terra, segundo o profeta[68]
(quando mostrou e explicou com grande felicidade a causa de todas as formas de
pobreza voluntária e a causa desta pobreza), o Senhor, que a tudo ensinou com
poucas palavras, abarcou inúmeros efeitos reais. Pois uma pessoa pode possuir
nada, e mesmo assim ser vil; pode ser abstinente, até de forma voluntária, mas
fazê-lo pela glória diante dos homens. Esta pessoa não será pobre em espírito,
pois a hipocrisia nasce da pretensão, e esta é o contrário da pobreza em
espírito. Mas a quem possui o espírito quebrantado, modesto e humilde, é
impossível não se regozijar por sua baixeza e sua humildade aparentes, por que este
considera a si próprio como indigno da glória, da felicidade, das facilidades e
de tudo o que se assemelha. O pobre que Deus chama de bem-aventurado é aquele
que considera a si mesmo como indigno destes bens, e este pobre, que é o
verdadeiro pobre, não se arroga este nome parcialmente. É por isso que o divino
Lucas disse: “Bem-aventurados os pobres[69]”,
sem acrescentar “em espírito”. Estes são os que ouvem e seguem o Filho de Deus,
e que se fazem semelhantes a ele, quando disse: “Aprendam comigo que sou manso
e humilde de coração, e vocês encontrarão o repouso para suas almas[70]”.
É por isso que o Reino dos céus pertence também a estes, pois eles são
herdeiros com Cristo.
Uma vez que a alma possui três partes, que ela é considerada nestas
três faculdades – a razão, o amor e o desejo – e que ela se torna enferma de
todas, é natural que Cristo, que a cura, comece a cuidar dela a partir da
última: o desejo. Pois o desejo é a matéria do ardor. E quando ele é a matéria
da distração dos pensamentos, estas duas faculdades vão mal. O ardor da alma
não pode ser são, se o desejo não for curado primeiro. Tampouco a razão pode
ser sã, se antes o desejo e o ardor não tenham sido curados também.
Se observarmos bem, veremos que o primeiro fruto do desejo é o amor às
posses. Pois os desejos que sobrevêm aos homens no sentido de ajudá-los a viver
não são condenáveis. É por isso que eles crescem conosco desde a mais tenra
idade. O amor ao dinheiro nasce um pouco mais tarde, quando ainda somo
crianças. Daí vem que ele não tenha sua origem na natureza, mas na
vontade. O admirável Paulo chamou-o de
raiz de todos os vícios[71].
É ele que engendra, dentre os demais vícios, a mesquinhez, o tráfico, as
pilhagens, os roubos, numa palavra, todas as formas de cupidez, esta cupidez
que o mesmo Paulo denominou como a segunda idolatria[72].
Ela fornece a própria matéria de que é feita a quase todos os que não
conseguiram deixar a idolatria. Todos os vícios que nascem do amor pela matéria
são paixões da alma que não arde por fazer o bem. Pois os vícios que provêm da
vontade se transmitem mais facilmente do que as paixões que têm sua origem na
natureza, E não crer na providência de Deus torna difícil rejeitar as paixões
nascidas do amor pelo dinheiro.
Quem não crê na providência coloca sua confiança no dinheiro. E quando
ouve o Senhor dizer que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha
do que um rico entrar no Reino dos céus[73],
este homem, que considera o Reino dos céus como nada sendo – este Reino que é
celeste e eterno – deseja a riqueza terrestre passageira, esta riqueza que,
mesmo quando não está em mãos dos que a desejam, causa os maiores males pelo
fato mesmo de ser desejada. Os que querem ser ricos caem nas tentações e nas
armadilhas do diabo, diz Paulo[74];
então, quando a riqueza vem por si só ela mostra nada ser; depois, quando ela
não está mais aí, aqueles que não receberam a inteligência (por experiência
própria) sentem sede dela.
Pois este amor infeliz não provém de uma ausência, muito pelo
contrário. O amor pelo dinheiro vem da loucura que Cristo, nosso Mestre de
todos, acusou naquele que destruiu seus celeiros e construiu outros maiores[75].
Pois como não será louco alguém que, por causa de algo que não pode lhe
afiançar nada (pois, mesmo na maior abundância, a vida de um homem não depende
daquilo que ele possui[76]),
adianta por causa disto o que tem de mais útil e não se mostra um negociante
sábio que recolhe e ajunta tanto quanto possível o que é necessário ao capital
do comércio ou da agricultura, que realmente lhe rendem muito e o fazem ganhar
dinheiro? Em particular a agricultura que, antes mesmo de chegado o tempo da
colheita, multiplica por cem o que foi semeado: ela indica assim previamente o
ganho futuro e a fecundidade quando chegado o tempo, como uma coisa
inexprimível e impensável, e tanto mais paradoxal na medida em que as sementes
provêm de celeiros menores.
Assim, os homens não deixam de ter razão ao buscar a riqueza para seu
bem. Mas eles temem a sua falta, por que não creem Naquele que prometeu que as
coisas daqui seriam dadas em acréscimo aos que buscam o Reino de Deus[77]
e, não tendo mais do que este motivo, mesmo rodeados de tudo, jamais se afastam
de seu desejo maligno e mortal. Ajuntando sempre mais, eles se sobrecarregam
com um fardo inútil, ou melhor, enquanto ainda estão nesta vida, se cercam de
um novo túmulo. Pois os que morrem dentre os homens são enterrados na terra
simples, mas a inteligência do avaro é enterrada, ainda em vida, num monturo de
poeira de ouro. Para quem desfruta de saúde em seus sentidos, este túmulo tem
pior cheiro do que o outro. E o cheiro será tanto pior quanto mais poeira o
avaro acumular. Pois o mal com que estes miseráveis enterrados foram feridos é
mais forte do que eles. E sua pestilência chega até os céus, até os anjos de
Deus e até Deus. Por isso eles inspiram horror e se tornam os homens dos quais
nos desviamos, por que seu cheiro é horrível devido à sua loucura, como disse
Davi[78].
O que pode separar estes homens desta paixão nauseabunda que traz a morte é a
despossessão voluntária, sem nenhuma complacência para com os homens: vale
dizer, a pobreza em espírito, a que o Senhor chamou de bem-aventurada.
É impossível a um monge que tenha esta paixão pelo dinheiro ser
submisso. Se ele persistir em atender cada vez mais a esta paixão, deverá temer
fortemente cair ainda em males irremediáveis do corpo. Gieze e Judas, no Antigo
e no Novo Testamento, são provas suficientes disto. Um foi coberto pela lepra[79],
a marca de uma alma incurável. O outro, em um campo de sangue, dependeu-se da
forca, caiu para frente, rasgou-se ao meio e suas entranhas se espalharam[80].
