TEOLEPTO DE FILADÉLFIA
SOBRE E PROFISSÃO MONÁSTICA
E OUTROS CAPÍTULOS
Teolepto de Filadélfia
Teolepto, que foi bispo de
Filadélfia, viveu no reinado de Andronico II Paleólogo, por volta de 1325. De
início ele levou uma vida ascética e anacorética sobre a santa Montanha de
Athos. Depois, tendo recebido como encargo a Sé de Filadélfia, ele iniciou na
grande beleza de seus ensinamentos a Gregório de Tessalônica. Ele lhe ensinou a
santa nepsis bem como a noera
proseuké – a prece intelectual – enquanto
este ainda era leigo, conforme relatado nos escritos do Patriarca Filoteu sobre
a vida do mesmo Gregório.
O presente tratado, composto por
ele, é um excelente testemunho e uma regra exata da meditação oculta em Cristo,
como capítulos coesos, muito bem escritos, que unem o pensamento divino à
pureza do fraseado. Eles foram inseridos aqui por serem mais confiáveis do que
quaisquer outros e dignos de serem estudados por aqueles que se esforçam por
recolher na concisão os sábios ensinamentos da filosofia espiritual.
*
A renovação hesiquiasta dos séculos XIII e XIV, no norte da Grécia,
oferece muitos aspectos. Acima de tudo ela prolongou, assumiu e realizou um
milênio de tradição monástica. Mas também foi um movimento de resistência à
vontade declarada de alguns imperadores bizantinos, notadamente Miguel VIII
Paleólogo, de contratar a qualquer preço uma aliança política com o Ocidente
cristão para tentar conjurar a ameaça turca. Enfim, quando esta aliança foi
denunciada, a renovação se tornou naturalmente uma causa comum com texturas
hierárquicas, doutrinais, litúrgicas e sacramentais da Igreja ortodoxa que,
desde o século IV, pela consagração e a resistência, os Padres fundadores do
hesiquiasmo haviam amplamente contribuído para formar.
A vida e a obra de Teolepto de Filadélfia (nascido em Nicéia em 1250,
morto por volta de 1320) participa destes três aspectos. Por ter sido um dos
que resistiram à estratégia do imperador, Teolepto foi enviado em exílio para
uma ilha do mar Egeu juntamente com diversos monges do Monte Athos, inclusive
Nicéforo o Solitário, que o iniciaram no hesiquiasmo. Libertado ele foi
recebido em Athos e depois se tornou metropolita de Filadélfia após a morte de
Miguel VIII, onde procurou concentrar e unificar a Igreja do Oriente sobre o
fundamento das origens e da tradição monástica. Ele próprio manteve mosteiros
em Constantinopla e foi um dos iniciadores de Gregório Palamas. Sua mediação
exemplar foi certamente decisiva.
A Filocalia apresenta dois textos distintos de Teolepto. O primeiro
reproduz a essência de uma carta endereçada à princesa Irene, viúva do
imperador João Paleólogo, que se tornara monja. Mas o destinatário desta carta
– sobre a profissão monástica – é, nesta versão filocálica, um monge anônimo. O
segundo texto, mais curto, explicita e precisa em nove capítulos as modalidades
da iniciação.
A profissão monástica é incialmente comparada a uma árvore na qual
tudo está, das raízes aos frutos, onde tudo contribui para a chegada da vida
eterna, desde a renúncia às ligações com o mundo até a aquisição do amor deificante,
permitindo ao cristão verificar e confirmar seu batismo, para finalmente se
revestir de Cristo. “Esforce-se para transformar o chamado em ação”, diz
Teolepto. Assim, a vocação monástica, devotada à imolação e à glória, não é
para a Igreja senão a abertura infinita de toda a fé cristã: não mais viver
para o mundo senão pelos “sentidos do Espírito”. A exortação é tradicional,
toda cerzida de imagens e palavras bíblicas, mas ao mesmo tempo direta, viva,
calorosa. Ela não percorre todo o campo de aplicação da vocação senão para
atestar aos egressos o exercício permanente do hesiquiasmo: a passagem da
inteligência simples para a prece pura, e da prece pura ao amor luminoso
consagrado à “beleza de Cristo”, esta passagem que instaura a ordem filocálica
no coração crucificado para o mundo.
