terça-feira, 29 de abril de 2014

Filocalia - Tomo II Volume 2 - Teolepto de Filadélfia: Da profissão monástica




TEOLEPTO DE FILADÉLFIA



SOBRE E PROFISSÃO MONÁSTICA
E OUTROS CAPÍTULOS


Teolepto de Filadélfia

Teolepto, que foi bispo de Filadélfia, viveu no reinado de Andronico II Paleólogo, por volta de 1325. De início ele levou uma vida ascética e anacorética sobre a santa Montanha de Athos. Depois, tendo recebido como encargo a Sé de Filadélfia, ele iniciou na grande beleza de seus ensinamentos a Gregório de Tessalônica. Ele lhe ensinou a santa nepsis bem como a noera proseuké – a prece intelectual – enquanto este ainda era leigo, conforme relatado nos escritos do Patriarca Filoteu sobre a vida do mesmo Gregório.

O presente tratado, composto por ele, é um excelente testemunho e uma regra exata da meditação oculta em Cristo, como capítulos coesos, muito bem escritos, que unem o pensamento divino à pureza do fraseado. Eles foram inseridos aqui por serem mais confiáveis do que quaisquer outros e dignos de serem estudados por aqueles que se esforçam por recolher na concisão os sábios ensinamentos da filosofia espiritual.

*

A renovação hesiquiasta dos séculos XIII e XIV, no norte da Grécia, oferece muitos aspectos. Acima de tudo ela prolongou, assumiu e realizou um milênio de tradição monástica. Mas também foi um movimento de resistência à vontade declarada de alguns imperadores bizantinos, notadamente Miguel VIII Paleólogo, de contratar a qualquer preço uma aliança política com o Ocidente cristão para tentar conjurar a ameaça turca. Enfim, quando esta aliança foi denunciada, a renovação se tornou naturalmente uma causa comum com texturas hierárquicas, doutrinais, litúrgicas e sacramentais da Igreja ortodoxa que, desde o século IV, pela consagração e a resistência, os Padres fundadores do hesiquiasmo haviam amplamente contribuído para formar.
A vida e a obra de Teolepto de Filadélfia (nascido em Nicéia em 1250, morto por volta de 1320) participa destes três aspectos. Por ter sido um dos que resistiram à estratégia do imperador, Teolepto foi enviado em exílio para uma ilha do mar Egeu juntamente com diversos monges do Monte Athos, inclusive Nicéforo o Solitário, que o iniciaram no hesiquiasmo. Libertado ele foi recebido em Athos e depois se tornou metropolita de Filadélfia após a morte de Miguel VIII, onde procurou concentrar e unificar a Igreja do Oriente sobre o fundamento das origens e da tradição monástica. Ele próprio manteve mosteiros em Constantinopla e foi um dos iniciadores de Gregório Palamas. Sua mediação exemplar foi certamente decisiva.


A Filocalia apresenta dois textos distintos de Teolepto. O primeiro reproduz a essência de uma carta endereçada à princesa Irene, viúva do imperador João Paleólogo, que se tornara monja. Mas o destinatário desta carta – sobre a profissão monástica – é, nesta versão filocálica, um monge anônimo. O segundo texto, mais curto, explicita e precisa em nove capítulos as modalidades da iniciação.


A profissão monástica é incialmente comparada a uma árvore na qual tudo está, das raízes aos frutos, onde tudo contribui para a chegada da vida eterna, desde a renúncia às ligações com o mundo até a aquisição do amor deificante, permitindo ao cristão verificar e confirmar seu batismo, para finalmente se revestir de Cristo. “Esforce-se para transformar o chamado em ação”, diz Teolepto. Assim, a vocação monástica, devotada à imolação e à glória, não é para a Igreja senão a abertura infinita de toda a fé cristã: não mais viver para o mundo senão pelos “sentidos do Espírito”. A exortação é tradicional, toda cerzida de imagens e palavras bíblicas, mas ao mesmo tempo direta, viva, calorosa. Ela não percorre todo o campo de aplicação da vocação senão para atestar aos egressos o exercício permanente do hesiquiasmo: a passagem da inteligência simples para a prece pura, e da prece pura ao amor luminoso consagrado à “beleza de Cristo”, esta passagem que instaura a ordem filocálica no coração crucificado para o mundo.


