quarta-feira, 15 de junho de 2016

Hierotheus de Nafpaktos - Psicoterapia Ortodoxa - Capítulo III - Parte II

1.1.  Inter-relações entre alma, nous, coração e mente

Nos textos da Sagrada Escritura e nos santos Padres existe confusão, mas também distinção, entre os termos alma, nous, coração e mente (dianoia). Qualquer um que se deleite com os escritos do Padres e do Novo testamento, primeiro encara o problema da confusão entre esses conceitos e termos. Eles são intercambiáveis. Eu estive ocupado com esse tema por muitos anos e tentei encontrar uma solução. Lendo as biografias daqueles que trataram do assunto, descobri que, com poucas exceções, eles eram incapazes de determinar as relações e a distinção entre esses termos. Assim sendo, nesta seção eu vou tentar distingui-los e descrever a estrutura dentro da qual cada um deles trabalha.

Já explicamos que a alma do homem é feita à imagem de Deus, e uma vez que a alma dá a vida ao corpo ao qual está ligada, a imagem no homem é mais forte do que a imagem nos anjos. Uma vez que a alma está por todo o corpo, tanto o homem completo como seu corpo podem ser vistos como imagens de Deus. O hino de São João Damasceno que é cantado no serviço funeral é característico: “Eu gemo e me lamento quando penso na morte, e contemplo nossa beleza, talhada segundo a imagem de Deus, jazendo desfigurada no túmulo, desfigurada, desonrada, despojada de sua forma”. É evidente que neste hino a imagem se refere ao corpo que está no túmulo.

1.1.1.        Nous e alma

Nos textos do Novo Testamento e nos Padres, a alma é identificada com o nous. Os termos nous e alma são intercambiáveis. São João Damasceno escreve que o nous é a parte mais pura da alma, são os olhos da alma: “A alma não tem no nous algo distinto dela própria, mas como sua parte mais pura, pois, como são os olhos para o corpo, assim é o nous para a alma”. É neste sentido que ele diz que o nous são os olhos da alma.

São Gregório Palamas usa o termo nous em dois sentidos. Pode se tratar da alma por inteiro, a imagem, mas também pode ser a potência da alma, conforme explicamos, porque, assim como o Deus Trinitário é Nous, Verbo e Espírito, também a alma possui o nous, a palavra e o espírito. De acordo com o santo Athonita, o nous identifica-se com a alma, mas é também uma potência da alma, devo citar uma passagem característica que contém esses conceitos:. Depois da criação do home, escreve o santo, os anjos viram com seus olhos “a alma do homem unida aos sentidos e à carne, e era como se vissem outro deus, não apenas existindo na terra por intermédio da divina bondade, carne e nous num só homem, mas ainda transformado por essa extravagância e pela graça de Deus, de modo a se tornar carne, nous e espírito, e de tal maneira a que a alma possuísse a imagem e a semelhança de Deus, completamente unificada em nous, palavra e espírito”.

Destacamos os seguintes pontos neste texto. No início, ele fala da alma unida à carne e aos sentidos. Pouco depois os termos ‘alma’ e ‘nous’ são intercambiados: ao invés de ‘alma’, ele utiliza ‘nous’, “nous e carne num mesmo homem”. Em seguida ele emprega a divisão carne, nous e espírito, sendo o espírito a graça do Espírito Santo, uma vez que Deus não conformou o homem apenas em alma e corpo, “mas também favoreceu-o divinamente com a graça. Pois está é verdadeiramente a alma viva”. Depois disso ele escreve que a alma é feita à imagem e semelhança de Deus, “completamente unificada em nous, palavra e espírito”. Fica claro nesse texto, assim, que a alma é a imagem de Deus, e que o nous às vezes se identifica com a alma e outras vezes é visto como uma potência da alma, os olhos da alma, como diz João Damasceno.

A identificação do nous com a alma também é clara em outra passagem de São Gregório Palamas. Ele escreve em um de seus capítulos: “Pois não é a constituição corporal [do homem] e sim a própria natureza do nous que possui essa imagem, e nada em nossa natureza é superior ao nous”.