DISCURSO
QUE EXPLICA O TRABALHO OCULTO
QUE IMPLICA A VIDA EM CRISTO
E QUE MOSTRA O LABOR IMPOSTO
PELA PROFISSÃO MONÁSTICA.
A profissão monástica é como
uma grande árvore coberta de folhas e de numerosos frutos. Sua raiz é a
superação de todas as coisas do corpo. Seus galhos são a ausência de paixões na
alma e a ruptura para com as coisas do mundo das quais fugiu. Seu fruto é o
amor deificante, a aquisição das virtudes e o regozijo ininterrupto que deles
advém. Com efeito, foi dito que o fruto do Espírito é o amor, a alegria, a paz[1] e assim por diante. A
fuga para longe do mundo permite refugiar-se em Cristo. Chamo de “mundo” o amor
pelas coisas sensíveis e pela carne. Aquele que por meio do conhecimento da
verdade ultrapassa as coisas do mundo se une a Cristo. Ele adquire seu amor,
este amor pelo qual ele rejeitou tudo o que vem do mundo, e resgatou a pérola
preciosa[2], Cristo. Assim, pelo
batismo salutar, você se revestiu de Cristo[3], por intermédio do banho
divino você se limpou de toda sujeira, e você reencontrou o esplendor da graça
espiritual e a nobreza da criação.
Ora, o que aconteceu? Ou
antes, o que sofreu o homem em sua irresolução? Por seu amor ao mundo, ele
transformou os signos divinos com os quais fora marcado. Com seu pendor pela
carne, ele corrompeu a imagem. A bruma dos pensamentos passionais empanou o
espelho da alma, este espelho no qual aparece Cristo, o Sol espiritual. Você
fechou a alma ao temor de Deus e conheceu as trevas da deserção do mundo. Você
experimentou o quanto o ruído dispersa a inteligência e viu aonde as vãs
distrações e a vida agitada levam os homens. E assim você foi ferido pela
flecha do amor à hesíquia e buscou a paz dos pensamentos[4]. De fato, você aprendeu:
“Busque a paz e a possua[5]”. Você desejou o repouso
que está além, porque ouviu: “Volte, alma minha, ao seu repouso[6]”.
Considere então a nobreza
que, pela graça, você recebeu no batismo, e recuse em pensamento ser chamado
para o mundo das paixões. Com seu bom senso você se pôs a trabalhar, dirigiu-se
ao local sagrado da meditação, revestiu-se do hábito precioso do
arrependimento, e com toda sua alma prometeu permanecer no mosteiro até a
morte. Daqui por diante você fez uma segunda aliança com Deus. A primeira você
fez ao entrar na sua vida presente. E a segunda, você fez quando se apressou em
se encaminhar para o fim desta vida. Então você se ligou a Cristo pela piedade
e agora, por meio do arrependimento, você se prometeu a ele. Aí você encontrará
a graça. Aqui você calculou sua dívida. Até então você era uma criança e não
havia sentido a dignidade que lhe fora dada, e mesmo que mais tarde, ao
crescer, você tivesse conhecido o dom, ainda trazia o freio na boca. Agora você
atingiu a perfeição e reconheceu o poder daquilo que lhe fora prescrito.
Mas cuide para não
transgredir sua promessa. Então, como um vaso inteiramente partido, você será
rejeitado para as trevas exteriores onde estão o choro e o ranger de dentes[7]. Pois fora do caminho do
arrependimento não existe outra via que conduza à salvação. Escute o que disse
Davi: “Você fez do Altíssimo seu refúgio[8]”. Se você escolheu seguir
a Cristo sobre o caminho estreito da vida[9], o mal que os hábitos do
mundo lhe deram em partilha não virá a você[10]. Se você escolheu se
arrepender, o amor pelo dinheiro, as delícias e as honras do mundo, as vestes
luxuosas, a intemperança dos sentidos não mais o queimarão, os iníquos não se
colocarão diante de você[11], o inchaço da reflexão,
a alienação do intelecto, a presunção dos sucessivos pensamentos, toda outra
alteração, toda outra confusão voluntária, a ligação aos pais, irmãos e
próximos, amigos e familiares, nada o alcançará. Com eles você já não terá
conversação nem relação intempestiva e inútil.
