NICÉFORO O SOLITÁRIO
SOBRE A SOBRIEDADE, A VIGILÂNCIA
E A GUARDA DO CORAÇÃO
Nicéforo o Solitário
Nicéforo, nosso bem-aventurado
Pai, que conduziu os combates da ascese sobre a santa Montanha de Athos, viveu
ao redor dos anos 1340. Ele foi mestre e iniciador de Gregório de Tessalônica,
a quem entregou os mais altos ensinamentos da filosofia ascética, como o atesta
o próprio Gregório a seu respeito. Tendo se consagrado na solidão à hesíquia
longe de qualquer distração, e por sua união consigo mesmo indizivelmente unido
para além do mundo aos cumes do desejável, ele conheceu em toda a beatitude de
seu coração a iluminação anipostática da graça. Cumulado em si próprio pela
inimitável imagem da deificação e pela riqueza do dom deificante, o bem-aventurado,
como um pai, nos transmitiu abundantemente este dom através da presente obra,
se é que somos dignos destes velhos monges semelhantes a ele. Ele os reuniu em
passagens que contam as biografias de santos Padres consagrados à sobriedade e
à vigilância, à atenção e à prece. E ainda acrescentou de sua lavra um método
verdadeiramente natural e sábio: a penetração do intelecto no coração e a
invocação do Senhor Jesus como uma regra precisa da santa nepsis e como uma escada de prece pura e sem
distração, e dos bens suscitados por esta. Como um novo Betsalel, ele sustentou
os que desejam ser salvos, trabalhando assim na obra do arquiteto do Espírito.
Portanto subam, subam todos
vocês que desejam que Cristo venha a habitar em seu coração, que desejam ser
transfigurados de glória em glória no ícone que o Espírito Santo fará de vocês,
que desejam ser deificados e tornados dignos da parte luminosa dos que se
salvam.
*
Nicéforo o Solitário viveu no século XIII. De origem italiana, trânsfugo
do Ocidente cristão, ele se fez monge no Monte Athos, onde tomou o partido da
dupla radicalidade da vida hesiquiasta e da tradição ortodoxa. No curto texto
que deixou em testemunho e que transmitiu a seus discípulos ele vai diretamente
ao coração da experiência monástica: o sentido e o objetivo da vida cristã é a
transfiguração. “Queimar de luminosa alegria”, diz ele. Uma só coisa é necessária:
fugir em pensamento das “trevas do século presente” e buscar “o tesouro que
está no interior do coração”, exigência e incitação que Nicéforo fundamenta
sobre um florilégio de passagens comentadas dos feitos e ditos de alguns Padres
que abriram, balizaram e ilustraram a via: Antônio, Teodósio, Sabbas, Agatão,
Marcos, João Clímaco, Isaías, Macário, Diádoco, Isaac o Sírio, João de
Cárpatos, Simeão o Novo Teólogo. Ao final, ele próprio dá seu testemunho, todo
centrado na atenção, na ascese da inteligência, na guarda do coração, na nepsis dos Padres, a sobriedade e a
vigilância.
Mas esta ascese não se improvisa. Não há outra coisa a fazer, lembra
Nicéforo, do que buscar um “guia seguro”, capaz de dar testemunho e transmitir.
Somente se faltar este exemplo vivo, é proposto um “método”: “Faça penetrar o
intelecto pela via por onde o sopro penetra no coração”. Assim é que o
caminhamento natural que, por meio da inspiração, leva o ar – o sopro – aos pulmões,
e depois, por intermédio do sangue, o conduz dos pulmões ao coração, se torna
simultaneamente a metáfora e a realidade do encaminhamento do intelecto que
ora. Nicéforo é aqui o primeiro e o único a haver isolado e formulado o que não
é dito da experiência hesiquiasta, mesmo correndo o risco de encerrá-la naquilo
que hoje em dia chamaríamos de procedimento psicossomático e de dar a entender
que o não-dito possa prevalecer sobre o caráter profundamente bíblico e
eclesial da mensagem filocálica. Pois se Nicéforo não faz senão codificar uma
prática milenar que remonta ao deserto do Egito e ao Sinai, esta, que os
anacoretas chamavam de “meditação secreta”, não poderia por si só representar
as bases e as finalidades da vida monástica.