DISCURSO
QUE EXPLICA O TRABALHO OCULTO
QUE IMPLICA A VIDA EM CRISTO
E QUE MOSTRA O LABOR IMPOSTO
PELA PROFISSÃO MONÁSTICA.


A profissão monástica é como uma grande árvore coberta de folhas e de numerosos frutos. Sua raiz é a superação de todas as coisas do corpo. Seus galhos são a ausência de paixões na alma e a ruptura para com as coisas do mundo das quais fugiu. Seu fruto é o amor deificante, a aquisição das virtudes e o regozijo ininterrupto que deles advém. Com efeito, foi dito que o fruto do Espírito é o amor, a alegria, a paz[1] e assim por diante. A fuga para longe do mundo permite refugiar-se em Cristo. Chamo de “mundo” o amor pelas coisas sensíveis e pela carne. Aquele que por meio do conhecimento da verdade ultrapassa as coisas do mundo se une a Cristo. Ele adquire seu amor, este amor pelo qual ele rejeitou tudo o que vem do mundo, e resgatou a pérola preciosa[2], Cristo. Assim, pelo batismo salutar, você se revestiu de Cristo[3], por intermédio do banho divino você se limpou de toda sujeira, e você reencontrou o esplendor da graça espiritual e a nobreza da criação.

Ora, o que aconteceu? Ou antes, o que sofreu o homem em sua irresolução? Por seu amor ao mundo, ele transformou os signos divinos com os quais fora marcado. Com seu pendor pela carne, ele corrompeu a imagem. A bruma dos pensamentos passionais empanou o espelho da alma, este espelho no qual aparece Cristo, o Sol espiritual. Você fechou a alma ao temor de Deus e conheceu as trevas da deserção do mundo. Você experimentou o quanto o ruído dispersa a inteligência e viu aonde as vãs distrações e a vida agitada levam os homens. E assim você foi ferido pela flecha do amor à hesíquia e buscou a paz dos pensamentos[4]. De fato, você aprendeu: “Busque a paz e a possua[5]”. Você desejou o repouso que está além, porque ouviu: “Volte, alma minha, ao seu repouso[6]”.

Considere então a nobreza que, pela graça, você recebeu no batismo, e recuse em pensamento ser chamado para o mundo das paixões. Com seu bom senso você se pôs a trabalhar, dirigiu-se ao local sagrado da meditação, revestiu-se do hábito precioso do arrependimento, e com toda sua alma prometeu permanecer no mosteiro até a morte. Daqui por diante você fez uma segunda aliança com Deus. A primeira você fez ao entrar na sua vida presente. E a segunda, você fez quando se apressou em se encaminhar para o fim desta vida. Então você se ligou a Cristo pela piedade e agora, por meio do arrependimento, você se prometeu a ele. Aí você encontrará a graça. Aqui você calculou sua dívida. Até então você era uma criança e não havia sentido a dignidade que lhe fora dada, e mesmo que mais tarde, ao crescer, você tivesse conhecido o dom, ainda trazia o freio na boca. Agora você atingiu a perfeição e reconheceu o poder daquilo que lhe fora prescrito.

Mas cuide para não transgredir sua promessa. Então, como um vaso inteiramente partido, você será rejeitado para as trevas exteriores onde estão o choro e o ranger de dentes[7]. Pois fora do caminho do arrependimento não existe outra via que conduza à salvação. Escute o que disse Davi: “Você fez do Altíssimo seu refúgio[8]”. Se você escolheu seguir a Cristo sobre o caminho estreito da vida[9], o mal que os hábitos do mundo lhe deram em partilha não virá a você[10]. Se você escolheu se arrepender, o amor pelo dinheiro, as delícias e as honras do mundo, as vestes luxuosas, a intemperança dos sentidos não mais o queimarão, os iníquos não se colocarão diante de você[11], o inchaço da reflexão, a alienação do intelecto, a presunção dos sucessivos pensamentos, toda outra alteração, toda outra confusão voluntária, a ligação aos pais, irmãos e próximos, amigos e familiares, nada o alcançará. Com eles você já não terá conversação nem relação intempestiva e inútil.