E, se a renúncia precede a submissão, como poderá o que vem depois preceder o
que vem antes? E se a renúncia precede também a vida monástica, uma vez que ela
constitui seu princípio elementar, como poderá alguém que não renunciou
primeiro ao dinheiro conduzir com sucesso outros combates da renúncia? Com
efeito, como, não sendo capaz de submissão, poderá alguém viver sozinho em
estado de hesíquia em sua cela, consagrando-se à solidão e se dedicando à
prece? Ora, “onde está seu tesouro, disse o Senhor, aí estará também seu
coração[81]”.
Então, como poderá alguém que ajunta tesouros sobre a terra voltar os olhos do
intelecto para Aquele que está sentado à direita da Majestade no mais alto dos
céus[82]?
Como herdará ele o Reino, que não é permitido ao intelecto receber se não
estiver puro de toda paixão?
É por isso que serão “bem-aventurados os pobres em espírito, pois
deles será o Reino dos céus”. Você vê quantas paixões o Senhor cortou com uma
só beatitude? Mas ele não cortou apenas estas paixões. Com efeito, dissemos que
o primeiro fruto do mau desejo era o amor pela matéria. Mas existe um segundo,
do qual devemos fugir ainda mais do que do primeiro, e um terceiro que não é
menos vicioso.
Então, qual é este segundo? É o amor à vanglória. Com efeito, quando
se avança em idade, é esta paixão que primeiro vem ao encontro do amor pela
carne naqueles que ainda são jovens, como um mau prelúdio a esta. Assim é que
eu digo que uma forma de amor da vanglória é a que vê os ornamentos do corpo e
a suntuosidade das vestes: é o que os Padres chamam de vanglória mundana. A
outra forma de vanglória ataca aqueles que se distinguem pela virtude: ela traz
consigo a presunção e a hipocrisia por meio das quais o inimigo se esforça por
pilhar e dispersar a riqueza espiritual. Todos esses defeitos podem ser
perfeitamente curados pela sensação do desejo da honra que vem do alto, desde
que a pessoa considere ser indigno dela. Também podem ser curados pela
consideração de que a glória de Deus é sempre preferível à nossa própria
glória, conforme o que foi dito: “Não a nós, Senhor, não a nós, mas a seu nome
seja dada toda a glória[83]”.
Mesmo sabendo que realizamos uma obra louvável, devemos imputar a Deus
a causa da ação correta. É a Deus que honramos, é a Deus que rendemos glória
com gratidão, e nunca a nós mesmos. Assim nos regozijamos, por termos recebido
a virtude como um dom. Mas não nos orgulharemos, por que nada temos feito por
nós mesmos. Assim viveremos na humildade, tendo diz e noite os olhos do
intelecto em Deus, como a serva de que fala o Salmo, que mantinha os olhos nas
mãos de sua patroa[84],
por receio de que ao nos separarmos do Deus único, que concede e mantém o bem,
não sejamos precipitados no abismo do mal: é o que irá sofrer aquele que se
sujeitou à presunção e à vanglória. A anacorese, a vida solitária, a
permanência na cela, ajudam especialmente na cura desses defeitos. O eremita
sente bem a própria fraqueza de sua vontade, e considera ser incapaz de se
misturar aos homens. Ora, o que é isto, senão a pobreza de espírito, que o
Senhor chama de bem-aventurada[85]?
Se alguém refletir sobre as infâmias da paixão que podem atacá-lo,
fugirá da vanglória da qual extrai seu poder. Pois, desejando a glória perante
os homens, pelas próprias obras que faz para adquiri-la, ele cai em desonra.
Preocupando-se com os tempos oportunos, cuidando escrupulosamente da glória de
seus ancestrais e do bom perfume de suas vestimentas, vangloriando-se de outras
coisas do mesmo gênero, ele mostra por si só ser presa de um pensamento
infantil. Pois tudo isto junto não passa de pó. E o que existe de mais vil do
que o pó? Quem não se veste apenas para se cobrir e se manter aquecido, mas se
apaixona pela delicadeza das roupas e pelo seu brilho, não apenas denuncia aos
que o observam a esterilidade de sua própria alma, mas ainda se inclina à
indecência das cortesãs. Que ele escute Aquele que disse: “Os que trazem vestes
delicadas moram nos palácios dos reis[86]”.
Mas “nossa cidade está nos céus[87]”,
diz o admirável Paulo. Por causa de nossas fraquezas pelas belas vestes, não
nos atiremos do céu às tendas do príncipe das trevas deste século[88].
É isto que sofrem aqueles que vão buscar a glória do lado dos homens.
Por que eles, que receberam sua parte em ter sua cidadania nos céus[89],
preferiram erguer suas tendas no pó, para sua própria glória, atraindo sobre si
a maldição de Davi Suas orações já não sobem aos céus e toda a sua aplicação
cai abaixo, por não estar cercada das asas do amor divino que eleva às alturas
aquilo que fazemos na terra. Assim, eles se esforçam, mas não recebem seus
salários. Eu disse que eles não recebem seus salários? Ora, eles dão frutos,
mas estes frutos são a confusão, a instabilidade dos pensamentos, o cativeiro e
a perturbação do intelecto. Foi dito: “O Senhor dispersou os ossos dos que
procuraram agradar aos homens. Eles foram confundidos, por que o Senhor os
reduziu a nada[90]”.
Esta paixão é a mais sutil de todas as paixões. É por isso que quem combate
deve não apenas controlar a chegada do mal e fugir do consentimento, mas
considerar a própria sugestão como um consentimento e dela se proteger, pois do
contrário lhe seria mais difícil ser mais rápido do que a derrota. Se o monge
sóbrio e vigilante age assim, a sugestão se torna uma fonte de compunção; do
contrário, se torna um ligar preparado para o orgulho. E quem é tocado pelo
orgulho terá dificuldade em recuperar a saúde, se é que conseguirá se curar,
pois a queda é diabólica.
Mas mesmo antes disto, a paixão por agradar aos homens espalha tal
dano naqueles que a adquirem que leva ao naufrágio[91]
a própria fé, segundo Aquele que disse: “Como podem vocês crer em mim, vocês
que recebem a glória dos homens e que não buscam a glória que vem de Deus?[92]”.
o que pode haver, ó homem, entre você e a glória dos homens – ou antes entre
você e o vão nome da glória – esta glória que não apenas é privação, mas que
priva da própria glória, e não apenas isto, mas ainda gera a inveja em relação
aos outros, esta inveja que é a morte em potência e que foi a fonte do primeiro
homicida e, mais tarde, do deicídio[93]?