Se de corpo e alma você ama
assim renunciar ao mundo, o chicote da dor não mais tocará sua alma[12], a flecha da tristeza
não ferirá seu coração, seu rosto jamais voltará a ser sombrio. Os que se
afastam dos hábitos do prazer, os que cessam de pender para tudo de que
falamos, amaciam, de fato, as penas da tristeza. Pois Cristo aparece à alma que
luta e a cumula de alegria inefável. E nada dentre as delícias ou as
infelicidades do mundo pode jamais retirar dela esta alegria espiritual[13]. Com efeito, as boas
práticas, as lembranças salutares, os pensamentos divinos, as palavras de
sabedoria assistem ao que combate, o protegem por todas as veredas[14] de suas obras dedicadas
a Deus. Assim ele caminha sobre todo desejo desprovido de razão e todo ardor
fogoso, como sobre a víbora e o basilisco, ele pisoteia a cólera como o leão e
o prazer como o dragão[15]. E a causa é a seguinte:
separado dos homens e das coisas às quais nos referimos, ele colocou em Deus
toda sua esperança, tornou-se rico do conhecimento de Deus a quem em espírito
ele chama sempre em seu auxílio. Pois foi dito: “Ele esperou em mim e eu o
libertei, e o protegerei porque ele conheceu meu nome. Ele me chamou e eu o
escutei. E não apenas eu o libertarei dos que o atormentam, mas o glorificarei[16]”.
Vê você os combates daqueles
que consagram sua vida a Deus, e a recompensa que recebem? Então, esforce-se
por transformar o chamado em ação. Assim como você dedicou seu corpo à solidão
e como, rejeitando os pensamentos sobre as coisas, mudou seus hábitos, faça-se
estrangeiro, afaste-se das palavras, mesmo daquelas que convêm à sua condição.
Pois se você não puser fim em si mesmo ou redemoinho das coisas de fora, você
poderá se levantar contra aqueles que, no seu interior, estendem armadilhas. Se
você não vencer os que o combatem por meio das coisas visíveis você não poderá
derrubar os adversários invisíveis. Mas quando você abolir as distrações de
fora, quando apagar os pensamentos interiores, então o intelecto despertará
pata as obras e as palavras do Espírito. Em lugar do hábito das coisas que lhe
são naturais e familiares, você trabalhará as virtudes. Em lugar das palavras
vãs suscitadas pelo comércio com o mundo, o estudo e a explicação das palavras
divinas meditadas pelo intelecto esclarecerão e instruirão a alma. Quando são
acorrentados os sentidos, a alma descobre a liberdade. O por do sol traz a
noite. Então Cristo se retira da alma e as trevas das paixões se apoderam dela,
as feras espirituais a atacam. Mas quando se ergue o sol sensível, as feras se
reúnem nos seus antros. Cristo se eleva no firmamento do intelecto que ora, e
todo costume do mundo se afasta. O amor pela carne passa. Até o entardecer o
intelecto parte para realizar seu trabalho[17], que é o estudo das
coisas de Deus. Ele não limita no tempo a obra da lei espiritual, nem a mede,
mas trabalha nela num êxodo da alma fora do corpo, até atingir o fim da
presente vida.
É o que quis dizer o profeta
quando falou: “Eu amo sua obra, Senhor, e a estudo todo o dia[18]”. O que ele chama de dia
representa, para cada um, o decurso da vida presente. Cesse então todo comércio
com as coisas de fora e combata os pensamentos interiores até encontrar o lugar
da prece pura e a morada onde habita Cristo, que o iluminará e o cumulará de
doçura com seu conhecimento e sua vinda, e o colocará num estado em que você
considerará como uma alegria as aflições que você sofre por ele, e no qual você
já não se submeterá aos prazeres do mundo que são como o absinto.
