PREFÁCIO
“Pronunciar o
nome de Jesus de um modo sagrado é um auxílio suficiente e que ultrapassa a
tudo para qualquer vida humana... Devemos chamar por Jesus Cristo em nossa
mente, até que o nome do Senhor penetre em nosso coração, descendo até suas
maiores profundezas... Quando o nome de Jesus se torna o centro de nossa vida,
ele carrega tudo junto consigo”.
Assim escreveu
o “Monge da Igreja do Oriente”, no decurso da presente obra. Para aqueles que
perguntam de que forma tais afirmações podem ser atribuídas em favor da Prece
de Jesus, e como pode ser que este modo específico de oração mantém seu apelo
tão forte entre os Cristãos de hoje em dia, do Oriente e do Ocidente, Ortodoxos
e não Ortodoxos, este curto livro traz uma resposta. Começando pela veneração
do Santo Nome no Antigo e Novo Testamentos, o autor traça o desenvolvimento
gradual da Prece de Jesus, primeiramente em Bizâncio e depois nos países
Eslavos. Ele conclui com sugestões práticas para seu uso nos dias atuais,
mostrando o quanto esta prece não pertence apenas ao passado, mas se coloca
perfeitamente no século em que vivemos. De fato, existem boas razões para
acreditar que o “caminho do Nome”, como ele o chama, está sendo seguido por
mais Cristãos hoje do que o foi antes – um brilhante sinal de esperança numa
era de ansiedade. Simples, embora profundo, este livro nos revela o segredo da
atração contínua exercida pela Prece de Jesus. Desde a sua primeira aparição há
algumas décadas atrás, ele se tornou um “clássico” da vida espiritual, e
permanece ainda como a melhor introdução ao tema da Prece de Jesus.
“O Monge da
Igreja do Oriente”, Arquimandrita Lev Gillet (1893-1980) foi uma pessoa muito
amada a admirada. Mas ao mesmo tempo ele era enigmático, às vezes desconcertante,
com um caráter cheio de paradoxos, facilmente mal interpretado. Provavelmente é
muito cedo para tentar uma avaliação equilibrada de sua vida e obra. Nascido em
Saint Marcellin no sudeste da França em 1893, ele recebeu o nome de Louis no
batismo. Seus pais eram Católicos Romanos, pertenciam à classe média e se pai
era magistrado na região de Grenoble. Desde uma tenra idade Louis demonstrou
possuir dons intelectuais excepcionais. Ele iniciou seus estudos superiores em
filosofia em Grenoble e em Paris imediatamente antes que estourasse a Primeira
Guerra Mundial. Mobilizado em 1914, ele logo foi ferido e capturado pelos
Alemães, passando mais de dois anos num campo de prisioneiros de guerra. As
suas experiências durante a guerra deixaram nele uma permanente repulsa contra
a violência e o derramamento de sangue, e em sua vida seguinte ele se tornou um
pacifista convicto. Liberado do alistamento em 1817, ele continuou seus estudos
em Genebra, trabalhando com psicologia experimental e matemática, entre 1917 e
1919 ele traduziu do alemão para o francês a principal obra de Freud, A interpretação dos sonhos. De seus
estudos em psicologia ele reteve sempre um profundo entendimento a respeito da
homossexualidade e de questões sexuais em geral.
Em 1920 a vida
de Louis Gillet teve uma mudança fundamental de direção. Abandonando uma
promissora carreira acadêmica, ele entrou como noviço no mosteiro Beneditino
Francês em Farnborough, na Inglaterra. A comunidade posteriormente o enviou
para avançar em seus estudos em Sant’Anselmo em Roma. Por essa época ele
começou a se sentir atraído pelo Oriente Cristão. Seu interesse no mundo Eslavo
parece ter sido despertado inicialmente pela amizade que teve com uma jovem
Búlgara pouco antes da Primeira Guerra. Não conseguindo alguém que lhe
ensinasse o Búlgaro, ele começou a estudar a língua Russa. Separado de sua
amiga após o início das hostilidades, ele nunca mais conseguiu restabelecer
contato com ela. Talvez isto tenha constituído um desapontamento pessoal que o
influenciou a pensar em se tornar monge. No campo de prisioneiros Alemão ele
encontrou sodados russos com quem fez amizade, continuando seus estudos de
Russo. Então, durante seu tempo de noviciado em Farnborough, o mosteiro recebeu
a visita do grande líder Uniata Andrew Szeptycky, Metropolita de Lvov na
Galícia (que nesta época estava na Polônia).