Então, o que contribui para ajudar a natureza? O que a mantém, ou o
que a protege, ou a recebe de alguma forma em sua queda e que a cura? É
impossível dizê-lo com certeza. Eu penso que é a refutação da falsa razão dos
maus hábitos. Se examinarmos com rigor, veremos que a mesma natureza
simultaneamente provoca e refuta falsamente a maior parte das piores infâmias,
que ela retira a máscara impudentemente, às vezes mesmo aqui em baixo, e que
ela desonra os amantes, ainda que os mestres das doutrinas gregas pensem que
nenhuma ação direita na existência não se faz sem ela: quão grande erro, quando
eles dizem não se envergonhar! Mas nós não fomos ensinados assim, nós que
derivamos nosso nome, o nome que nos convém[94],
Daquele que, por si mesmo, em seu amor pelo homem, ungiu nossa natureza: e a
ele que temos para vigiar nossos atos. Os que o miram realizam nele e por ele
tudo o que existe de melhor. Eles fazem tudo pela glória de Deus[95]
e não procuram agradar aos homens de modo algum. Antes eles recusam agradar,
como Paulo, o eminente discípulo do nosso legislador, que nos deu a lei. Pois
“se eu ainda agradasse aos homens, disse ele, eu não seria servidor de Cristo[96]”.
Mas vejamos, com efeito, se a terceira filha do desejo doentio é
afastada por esta pobreza que é chamada de bem-aventurada. A terceira filha da
alma doente de desejo é a gula, que caminha ombro a ombro com todas as
impurezas da carne. Mas como podemos chamá-la de terceira e última, se desde a
origem ela seja inata em nós? Pois não é apenas ela, mas também todos os
movimentos naturais que visam à procriação, que marcam as crianças desde que
ainda mamam no seio materno. Como então podemos considerar como última a doença
do desejo da carne? Por que estas coisas estão ligadas a nós devido à nossa
própria natureza. Ora, as coisas da natureza não são condenáveis: elas foram
criadas pelo Deus bom, a fim de que por intermédio delas caminhemos por boas
obras. Assim, elas não são manifestações de uma alma enferma, mas o são quando
fazemos mau uso delas.
Por conseguinte, quando cuidamos da carne para satisfazer seus desejos[97],
neste momento a paixão é má e o amor aos prazeres se torna fonte das paixões da
alma e enfermidade da alma. Nestas coisas, a primeira coisa a ser atingida é o
intelecto. É por isso que, quando as más paixões se lançam primeiro sobre a
reflexão, o Senhor diz que os maus pensamentos saem do coração, e que são eles
que mancham o homem[98].
E a Lei anterior ao Evangelho diz: “Vigie a si mesmo para que uma palavra
oculta não se torne uma injustiça em seu coração[99]”.
Pois se o intelecto for o primeiro a ser levado ao mal, e, abaixo dele, por
meio dos sentidos, ele modelar a imaginação dos corpos sensíveis, será em
direção a eles que ele será levado, em especial pelos olhos, que podem em
primeiro lugar, mesmo de longe, atrair a sujeira, excitando-o e arrastando-o ao
mau uso. A prova evidente disto é Eva, nossa primeira mãe: pois ela primeiro
viu que o fruto da árvores proibida era bonito de ver e precioso para adquirir
a inteligência, e, quando seu coração consentiu, ela o tomou e provou dele[100].
Portanto, temos razão em dizer que a derrota diante da beleza dos corpos
precede as paixões infames e é como que o seu prelúdio.
É por isso que os Padres recomendam não considerar a beleza dos outros
corpos nem se comprazer com o próprio corpo. Entretanto, se, nas crianças,
antes do surgimento dos pensamentos passionais, observarmos estas paixões de
forma natura, elas não estarão levando ao pecado, mas contribuindo para a ordem
da natureza. É por isso que, neste momento, elas não são más. Mas a partir do
momento em que as paixões da carne extraem sua origem do intelecto passional, é
do intelecto que é preciso cuidar. Com efeito, num incêndio, quem combate o
fogo não obtém nenhum resultado se começar a extinguir as chamas pelo alto. Mas
se ele retirar a matéria que queima logo o incêndio se esgota. O mesmo acontece
com as paixões que nos prostituem. Se você não acessar dentro de você, por meio
da prece e da humildade, a fonte dos pensamentos, mas se armar contra eles
apenas com o jejum e a vida dura, seu esforço não lhe servirá de nada. Mas se
você santificar a raiz pela humildade e a prece, como dissemos, logo você
notará a santificação das coisas exteriores. É isto que, me parece, exprime a
palavra do Apóstolo que diz ter a verdade como cintura para os rins[101].
Da mesma forma, um dos Padres afirma que a contemplação oprime e reduz o desejo
das paixões dos rins e do ventre. Mas é preciso também dar ao corpo uma vida dura
e temperar comedidamente a comida, para que o desejo não se torne difícil de
dominar e não seja mais forte do que o pensamento. Assim todas as paixões da
carne só se curam por meio da vida dura do corpo e da oração que brota de um
coração humilhado: está aí a pobreza em espírito, a que o Senhor chamou de
bem-aventurada[102].
Se alguém deseja obter a riqueza da santificação sem a qual ninguém
verá o Senhor[103],
que permaneça em sua própria cela, levando uma vida dura e orando com
humildade. Pois a cela de quem vive na solidão como se deve é um porto de
castidade. Todas as coisas exteriores, em particular as assembleias em praça
pública e as feiras, estão cheias da desordem da prostituição que excita tudo o
que ouvimos e tudo o que vemos em desregramento, submergindo a pobre alma do
monge que se expôs a tudo isto.
Podemos dizer também que o mundo da malícia é um fogo que queima: ele
transforma em lenha os que o frequentam e reduz a cinzas todas as formas da sua
virtude. Mas o fogo que não consome se acha no deserto[104].
Quanto a você, em lugar do deserto, permaneça na sua cela e esconda-se por
algum tempo até que de você se afaste a tempestade do estado passional[105].
Pois, passada a tempestade, a vida que você leva ao ar livre não terá sido
devastada. Então você se tornará uma monja verdadeiramente pobre em espírito,
possuirá o Reino oposto às paixões e ouvirá chamá-la com clareza e alegria
Aquele que disse: “Bem-aventurados os pobres em espírito, por que deles será o
Reino dos céus[106]”.
Como não serão chamados de felizes aqueles que não confiam no
dinheiro, mas em Deus? Os que não procuram agradar a ninguém senão a ele? Os
que, com toda humildade, vivem com tais homens diante de si? Sejamos, portanto,
pobres, nós também, humilhando o espírito, levando a vida dura na carne e nos
proibindo possuir seja o que for nesta vida, a fim de que venha a nós o Reino
de Deus e que possamos ver atendidas as bem-aventuradas esperanças quando
herdarmos o Reino dos céus. Ao expor certas palavras englobantes e capitais do
Evangelho de nossa salvação, não apenas reuniu inúmeras virtudes numa única
palavra, não apenas afastou de sua beatitude inúmeros males e abençoou, pelo
arrependimento, os que afastam o estado passional de suas almas, como ainda
afastou muitos outros males que não correspondem à circuncisão, mas ao frio, ao
gelo, à neve, à geada e à violência dos ventos, numa palavra, que correspondem
às vicissitudes que as plantas sofrem por causa dos invernos e verões, quando
são expostas ao fio e ao calor sem os quais nada do que cresce sobre a terra
pode chegar à maturidade.