Os ventos levantam as ondas
do mar e, se a tempestade não cessar, nem as ondas se acalmam, nem o mar se
tranquiliza. E os espíritos de malícia levantam na alma do monge negligente a
lembrança dos pais, dos irmãos, dos próximos, dos familiares, dos festins, das
festas, dos espetáculos e de todas as outras imagens do prazer. Eles dão a
entender que a felicidade está no uso dos olhos, da língua e do corpo. A hora
presente então se consume na vacuidade. E a hora seguinte, quando você
permanece só na cela, passa com a lembrança daquilo que você viu e que lhe
disseram. A vida do monge escoa, inútil, nas obras deste mundo, que gravam no
intelecto suas lembranças, como os pés de um homem que deixa na neve suas
próprias pegadas. Se alimentamos as feras, quando as iremos matar? Se multiplicamos
em nossas obras e pensamentos as ligações e os hábitos irracionais, quando
faremos morrer o cuidado com a carne? Quando viveremos a vida em Cristo que
prometemos viver?
As pegadas dos pés sobre a
neve ou derretem sob o sol que brilha ou desmancham sob a chuva que cai. Assim
como as lembranças que o amor e a prática dos prazeres cavam no intelecto
desaparecem sob Cristo, quando ele se levanta no coração pela prece, e sob a
carícia dolorosa da chuva de lágrimas. Então, se o monge não trabalha a razão,
quando apagará ele as presunções que encobrem seu intelecto? A obra das
virtudes se realizará no corpo se você deixar para trás os hábitos do mundo. As
boas lembranças se imprimirão em você e as palavras divinas adorarão permanecer
em sua alma se a memória das ações primitivas for sendo apagada por meio de
preces contínuas que doce e dolorosamente você realizar em seu intelecto. Pois
a luz com a qual a fé em Deus cumula sua memória, aliadas à contrição do
coração cortam como uma navalha as más recordações.
Imite a sabedoria das
abelhas. Com efeito, quando estas percebem um enxame de vespas voando ao redor,
se aquartelam dentro da colmei e assim escapam aos danos das agressões. As
vespas aqui representam os eventos do mundo. Fuja deles o mais depressa possível.
Permaneça no santuário do templo e, daí, esforce-se para entrar novamente na
cidadela interior da alma, que é a morada de Cristo, na qual se revelam a paz,
a alegria, a serenidade do Sol espiritual, enquanto Cristo envia seus dons,
como raios, e os concede como uma recompensa à alma que o recebe na fé e no
amor pela beleza.
Assim, sentado em sua cela,
lembre-se de Deus, eleve seu intelecto acima de tudo, volte-se para Deus sem
nada dizer, desdobre diante dele o estado de seu coração e se prenda a ele com
todo seu amor. Pois a lembrança de Deus é a própria contemplação de Deus, que
chama para si a visão e o desejo do intelecto e o cerca com sua luz. Quando ela
retorna a Deus cessando de conceber as formas dos seres, o intelecto, com
efeito, passa a ver independentemente das formas. Chegando ao mais alto ponto
do desconhecimento, ele ilumina sua própria visão com a luz inacessível da glória.
Ele já não conhece nada, por que aquele a quem vê é incompreensível. Ele apenas
conhece através da verdade d’Aquele que verdadeiramente é e que é o
único que é além e acima do ser. Ele alimenta seu desejo de amor com a
riqueza da bondade que emana desta fonte e, cumulando de certeza sua própria
diligência, ele se torna digno de um repouso bem-aventurado que não tem mais
fim.
Estes são os sinais da
lembrança exata. A prece é um diálogo do pensamento com o Senhor, um diálogo no
qual se realizam as palavras da súplica ao mesmo tempo em que o intelecto tende
por completo para Deus. Com efeito, a partir do momento em que o pensamento
pronuncia sem cessar o nome do Senhor e que o intelecto está claramente atento
à invocação do nome divino, a luz do conhecimento de Deus cobre com sua aura
toda a alma como uma nuvem radiante[19]. A lembrança exata de Deus
engendra o amor e a alegria. De fato, foi dito: “Eu me lembrei de Deus e me
regozijei[20]”.