Se de corpo e alma você ama assim renunciar ao mundo, o chicote da dor não mais tocará sua alma[12], a flecha da tristeza não ferirá seu coração, seu rosto jamais voltará a ser sombrio. Os que se afastam dos hábitos do prazer, os que cessam de pender para tudo de que falamos, amaciam, de fato, as penas da tristeza. Pois Cristo aparece à alma que luta e a cumula de alegria inefável. E nada dentre as delícias ou as infelicidades do mundo pode jamais retirar dela esta alegria espiritual[13]. Com efeito, as boas práticas, as lembranças salutares, os pensamentos divinos, as palavras de sabedoria assistem ao que combate, o protegem por todas as veredas[14] de suas obras dedicadas a Deus. Assim ele caminha sobre todo desejo desprovido de razão e todo ardor fogoso, como sobre a víbora e o basilisco, ele pisoteia a cólera como o leão e o prazer como o dragão[15]. E a causa é a seguinte: separado dos homens e das coisas às quais nos referimos, ele colocou em Deus toda sua esperança, tornou-se rico do conhecimento de Deus a quem em espírito ele chama sempre em seu auxílio. Pois foi dito: “Ele esperou em mim e eu o libertei, e o protegerei porque ele conheceu meu nome. Ele me chamou e eu o escutei. E não apenas eu o libertarei dos que o atormentam, mas o glorificarei[16]”.

Vê você os combates daqueles que consagram sua vida a Deus, e a recompensa que recebem? Então, esforce-se por transformar o chamado em ação. Assim como você dedicou seu corpo à solidão e como, rejeitando os pensamentos sobre as coisas, mudou seus hábitos, faça-se estrangeiro, afaste-se das palavras, mesmo daquelas que convêm à sua condição. Pois se você não puser fim em si mesmo ou redemoinho das coisas de fora, você poderá se levantar contra aqueles que, no seu interior, estendem armadilhas. Se você não vencer os que o combatem por meio das coisas visíveis você não poderá derrubar os adversários invisíveis. Mas quando você abolir as distrações de fora, quando apagar os pensamentos interiores, então o intelecto despertará pata as obras e as palavras do Espírito. Em lugar do hábito das coisas que lhe são naturais e familiares, você trabalhará as virtudes. Em lugar das palavras vãs suscitadas pelo comércio com o mundo, o estudo e a explicação das palavras divinas meditadas pelo intelecto esclarecerão e instruirão a alma. Quando são acorrentados os sentidos, a alma descobre a liberdade. O por do sol traz a noite. Então Cristo se retira da alma e as trevas das paixões se apoderam dela, as feras espirituais a atacam. Mas quando se ergue o sol sensível, as feras se reúnem nos seus antros. Cristo se eleva no firmamento do intelecto que ora, e todo costume do mundo se afasta. O amor pela carne passa. Até o entardecer o intelecto parte para realizar seu trabalho[17], que é o estudo das coisas de Deus. Ele não limita no tempo a obra da lei espiritual, nem a mede, mas trabalha nela num êxodo da alma fora do corpo, até atingir o fim da presente vida.

É o que quis dizer o profeta quando falou: “Eu amo sua obra, Senhor, e a estudo todo o dia[18]”. O que ele chama de dia representa, para cada um, o decurso da vida presente. Cesse então todo comércio com as coisas de fora e combata os pensamentos interiores até encontrar o lugar da prece pura e a morada onde habita Cristo, que o iluminará e o cumulará de doçura com seu conhecimento e sua vinda, e o colocará num estado em que você considerará como uma alegria as aflições que você sofre por ele, e no qual você já não se submeterá aos prazeres do mundo que são como o absinto.