Vendo que seu
interesse “oriental” recebia pouca simpatia das autoridades monásticas de
Farnborough, em 1924 ele viajou para Lvov, e lá foi sagrado monge e ordenado
diácono e padre pelo Metropolita Andrew, recebendo o nome monástico de Lev
(Leo). Servindo por um período como secretário privado do Metropollita, o
Hieromonge Lev foi profundamente inspirado pela personalidade brilhante e cheia
de santidade de Szeptycky. Pioneiro do movimento pela unidade do Cristianismo,
o Metropolita estava convencido de que a reconciliação entre Católicos Romanos
e Ortodoxos só poderia acontecer mediante o respeito mútuo e o amor, jamais
pelo proselitismo. Ele havia inclusive considerado a possibilidade de um
mosteiro “misto” na Galícia, no qual monges Ortodoxos viveriam ao lado de
Católicos Romanos, sem que precisassem abandonar sua Ortodoxia – uma ideia
revolucionária para esse tempo. Frei Lev partilhava da visão moderadora do
Metropolita, embora com algumas reservas. Ao longo de sua vida ele continuou a
sentir uma aversão por todas as formas de agressão e polêmicas eclesiásticas.
Ele nunca acreditou que a reunião poderia acontecer através de confrontações
teológicas, da controvérsia e das discussões formais.
Em 1927 Frei
Lev estava de volta à França, engajado em trabalhos sociais e pastorais entre
os refugiados Russos de Nice, muitos dos quais viviam na maior miséria
material. Aqui ele sentiu mais fortemente a anormalidade de sua situação: ele
amava e ansiava por servir ao povo Russo, ele se sentia como um só coração e
uma só alma com a Ortodoxia Russa, e no entanto ele era um padre Católico
Romano. Para complicar as coisas, houve nesse momento uma mudança básica de
atitude em relação à obra ecumênica por parte do Papa Pio XI, que no início de
1928 publicou a encíclica Mortalium
Animos, fortemente negativa a respeito. Depois de meses de dolorosas
incertezas, no dia 25 de Maio de 1928 Frei Lev deu o passo decisivo: em
Clamart, nos subúrbios de Paris, ele concelebrou a Divina Liturgia com o Bispo
Ortodoxo Russo da França, Metropolita Evlogy. Ele atuou com o conhecimento de
Szeptycky.
Não está
totalmente claro como este passo foi entendido pelo Metropolita Evlogy, ou
mesmo pelo próprio Frei Lev. Um ponto, entretanto, é fora de discussão: as
formalidades normais requeridas aos Católicos Romanos convertidos à Ortodoxia
foram omitidas. Frei Lev não teve que abjurar os erros e não se submeteu ao
rito de recepção, tendo sido simplesmente admitido à celebração eucarística e à
comunhão. Para ele, este fato permaneceu sempre como sendo da maior
significância. Ele nunca viu suas ações do dia 25 de Maio de 1928 como um
repúdio ao seu passado Católico Romano, como uma “conversão” no sentido da
mudança de crenças e de uma ruptura com sua vida pregressa. Por acreditar que
permanecia existindo um substrato de unidade entre Roma e a Ortodoxia que não
havia sido rompido, ele viu esse passo como um aprofundamento e uma realização,
não uma rejeição, de suas antigas aspirações. Como ele escreveu a seu Freinaqueles
tempos, “eu cheguei aonde acredito que poderei encontrar, não digo outra luz,
mas a mesma luz numa forma mais pura”. Em outra carta, escrita para sua mãe,
ele disse que a Igreja Ortodoxa “apresenta a luz de Cristo numa forma mais pura
do que as outras Igrejas”. Mas ele nunca negou a realidade eclesial da Igreja
Católica Romana, nem a continuidade de sua própria união com Roma, num nível
invisível e espiritual.