E a prece pura engendra o conhecimento e a compunção. Pois foi dito: “No dia em
que o chamei soube que você é meu Deus [21]”. E ainda: “Meu sacrifício
a Deus será um coração quebrantado[22]”. Naqueles que, como
todo seu intelecto e todo seu pensamento se voltam para Deus por meio da
energia da tensão e do calor da prece, a alma, com efeito, se recolhe em
ternura. Mas nos que, em seu intelecto, a razão e o espírito se prosternam
diante de Deus pela atenção, pela prece, pelo recolhimento e o amor, todo o
homem interior serve ao Senhor. Pois foi dito: “Amarás ao seu Senhor de todo
seu coração[23]”.
Mas eu quero que você saiba.
Ao mesmo tempo em que você pensa orar você pode muito bem estar caminhando
longe da oração, esforçando-se sem nada ganhar e correndo em vão. Enquanto a
boca canta louvores o intelecto vaga por aí, dividido pelas paixões e os
afazeres, a ponto de perder toda a consciência da salmódia. O próprio
pensamento é tocado. Pois muitas vezes, enquanto ele exprime as palavras da
prece o intelecto não o segue nem se volta para Deus a quem é endereçada a
oração. Ele permanece desviado em segredo para outros cuidados. O pensamento
diz as palavras pela força do hábito, mas o intelecto não entra no conhecimento
de Deus. A partir daí, com o intelecto disperso em imaginação e transportado para
aquilo que ela dissimula ou para aquilo que ela deseja, a alma perde toda
compreensão, toda disposição. Pois se falta o conhecimento que vem através da
prece, se quem ora não se volta para Deus para chama-lo, como poderá a alma se
encher de doçura? Como se alegrará o coração, se a pessoa finge orar mas não se
dedica à verdadeira oração?
Pois “se alegrará o coração
daqueles que buscam ao Senhor[24]”. E busca o Senhor
aquele que, com todo seu pensamento e todo fervor, se prosterna diante de Deus,
rejeitando todo cuidado para com o mundo em troca do conhecimento e do amor de
Deus que nascem da prece pura e contínua. Mas para que fique bem claro aquilo
que vemos quando nos lembramos de Deus no intelecto, e aquilo exatamente que
buscamos quando nos dedicamos em pensamento à prece pura, usarei como exemplos
as imagens do olho e da língua. Pois aquilo que a pupila é para o olho, aquilo
que a expressão da palavra é para a língua, a lembrança é para o intelecto e a
prece é para o pensamento. Como efeito, assim como o olho ao perceber o que
está diante de si pelo sentido da visão nada diz, mas recebe pela experiência
da visão o conhecimento daquilo que viu, também o intelecto quando, em seu
desejo de amor, se aproxima de Deus pela lembrança ligando-se a ele com todo o
fervor no silêncio da mais simples reflexão, é iluminado pela irradiação divina
e recebe as garantias do esplendor futuro. A assim como a língua exprime as
palavras da razão e revela a quem escuta a vontade oculta no intelecto, também
o pensamento, ao repetir com frequência e calor as breves palavras da prece,
revela o pedido da alma a Deus que tudo sabe.
É por meio da prece assídua e
da contínua contrição do coração que abrimos o coração do Compassivo, o coração
de seu amor pelo homem, e assim recebemos a riqueza da salvação. Pois foi dito:
“Ao coração contrito e humilhado Deus não desprezará[25]”. Ele o conduzirá na
prece pura. Sua obra realizada o levará diante de d’Aquele que reina sobre a
terra. De fato, é quando você se aproxima do Rei, quando você está diante dele
em seu corpo, quando você suplica com a sua língua e volta para ele os seus
olhos, é neste momento que você atrai sobre si a benevolência real. Faça portanto
assim, quer esteja na assembleia da Igreja, quer na solidão de sua morada. Com
efeito, quando você se reunir no Senhor com seus irmãos para estar diante dele
em seu corpo e levar até ele o canto de sua língua, faça com que seu intelecto
esteja atento às palavras e a Deus, e que ele, o intelecto, saiba com quem está
falando e o que está pedindo. Pois se o pensamento se consagra com força e
pureza à prece, o coração recebe dela uma alegria inalienável e uma paz
indizível. E quando você estiver a sós, sentado em sua cela, agarre-se à prece
em pensamento, com o intelecto sóbrio e vigilante e um espírito quebrantado.