Nestas circunstâncias esta codificação teve uma dupla consequência. O “método”
serviu, com toda evidência, de fermento para a renovação hesiquiasta dos
séculos XIII e XIV. Mas ao dar à prece do coração as aparências de um exercício
psicossomático limitado e autossuficiente ele também permitiu os ataques
intempestivos dos adversários do hesiquiasmo. Foi então que Gregório Palamas saiu
em sua defesa situando-a no coração quebrantado e luminoso da tradição
teológica e eclesial da ortodoxia, no abismo da misericórdia, em pleno
infinito. Assim se estabeleceu o lugar eminente do testemunho de Nicéforo,
tanto em seu tempo como na antologia filocálica.
TRATADO DA SOBRIEDADE
E DA GUARDA DO CORAÇÃO
Vocês que ardem por obter a grandiosa e divina luz de Nosso Salvador
Jesus Cristo, vocês que querem captar sensivelmente no coração o fogo mais que
celeste, vocês que se esforçam por obter a experiência e sentir a reconciliação
com Deus, vocês que deixaram todos os bens deste mundo para descobrir e possuir
o tesouro que se esconde[1]
nos campos do coração, vocês que desejam partir desta terra e abrasar com a
bem-aventurada luz as tochas da alma, e que, para tanto, renunciaram a todas as
coisas presentes; vocês que querem conhecer e apoderar-se com um conhecimento
experimental do reino de Deus presente no seu interior[2],
venham, porque vou expor a ciência, ou melhor o método da vida eterna, ou
melhor da vida celeste, que introduz, sem fadiga nem suor, aquele que o pratica
no porto da impassibilidade. Ele não teme nem a sedução nem o terror[3]
que vêm dos demônios. Este método só perde sua razão de ser quando, por
desobediência, marchamos longe da vida que lhes exponho. É o que aconteceu a
Adão. Por haver desprezado o preceito divino, por ter se ligado à serpente,
confiado nela e se deixado fartar do fruto enganador[4],
ele precipitou-se lamentavelmente, e com ele sua descendência, nas goelas da
morte, das trevas e da corrupção.
Retornem, portanto – para falar mais exatamente, retornem a si mesmos,
meus irmãos, rejeitando com o maior desprezo o conselho da serpente a perdição
que nos arrasta ao mais baixo ponto. Pois só existe um meio para se alcançar a
reconciliação e a união com Deus: retornar, em primeiro lugar e tanto quanto
pudermos, a nós mesmos, ou melhor – por um paradoxo –, penetrar em nós mesmos,
nos separando do comércio do mundo e dos desejos vãos, para nos ligarmos
indefectivelmente ao Reino dos céus que está dentro de nós[5].
É por isso que a vida monástica recebeu o nome de “ciência das
ciências e arte das artes[6]”.
Pois esta vida santa não nos é estranha e não tem nada em comum com as
vantagens corruptíveis daqui embaixo que desviam nosso espírito da melhor parte
para nos enterrar sob seus aluviões. Ela nos promete bens maravilhosos e
inefáveis, “como o olho jamais viu, o ouvido jamais ouviu, nem o coração do
homem imaginou[7]”.
Da mesma forma, “não devemos lutar contra a carne e o sangue, mas contra as
dominações, as potências, os príncipes das trevas deste século[8]”.
Como o século presente não é feito senão de trevas, fujamos, fujamos dele mesmo
em pensamento. Que não haja nada de comum entre nós e o inimigo de Deus, pois
“aquele que tornar-se amigo dele tornar-se-á inimigo de Deus[9]”.
E àquele que se tornou inimigo de Deus, quem poderá ajudar?
Imitemos portanto nossos Padres e, seguindo-os, busquemos o tesouro
escondido em nossos corações e, tendo-o descoberto, seguremo-lo com todas as
nossas forças para a um tempo guardá-lo e valorizá-lo[10].
É para isto que fomos nós destinados originalmente. Se algum novo Nicodemo
quiser zombar a respeito: “Como é possível entrar no coração para aí viver e
trabalhar?[11]”,
ele terá direito à resposta que o próprio Salvador deu à objeção do primeiro Nicodemos:
“O Espírito sopra aonde bem entende[12]”.