Os ventos levantam as ondas do mar e, se a tempestade não cessar, nem as ondas se acalmam, nem o mar se tranquiliza. E os espíritos de malícia levantam na alma do monge negligente a lembrança dos pais, dos irmãos, dos próximos, dos familiares, dos festins, das festas, dos espetáculos e de todas as outras imagens do prazer. Eles dão a entender que a felicidade está no uso dos olhos, da língua e do corpo. A hora presente então se consume na vacuidade. E a hora seguinte, quando você permanece só na cela, passa com a lembrança daquilo que você viu e que lhe disseram. A vida do monge escoa, inútil, nas obras deste mundo, que gravam no intelecto suas lembranças, como os pés de um homem que deixa na neve suas próprias pegadas. Se alimentamos as feras, quando as iremos matar? Se multiplicamos em nossas obras e pensamentos as ligações e os hábitos irracionais, quando faremos morrer o cuidado com a carne? Quando viveremos a vida em Cristo que prometemos viver?

As pegadas dos pés sobre a neve ou derretem sob o sol que brilha ou desmancham sob a chuva que cai. Assim como as lembranças que o amor e a prática dos prazeres cavam no intelecto desaparecem sob Cristo, quando ele se levanta no coração pela prece, e sob a carícia dolorosa da chuva de lágrimas. Então, se o monge não trabalha a razão, quando apagará ele as presunções que encobrem seu intelecto? A obra das virtudes se realizará no corpo se você deixar para trás os hábitos do mundo. As boas lembranças se imprimirão em você e as palavras divinas adorarão permanecer em sua alma se a memória das ações primitivas for sendo apagada por meio de preces contínuas que doce e dolorosamente você realizar em seu intelecto. Pois a luz com a qual a fé em Deus cumula sua memória, aliadas à contrição do coração cortam como uma navalha as más recordações.

Imite a sabedoria das abelhas. Com efeito, quando estas percebem um enxame de vespas voando ao redor, se aquartelam dentro da colmei e assim escapam aos danos das agressões. As vespas aqui representam os eventos do mundo. Fuja deles o mais depressa possível. Permaneça no santuário do templo e, daí, esforce-se para entrar novamente na cidadela interior da alma, que é a morada de Cristo, na qual se revelam a paz, a alegria, a serenidade do Sol espiritual, enquanto Cristo envia seus dons, como raios, e os concede como uma recompensa à alma que o recebe na fé e no amor pela beleza.

Assim, sentado em sua cela, lembre-se de Deus, eleve seu intelecto acima de tudo, volte-se para Deus sem nada dizer, desdobre diante dele o estado de seu coração e se prenda a ele com todo seu amor. Pois a lembrança de Deus é a própria contemplação de Deus, que chama para si a visão e o desejo do intelecto e o cerca com sua luz. Quando ela retorna a Deus cessando de conceber as formas dos seres, o intelecto, com efeito, passa a ver independentemente das formas. Chegando ao mais alto ponto do desconhecimento, ele ilumina sua própria visão com a luz inacessível da glória. Ele já não conhece nada, por que aquele a quem vê é incompreensível. Ele apenas conhece através da verdade d’Aquele que verdadeiramente é e que é o único que é além e acima do ser. Ele alimenta seu desejo de amor com a riqueza da bondade que emana desta fonte e, cumulando de certeza sua própria diligência, ele se torna digno de um repouso bem-aventurado que não tem mais fim.

