1.1. Inter-relações entre alma, nous, coração e mente
Nos textos da Sagrada Escritura e nos santos Padres existe confusão,
mas também distinção, entre os termos alma, nous,
coração e mente (dianoia). Qualquer
um que se deleite com os escritos do Padres e do Novo testamento, primeiro
encara o problema da confusão entre esses conceitos e termos. Eles são
intercambiáveis. Eu estive ocupado com esse tema por muitos anos e tentei
encontrar uma solução. Lendo as biografias daqueles que trataram do assunto,
descobri que, com poucas exceções, eles eram incapazes de determinar as
relações e a distinção entre esses termos. Assim sendo, nesta seção eu vou
tentar distingui-los e descrever a estrutura dentro da qual cada um deles
trabalha.
Já explicamos que a alma do homem é feita à imagem de Deus, e uma vez
que a alma dá a vida ao corpo ao qual está ligada, a imagem no homem é mais
forte do que a imagem nos anjos. Uma vez que a alma está por todo o corpo,
tanto o homem completo como seu corpo podem ser vistos como imagens de Deus. O
hino de São João Damasceno que é cantado no serviço funeral é característico:
“Eu gemo e me lamento quando penso na morte, e contemplo nossa beleza, talhada
segundo a imagem de Deus, jazendo desfigurada no túmulo, desfigurada,
desonrada, despojada de sua forma”. É evidente que neste hino a imagem se
refere ao corpo que está no túmulo.
1.1.1.
Nous e
alma
Nos textos do Novo Testamento e nos Padres, a alma é identificada com
o nous. Os termos nous e alma são intercambiáveis. São
João Damasceno escreve que o nous é a
parte mais pura da alma, são os olhos da alma: “A alma não tem no nous algo distinto dela própria, mas
como sua parte mais pura, pois, como são os olhos para o corpo, assim é o nous para a alma”. É neste sentido que
ele diz que o nous são os olhos da
alma.
São Gregório Palamas usa o termo nous
em dois sentidos. Pode se tratar da alma por inteiro, a imagem, mas também pode
ser a potência da alma, conforme explicamos, porque, assim como o Deus
Trinitário é Nous, Verbo e Espírito,
também a alma possui o nous, a
palavra e o espírito. De acordo com o santo Athonita, o nous identifica-se com a alma, mas é também uma potência da alma,
devo citar uma passagem característica que contém esses conceitos:. Depois da
criação do home, escreve o santo, os anjos viram com seus olhos “a alma do
homem unida aos sentidos e à carne, e era como se vissem outro deus, não apenas
existindo na terra por intermédio da divina bondade, carne e nous num só homem, mas ainda
transformado por essa extravagância e pela graça de Deus, de modo a se tornar
carne, nous e espírito, e de tal
maneira a que a alma possuísse a imagem e a semelhança de Deus, completamente
unificada em nous, palavra e
espírito”.
Destacamos os seguintes pontos neste texto. No início, ele fala da
alma unida à carne e aos sentidos. Pouco depois os termos ‘alma’ e ‘nous’ são intercambiados: ao invés de
‘alma’, ele utiliza ‘nous’, “nous e carne num mesmo homem”. Em
seguida ele emprega a divisão carne, nous
e espírito, sendo o espírito a graça do Espírito Santo, uma vez que Deus não
conformou o homem apenas em alma e corpo, “mas também favoreceu-o divinamente
com a graça. Pois está é verdadeiramente a alma viva”. Depois disso ele escreve
que a alma é feita à imagem e semelhança de Deus, “completamente unificada em nous, palavra e espírito”. Fica claro
nesse texto, assim, que a alma é a imagem de Deus, e que o nous às vezes se identifica com a alma e outras vezes é visto como
uma potência da alma, os olhos da alma, como diz João Damasceno.
A identificação do nous com
a alma também é clara em outra passagem de São Gregório Palamas. Ele escreve em
um de seus capítulos: “Pois não é a constituição corporal [do homem] e sim a
própria natureza do nous que possui
essa imagem, e nada em nossa natureza é superior ao nous”.