E quais são estes males? Os diversos ataques das tentações, que
devemos suportar com gratidão para que possamos dar o fruto futuro Àquele que
cultiva os espíritos. Com efeito, se alguém, por piedade das plantas que nascem
da terra e têm dificuldade em crescer, as cerca com um muro, as cobre com um
teto e não deixa as ervas daninhas crescerem por perto, ele não colherá nenhum
fruto destas plantas, ainda que as regue e cuide delas com grande zelo. Ao
contrário, ele deve deixar crescer. Assim, depois das dificuldades do inverno,
a estação da primavera as fará crescer e florir, cobrir-se de folhas e estas
bels plantas darão cachos verdes. Aquelas que amadurecerem após uma breve
exposição ao sol, chegarão à maturidade e se tornarão boas para comer e para
fazer vinho. Do mesmo modo, quem não aguenta a carga das tentações, difícil de
suportar, mesmo que não lhe falte nenhuma das demais virtudes, jamais dará
frutos dignos do divino lagar e da adega eterna. É, com efeito, por meio da
paciência nas penas voluntárias e involuntárias – as que afligem o exterior e
as que se suporta no interior – que todo monge fervoroso atinge a perfeição.
Pois os frutos que a natureza oferece pelas plantas da terra, graças aos
cuidados dos que as cultivam e à alternância das estações, são semelhantes a
nós, que somos os ramos espirituais[107]
de Cristo e nos confiamos a ele para que cultive nossas almas: eles se ligam
sozinhos aos que vivem em plena liberdade. Sem a paciência naquilo que acontece
independentemente de nossa vontade, mesmo aquilo que fazemos voluntariamente
não obterá a bênção divina.
Pois é o amor que dedicamos a
Deus em meio ao sofrimento das tentações que é o melhor meio de superar as
provas. É preciso assim, antes de tudo, conduzir com sucesso a ascese
voluntária e, por meio dela, habituando-nos a desdenhar o prazer e a glória,
não teremos dificuldade em suportar também os ataques involuntários. Aquele
que, graças à pobreza em espírito, despreza estes ataques e considera a si
próprio como tributário dos remédios mais ativos do arrependimento, está
continuamente preparado para toda aflição. Ele aceita todas as provas como
aquilo que mais lhe convém e se regozija em ir ao seu encontro, por que delas
obtém a purificação da alma. Ele faz delas a matéria de sua prece a Deus, por
meio da qual ele se esforça e que o leva diretamente ao seu objetivo. Ele
considera que isto ao mesmo tempo abraça e protege o bom estado da alma, e não
apenas ele não deixa espaço para nenhum ressentimento, como pede a graça sobre
aqueles que o afligem e ora por eles como se fossem seus benfeitores. É por
isso que ele próprio não somente recebe o perdão concedido aos que pecaram e a
promessa que lhes foi feita, mas ainda obtém o Reino dos céus e a bênção
divina. Ele é chamado de bem-aventurado pelo Senhor por ter mantido a paciência
até o fim com a humildade em espírito.
Quanto a nós, depois de havermos demonstrado brevemente um pouco do
que é a circuncisão espiritual, acrescentemos agora algumas palavras a respeito
da fecundidade da qual ela é a fonte. Por que a seguir, para os que possuem a
riqueza inalienável concedida pela pobreza em espírito[108],
o único bem-aventurado comunica aos aflitos sua própria beatitude, quando diz:
“Bem-aventurados os aflitos, por que serão consolados[109]”.
Porque Cristo acrescentou esta tristeza, esta angústia, esta aflição, à
pobreza? Por que uma vai sempre de par com a outra. Mas a tristeza ligada à
pobreza no mundo suscita a morte da alma, diz o Apóstolo, e a tristeza ligada à
pobreza em Deus suscita um arrependimento para a salvação da alma, que não se
pode lamentar[110].
Uma, que é involuntária, suscita uma tristeza involuntária; a outra, que é
voluntária, é seguida necessariamente por uma tristeza voluntária. Pois a
tristeza que é chamada de feliz se une aqui à pobreza em Deus, e
necessariamente nos vem por causa dela; e é a partir daquela que esta pode ser
entendida ao mesmo tempo como tristeza espiritual e voluntária.
Mas vejamos, com efeito, de que modo a pobreza bem-aventurada engendra
a tristeza bem-aventurada. O que dissemos um pouco acima revelou quatro formas
de pobreza espiritual: a pobreza no pensamento, a pobreza no corpo, a pobreza
nas posses desta vida e a pobreza nas tentações que vêm do exterior. Que
ninguém, ao ouvir falar de formas de pobreza que se acrescentam a estas ao
mesmo tempo em que permanecem separadas, coloque de parte a ação que estas
formas implicam. Pois estas se realizam naturalmente junto com as outras. É por
isso que elas foram incluídas todas numa única beatitude, que mostra ao mesmo
tempo de modo admirável qual é por assim dizer a raiz e a causa das outras, a
saber, nosso espírito. Este, que traz em seu seio, como dissemos, a graça da
predicação evangélica, faz jorrar de si mesmo uma fonte de pobreza que irriga
toda a face de nossa terra[111],
ou seja, o homem exterior, e o transforma em paraíso de virtudes.
Uma vez que existem quatro formas de pobreza espiritual, de cada uma
delas nasce a tristeza que lhe corresponde, assim como a consolação que lhe
corresponde, por meio da pobreza e da humildade voluntárias do corpo, que são a
fome, a sede e as vigílias, numa palavra, a vida dura e as penas corporais e,
além destes esforços, a contração dos sentidos por meio da razão. É, portanto,
destas penas que nascem não apenas a tristeza, como também as lágrimas. Pois
assim como a insensibilidade, a dureza e a crueza do coração nascem
naturalmente da negligência, do desfrute e do prazer, também a contrição do
coração e a compunção, que afastam toda amargura e criam uma doce alegria,
nascem de uma vida levada na temperança e na renúncia.
Com efeito, foi dito que, sem a contrição do coração, é impossível se
separar do mal. Ora, o que quebranta o coração é a tripla temperança no sono,
na alimentação e no descanso do corpo. Mas a alma que esta contrição afastou da
malícia e da amargura assume de imediato a alegria espiritual. E esta é o
consolo por cuja razão o Senhor chama de bem-aventurados aos aflitos[112].
João Clímaco, que nos mostrou a escada espiritual em suas palavras, o confirma:
“A sede e as vigílias afligem o coração e, quando o coração fica aflito, ele
derrama lágrimas. Mas nestas lágrimas rirá aquele assim que é testado[113]”:
vale dizer, este terá sido consolado pelo riso bem-aventurado, como prometeu o
Senhor.
A tristeza que, por meio da beatitude, consola os que possuem a
pobreza do corpo, extrai assim sua origem desta outra pobreza amada por Deus.