Se por falta de fé duvidarmos das obras da vida ativa, como chegaremos às obras
da contemplação? Pois a ação é o caminho que leva à contemplação.
Mas, como é impossível convencer um espírito tão incrédulo sem provas
escritas, vou apresentar no presente tratado, para proveito de todos, as vidas
dos santos e seus escritos. Convencido, ele rejeitará todas as dúvidas.
Começaremos por nosso pai, santo Antônio o Grande, seguindo com sua
posteridade, e colheremos, com o melhor de nós, as peças de convencimento
contidas nas palavras e na conduta destes santos.
EXTRATO DA VIDA DE NOSSO PAI
SANTO ANTÔNIO[13]
“Um dia, dois irmãos puseram-se a caminho para irem ao encontro do
santo abade Antônio. Durante o caminho, faltou-lhes água; um morreu, e o outro
sentiu que não duraria muito mais tempo; sem forças para prosseguir, ele
deitou-se no chão a esperar a morte. Antônio, que estava sentado sobre uma
montanha, chamou dois monges que estavam por lá, e apressou-os, dizendo:
“Peguem um cantil com água e corram ao caminho que leva ao Egito; dois irmãos
vinham por ali, um acaba de morrer e o outro não durará muito, se vocês não
forem diligentes; isto me foi manifestado enquanto eu estava em oração.” Os
monges colocaram-se a caminho, encontraram o morto e o enterraram; eles
recuperaram o outro com água e o conduziram ao ancião, pois distavam um dia de
marcha.
Podemos nos perguntar por que Antônio não dissera nada antes da morte
do primeiro; mas esta questão é deslocada. Não dependia de Antônio decidir
sobre aquela morte, mas somente a Deus que resolveu deixar morrer um e revelar-lhe
o estado do segundo. O que há de maravilhoso da parte de Antônio é que, sentado
sobre a montanha, ele tinha o coração sóbrio e vigilante, tendo Deus lhe
revelado acontecimentos distantes.
Vemos com isto que Antônio, graças à sobriedade e vigilância de seu
coração, foi gratificado com a visão divina e a vista longínqua. Pois Deus, nos
diz João da Escada, “manifesta-se ao espírito no coração, primeiro para
purificar aquele que o ama, depois como uma luz que ilumina o intelecto,
tornando-o obra de Deus[14]”.
DA VIDA DE SANTO TEODÓSIO O CENOBIARCA
(séculos V-VI)[15]
São Teodósio foi atingido pela flecha suave da caridade e tornou-se
seu prisioneiro a ponto de consumir em suas obras o sublime e divino
mandamento: “Amarás ao Senhor teu Deus com todo o coração, com toda sua alma,
com todo seu pensamento[16]”.
Isto só foi possível porque todas as potências naturais de sua alma tendiam
unicamente ao amor de seu Criador, à exclusão de todos os objetos aqui de
baixo.
Eu falo das atividades intelectuais de sua alma. Ele também inspirava
reverência quando consolava e era por outro lado a própria doçura e afabilidade
quando repreendia. Quem teve relações mais úteis a todos, sendo ao mesmo tempo
capaz de recolher seus sentidos e dirigi-los para dentro de si mesmo, a ponto
de enfrentar a agitação do mundo com a mesma tranquilidade que o deserto? Quem
foi mais capaz de permanecer em si tanto na multidão quanto no isolamento? É
assim que, recolhendo seu espírito para introduzi-los em si mesmo, nosso grande
Teodósio foi atingido pelo amor do Criador[17].
DA VIDA DE SANTO ARSÊNIO[18]
O admirável Arsênio criou para si uma regra de jamais tratar nada por
escrito e de jamais escrever sequer uma carta. Não que ele não fosse capaz.
Era-lhe mais fácil ser eloquente do que a um outro falar com simplicidade. Não,
era unicamente pelo hábito do silêncio e pela repugnância a aparecer. Pela
mesma razão, ele tinha o cuidado, após as reuniões da comunidade, em não ver
ninguém nem ser visto: ele se colocava atrás de um pilar ou de qualquer
obstáculo para esconder-se dos demais assistentes. Ele queria com isto vigiar a
si mesmo, recolher seu espírito e assim, elevar-se a Deus com mais facilidade.