Pela sobriedade e a vigilância, a contemplação o cobrirá com sua sombra. Pela
prece, o conhecimento habitará em você. E pela compunção a sabedoria virá
repousa sobre você, expulsando o prazer irracional e abrindo sua morada ao amor
de Deus.
Creia-me. O que eu lhe digo é
a verdade. Se em toda a sua obra você não se separar da mãe dos bens, a oração,
não durma enquanto ela não lhe houver revelado o local das bodas, enquanto ela
não o fizer penetrar no interior, enquanto ela não o cumular de glória e de
regozijo inefáveis. Pois ela retira todos os obstáculos, aplaina o caminho da
virtude e o torna fácil a quem a busca. Considere agora como age a prece
espiritual. O diálogo apaga os pensamentos passionais. O olhar do intelecto voltado
para Deus põe em fuga os pensamentos do mundo. A doçura da alma expulsa o amor
pela carne. À custa de dizer em silêncio o nome de Deus, a prece se torna a
harmonia e a união do intelecto com a razão e a alma. Pois foi dito: “Onde dois
ou três estiverem reunidos em meu nome eu estarei no meio deles[26]”. Assim, a prece,
resgatando as potências da alma da divisão criada pelas paixões e religando
entre si as três partes da alma se une ao Deus único em três Pessoas. Em
primeiro lugar, pelas vias da virtude ela apaga da alma a vergonha do pecado. A
seguir, reproduzindo a beleza dos sinais divinos pelo santo conhecimento que há
nela, ela conduz a alma a Deus. E esta imediatamente reconhece seu Criador. Pois
foi dito: “No dia em que clamei eu soube que você é meu Deus[27]”. E ela é conhecida por
ele: “O Senhor conheceu os que pertenciam a ele[28]”. Ele conhece pela
pureza do ícone. Com efeito, todo ícone se reporta ao seu modelo. E é conhecido
pela semelhança que obtém pelas virtudes. Assim ele tem o conhecimento de Deus e
é conhecido por Deus.
Quem implora pela
benevolência real tem três maneiras de fazê-lo: ou suplicar em alta voz, ou
permanecer em silêncio, ou se atirar aos pés daquele que o pode socorrer. E a
prece pura, recolhendo em si mesma o intelecto, a razão e o espírito, pela
razão invoca o nome, pelo intelecto se volta sem distração para Deus, a quem
invoca, e, pelo espírito, manifesta a doçura, a humildade e o amor. Assim ela
implora pela Trindade que não tem começo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o
Deus Uno. Assim como a variedade de alimentos suscita o desejo de consumi-los,
também as diferentes formas das virtudes despertam a vivacidade do intelecto. É
por isso que, seguindo o caminho do pensamento, recite as palavras da prece.
Fale, invoque sempre o Senhor e não se desencoraje[29]. Ore continuamente,
imite a tenacidade da viúva que suplicava ao juiz intratável[30]. Então você caminhará em
espírito[31]
não mais se ligando aos desejos da carne, e os pensamentos do mundo já não
virão interromper a continuidade da sua prece. Você terá se tornado o templo de
Deus e celebrará a Deus sem descanso. Orando assim em pensamento lhe será
concedido passar pela lembrança de Deus, penetrar no santuário do intelecto,
ver o invisível nas contemplações místicas e servir apenas ao Deus único no coração
de sua solidão, nas efusões comuns ao conhecimento e ao amor.
Quando você perceber que a
oração se detém, pegue um livro. Aplicando-se à leitura, receba o conhecimento.