Mas de que modo extrai ela sua origem do sentimento de temor e da divina
humildade da alma? A condenação de si próprio anda sempre de par com esta
humildade. Ora, esta tende com toda sua força para o começo, que é o temor do
castigo, colocando diante dos olhos a reunião terrível dos adversários no lugar
único da danação, e, dando-se conta de que esta reunião é indizivelmente mais nefasta
do que tudo, acrescentando a esta o temor. Esta reunião jamais chega ao fim,
por que males se acrescentam a males. O calor ardente, o frio, as trevas, o
fogo, o movimento e a imobilidade, os laços, os terrores, as mordidas das feras
sempre vivas se concentram neste lugar único que conduz à danação. Mas esta
infelicidade não é aquela que jamais subiu ao coração do homem, como foi dito[114].
Então, o que é esta tristeza vã, inconsolável e sem fim? É a tristeza
que toma aqueles que pecaram contra Deus, ao reconhecerem suas faltas. Lá em
baixo, com efeito, para aqueles que se convenceram do erro, que perderam a
esperança bem-aventurada e renunciaram à salvação, o involuntário exame de
consciência que então acontecerá multiplicará em cada um, por meio desta tristeza,
o sofrimento imposto. E esta tristeza perpétua, na medida em que não mais
cessará, se torna a causa de outra tristeza: trevas ainda mais terríveis, um
calor ardente que pesa no coração e o abismo insondável do desespero. Mas aqui
em baixo esta tristeza é muito útil. Pois, em sua benevolência, Deus está nos
escutando. Assim como ele desceu até nós, ele prometeu que, visitando-os, ele
levará aos que estão aflitos a consolação que consiste nele próprio, pois ele é
chamado de Consolador[115].
Você está vendo a tristeza da alma humilhada e a consolação que lhe é
dada? Mas, com efeito, somente a condenação de si próprio, por longo tempo
colocada como um peso espiritual sobre a razão que há na alma esmaga, pressiona
e espreme o vinho da salvação que alegra o coração do homem[116],
ou seja, de nosso homem interior. Este vinho é a compunção. Pois, por
intermédio da tristeza, a compaixão pressiona também as paixões e enche a alma
de uma alegria que é dita bem-aventurada, separando-a do peso terrível que as
paixões exercem sobre ela. É por isso que os aflitos são bem-aventurados, por
que eles serão consolados[117].
Quanto à despossessão, ela consiste na pobreza em relação aos bens e à
pobreza naquilo que nos pertence; entretanto, ela está ligada à pobreza em
espírito, da qual falamos acima. Pois todas essas virtudes, que se realizam
umas com as outras, são perfeitas e agradam a Deus. É por meio desta pobreza,
capaz de nos trazer a um tempo a tristeza e a consolação, que entra aquele que
escuta com inteligência. Com efeito, depois de renunciar ao dinheiro e às
posses, rejeitando-os ou dispersando-os conforme o mandamento[118],
e após afastar a alma do cuidado para com as coisas, o homem que agora pode
afirmar estar satisfeito com o que tem deseja se voltar para a busca desta alma
desligada de tudo o que a mantinha fora de si. Quando o intelecto se afasta de
todo objeto sensível emergindo do dilúvio da confusão dos bens deste mundo e
considerando apenas o homem interior, então, vendo a máscara odiosa da errância
do mundo de baixo, ele se apressa em se lavar com as lágrimas da tristeza.
Depois de levantado este véu disforme, a alma, deixando de ser preguiçosamente
dispersa nas relações de toda espécie, penetra sem distrações no interior dos
verdadeiros tesouros e ora ao Pai que está no secreto[119].
É o Pai quem primeiro lhe dispensa o dom que contém os carismas, a paz nos
pensamentos[120],
com a qual ele realiza a humildade que engendra e abraça toda virtude. Esta
humildade não é suscitada em quem a quer, por meio de palavras e formas definidas,
mas é atestada pelo Espírito bom e divino, e o próprio Espírito a constrói
quando é restaurado nos corações[121].
É aí, no paraíso do intelecto, como em um recinto seguro, que estão plantadas
todas as espécies de árvores da verdadeira virtude. No centro se erguem os
reinos sagrados do amor. E diante dos seus umbrais florescem as primícias do
século futuro: a alegria inexprimível e indefectível.
Pois a despossessão é a mãe da despreocupação, e a despreocupação é a
mãe da atenção e da prece. Estas, por sua vez, são mães da tristeza e das
lágrimas. E as lágrimas apagam a presunção. E quando são rejeitados de os
vícios de nos oprimem, o caminho da virtude se torna mais fácil e a consciência
deixa de se condenar. É isto que faz brotar a alegria e o riso bem-aventurado
da alma. Então, mesmo as lágrimas dolorosas se transformam em delícias, as
palavras de Deus se tornam doces da garganta e melhores do que o mel na boca[122],
a súplica orante se transforma em ação de graças e o estudo dos testemunhos
divinos se torna um regozijo do coração mesclado a uma esperança que nada pode
confundir. Esta esperança está como que enraizada naquilo que recebemos desde
já, está ligada ao testemunho contido na experiência que provamos, e ensina em
parte a riqueza transbordante da bondade[123],
conforme foi dito: “Provai e vede que o Senhor é bom[124]”.
É a exultação dos justos, a alegria dos corações direitos, o regozijo dos humilhados,
o consolo dos que foram afligidos por causa do Senhor.
Como assim, as graças da consolação conduzem até ele? Somente estas
graças constituem os presentes das novas sagradas? O esposo destas almas não
manifesta a si próprio, mais puro do que estes presentes, aos que atingem a
tristeza bem-aventurada, que se purificaram, e que, por meio das virtudes,
estão vestidos para as bodas? Certamente não. Nós mesmos estamos agora
submetidos às imprecações daqueles que estão prontos a nos condenar. É como se
eles dissessem: “Não fale no nome do Senhor[125],
senão apagaremos seu nome, por que você é mau[126],
e tramaremos e divulgaremos contra você calúnias e mentiras”.
Mas nós, sem levar em conta o que eles dizem, levemos mais adiante
nosso discurso, confiando-nos às palavras de nossos santos Padres,
relembrando-as, mirando-nos nelas e por meio delas persuadindo os demais. Pois
foi dito: “Eu acreditei, e por isso falei[127]”,
e: “Nós cremos, e por isso falamos[128]”.
Com efeito, depois de se desembaraçar de todas as paixões infames que nele
residiam, o intelecto se volta inteiramente para si próprio e para as demais
potências da alma, avançando na direção do que é mais que perfeito e, balizando
sua marcha ascendente nos degraus da ação e cultivando a virtude, ama a beleza
que se encontra na alma. Daí por diante, com a ajuda de Deus, ele se limpa e se
lava, e não apenas enxuga tudo o que antes possuía a marca do mal, como ainda
retira de si tudo o que lhe é estranho, mesmo que nestas coisas exista ainda
uma parte ou um pensamento melhorzinho. Depois de ter ultrapassado os
inteligíveis e os pensamentos dos inteligíveis, que necessitam da imaginação, e
a tudo ter deixado para trás, a um tempo amado por Deus e amante de Deus, surdo
e mudo, como está escrito, ele se apresenta diante de Deus.