Por ser a imagem de Deus, a alma do home é trina: nous, palavra e espírito. Uma vez que, em sentido geral, o nous é identificado com a alma, isso significa que o nous possui três potências. Ao mesmo tempo em que o nous é uma das potências da alma, ele é a alma inteira. Devemos citar aqui uma passagem de São Gregório: “Quando a unidade da alma se torna trina, ainda que permanecendo uma, ela se une com a Divina Unidade Ternária. A unidade do nous se torna trina ao mesmo tempo em que permanece uma, quando ele retorna a si próprio e se ergue para Deus”. Portanto, a alma “é uma, embora possua muitas potências”, uma das quais é o nous. E, além disso, a alma inteira, com suas três potências, é também chamada de nous.

Vimos também que os Padres referenciam a imagem de Deus à alma. Mas ao mesmo tempo se diz que a imagem se refere ao nous: “Pois não é a constituição corporal [do homem] e sim a própria natureza do nous que possui essa imagem”.

Na medida em que Deus possui essência e energia, também a alma, que é a imagem de Deus, possui essência e energia. E desde que, como vimos, o nous se identifica com a alma, também ele possui essência e energia.

São Gregório Palamas, com toda sua sabedoria e discriminação, analisa esse fato. O coração é a essência da alma, e a atividade do nous, que consiste em pensamentos e imagens conceituais, é a energia da alma. Contudo, também o nous possui essência e energia. Dessa forma o termo ‘nous’ é usado às vezes para significar essência e às vezes para significar energia ou ação. Escreve o santo: “Aquilo que é chamado de ‘nous’ é também a atividade do nous, que consiste em pensamentos e em imagens conceituais. O nous é também a potência que produz essas coisas e que na Escritura é chamado de coração”. Quando os contemporâneos de São Gregório o censuraram por falar do retorno do nous ao coração, ele escreveu: “Parece que essas pessoas não estão cientes de que a essência do nous é uma coisa, e a energia, outra”.

1.1.2.        Nous e coração

O nous é chamado também de essência da alma, ou seja, de coração. Em muitas passagens da Sagrada Escritura e dos Padres existe essa identificação entre nous e coração, e esses termos são usados indistintamente. O Senhor abençoa os puros de coração: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus[1]”. Deus é revelado no coração e é para aí que o homem deve se dirigir para conhecê-Lo. O Apóstolo Paulo escreve que a iluminação de Deus acontece ali: Deus faz com que sua luz brilhe “em nossos corações para iluminar o conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo[2]”. O mesmo Apóstolo ora para que “nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, possa dar a vocês o espírito de sabedoria e revelação no conhecimento Dele, e que os olhos de seus corações sejam iluminados para que vocês possam ver[3]”. O coração recebe a revelação e o conhecimento de Deus. Em outras passagens o coração é substituído pelo nous. Quando o Senhor se colocou no meio de seus discípulos depois da Ressurreição, “ele abriu seu entendimento (nous) para que eles pudessem compreender as Escrituras[4]”. Uma vez que o homem chega a conhecer a Deus mediante a abertura dos olhos de seu coração e pela purificação do mesmo, a frase “abriu seu entendimento” é a mesma coisa que “abriu seu coração”. Da mesma forma, “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”, está ligada, creio eu, à passagem apostólica “Sejam transformados pela renovação de seu nous[5]”.

Portanto, nesse sentido, o nous é também chamado de coração e os dois termos são usados um pelo outro. São Máximo o Confessor, interpretando as palavras de Cristo: “Dê esmolas daquilo que vocês têm dentro, e verão que tudo se torna puro para vocês[6]”, diz: “Isso se aplica àqueles que não gastam o tempo com o que fazer com o corpo, mas que se esforçam para limpar o nous (que o Senhor chama de ‘coração’) do ódio e da dissipação. Pois essas coisas corrompem o nous e o impedem de ver a Cristo, que habita nele pela graça do santo batismo”. Dessa forma, o nous é chamado de essência da alma, ou seja, de coração. Em sua concepção o nous e o coração são iguais, pois Cristo habita no nous.

1.1.3.        Nous e razão

Por outro lado, a energia do nous, “que consiste em pensamentos e imagens conceituais”, também é chamada de nous. O Apóstolo Paulo escreve aos Coríntios: “Se eu oro em línguas, meu espírito ora, mas meu nous permanece infrutífero. O que fazer? Eu vou orar com o espírito e também com o nous; eu cantarei com o espírito e também com o nous[7]”. Nessa passagem, o espírito é o dom das línguas e o nous é a razão. Portanto, aqui o nous é identificado com a razão, a inteligência. Existem muitas passagens na Escritura com esse sentido.