Estes são os sinais da lembrança exata. A prece é um diálogo do pensamento com o Senhor, um diálogo no qual se realizam as palavras da súplica ao mesmo tempo em que o intelecto tende por completo para Deus. Com efeito, a partir do momento em que o pensamento pronuncia sem cessar o nome do Senhor e que o intelecto está claramente atento à invocação do nome divino, a luz do conhecimento de Deus cobre com sua aura toda a alma como uma nuvem radiante[19]. A lembrança exata de Deus engendra o amor e a alegria. De fato, foi dito: “Eu me lembrei de Deus e me regozijei[20]”. E a prece pura engendra o conhecimento e a compunção. Pois foi dito: “No dia em que o chamei soube que você é meu Deus [21]”. E ainda: “Meu sacrifício a Deus será um coração quebrantado[22]”. Naqueles que, como todo seu intelecto e todo seu pensamento se voltam para Deus por meio da energia da tensão e do calor da prece, a alma, com efeito, se recolhe em ternura. Mas nos que, em seu intelecto, a razão e o espírito se prosternam diante de Deus pela atenção, pela prece, pelo recolhimento e o amor, todo o homem interior serve ao Senhor. Pois foi dito: “Amarás ao seu Senhor de todo seu coração[23]”.

Mas eu quero que você saiba. Ao mesmo tempo em que você pensa orar você pode muito bem estar caminhando longe da oração, esforçando-se sem nada ganhar e correndo em vão. Enquanto a boca canta louvores o intelecto vaga por aí, dividido pelas paixões e os afazeres, a ponto de perder toda a consciência da salmódia. O próprio pensamento é tocado. Pois muitas vezes, enquanto ele exprime as palavras da prece o intelecto não o segue nem se volta para Deus a quem é endereçada a oração. Ele permanece desviado em segredo para outros cuidados. O pensamento diz as palavras pela força do hábito, mas o intelecto não entra no conhecimento de Deus. A partir daí, com o intelecto disperso em imaginação e transportado para aquilo que ela dissimula ou para aquilo que ela deseja, a alma perde toda compreensão, toda disposição. Pois se falta o conhecimento que vem através da prece, se quem ora não se volta para Deus para chama-lo, como poderá a alma se encher de doçura? Como se alegrará o coração, se a pessoa finge orar mas não se dedica à verdadeira oração?

Pois “se alegrará o coração daqueles que buscam ao Senhor[24]”. E busca o Senhor aquele que, com todo seu pensamento e todo fervor, se prosterna diante de Deus, rejeitando todo cuidado para com o mundo em troca do conhecimento e do amor de Deus que nascem da prece pura e contínua. Mas para que fique bem claro aquilo que vemos quando nos lembramos de Deus no intelecto, e aquilo exatamente que buscamos quando nos dedicamos em pensamento à prece pura, usarei como exemplos as imagens do olho e da língua. Pois aquilo que a pupila é para o olho, aquilo que a expressão da palavra é para a língua, a lembrança é para o intelecto e a prece é para o pensamento. Como efeito, assim como o olho ao perceber o que está diante de si pelo sentido da visão nada diz, mas recebe pela experiência da visão o conhecimento daquilo que viu, também o intelecto quando, em seu desejo de amor, se aproxima de Deus pela lembrança ligando-se a ele com todo o fervor no silêncio da mais simples reflexão, é iluminado pela irradiação divina e recebe as garantias do esplendor futuro. A assim como a língua exprime as palavras da razão e revela a quem escuta a vontade oculta no intelecto, também o pensamento, ao repetir com frequência e calor as breves palavras da prece, revela o pedido da alma a Deus que tudo sabe.

É por meio da prece assídua e da contínua contrição do coração que abrimos o coração do Compassivo, o coração de seu amor pelo homem, e assim recebemos a riqueza da salvação. Pois foi dito: “Ao coração contrito e humilhado Deus não desprezará[25]”. Ele o conduzirá na prece pura. Sua obra realizada o levará diante de d’Aquele que reina sobre a terra. De fato, é quando você se aproxima do Rei, quando você está diante dele em seu corpo, quando você suplica com a sua língua e volta para ele os seus olhos, é neste momento que você atrai sobre si a benevolência real. Faça portanto assim, quer esteja na assembleia da Igreja, quer na solidão de sua morada. Com efeito, quando você se reunir no Senhor com seus irmãos para estar diante dele em seu corpo e levar até ele o canto de sua língua, faça com que seu intelecto esteja atento às palavras e a Deus, e que ele, o intelecto, saiba com quem está falando e o que está pedindo. Pois se o pensamento se consagra com força e pureza à prece, o coração recebe dela uma alegria inalienável e uma paz indizível. E quando você estiver a sós, sentado em sua cela, agarre-se à prece em pensamento, com o intelecto sóbrio e vigilante e um espírito quebrantado. Pela sobriedade e a vigilância, a contemplação o cobrirá com sua sombra. Pela prece, o conhecimento habitará em você. E pela compunção a sabedoria virá repousa sobre você, expulsando o prazer irracional e abrindo sua morada ao amor de Deus.