Neste momento ele domina a razão da matéria e modela a criação mais
além de toda liberdade: pois nada do que está fora bate à porta, a graça do coração
traz o melhor e, o que é o mais paradoxal, ela ilumina com uma luz misteriosa o
interior e conduz à perfeição o homem interior. Quando o dia começa a amanhecer
e a luz da manhã se levanta em nossos corações[129],
como diz o primeiro dos apóstolos, o homem verdadeiro sai para seu verdadeiro
trabalho[130],
conforme a palavra profética e, com o auxílio da luz, sobe o caminho onde se
elevam as montanhas eternas[131].
Ó milagre, ele se torna o contemplador das coisas que, nesta luz, estão acima
do mundo, quer não esteja ele separado, ou que esteja separado da matéria
suscitada no princípio, como ensina o caminho. Pois ele não se eleva sobre as
asas imaginárias do pensamento, nem percorre tudo como um cego: ele não se liga
à compreensão precisa e indubitável nem do sensível ausente, nem do inteligível
transcendente. Ele se eleva em direção à verdade pelo poder inefável do
Espírito e, por meio desta concepção espiritual indizível, escuta as palavras inefáveis
e vê o invisível. E, milagre, ele é e se torna inteiramente aqui em baixo,
embora tenha partido para além e rivalize com os cantores infatigáveis: ele se
tornou verdadeiramente como um novo anjo de Deus sobre a terra e, através dele,
todas as formas da criação são levadas ao Senhor. Pois ele próprio,
participando de tudo, participa também daquilo que está acima de tudo, a fim de
se tornar o cumprimento da imagem.
É por isso que o divino Nilo disse: “Em sua natureza o intelecto é uma
altura inteligível semelhante a uma cor celeste por meio da qual o mistério da
Santa Trindade, no momento da prece, se torna luz”. E também: “Se alguém quiser
ver a natureza do intelecto, que se prive de todo e qualquer pensamento; então
a verá, semelhante a uma safira ou a uma cor celeste. Mas isto não será
possível sem a impassibilidade. Pois será preciso que Deus o ajude e exale nele
a luz incriada[132]”.
São Diádoco diz igualmente: “Por intermédio do batismo, a santa graça nos
transmite duas coisas, das quais uma ultrapassa infinitamente a outra. Pois a
primeira graça renova pela água e faz brilhar nosso ser à imagem de Deus,
apagando todas as rugas do nosso pecado. Depois esta graça recebe a segunda, a
fim de que esta trabalhe conosco. Então, quando o intelecto começa a provar,
sentindo plenamente a doçura do Espírito Santo, devemos saber que a graça
começa por assim dizer a inclinar nosso ser para a semelhança, acima de nosso
ser à imagem, de sorte que nossos próprios sentidos nos indicam que nosso ser à
semelhança começa a tomar forma. Será então pela iluminação que saberemos ter
atingido a perfeição da semelhança[133]”.
E mais: “Ninguém pode alcançar o amor espiritual se não for iluminado em toda
plenitude pelo Espírito Santo. Com efeito, se o intelecto, por meio da luz
divina, não receber à perfeição o ser à semelhança, ele não poderá conter em si
todas as demais virtudes, e não terá ainda sua parte no amor perfeito[134]”.
Da mesma forma ouvimos santo Isaac nos dizer: “No momento da prece, o
intelecto que recebeu a graça vê sua própria pureza semelhante à cor celeste
que foi chamada pela assembleia de Israel de “lugar de Deus” quando ela
apareceu aos hebreus sobre a montanha[135]”.
E também: “A pureza do intelecto é esta pureza sobre a qual, no momento da
prece, brilha a luz da Santa Trindade[136]”.
Mas o intelecto que foi tornado digno de tal luz transmite ao corpo que está
ligado a ele as marcas da beleza divina: é uma mediação entre a graça divina e
o peso da carne, que a ela leva a força dos fracos. Nisto reside o estado de
virtude semelhante a Deus e que nada é capaz de combater, aquilo que é
impossível ou dificílimo conduzir ao mal. Aí reside o Verbo que ilumina as
razões dos seres e que revela por si mesmo, em sua pureza, os mistérios da
natureza por meio dos quais, conforme as razões da analogia, o pensamento dos
que escutam com fé é conduzido à compreensão daquilo que está acima da
natureza, esta compreensão que o próprio Pai do Verbo concebeu inteiramente em
símbolos imateriais. Aí residem os outros muitos milagres: o discernimento e a
visão profética, mesmo de coisas distantes, como se os olhos as distinguissem
e, o que é ainda maior, como se não fosse este o objetivo para o qual se voltam
estes homens bem-aventurados. Mas, da mesma forma pela qual alguém olha um raio
de sol e vê os corpúsculos que flutuam no ar, ainda que não seja este seu
objetivo, também estes homens se oferecem com toda pureza aos raios divinos,
aos quais está ligada por natureza a revelação de tudo, não apenas do que é ou
do que foi, mas também do que será, ao longo do caminho, na medida em que
chegar verdadeiramente o conhecimento de tais coisas, proporcionalmente à
pureza. Eles conhecem assim para seu bem o retorno do intelecto sobre si mesmo
e sua união com Deus, ou antes, mesmo se isto parecer espantoso, o retorno de
todas as potências da alma para o intelecto, e a energia que é ao mesmo tempo a
sua própria energia e a energia de Deus, por meio da qual aqueles que se
recriam à imagem do modelo estão no bom caminho, quando a graça restaura a
beleza maravilhosa e original.
É a estas alturas que a tristeza bem-aventurada eleva os humildes de
coração e os pobres em espírito. Por causa da negligência que está em nós e que
é mais forte do que nós voltemos ao fundamento de tudo isto e falemos ainda um
pouco mais da tristeza. Ela se liga certamente a todos os que conhecem a
pobreza involuntária: a pobreza no mundo. De fato, como não estariam aflitos
aqueles a quem falta o dinheiro, aquele que tem fome por nada possuir, aquele
que é oprimido e desonrado? Esta tristeza é inconsolável, e tanto mais na
medida em que se estendem as consequências da pobreza, ou melhor, ela é tanto
maior quanto mais aquele que sofre está afastado do verdadeiro conhecimento.
Pois tal homem não submete à razão os prazeres e as dores que lhe chegam pelos
sentidos. Ao contrário, fazendo mau uso do rigor da razão nestes prazeres e nestas
dores, ele os faz crescer indevidamente, sem extrair deles o menor benefício,
experimentando sempre um grande prejuízo próprio. Ele deixa evidente o sinal e
a prova clara de que não recebeu com certeza a boa nova do Evangelho de Deus e
dos profetas que viveram antes de Cristo, nem daqueles que, com ele e por ele,
obtiveram e repartiram por meio da pobreza a riqueza inesgotável; por meio da
simplicidade, a glória indizível; por meio da temperança, as delícias libertas
da dor; por meio da paciência nas provações, a libertação da angústia e da
aflição eternas longe de Deus, esta angústia e esta aflição que acometem aqui
em baixo aos que buscaram a existência fácil e que não escolheram avançar na
vida pela porta estreita e pelo caminho apertado[137].