Um novo exemplo de homem santo, verdadeiro anjo sobre a terra, que recolheu em
si o espírito para elevar-se sem penas a Deus.
DA VIDA DE SÃO PAULO DE LATROS (+ 955)[19]
São Paulo quase não deixava as montanhas e os lugares desertos. Os
animais selvagens eram seus companheiros e seus convivas. Um dia ele achou bom
descer para visitar os irmãos. Ele então os exortou e os ensinou a se mostrarem
corajosos, a nunca negligenciar preguiçosamente os trabalhos penosos da virtude
mas a se dedicarem com extrema atenção e discrição à vida evangélica e a
combater valentemente os espíritos do mal. Ele expôs um método para reconhecer
as sugestões da paixão e evitar as sementes clandestinas das paixões.
Vocês viram nosso santo Pai ensinar a seus discípulos ignorantes um
método para afastar as sugestões das paixões? Este método não era outro que a
guarda do espírito, pois esta é sua obra e de nenhum outro. Vamos em frente.
DA VIDA DE SÃO SABBAS (século VI)[20]
Quando são Sabbas notava um noviço que ainda não havia aprendido bem a
regra da vida monástica, e que já era capaz de guardar seu intelecto, de
combater contra os pensamentos do inimigo, uma pessoa que havia banido de seu
coração a lembrança do mundo, ele lhe reservava uma cela no meio da mosteiro,
se ele tivesse a saúde delicada. Se ele fosse robusto, ele permitia que ele
construísse sua própria cela.
Vocês veem como são Sabbas exigia de seus discípulos a guarda do
espírito, para lhe conceder uma cela e permitir que habitasse nela? Que faremos
nós, que vivemos ociosamente na cela, sem sequer sabermos que existe uma guarda
do intelecto?
DA VIDA DE SÃO ÁGATÃO[21]
Um irmão perguntou ao abade Ágatão: “Abade, diga-me qual dos dois é o
melhor: o trabalho corporal ou a guarda do seu interior?” Ágatão respondeu: “O
homem é como uma árvore: o trabalho corporal são as folhas, a guarda do
espírito é o fruto. Está escrito que toda árvore que não produz fruto será
cortada e atirada ao fogo[22].
Segue-se claramente daí que todo nosso esforço deve estar centrado nos frutos,
entenda-se: na guarda do espírito. Mas também são necessárias a sombra e o
frescor das folhas, ou seja, o trabalho corporal.”
Admirem como nosso santo se expressa a respeito daqueles que não
possuem a guarda do intelecto. Daqueles que só podem se prevalecer da vida
ativa, ele dizia: “toda árvore que não dá fruto”, ou seja a guarda do
intelecto, e que só tem folhas, ou seja a vida ativa, será cortada e atirada ao
fogo. Terrível sentença, meu Pai!
DO ABADE MARCOS A NICOLAU[23]
“Meu filho, você quer ter sua própria lâmpada, possuir dentro de você a
luz do conhecimento espiritual, a fim de caminhar sem hesitação na noite
profunda deste século, que o Senhor dirija seus passos e que você deseje com
ardente fé a via do Evangelho[24],
ou seja, comungar, pelo desejo e pela prece, com os preceitos evangélicos perfeitos
do Senhor? Vou lhe mostrar um método maravilhoso e uma invenção espiritual. Ele
não exige nem fadiga nem combate corporais, mas uma fadiga espiritual e uma
atenção do espírito apoiada no temor e no amor a Deus e, com este método, Você
derrotará sem trabalho a falange dos inimigos.
Se portanto você quiser obter a vitória contra as paixões, recolha-se pela
oração e a sinergia de Deus, entre em si mesmo, mergulhe nas profundezas do seu
coração, siga a pista destes três gigantes poderosos: o esquecimento, a
preguiça e a ignorância, que são o ponto de apoio dos estrangeiros inteligíveis.