Por ser a imagem de Deus, a alma do home é trina: nous, palavra e espírito. Uma vez que, em sentido geral, o nous é identificado com a alma, isso
significa que o nous possui três
potências. Ao mesmo tempo em que o nous
é uma das potências da alma, ele é a alma inteira. Devemos citar aqui uma
passagem de São Gregório: “Quando a unidade da alma se torna trina, ainda que
permanecendo uma, ela se une com a Divina Unidade Ternária. A unidade do nous se torna trina ao mesmo tempo em
que permanece uma, quando ele retorna a si próprio e se ergue para Deus”.
Portanto, a alma “é uma, embora possua muitas potências”, uma das quais é o nous. E, além disso, a alma inteira, com
suas três potências, é também chamada de nous.
Vimos também que os Padres referenciam a imagem de Deus à alma. Mas ao
mesmo tempo se diz que a imagem se refere ao nous: “Pois não é a constituição corporal [do homem] e sim a
própria natureza do nous que possui
essa imagem”.
Na medida em que Deus possui essência e energia, também a alma, que é
a imagem de Deus, possui essência e energia. E desde que, como vimos, o nous se identifica com a alma, também
ele possui essência e energia.
São Gregório Palamas, com toda sua sabedoria e discriminação, analisa
esse fato. O coração é a essência da alma, e a atividade do nous, que consiste em pensamentos e
imagens conceituais, é a energia da alma. Contudo, também o nous possui essência e energia. Dessa
forma o termo ‘nous’ é usado às vezes
para significar essência e às vezes para significar energia ou ação. Escreve o
santo: “Aquilo que é chamado de ‘nous’
é também a atividade do nous, que
consiste em pensamentos e em imagens conceituais. O nous é também a potência que produz essas coisas e que na Escritura
é chamado de coração”. Quando os contemporâneos de São Gregório o censuraram
por falar do retorno do nous ao
coração, ele escreveu: “Parece que essas pessoas não estão cientes de que a
essência do nous é uma coisa, e a
energia, outra”.
1.1.2.
Nous e
coração
O nous é chamado também de
essência da alma, ou seja, de coração. Em muitas passagens da Sagrada Escritura
e dos Padres existe essa identificação entre nous e coração, e esses termos são usados indistintamente. O Senhor
abençoa os puros de coração: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão
a Deus[1]”.
Deus é revelado no coração e é para aí que o homem deve se dirigir para
conhecê-Lo. O Apóstolo Paulo escreve que a iluminação de Deus acontece ali:
Deus faz com que sua luz brilhe “em nossos corações para iluminar o
conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo[2]”.
O mesmo Apóstolo ora para que “nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, o Pai da
glória, possa dar a vocês o espírito de sabedoria e revelação no conhecimento
Dele, e que os olhos de seus corações sejam iluminados para que vocês possam
ver[3]”.
O coração recebe a revelação e o conhecimento de Deus. Em outras passagens o
coração é substituído pelo nous.
Quando o Senhor se colocou no meio de seus discípulos depois da Ressurreição,
“ele abriu seu entendimento (nous)
para que eles pudessem compreender as Escrituras[4]”.
Uma vez que o homem chega a conhecer a Deus mediante a abertura dos olhos de
seu coração e pela purificação do mesmo, a frase “abriu seu entendimento” é a
mesma coisa que “abriu seu coração”. Da mesma forma, “Bem-aventurados os puros
de coração, porque verão a Deus”, está ligada, creio eu, à passagem apostólica
“Sejam transformados pela renovação de seu nous[5]”.
Portanto, nesse sentido, o nous
é também chamado de coração e os dois termos são usados um pelo outro. São
Máximo o Confessor, interpretando as palavras de Cristo: “Dê esmolas daquilo
que vocês têm dentro, e verão que tudo se torna puro para vocês[6]”,
diz: “Isso se aplica àqueles que não gastam o tempo com o que fazer com o
corpo, mas que se esforçam para limpar o nous
(que o Senhor chama de ‘coração’) do ódio e da dissipação. Pois essas coisas
corrompem o nous e o impedem de ver a
Cristo, que habita nele pela graça do santo batismo”. Dessa forma, o nous é chamado de essência da alma, ou
seja, de coração. Em sua concepção o nous
e o coração são iguais, pois Cristo habita no nous.
1.1.3.
Nous e
razão
Por outro lado, a energia do nous,
“que consiste em pensamentos e imagens conceituais”, também é chamada de nous. O Apóstolo Paulo escreve aos
Coríntios: “Se eu oro em línguas, meu espírito ora, mas meu nous permanece infrutífero. O que fazer?