Creia-me. O que eu lhe digo é a verdade. Se em toda a sua obra você não se separar da mãe dos bens, a oração, não durma enquanto ela não lhe houver revelado o local das bodas, enquanto ela não o fizer penetrar no interior, enquanto ela não o cumular de glória e de regozijo inefáveis. Pois ela retira todos os obstáculos, aplaina o caminho da virtude e o torna fácil a quem a busca. Considere agora como age a prece espiritual. O diálogo apaga os pensamentos passionais. O olhar do intelecto voltado para Deus põe em fuga os pensamentos do mundo. A doçura da alma expulsa o amor pela carne. À custa de dizer em silêncio o nome de Deus, a prece se torna a harmonia e a união do intelecto com a razão e a alma. Pois foi dito: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estarei no meio deles[26]”. Assim, a prece, resgatando as potências da alma da divisão criada pelas paixões e religando entre si as três partes da alma se une ao Deus único em três Pessoas. Em primeiro lugar, pelas vias da virtude ela apaga da alma a vergonha do pecado. A seguir, reproduzindo a beleza dos sinais divinos pelo santo conhecimento que há nela, ela conduz a alma a Deus. E esta imediatamente reconhece seu Criador. Pois foi dito: “No dia em que clamei eu soube que você é meu Deus[27]”. E ela é conhecida por ele: “O Senhor conheceu os que pertenciam a ele[28]”. Ele conhece pela pureza do ícone. Com efeito, todo ícone se reporta ao seu modelo. E é conhecido pela semelhança que obtém pelas virtudes. Assim ele tem o conhecimento de Deus e é conhecido por Deus.

Quem implora pela benevolência real tem três maneiras de fazê-lo: ou suplicar em alta voz, ou permanecer em silêncio, ou se atirar aos pés daquele que o pode socorrer. E a prece pura, recolhendo em si mesma o intelecto, a razão e o espírito, pela razão invoca o nome, pelo intelecto se volta sem distração para Deus, a quem invoca, e, pelo espírito, manifesta a doçura, a humildade e o amor. Assim ela implora pela Trindade que não tem começo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o Deus Uno. Assim como a variedade de alimentos suscita o desejo de consumi-los, também as diferentes formas das virtudes despertam a vivacidade do intelecto. É por isso que, seguindo o caminho do pensamento, recite as palavras da prece. Fale, invoque sempre o Senhor e não se desencoraje[29]. Ore continuamente, imite a tenacidade da viúva que suplicava ao juiz intratável[30]. Então você caminhará em espírito[31] não mais se ligando aos desejos da carne, e os pensamentos do mundo já não virão interromper a continuidade da sua prece. Você terá se tornado o templo de Deus e celebrará a Deus sem descanso. Orando assim em pensamento lhe será concedido passar pela lembrança de Deus, penetrar no santuário do intelecto, ver o invisível nas contemplações místicas e servir apenas ao Deus único no coração de sua solidão, nas efusões comuns ao conhecimento e ao amor.