É através deles que as outras paixões más insinuam-se na alma, operam, vivem e
prevalecem numa alma ligada aos prazeres. Uma grande atenção e discernimento do
intelecto, unido ao impulso do alto, o fará descobrir o que permanece
desconhecido à maioria, e você poderá assim, com grande esforço de prece e
atenção, libertar-se dos gigantes do mal. Pois, pelo desejo do verdadeiro
conhecimento, da memória da palavra de Deus, da boa harmonia, e por meio da
graça que age sobre o coração que se esforça por ser firme e se proteger
cuidadosamente, desaparecerão o esquecimento, a ignorância e a negligência.
Veem a unanimidade das palavras espirituais, e como elas nos expõem
claramente a ciência da atenção? Escutemos os próximos.
SÃO JOÃO DA ESCADA[25]
O hesiquiasta é aquele que, paradoxalmente, esforça-se por
circunscrever o incorpóreo em uma moradia carnal. O hesiquiasta é aquele que
diz: “Eu durmo, mas meu coração vela[26]”.
Feche a porta de sua cela ao seu corpo, a porta de sua boca à palavra, e sua
porta interior aos espíritos. Sentado no alto observe, se souber, e você verá a
maneira, o momento, a origem, o número e a natureza dos ladrões que querem se
introduzir na sua vinha para roubar as uvas. A sentinela está fatigada, ela se
levanta para orar, depois ele se senta e se coloca valentemente em sua ocupação.
Uma coisa é a guarda dos pensamentos, outra a guarda do intelecto: entre elas
existe toda a distância do oriente ao ocidente[27],
e a segunda é bem mais difícil. Os ladrões que percebem em algum lugar os
exércitos do rei não se aventuram ali; da mesma forma, aquele que uniu a prece
ao seu coração praticamente não corre o risco de ser despojado pelos ladrões
espirituais.
Vejam a obra admirável que nos revela nosso santo Pai. E dizer que nós
caminhamos nas trevas, como em um combate noturno; não ouvimos as preciosas
palavras do Espírito e, voluntariamente surdos, passamos ao largo. Prossigamos.
Vejamos como outros Padres nos convidam à sobriedade e à vigilância.
DO ABADE ISAÍAS (+ 488)[28]
Aquele que se separa do que está à sua esquerda (o mal), conhece então
completamente todos os pecados que cometeu contra Deus, porque não vemos os
pecados senão quando nos separamos dolorosamente deles. Quem chega a este grau
encontra as lamentações, a prece e a vergonha perante Deus, diante da lembrança
de sua má ligação com as paixões. Esforcemo-nos portanto, meus irmãos, tanto
quanto pudermos, e Deus trabalhará conosco segundo a abundância de sua
misericórdia. Se não guardamos nosso coração a exemplo de nossos pais, ao menos
apliquemo-nos, na medida de nossas possibilidades, em guardar nosso corpo sem
pecado como Deus nos pede, e tenhamos fé em que, na hora da fome[29],
ele nos enviará sua misericórdia como o fez aos seus santos.
Com estas últimas palavras nosso santo consola os fracos: “Ainda que
tenhamos guardado nosso coração como fizeram os Padres, guardemos também nosso
corpo sem pecados, como pede Deus, que tem compaixão por nós”. Tanta é a misericórdia
e a piedade de tão grande santo!
MACÁRIO O GRANDE[30]
A obra mestra do atleta, é de penetrar em seu coração, combater e
detestar Satanás e engajar-se numa gueraa contra ele atacando seus pensamentos.
Aquele que guarda seu corpo visível da corrupção e do adultério mas comete o
adultério interiormente ante Deus prostituindo seus pensamentos – de nada lhe
servirá um corpo virgem. Porque está escrito: “Aquele que olha para uma mulher
para desejá-la já cometeu adultério em seu coração[31]”.
Existe um adultério que se consuma no corpo e existe o adultério da alma que se
entrega a Satanás.
Nosso Pai parece contradizer as palavras citadas do abade Isaías, mas
não é o que acontece. Pois Isaías prescreve “guardar o corpo como Deus nos
pede”; ora, Deus não pede apenas a pureza do corpo, mas também a do espírito.