Sobre essas coisas, São Máximo o Confessor, dando o nome de nous à inteligência e ao coração, que é o centro do ser, por meio do qual obtemos o conhecimento de Deus, apresenta a distinção e a energia de cada função: “O nous puro vê as coisas corretamente. Uma inteligência treinada as coloca em ordem”. O nous (coração) é aquilo que enxerga as coisas claramente e que deve por isso ser purificado, e a inteligência é aquilo que formula e expressa o que foi visto. Com esta passagem podemos afirmar que, para ser Padre da Igreja é preciso não apenas possuir um nous esclarecido, mas também a expressão, ou seja, um discurso educado, de modo a expressar essas realidades supranaturais tão claramente quanto possível.

1.1.4.        Nous e atenção

Outros Padres usam o termo ‘nous’ para definir a atenção, que é mais sutil do que a razão. Teolepto de Filadélfia liga o nous à atenção, a palavra com a invocação e o espírito com a compunção e o amor. Quando as potências da alma funcionam dessa maneira, “todo o homem interior serve o Senhor. Mas pode acontecer de, enquanto a mente oferece as palavras da prece, o nous (a atenção mais sutil) não a acompanhar, não fixar seu olhar em Deus, de quem são as palavras que estão sendo ditas, mas se distrair com diferentes pensamentos sem se dar conta disso. Nesses casos, a mente diz as palavras por hábito, mas o nous se afasta do conhecimento de Deus. E assim também a alma parece não ter consciência ou organização, dado que o nous está disperso em fantasias variadas e envolvido com coisas que o iludem, ou em coisas que ele deseja”.

Portanto, o próprio nous, que não consiste simplesmente em pensamentos, mas na atenção sutil, pode retornar ao coração, para a essência da alma, que se localiza neste órgão, no interior do órgão corporal do coração, uma vez que o órgão corporal é a sede da inteligência e “o primeiro órgão inteligente do corpo”. Por isso é preciso concentrar o nous, que se dispersa pelos sentidos, e trazê-lo de volta “para o mesmíssimo coração, a sede dos pensamentos”.

***

Não esgotamos o tema do nous. Nesta seção quisemos apenas mostrar de algum modo como distinguir os termos nous, coração e alma, e apontar suas relações e diferenças. Voltaremos ao tema quando tratarmos mais aprofundadamente do nous, do coração e dos pensamentos.

Nessa seção buscamos enfatizar que o termo nous possui muitos significados na tradição bíblico-patrística. O nous é identificado com a alma, e ao mesmo tempo é uma energia da alma. Como a alma, o nous também é feito à imagem de Deus. E assim como a alma se divide em essência e energia, também o é o nous; e assim como em Deus a essência e a energia estão separadas inseparavelmente, o mesmo acontece com o nous. É por isso que em alguns lugares os Padres caracterizam o nous como essência, ou seja, o coração, nos casos em que o nous é identificado com o coração, e em outras passagens eles caracterizam o nous como energia, imagens conceituais, pensamentos e a atenção sutil que flui através dos sentidos, quando ele deve retornar ao coração. Os Padres se referem principalmente ao nous como coração e alma, mas sem excluir os outros nomes que mencionamos.

Nós perdemos a tradição relativa a isso, e muitos de nós identificam o nous com a inteligência. Sequer suspeitamos que paralelamente à inteligência possa haver outra potência de maior valor: o nous, o coração. Toda a nossa civilização é uma civilização da perda do coração. O coração está morto, o nous foi obscurecido, e não temos como perceber sua presença. É por isso que esse esclarecimento é necessário. Uma pessoa que possui em si o Espírito Santo, que “está na revelação”, não necessita muitos esclarecimentos, porque ela própria conhece por experiência a presença e a existência do nous, do coração.



[1] Mateus 5: 8.
[2] II Coríntios 4: 6.
[3] Efésios 1: 17-18.
[4] Lucas 24: 45.
[5] Romanos 12:2.
[6] Lucas 11: 41.
[7] I Coríntios 14: 14-15.

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