Quando você perceber que a oração se detém, pegue um livro. Aplicando-se à leitura, receba o conhecimento. Atravesse as palavras sem transgredi-las, retenha-as ligando-as ao seu pensamento, e guarde seu intelecto. Depois medite no que leu, para que seu pensamento seja cumulado de doçura pela compreensão e para que a leitura permaneça inesquecível. Logo se inflamará em você o fervor dos pensamentos divinos. Com efeito, foi dito: “Enquanto eu meditava, um fogo queimava em mim[32]”. Pois assim como os alimentos mastigados agradam ao paladar, também as palavras divinas volteadas e reviradas na alma nutrem e alegram o pensamento. Foi dito: “Que suas palavras são doces em minha boca![33]”. Aprenda de cor as palavras do Evangelho e os apotegmas dos Padres bem-aventurados, siga as pegadas de suas vidas para poder meditar à noite. Assim você renovará pela leitura e a meditação das palavras divinas o pensamento cansado de orar, e o preparará para retomar a prece no dia seguinte com mais diligência.

Cante a salmódia. Mas faça-o com a voz doce e o intelecto atento. Não permita que fique incompreensível nada do que você diz. Se alguma coisa escapara à sua inteligência, retome o verso tão logo possa, até que ela consiga seguir o que está sendo dito. Pois o intelecto está aí para permitir à boca cantar e para se lembrar de Deus. Aprenda com a experiência natural. Com efeito, assim como a pessoa que encontra alguém fala com ela olhando o interlocutor, também aquele que canta deve, pela memória, manter seus olhos em Deus.

Não negligencie se colocar de joelhos. Ajoelhar-se representa de fato a queda do pecado, que é provocada pela confissão. Levantar-se significa o arrependimento, que lembra a promessa da vida virtuosa. Mas cada prosternação deve ser acompanhada pela invocação espiritual de Cristo, a fim de que, inclinando a alma e o corpo diante do Senhor, nos reconciliemos com o Deus das almas e corpos. Se, de resto, você acrescentar à prece em pensamento o trabalho aprazível das mãos, rejeitando o sono e a preguiça, isto ajudará a sustentar o combate da ascese.

Todas as tarefas que mencionamos, desde que bem executadas e com o auxílio da prece, tornam mais agudo o intelecto, expulsam o desencorajamento, tornam a alma mais jovem e permitem ao espírito ser mais penetrante e mais fervente no trabalho do pensamento. Quando ouvir as batidas na madeira[34], saia da cela com os olhos do corpo voltados para o chão e levando o pensamento em Deus. Quando entrar no templo e tomar seu lugar no coro, não converse com o monge que estiver a seu lado nem deixe o intelecto vagar em frivolidades. Mantenha a língua atenta apenas à salmódia e seu pensamento preso à oração. Depois da refeição, retire-se para sua cela e dedique-se à regra que lhe foi assinalada.

Quando estiver à mesa, não olhe para o que os irmãos comem nem deixe sua alma se dividir em maus pensamentos. Olhe e tome o que estiver à sua frente, leve o alimento à boca e escute as leituras com seus ouvidos e dê a prece à sua alma, a fim de que, com o corpo e o espírito alimentados, você possa louvar Àquele que cumula de bens seu desejo[35]. Depois levante-se, retorne reservadamente e em silêncio à sua cela e, como a abelha laboriosa, trabalhe nas virtudes.

Quando executar um serviço com os irmãos, que suas mãos trabalhem, que seus lábios se calem e que seu intelecto se lembre de Deus, E se, por acaso, alguém se puser a tagarelar, para que cesse a desordem, levante-se e faça uma metania.

Rejeite os pensamentos. Não os permita penetrar em seu coração e aí permanecer. A persistência dos pensamentos passionais reanima as paixões e fere o intelecto. Uma vez que o atacarem, apresse-se em expulsá-los do intelecto com a flecha da oração. Porém, se eles continuarem a lhe bater e a confundir sua inteligência, avançando e recuando, saiba que eles estão sendo fortalecidos por uma vontade anterior. Uma vez que eles se sentem com direitos sobre a alma devido a uma falta de resolução, eles a perturbam e oprimem. É preciso dobrá-los por meio da confissão.Com efeito, os pensamentos maus fogem desde que triunfemos sobre eles. Assim como as trevas se retiram quando aparece a luz, também a luz da confissão apaga os pensamentos das paixões, que são como trevas. Pois a frivolidade e o relaxamento produzidos pelos pensamentos foram destruídos pela vergonha que acompanha a confissão e pelo mal que nos impomos para seguir a regra que nos foi ordenada. Encontrando o intelecto livre das paixões daí para frente graças à prece contínua e recolhida, eles fogem em confusão.