Assim, por meio dos mandamentos evangélicos, o abade Isaías dizia a mesma
coisa.
DIÁDOCO DE FOTICÉIA[32]
Aquele que habita sem cessar em seu coração acaba por abandonar os
encantos desta vida. Caminhando segundo o espírito, ele não conhece mais os
desejos da carne[33].
Como ele vai e vem no castelo das virtudes que são por assim dizer as guardiãs
das portas, os planos dos demônios não fazem efeito sobre ele.
Diz bem o santo que os planos do demônio não têm efeito sobre nós
quando vivemos nas profundezas de nosso coração, e isto na medida mesma em que
aí permaneçamos mais tempo. Mas percebo que vai faltar-me o tempo[34]
para consignar, como eu queria, os propósitos de todos os Pais. Mencionarei
apenas mais alguns e tentarei concluir a partir daí.
ISAAC O SÍRIO[35]
Aplique-se em entrar na sua câmara interior e você verá o tesouro
celeste. Pois tudo é uma só coisa e a mesma porta abre para a contemplação das
duas. A escada deste Reino está oculta dentro de você, na sua alma. Mergulhe
nela, lave-se do pecado e você descobrirá os degraus nos quais subir.
JOÃO DE CÁRPATOS[36]
É preciso combater muito e se esforçar nas orações para descobrir o
estado sereno da reflexão, este segundo coração celeste no qual habita o
Cristo. Escutem o apóstolo: “Não sabeis que o Cristo habita em vós? A menos que
sejais os reprovados[37]”.
SIMEÃO O NOVO TEÓLOGO[38]
O diabo e seus demônios, desde o dia em que a desobediência baniu o
homem do paraíso e do contato com Deus, têm licença para agitar espiritualmente
a alma do homem, de dia e de noite, seja pouco, seja muito, seja demais. O
único meio de se proteger é a lembrança constante de Deus: a lembrança de Deus
gravada no coração pela virtude da cruz firma inquebrantavelmente o espírito.
Este é o objeto do combate espiritual que o cristão deve levar no estado de fé
cristã e para o qual ele revestiu-se da armadura. Senão, ele combate em vão.
Este combate é a única razão das várias asceses com as quais maltratamos o
corpo por causa de Deus. Trata-se de forçar as entranhas do Deus de Bondade, de
recuperar sua dignidade primeira e de imprimir o Cristo, tal qual um selo, na
razão, conforme as palavras do apóstolo: “Minhas crianças, eu estou em trabalho
de parto desde que o Cristo formou-se em vocêss[39]”.
Vocês compreendem agora, meus irmãos, que existe uma arte, ou antes um
método espiritual, para levar rapidamente quem o emprega à impassibilidade e à visão de Deus.
Convençam-se de que a vida ativa vale para Deus tanto quanto as folhas da
árvore, que não servirão de nada à alma que não possuir a guarda do espírito, o
fruto. Façamos tudo para não morrermos estéreis e não termos que conhecer
arrependimentos inúteis.
PERGUNTA E RESPOSTA DE NICÉFORO
Questão: Seu tratado nos ensina a conduta daqueles que agradam
ao Senhor; ele nos ensina que existe uma ocupação que liberta prontamente a
alma de suas paixões e que ela é necessária a todo cristão que se alistou no
exército de Cristo: não duvidamos mais, estamos convencidos. Mas o que é a
atenção? Como chegar a ela? É o que queremos saber, pois não temos a respeito a
menor ideia.
Resposta: Em nome de nosso senhor Jesus Cristo que disse: “Sem
mim vocês nada podem[40]”
e depois de ter invocado sua ajuda e seu socorro, tentarei mostrar o melhor que
puder o que é a atenção e como, com a graça de Deus, podemos alcançá-la.
DO MESMO NICÉFORO
Alguns santos chamaram a atenção de “guarda do intelecto”, outros de
“guarda do coração”, ou de “sobriedade e vigilância”, ou de “hesíquia
intelectual”, e de outros nomes ainda. Diferentes expressões que querem dizer a
mesma coisa, como quem diz pão, filãozinho ou pão francês.