Assim é que o apóstolo Paulo teve razão ao dizer que a tristeza
segundo o mundo suscita a morte[138].
Pois mesmo através da razão o pecado penetra para conduzir à morte. Se a
verdadeira vida é a luz divina da alma, nascida da tristeza conforme a Deus,
como disseram acima os Padres, a morte da alma são as trevas suscitadas nela
pela tristeza do mundo. É destas trevas que fala o grande Basílio, ao dizer: “O
pecado, que extrai sua existência do abandono do bem, tem como símbolo das trevas
espirituais suscitadas pelas injustiças”. E o divino Marcos disse também: “Como
poderá aquele que está cercado por pensamentos do mal ver o pecado rela que eles
encobrem, este pecado que é feito de trevas e enevoa a alma, derramando sobre
ela, depois das reflexões, más palavras e más ações? Ora, quem nunca viu este
pecado que abarca tudo, como poderá ser purificado no momento da prece? Sem ser
purificado, como poderá encontrar o lugar da natureza pura? Se não encontrar
este lugar, como poderá enxergar o interior da morada de Cristo? Assim, é
necessário, por meio da oração, bater à porta com perseverança e pedir não
apenas para possuir esta morada, como também para guarda-la. Pois muitos foram
os que a perderam depois de tê-la obtido. Os que aprendem na velhice e os
jovens podem ter desta natureza pura um conhecimento simples ou uma experiência
aproximada. Mas o trabalho constante e paciente sé é exercido, e não sem
esforço, pelos anciãos mais experimentados, que se votaram à piedade[139]”.
Dentre estes anciãos está Macário, celeste por seu conhecimento, e também todo
o coro dos santos.
Mas, assim como as trevas recebem sua existência das nossas faltas, se
você examinar a tristeza do mundo verá que ela vem da soma de todas as paixões
e que delas ela extrai sua existência. Ela, assim, traz em si a imagem e é como
que as primícias, o prelúdio e a garantia da tristeza sem fim que virá sobre
aqueles que não escolheram a tristeza que o Senhor chamou de bem-aventurada[140],
esta tristeza que não apenas traz a consolação trazendo como fruto a garantia
da alegria eterna, mas ainda conforta a alma tornando a alma inexpugnável para
o pior. Pois se alguém, tendo se tornado pobre e humilde esforçando-se para
desenvolver em si a simplicidade conforme a Deus, não adquirir ademais a
tristeza ao progredir em direção ao melhor, será facilmente levado pela
versatilidade e pela negligência a voltar em pensamento ao que havia
abandonado, desejando novamente o que havia deixado no começo e se tornando
outra vez transgressor. Mas se, perseverando e permanecendo atento a tudo o que
o conduz á bem-aventurada pobreza, ele introjetar a tristeza, já não tornará
atrás: ele não retornará no sentido do mal, para aquilo que foi um dia, mas
agirá sempre no sentido do bem. Pois a tristeza segundo Deus, como disse o
Apóstolo, suscita um arrependimento pela salvação da alma que não se pode
lamentar[141].
É por isso que um dos Padres dizia que ele provocava e guardava a tristeza.
Não apenas – e este é o benefício da tristeza – o homem agora quase
imóvel já não pode se voltar para o mal e as faltas que um dia cometeu, mas ele
ainda considera que estas coisas já não existem. Com efeito, a partir do
momento em que o homem lamenta o começo, Deus considera que ele cometeu aquelas
faltas sem querer. E o homem não é responsável por suas faltas involuntárias.
Com efeito, se alguém afligido pela indigência, confirma por seu testemunho que
esta não é voluntária (tendo caído nas armadilhas do diabo junto com os que desejam
enriquecer ou que já são ricos[142],
mesmo que se esforce em se desviar das armadilhas), ele será enviado junto com
os ricos ao castigo eterno. Da mesma forma, aquele que pecou contra Deus, se se
entristecer por seus pecados, verá que estes serão considerados por Deus como
involuntários e, sem encontrar obstáculos, caminhará junto com os que não
pecaram sobre o caminho que conduz à vida eterna. Este é o benefício do começo
da tristeza, que é um começo doloroso por que traz consigo o temor a Deus.
Porém, mais adiante, a tristeza se une maravilhosamente ao amor de Deus e traz
o fruto da doce e santa consolação da bondade do Consolador, quando dele prova
aquele que se aflige, esta consolação que não podem compreender aqueles que não
a experimentaram, pois é impossível ser descrita. De fato, se não é possível
descrever a doçura do mel a quem nunca dele provou, como será possível
descrever a quem não experimentou o prazer da alegria e da graça sagradas que
provêm de Deus? Certamente, é impossível. O começo da tristeza parece um pedido
de casamento feito a Deus, que parece quase impossível de ser cumprido: é por
isso que alguns alegram com suas promessas de casamento aos que adotam a
tristeza por causa do desejo pelo esposo ao qual não podem se unir. Eles se
batem e o chamam com gritos de dor, como se ele não estivesse aqui ou não
devesse jamais estar aqui.
O fim da tristeza é a união perfeita na pureza nupcial. É por isso que
Paulo chamou de grande mistério a reunião do casal numa só carne, e afirmou: “Digo
isto em relação a Cristo e a Igreja[143]”.
Com efeito, assim como os esposos se tornam uma só carne, também aqueles que
são de Deus se tornam um só Espírito com Deus, como o mesmo Paulo disse com
sabedoria em outra passagem: “Aquele que se liga ao Senhor se torna com ele um
só Espírito[144]”.
Onde estão os que chamaram de criada a graça que habita nos santos de Deus?
Saibam estes que blasfemam contra o próprio Espírito, que ela está com os
santos na transmissão.
Mas tomemos um outro exemplo em relação ao que dissemos, ainda mais
significativo: pois o começo da tristeza é semelhante ao retorno do filho
pródigo. É por isso que se enche de tristeza aquele que faz este retorno e o
leva a dizer estas palavras: “Pai, eu pequei contra o céu e contra você, e não
sou digno de ser chamado seu filho[145]”.
Depois o fim da tristeza é semelhante ao reencontro com o Pai e com o abraço
deste. Ao descobrir neste abraço a riqueza da incomparável misericórdia,
chegando por meio dele a uma enorme alegria e liberdade, o filho foi amado e
amou em troca. Depois de entrar com o Pai, participou de seu festim e desfrutou
com ele de uma felicidade celeste.
Mas venham, caiamos nós também na pobreza chamada de bem-aventurada e
peçamos ao Senhor nosso Deus[146]
que apague os pecados que cometemos, para que não mais façamos nenhum movimento
para o mal e para que recebamos o Consolador, para que nele sejamos consolados
e lhe rendamos glória, assim como ao Pai que não tem começo e ao Filho único,
agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém,
[1] Sentenças dos Padres do Deserto, Arsênio
13.
