NOVE CAPÍTULOS.
1. O intelecto, fugindo das
coisas exteriores e recolhendo-se nas que são interiores, retorna sobre si
mesmo. Deste modo ele faz corpo com a razão que é naturalmente inerente ao
pensamento e, por meio desta razão que está ligada ao seu próprio ser, ele se
consagra à oração.
Por meio da oração ele se
eleva no conhecimento de Deus com todo o poder e as disposições do amor. Então
o prazer da carne se vai, todas as sensações de prazer são suspensas e as
belezas da terra são deixadas para trás[1]. Pois a alma deixa atrás
de si todas as coisas do corpo e todas as coisas que cercam o corpo, e ela
própria segue atrás da beleza de Cristo. Ela o segue por meio das obras da
modéstia e da pureza intelectual. E assim ela canta: “As virgens serão
conduzidas atrás de você[2]”. Ela considera a Cristo
e, vendo-o de longe, diz: “Eu tenho sempre o Senhor diante de meus olhos, pois
ele está à minha direita[3]”. Ela se agarra a Cristo
com todo seu amor e diz: “Senhor, todo o meu desejo está diante de você[4]”. Ela não cessa de mirar
a Cristo, dizendo: “Meus olhos estão sempre voltados para o Senhor[5]”. Ela conversa com Cristo
na prece pura e se regozija em agradá-lo: “Minhas palavras lhe foram
agradáveis, eu me regozijarei no Senhor[6]”.
Quando ele recebe as palavras
da oração, quando é amado, quando é nomeado, quando lhe pedem auxílio, Deus
concede à alma que chore de alegria inefável. Pois, lembrando-se de Deus nas
palavras da prece, ela é cumulada de alegria pelo Senhor, e diz, com efeito:
“Eu me lembrei de Deus e me alegrei[7]”.
2. Fuja das sensações, e você
terá detido o prazer das coisas sensíveis. Fuja também das imaginações dos
prazeres no intelecto, e você terá detido a preguiça dos pensamentos. Uma vez
que o intelecto se veja livre de toda imaginação, não aceitando ser marcado nem
selado pelas condutas que buscam o prazer, nem pelos pensamentos submetidos ao
prazer, a inteligência se torna simples. Acima das coisas sensíveis e
inteligíveis, ele eleva o pensamento para Deus. Ela já não faz outra coisa que
repetir o nome do Senhor para tê-lo sempre na memória, como uma criança que
chama pelo pai. Pois foi dito: “Diante de você eu invocarei o nome do Senhor[8]”. E, assim como Adão,
formado a partir da terra pela mão de Deus, se tornou uma alma viva sob o sopro
divino[9], também quando a
invocação frequente canta o Senhor com toda pureza e fervor, a inteligência
modelada pelas virtudes se vê transformada por um chamado divino, é conduzida à
vida e deificada, pois agora ela conhece a ama a Deus.
3. Se por meio da prece
contínua, a prece pura, você se afastar do desejo das coisas terrestres, se em
lugar do sono você se desviar de todo pensamento que vier antes de Deus, se
você repousar inteiramente apenas com a lembrança de Deus, em você se
edificará, com um grande socorro[10], o amor de Deus. Pois o
apelo da oração bem ordenada suscita o amor divino. E o amor divino desperta o
intelecto revelando a ele seus segredos. Então o intelecto unido ao amor
recolhe o fruto da sabedoria e, por meio da sabedoria, ele anuncia os
mistérios. Pois Deus o Verbo chamado e nomeado pelo apelo bem ordenado da
oração recebe a reflexão do intelecto e lhe concede o conhecimento como a
costela de Adão. Colocando no lugar desta a boa disposição, ele concede a
virtude, edifica nele o amor luminoso que conduz ao intelecto extasiado, que
então dorme e repousa de todo desejo terrestre. O amor é assim o outro auxílio
do intelecto que repousa do pendor irracional pelas coisas sensíveis. Ele
desperta o intelecto que se purifica nas palavras da sabedoria. Então o
intelecto que o contempla e que dele recebe seu prazer anuncia aos demais, com
suas palavras, as secretas disposições das virtudes e as energias invisíveis do
conhecimento.