O que é a atenção, quais são suas propriedades? Escutem-me com bem. A
atenção é o sinal da penitência cumprida; a atenção é a lembrança da alma, a
aversão ao mundo e o retorno a Deus. A atenção, é desvestir-se dos pecados e
revestir-se da virtude. A atenção é a certeza indubitável do perdão dos
pecados. A atenção é o princípio da contemplação, ou melhor, é sua base
permanente. Graças a ela, Deus se inclina sobre o espírito para manifestar-se a
ele. A atenção é a serenidade do intelecto, ou melhor, seu estado imóvel, sua
fixação à alma pela misericórdia de Deus. A atenção é a purificação dos
pensamentos, o templo da lembrança de Deus. Ela guarda como um tesouro a
paciência para suportar as provas. A atenção é a auxiliar da fé, da esperança e
da caridade. Sem a fé, não suportaríamos as provas que vêm de fora: aquele que
não aceita com alegria as provas não pode dizer ao Senhor: “Você é meu socorro
e meu refúgio[41]”.
E, se ele não faz seu refúgio no Altíssimo, ele não possuirá amor no fundo do
seu coração[42].
Este efeito sublime chega à maioria, para não dizer a todos, pelo
canal do ensinamento. É muito raro recebê-lo de Deus, dispensando um mestre,
apenas com o vigor da ação e o fervor da fé. Ora, exceções não fazem leis. É
importante assim buscar um mestre infalível: suas lições nos mostrarão nossos
desvios, à esquerda e à direita, e também nossos excessos aos quais nos conduz
o maligno; este guia nos iluminará com sua experiência pessoal nestas provas[43],
nos esclarecerá a respeito e nos mostrará, sem dúvidas, o caminho espiritual
que então poderemos percorrer sem dificuldade. Se você não tem um mestre,
procure um a qualquer custo. Se você não o encontrar, invoque a Deus com
espírito contrito e em lágrimas, suplique-lhe com todo o despojamento e faça o
que eu vou lhe dizer.
Você sabe que nosso sopro, o ar de nossa inspiração, nós só o respiramos
por causa do coração. Pois é o coração que é o princípio da vida e o calor do
corpo. O coração atrai o sopro a fim de expelir seu próprio calor para fora
pela expiração, assegurando assim para si uma temperatura ideal. O autor desta
organização, ou melhor seu instrumento, é o pulmão. Fabricado pelo Criador com
um tecido fino e poroso, sem parar ele introduz e expele o ar à maneira de um
fole. Desta forma o coração, por um lado atraindo o ar fresco pela inspiração e
expelindo o calor pela expiração, conserva inviolável a função que lhe foi
assinalada no equilíbrio geral do ser vivo. Quanto a você, como eu disse,
sente-se, recolha seu intelecto, introduza-o – o intelecto – nas suas narinas;
é o caminho que o ar toma para chegar ao coração. Empurre-o, faça-o descer até
seu coração junto com o ar inspirado. Quando ele chegar lá, você verá a alegria
que irá se seguir; você não tem nada a temer. Assim como o homem que volta para
casa depois de uma ausência não retém sua alegria de poder reencontrar sua
esposa e filhos, também o intelecto, quando está unido à alma, transborda de
uma felicidade e experimenta delícias inefáveis.
Meu irmão, acostume então seu intelecto a não se apressar em sair do
coração. No início faltará zelo, é o mínimo que podemos dizer, para esta reclusão
e este encerramento interiores. Mas, uma vez adquirido o hábito, ele não
experimentará mais prazer alguns nos circuitos exteriores. Pois o reino e Deus
está dentro de nós[44]
e a quem voltar para ele seu olhar e o buscar com uma prece pura, todo o mundo
exterior se tornará vil e desprezível.
Se, logo no começo, você penetrar pelo intelecto no lugar do coração
que eu lhe mostrei, graças a Deus! Glorifique-o, exulte e agarre-se unicamente
a este exercício. Ele lhe ensinará o que você ignora. Saiba a seguir que, enquanto seu intelecto se
acha lá, você não deve nem se deter nem permanecer ocioso; dê a ele como tarefa
e exercício contínuo a prece: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade
de mim”. Sem trégua, por preço algum! Esta prática, mantendo seu espírito ao
abrigo das divagações, o torna impenetrável e inacessível às sugestões do
inimigo e, a cada dia, ele crescerá no amor e no desejo por Deus.