[2] Salmo 40 (41): 5.
[3] Nomes Divinos VI, 11.
[4] II
Samuel 6: 6-7.
[5]
Cf. Hebreus 12: 23.
[6]
Cf. II Pedro 3: 16.
[7] Sabedoria 24: 21.
[8]
Cf. Lucas 10: 42.
[9]
Cf. Mateus 5: 42.
[10] I
João 5: 16-17.
[11]
II Coríntios 7: 10.
[12] Efésios 5: 14.
[13]
Cf. I Pedro 2: 11.
[14]
Cf. Mateus 8: 22.
[15] Gênesis 2: 17.
[16]
Cf. Gênesis 5: 5.
[17] Gênesis 3: 17-19.
[18]
Cf. Apocalipse 20: 14.
[19]
Cf. Marcos 9: 44.
[20]
Cf. Mateus 8: 12.
[21]
Cf. Mateus 8: 12.
[22]
Cf. Mateus 5: 22.
[23] Jeremias 4: 4.
[24] Romanos 8: 13.
[25] João 6: 63.
[26] João 6: 68.
[27]
Cf. Romanos 7: 10.
[28]
Cf. II Coríntios 2: 16.
[29]
Cf. I Tessalonicenses 4: 17.
[30]
Cf. Hebreus 6: 20.
[31]
Cf. I Pedro 5: 1.
[32]
Cf. I Coríntios 15: 23.
[33]
Cf. Apocalipse 20: 14.
[34]
Cf. Efésios 5: 6.
[35]
Cf. Isaías 63: 4; Jeremias 28: 6.
[36]
Cf. Isaías 5: 25.
[37]
Cf. Hebreus 10: 31.
[38]
Cf. I Coríntios 6: 17.
[39]
Cf. Mateus 20: 1-16.
[40]
Cf. II Coríntios 1: 3.
[41]
Cf. João 15: 1.
[42]
Cf. João 6: 44.
[43]
Cf. João 15: 1-5.
[44]
Cf. II Coríntios 5: 19.
[45]
Cf. Mateus 12: 36.
[46] João 10: 10.
[47]
Cf. João 4: 36.
[48]
Cf. Mateus 22: 30.
[49]
Cf. Lucas 20: 36.
[50]
Cf. Gênesis 3: 1-6.
[51]
Cf. I Timóteo 5: 14.
[52] Lucas 18: 28.
[53]
Cf. Gênesis 2: 24.
[54]
Cf. Filipenses 3: 20.
[55]
Cf. Romanos 8: 6; Tiago 4: 4.
[56]
Cf. I Coríntios 7: 34.
[57] I
Coríntios 7: 31.
[58] João 15: 1-2.
[59]
Cf. Lucas 6: 24-26.
[60]
Cf. Mateus 7: 13.
[61]
Cf. Mateus 7: 14.
[62]
Cf. Mateus 7: 13.
[63]
Cf. I Timóteo 5: 3.
[64]
Cf. II Coríntios 7: 10
[65] Mateus 5: 3.
[66]
Cf. Gênesis 2: 6.
[67]
Cf. Lucas 6: 20.
[68]
Cf. Isaías 10: 23 LXX.
[69] Lucas 6: 20.
[70] Mateus 11: 29.
[71]
Cf. I Timóteo 6: 10.
[72]
Cf. Colossenses 3: 5.
[73]
Cf. Mateus 19: 24.
[74]
Cf. I Timóteo 6: 9.
[75]
Cf. Lucas 12: 18.
[76] Lucas 12: 15.
[77]
Cf. Mateus 6: 33.
[78]
Cf. Salmo 37 (38): 6.
[79]
Cf. II Reis 5: 27.
[80]
Cf. Atos 1: 18.
[81] Mateus 6: 21.
[82]
Cf. Hebreus 1: 3.
[83] Salmo 113 (114): 9.
[84]
Cf. Salmo 122 (123): 2.
[85]
Cf. Mateus 5: 3.
[86] Mateus 11: 8.
[87] Filipenses 3: 20.
[88]
Cf. Efésios 6: 12.
[89]
Cf. Filipenses 3: 20.
[90] Salmo 52 (53): 6.
[91]
Cf. I Timóteo 1: 19.
[92] João 5: 44.
[93]
Cf. Gênesis 4: 3s; Mateus 27: 18.
[94] O
nome de “cristãos”, que deriva de Cristo, o “Ungido” (cf. Atos 11: 26)
[95]
Cf. I Coríntios 10: 31.
[96] Gálatas 1: 10.
[97]
Cf. Romanos 13: 14.
[98]
Cf. Mateus 15: 19.
[99] Deuteronômio 15: 19.
[100]
Cf. Gênesis 3: 6.
[101]
Cf. Efésios 6: 14.
[102]
Cf. Mateus 5: 3.
[103]
Cf. Hebreus 12: 14.
[104]
Êxodo 3: 2-3.
[105]
Cf. Isaías 26: 20.
[106]
Mateus 5: 3.
[107]
Cf. João 15: 5.
[108]
Cf. Mateus 5: 3.
[109]
Mateus 5: 4.
[110]
Cf. II Coríntios 7: 10.
[111]
Cf. Gênesis 2: 6.
[112]
Cf. Mateus 5: 4.
[113]
A escada santa VI, 15.
[114]
Cf. I Coríntios 2: 9.
[115]
Cf. João 14: 7-16.
[116]
Cf. Salmo 103 (104): 15
[117]
Cf. Mateus 5: 4.
[118]
Cf. Lucas 14: 33.
[119]
Cf. Mateus 6: 6.
[120]
Cf. Jeremias 36: 11.
[121]
Cf. Salmo 50 (51): 11.
[122]
Cf. Salmo 118 (119): 103.
[123]
Cf. Efésios 2: 7.
[124]
Salmo 33 (34): 9.
[125]
Jeremias 11: 21.
[126]
Cf. Lucas 6: 22.
[127]
Salmo 115 (116): 1.
[128]
II Coríntios 4: 13.
[129]
II Pedro 1: 19.
[130]
Cf. Salmo 103 (104): 23.
[131]
Cf. Salmo 75 (76): 5.
[132]
Evagro o Pôntico, Capita practica as
Anatolium, PG 40, 1244 AB.
[133]
Diádoco de Foticéia, Cem Capítulos
89.
[134]
Ibid.
[135]
Isaac o Sírio, Obras Espirituais, pg.
203.
[136]
Ibid.
[137]
Cf. Mateus 7: 14.
[138]
Cf. II Coríntios 7: 10.
[139]
Marcos o Asceta, Dos que pensam ser justificados
224-225.
[140]
Cf. Mateus 5: 4.
[141]
Cf. II Coríntios 7: 10.
[142]
Cf. Gênesis 2: 15.
[143]
Efésios 5: 32.
[144]
I Coríntios 6: 17.
[145]
Lucas 15: 21.
[146]
Cf. Salmo 94 (95): 6.
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