Eu vou orar com o espírito e também com o nous;
eu cantarei com o espírito e também com o nous[7]”.
Nessa passagem, o espírito é o dom das línguas e o nous é a razão. Portanto, aqui o nous é identificado com a razão, a inteligência. Existem muitas
passagens na Escritura com esse sentido.
Sobre essas coisas, São Máximo o Confessor, dando o nome de nous à inteligência e ao coração, que é
o centro do ser, por meio do qual obtemos o conhecimento de Deus, apresenta a
distinção e a energia de cada função: “O nous
puro vê as coisas corretamente. Uma inteligência treinada as coloca em ordem”.
O nous (coração) é aquilo que enxerga
as coisas claramente e que deve por isso ser purificado, e a inteligência é
aquilo que formula e expressa o que foi visto. Com esta passagem podemos
afirmar que, para ser Padre da Igreja é preciso não apenas possuir um nous esclarecido, mas também a expressão,
ou seja, um discurso educado, de modo a expressar essas realidades
supranaturais tão claramente quanto possível.
1.1.4.
Nous e
atenção
Outros Padres usam o termo ‘nous’
para definir a atenção, que é mais sutil do que a razão. Teolepto de Filadélfia
liga o nous à atenção, a palavra com
a invocação e o espírito com a compunção e o amor. Quando as potências da alma
funcionam dessa maneira, “todo o homem interior serve o Senhor. Mas pode
acontecer de, enquanto a mente oferece as palavras da prece, o nous (a atenção mais sutil) não a
acompanhar, não fixar seu olhar em Deus, de quem são as palavras que estão
sendo ditas, mas se distrair com diferentes pensamentos sem se dar conta disso.
Nesses casos, a mente diz as palavras por hábito, mas o nous se afasta do conhecimento de Deus. E assim também a alma
parece não ter consciência ou organização, dado que o nous está disperso em fantasias variadas e envolvido com coisas que
o iludem, ou em coisas que ele deseja”.
Portanto, o próprio nous,
que não consiste simplesmente em pensamentos, mas na atenção sutil, pode
retornar ao coração, para a essência da alma, que se localiza neste órgão, no
interior do órgão corporal do coração, uma vez que o órgão corporal é a sede da
inteligência e “o primeiro órgão inteligente do corpo”. Por isso é preciso
concentrar o nous, que se dispersa
pelos sentidos, e trazê-lo de volta “para o mesmíssimo coração, a sede dos
pensamentos”.
***
Não esgotamos o tema do nous.
Nesta seção quisemos apenas mostrar de algum modo como distinguir os termos nous, coração e alma, e apontar suas
relações e diferenças. Voltaremos ao tema quando tratarmos mais
aprofundadamente do nous, do coração
e dos pensamentos.
Nessa seção buscamos enfatizar que o termo nous possui muitos significados na tradição bíblico-patrística. O nous é identificado com a alma, e ao
mesmo tempo é uma energia da alma. Como a alma, o nous também é feito à imagem de Deus. E assim como a alma se divide
em essência e energia, também o é o nous;
e assim como em Deus a essência e a energia estão separadas inseparavelmente, o
mesmo acontece com o nous. É por isso
que em alguns lugares os Padres caracterizam o nous como essência, ou seja, o coração, nos casos em que o nous é identificado com o coração, e em
outras passagens eles caracterizam o nous
como energia, imagens conceituais, pensamentos e a atenção sutil que flui
através dos sentidos, quando ele deve retornar ao coração. Os Padres se referem
principalmente ao nous como coração e
alma, mas sem excluir os outros nomes que mencionamos.
Nós perdemos a tradição relativa a isso, e muitos de nós identificam o
nous com a inteligência. Sequer
suspeitamos que paralelamente à inteligência possa haver outra potência de
maior valor: o nous, o coração. Toda
a nossa civilização é uma civilização da perda do coração. O coração está
morto, o nous foi obscurecido, e não
temos como perceber sua presença. É por isso que esse esclarecimento é
necessário. Uma pessoa que possui em si o Espírito Santo, que “está na
revelação”, não necessita muitos esclarecimentos, porque ela própria conhece
por experiência a presença e a existência do nous, do coração.
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