Mas se, meu irmão, apesar de
todos os seus esforços, você não conseguir penetrar nas partes do coração
indicadas por mim, faça como eu lhe disse, e, com a ajuda de Deus, você
alcançará seus objetivos. Saiba que a razão de todo homem está no coração. Pois
é no coração, quando nossos lábios se calam, que falamos, deliberamos,
colocamos nossas orações, os salmos e muitas outras coisas. Quando você tiver
despojado sua razão de todo pensamento – e você pode, é só querer – dê-lhe o
“Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” e obrigue-o a clamar interiormente, à
exclusão de qualquer outro pensamento, estas palavras. Quando, com o tempo,
você se tornar mestre nesta prática ela lhe abrirá a entrada do coração, assim
como eu lhe disse, indubitavelmente. Eu mesmo fiz esta experiência. Com alegria
da tão desejada atenção você verá chegarem-lhe todos os coros das virtudes, do
amor, da felicidade, da paz e do resto[45].
Graças a elas, todas as sua demandas serão atendidas por Nosso Senhor Jesus
Cristo.
[1] Cf. Mateus 13: 44.
[2]
Cf. Lucas 17: 21.
[3] E não “queda”, como às
vezes se traduz.
[4]
Cf. Gênesis 3: 21s.
[5] Cf.
Lucas 17: 21
[6] Esta expressão, empregada por Gregório de Nazianze à direção
das almas, foi rapidamente confiscada pela corrente hesiquiasta.
[7] I Coríntios 2: 9
[8] Efésios 6: 12.
[9] Tiago 4: 4.
[10]
Cf. Gênesis 2: 15.
[11] João 3: 4.
[12] João 3: 8.
[13]
Cf. Santo Atanásio, Vida e conduta de
nosso Pai santo Antônio 59.
[14]
Cf. São João Clímaco, A escada santa
XXVIII, 54.
[15] Cf.
Teodoro de Petra, Vida de são Teodósio,
in Monges do Oriente III, 3.
[16] Deuteronômio 6: 5.
[17]
Cf. Cântico dos Cânticos 2: 5.
[18]
Cf. Sentenças dos Padres do Deserto,
Arsênio 42.
[19]
Monge bizantino. O mosteiro de Latros se encontrava na Bitínia, reino da Ásia
Menor próximo ao Mar Negro, que teve como capitais Nicomédia e Nicéia.
[20]
Cf. Cirilo de Citópolis, Vida de são
Sabbas, in Monges do Oriente III,
2.
[21]
Cf. Sentenças dos Padres do Deserto,
Agatão 8.
[22] Mateus 3: 10.
[23]
Cf. Marcos o Asceta, Carta ao monge
Nicolas.
[24]
Cf. Salmo 111 (112): 1.
[25]
São João Clímaco, A escada santa,
XXVII 7, 18,19, 23; XXVI 61; XXVI 34.
[26]
Cf. Cântico dos Cânticos 5: 2.
[27] Cf.
Salmo 102 (103): 12.
[28]
Isaías o Anacoreta, Sobre a guarda do
intelecto 17.
[29] Cf.
Rute 1: 8.
[30] Homilias espirituais de são Macário
XXVI, 12 SO 40.
[31] Mateus,
5:28.
[32]
Diádoco de Foticéia, Capítulos
espirituais 57.
[33] Cf.
Gálatas 5: 16.
[34]
Cf. Hebreus 11: 32.
[35]
Passagem não identificada.
[36] Aos monges da Índia 52.
[37] II
Coríntios 13: 5.
[38] Passagem
não identificada.
[39] Gálatas 4: 19.
[40] João
15: 5.
[41] Salmo 3: 4.
[42] Esta anexação de toda vida espiritual pela atenção é um dos
traços característicos do hesiquiasmo sinaíta (cf. Hesíquio)
[43]
Cf. Hebreus 2: 18.
[44]
Cf. Lucas 17: 21.
[45]
Cf. Gálatas 5: 12.
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