Com efeito, quando aquele que combate se esforça por meio da oração para cortar pela raiz os pensamentos que o perturbam, ele os afasta por algum tempo e destrói sua empreitada atacando-os e lutando contra eles, mas não consegue se libertar totalmente, porque ainda ama as causas destes pensamentos opressores: o conforto da carne e a consideração do mundo, coisas que ele não confessou. Assim ele não alcança a paz, porque manteve dentro de si os direitos do adversário. Que, possuindo coisas que não são suas, não será arguido pelos proprietários? E quem se libertará dos que o perseguem, se não se livrar daquilo que lhe é solicitado e que ele mantém erradamente? Mas quando aquele que combate, fortificado pela memória de Deus, cessa de se agarrar à carne e de confortá-la, e confessa irrepreensivelmente seus pensamentos, logo os adversários se afastam, e o intelecto liberto pode se consagrar à prece contínua e à meditação das coisas de Deus.

Afaste inteiramente toda suspeita que você possa eventualmente alimentar em seu coração contra quem quer que seja, pois isto destrói o amor e a paz. E aceite nobremente qualquer infelicidade vinda de fora, porque ela suscita a paciência salutar, esta paciência que permite permanecer e repousar nos céus.

Assim, conduzindo seus dias no bem, você atravessará de bom coração a vida presente, na alegria das esperanças bem-aventuradas. E na hora do seu êxodo, você deixará com toda confiança as coisas daqui e partirá para os lugares do repouso que o Senhor lhe preparou, para que você reine com ele quando ele recompensá-lo pelos esforços e penas que você suportou aqui em baixo. A ele sejam dadas toda a glória, honra e adoração, assim como a seu Pai que não teve começo e ao seu Espírito Santo, bom e vivificante, agora e sempre pelos séculos dos séculos. Amém.



[1] Gálatas 5: 22.
[2] Mateus 13: 46.
[3] Cf. Gálatas 3: 27.
[4] Cf. Jeremias 36: 11.
[5] Salmo 33 (34): 15.
[6] Salmo 114 (115): 7.
[7] Mateus 8: 12.
[8] Salmo 90 (91): 9.
[9] Cf. Mateus 7: 14.
[10] Salmo 90 (91): 10.
[11] Salmo 5: 6.
[12] Cf. Salmo 90 (91): 10.
[13] Cf. João 16: 22.
[14] Cf. Salmo 90 (91): 11.
[15] Cf. Salmo 90 (91): 13.
[16] Cf. Salmo 90 (91): 15.
[17] Salmo 103 (104): 23.
[18] Salmo 118 (119): 97.
[19] Cf. Êxodo 40: 32.
[20] Salmo 76 (77): 4.
[21] Salmo 55 (56): 10.
[22] Salmo 50 (51): 19.
[23] Deuteronômio 6: 5.
[24] Salmo 104 (105): 3.
[25] Salmo 50 (51): 19.
[26] Mateus 18: 20.
[27] Salmo 55 (56): 10.
[28] II Timóteo 2: 19.
[29] Cf. Lucas 18: 1.
[30] Cf. Lucas 18: 2-5.
[31] Cf. Gálatas 5: 16.
[32] Salmo 38 (39): 4.
[33] Salmo 118 (119): 103.
[34] Simandron, placa de madeira que servia de sino. Ela representa tanto a madeira da cruz quanto a materialidade do culto. Na Quinta-Feira Santa, em alguns lugares, ela substitui o sino.
[35] Cf. Salmo 102 (103): 5.

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