Atravesse as palavras sem transgredi-las, retenha-as ligando-as ao seu pensamento,
e guarde seu intelecto. Depois medite no que leu, para que seu pensamento seja
cumulado de doçura pela compreensão e para que a leitura permaneça
inesquecível. Logo se inflamará em você o fervor dos pensamentos divinos. Com
efeito, foi dito: “Enquanto eu meditava, um fogo queimava em mim[32]”. Pois assim como os
alimentos mastigados agradam ao paladar, também as palavras divinas volteadas e
reviradas na alma nutrem e alegram o pensamento. Foi dito: “Que suas palavras
são doces em minha boca![33]”. Aprenda de cor as
palavras do Evangelho e os apotegmas dos Padres bem-aventurados, siga as
pegadas de suas vidas para poder meditar à noite. Assim você renovará pela
leitura e a meditação das palavras divinas o pensamento cansado de orar, e o
preparará para retomar a prece no dia seguinte com mais diligência.
Cante a salmódia. Mas faça-o
com a voz doce e o intelecto atento. Não permita que fique incompreensível nada
do que você diz. Se alguma coisa escapara à sua inteligência, retome o verso
tão logo possa, até que ela consiga seguir o que está sendo dito. Pois o
intelecto está aí para permitir à boca cantar e para se lembrar de Deus.
Aprenda com a experiência natural. Com efeito, assim como a pessoa que encontra
alguém fala com ela olhando o interlocutor, também aquele que canta deve, pela
memória, manter seus olhos em Deus.
Não negligencie se colocar de
joelhos. Ajoelhar-se representa de fato a queda do pecado, que é provocada pela
confissão. Levantar-se significa o arrependimento, que lembra a promessa da
vida virtuosa. Mas cada prosternação deve ser acompanhada pela invocação
espiritual de Cristo, a fim de que, inclinando a alma e o corpo diante do
Senhor, nos reconciliemos com o Deus das almas e corpos. Se, de resto, você
acrescentar à prece em pensamento o trabalho aprazível das mãos, rejeitando o
sono e a preguiça, isto ajudará a sustentar o combate da ascese.
Todas as tarefas que
mencionamos, desde que bem executadas e com o auxílio da prece, tornam mais
agudo o intelecto, expulsam o desencorajamento, tornam a alma mais jovem e
permitem ao espírito ser mais penetrante e mais fervente no trabalho do pensamento.
Quando ouvir as batidas na madeira[34], saia da cela com os
olhos do corpo voltados para o chão e levando o pensamento em Deus. Quando
entrar no templo e tomar seu lugar no coro, não converse com o monge que
estiver a seu lado nem deixe o intelecto vagar em frivolidades. Mantenha a
língua atenta apenas à salmódia e seu pensamento preso à oração. Depois da
refeição, retire-se para sua cela e dedique-se à regra que lhe foi assinalada.
Quando estiver à mesa, não
olhe para o que os irmãos comem nem deixe sua alma se dividir em maus
pensamentos. Olhe e tome o que estiver à sua frente, leve o alimento à boca e
escute as leituras com seus ouvidos e dê a prece à sua alma, a fim de que, com
o corpo e o espírito alimentados, você possa louvar Àquele que cumula de bens
seu desejo[35].
Depois levante-se, retorne reservadamente e em silêncio à sua cela e, como a
abelha laboriosa, trabalhe nas virtudes.
Quando executar um serviço
com os irmãos, que suas mãos trabalhem, que seus lábios se calem e que seu
intelecto se lembre de Deus, E se, por acaso, alguém se puser a tagarelar, para
que cesse a desordem, levante-se e faça uma metania.
Rejeite os pensamentos. Não
os permita penetrar em seu coração e aí permanecer. A persistência dos
pensamentos passionais reanima as paixões e fere o intelecto. Uma vez que o
atacarem, apresse-se em expulsá-los do intelecto com a flecha da oração. Porém,
se eles continuarem a lhe bater e a confundir sua inteligência, avançando e
recuando, saiba que eles estão sendo fortalecidos por uma vontade anterior. Uma
vez que eles se sentem com direitos sobre a alma devido a uma falta de
resolução, eles a perturbam e oprimem. É preciso dobrá-los por meio da confissão.Com
efeito, os pensamentos maus fogem desde que triunfemos sobre eles. Assim como
as trevas se retiram quando aparece a luz, também a luz da confissão apaga os
pensamentos das paixões, que são como trevas. Pois a frivolidade e o
relaxamento produzidos pelos pensamentos foram destruídos pela vergonha que
acompanha a confissão e pelo mal que nos impomos para seguir a regra que nos
foi ordenada. Encontrando o intelecto livre das paixões daí para frente graças
à prece contínua e recolhida, eles fogem em confusão.