4. Afaste-se de tudo o que
diz respeito aos sentidos, abandone a lei da carne e a lei espiritual se
inscreverá em seu intelecto. Com efeito, do mesmo modo como aquele que caminha
pelo Espírito já não experimenta o desejo da carne[11], segundo o Apóstolo,
também aquele que se desembaraça das sensações e do sensível – vale dizer, da
carne e do mundo – começa a caminhar com o Espírito e a pensar nas coisas do
Espírito. Aprenda isto pensando no que fez Deus a Adão antes da desobediência.
5. Quem combate para guardar
os mandamentos, que persevera no paraíso da prece e permanece perto de Deus por
sua contínua lembrança, a este Deus separa dos prazeres da carne, de todos os
movimentos ligados aos sentidos e de todas as formas que investem contra o
pensamento. Ele o faz morrer para as paixões e o pecado, e lhe concede tomar
parte da vida divina. Com efeito, assim como quem dorme é semelhante a um
morto, embora esteja vivo (ele está como morto quanto à energia do corpo, mas
vive pela sinergia da alma), também aquele que habita no Espírito está morto para
a carne e o mundo, mas vive pelo sentido do Espírito.
6. Se você souber o que está
cantando, aprenderá a conhecer. Por meio desta descoberta você irá adquirir a
reflexão. E da compreensão germinará a prática das coisas que aprendeu. Com a
prática você portará em si o fruto do conhecimento vivido. E aquilo que você
conhecer pela experiência suscitará em você a verdadeira contemplação. Desta
surgirá a sabedoria que, pelas palavras radiantes da graça, preencherá o espaço
do intelecto, iluminando o que está oculto aos olhos de quem está fora.
7. O intelecto começa por
buscar, e então ele encontra[12]. Depois ele se une
Àquele a quem encontrou. A busca se faz pela razão, mas a união é obra do amor.
Aquilo que a razão busca conduz à verdade. A união pelo amor leva ao bem.
8. Aquele que vai além da
natureza flutuante das coisas presentes, que supera o prazer daquilo que é
passageiro, não vê as coisas de baixo nem é concupiscente para com os encantos
da terra[13].
Ele se abre para as visões do alto, contempla as belezas que estão no céu e
considera a beatitude daquilo que permanece em estado puro. Com efeito, assim
como os céus estão fechados para aqueles que permanecem de boca aberta diante
das coisas da terra e que se debruçam sobre os prazeres da carne – pois seus
olhos espirituais se encontram nas trevas – também aquele que despreza das
coisas de baixo e delas se desvia mantém seu intelecto nas alturas e vê a
glória das coisas eternas. Este considera o esplendor que repousa nos santos.
Ele recebe sobre si o amor de Deus que desce do alto, torna-se templo do
Espírito Santo, deseja a vontade divina, é conduzido pelo Espírito de Deus e se
torna digno da adoção: Deus lhe concede sua benevolência e se agrada dele. Pois
os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, são estes os filhos de Deus[14].
9. Enquanto você respirar,
que nenhum estado de fraqueza o faça renunciar à oração, nem por um único dia,
se você escutar àquele que disse: “Quando eu sou fraco, é então que sou forte[15]”. Você receberá um
grande benefício se agir desta maneira. Com a ajuda da graça, a prece o
restabelecerá rapidamente. Pois aonde está a consolação do Espírito, a fraqueza
e o abatimento não duram.
[1]
Cf. Salmo 73 (74): 17.
[2] Salmo 44 (45): 15.
[3] Salmo 15 (16): 8.
[4] Salmo 37 (38): 10.
[5] Salmo 24 (25): 15.
[6] Salmo 103 (104): 34.
[7] Salmo 76 (77): 4.
[8] Êxodo 33: 19.
[9]
Cf. Gênesis 2: 7.
[10]
Cf. Gênesis 2: 21-22.
[11]
Cf. Gálatas 5: 16.
[12]
Cf. Mateus 7: 8.
[13] Cf.
Salmo 73 (74): 17.
[14] Romanos 8: 14.
[15] II
Coríntios 12: 10.
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