Com efeito, quando aquele que
combate se esforça por meio da oração para cortar pela raiz os pensamentos que
o perturbam, ele os afasta por algum tempo e destrói sua empreitada atacando-os
e lutando contra eles, mas não consegue se libertar totalmente, porque ainda
ama as causas destes pensamentos opressores: o conforto da carne e a consideração
do mundo, coisas que ele não confessou. Assim ele não alcança a paz, porque
manteve dentro de si os direitos do adversário. Que, possuindo coisas que não
são suas, não será arguido pelos proprietários? E quem se libertará dos que o perseguem,
se não se livrar daquilo que lhe é solicitado e que ele mantém erradamente? Mas
quando aquele que combate, fortificado pela memória de Deus, cessa de se
agarrar à carne e de confortá-la, e confessa irrepreensivelmente seus
pensamentos, logo os adversários se afastam, e o intelecto liberto pode se
consagrar à prece contínua e à meditação das coisas de Deus.
Afaste inteiramente toda
suspeita que você possa eventualmente alimentar em seu coração contra quem quer
que seja, pois isto destrói o amor e a paz. E aceite nobremente qualquer
infelicidade vinda de fora, porque ela suscita a paciência salutar, esta
paciência que permite permanecer e repousar nos céus.
Assim, conduzindo seus dias no
bem, você atravessará de bom coração a vida presente, na alegria das esperanças
bem-aventuradas. E na hora do seu êxodo, você deixará com toda confiança as
coisas daqui e partirá para os lugares do repouso que o Senhor lhe preparou,
para que você reine com ele quando ele recompensá-lo pelos esforços e penas que
você suportou aqui em baixo. A ele sejam dadas toda a glória, honra e adoração,
assim como a seu Pai que não teve começo e ao seu Espírito Santo, bom e
vivificante, agora e sempre pelos séculos dos séculos. Amém.
[1] Gálatas 5: 22.
[2] Mateus 13: 46.
[3]
Cf. Gálatas 3: 27.
[4]
Cf. Jeremias 36: 11.
[5] Salmo 33 (34): 15.
[6] Salmo 114 (115): 7.
[7] Mateus 8: 12.
[8] Salmo 90 (91): 9.
[9]
Cf. Mateus 7: 14.
[10] Salmo 90 (91): 10.
[11] Salmo 5: 6.
[12]
Cf. Salmo 90 (91): 10.
[13]
Cf. João 16: 22.
[14]
Cf. Salmo 90 (91): 11.
[15]
Cf. Salmo 90 (91): 13.
[16]
Cf. Salmo 90 (91): 15.
[17] Salmo 103 (104): 23.
[18] Salmo 118 (119): 97.
[19] Cf.
Êxodo 40: 32.
[20] Salmo 76 (77): 4.
[21] Salmo 55 (56): 10.
[22] Salmo 50 (51): 19.
[23] Deuteronômio 6: 5.
[24] Salmo 104 (105): 3.
[25] Salmo 50 (51): 19.
[26] Mateus 18: 20.
[27] Salmo 55 (56): 10.
[28]
II Timóteo 2: 19.
[29] Cf.
Lucas 18: 1.
[30] Cf.
Lucas 18: 2-5.
[31] Cf.
Gálatas 5: 16.
[32] Salmo 38 (39): 4.
[33] Salmo 118 (119): 103.
[34] Simandron, placa de madeira que servia
de sino. Ela representa tanto a madeira da cruz quanto a materialidade do
culto. Na Quinta-Feira Santa, em alguns lugares, ela substitui o sino.
[35]
Cf. Salmo 102 (103): 5.
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