Ao mesmo
tempo, a celebração em Clamart constituiu realmente para Frei Lev um novo
começo, o fim de um período de sua vida e o começo de outro. “Você agora pode
se considerar Ortodoxo”, disse o Metropolita Evlogy naquele instante. Pelo
próximo meio século de sua vida subsequente, de um ponto de vista visível e
canônico, Frei Lev serviu apenas como padre da Igreja Ortodoxa. No outono de
1928 encarregou-o da paróquia Ortodoxa francófona em Paris, à qual ele
permaneceu ligado até 1938, ao mesmo tempo em que ensinava no Instituto
Teológico de Saint-Serge. Ele era muito interessado nas ideias do Arcebispo
Sergei Bulgarov, o Reitor do Instituto, tendo traduzido para o francês seu
livro A Ortodoxia (Paris, 1932).
Tipicamente, o nome do tradutor não é mencionado em parte alguma da publicação.
Durante esses anos ele formou ainda uma duradoura amizade com o teólogo leigo
Paul Evdokimov.
Em 1938 Frei
Lev mudou-se para a Inglaterra, que seria seu lar permanente até sua morte. No
começo dos anos 1940 ele liderou um grupo de pesquisas no Departamento das
Missões no Selly Oak College em Birmingham, estudando as relações
Judaico-Cristãs e escrevendo a Comunhão
no Messias (Londres, 1942), o mais longo dos livros que escreveu. Nele, Frei
Lev diz aos Cristãos que não é o bastante sentirem compaixão para com os Judeus
como seres humanos, mas que “o Cristão é chamado a reconhecer o Judeu como um
irmão”, e que ajudar o Judeu “implica ajudar todo Israel e cumprir o misterioso
destino para o qual foi chamado, e que é inseparável do destino na própria
Igreja Cristã”. Em seu estilo característico, ele escreveu no prefácio: “Este
não é um livro letrado”. Mas de fato, foi o fruto de amplas leituras e de um
pensamento criativo, e até hoje guarda seu valor próprio.
Em 1948 Frei
Lev foi nomeado capelão da Irmandade de Santo Albano e São Sérgio, um posto que
ele manteria até o final da vida. A Irmandade, que era dedicada ao trabalho da
unidade Cristã, e mais especificamente à aproximação entre Anglicanos e
Ortodoxos, mantinha uma central em Londres na Casa de São Basílio, em Ladborke
Grove 52. Aqui viveu Frei Lev, num pequeno cômodo, celebrando a Divina Liturgia
na capela, e tomando parte de todas as atividades da Irmandade – escrevendo
para seu jornal Sobornost, falando na
conferência anual de verão e conduzindo os retiros entre os membros. Ele não
estava ligado a nenhuma paróquia em Londres, e seu trabalho para a Irmandade o
deixava livre para viajar ao exterior, para a Suíça, a Grécia e acima de tudo
para o Líbano, onde ele influenciou grandemente o Movimento da Juventude
Ortodoxa. Quando em Londres ele trabalhava durante a semana na Sala de Leituras
do British Museum, que ele costumava descrever como sendo o seu “claustro
monástico”. Outros frequentadores da Sala recordam sua figura familiar, um
homem pequeno, arqueado, que parecia um passarinho, com uma barba branca e
grossos óculos – às vezes franzindo a testa, piscando e murmurando para si
mesmo enquanto caminhava só, mas todo o seu rosto se iluminava com um sorriso
quando parava para cumprimentar um amigo. No final da vida Frei Lev era como que
um eremita urbano, e a grande metrópole era o seu deserto. Quando ele fala em A Prece de Jesus a respeito da invocação
do Santo Nome sobre os homens e mulheres com quem cruzamos pelas ruas, “reconhecendo
e adorando em silêncio a Jesus aprisionado nos pecadores, nos criminosos e nas
prostitutas”, podemos estar certos de que isto era exatamente o que ele próprio
fazia enquanto perambulava sozinho pelas ruas do centro de Londres. Onde quer
que estivesse, fosse em Nice, Paris ou Londres, ele sempre mostrava uma ternura
especial para com os sofridos, os destituídos, os desvalidos.
Já entrado em
anos, mas mentalmente alerta, o “Monge da Igreja do Oriente” faleceu em seu
quartinho na Casa de São Basílio em 29 de Março de 1980. No calendário Ortodoxo
este dia foi o Sábado da Ressurreição de Lázaro, e ele celebrara sua última
Liturgia naquela mesma manhã.
Foi durante os
anos que passou na Casa de São Basílio que Frei Lev desenvolveu a forma de
expressão que se tornou tão peculiar a ele. Cada vez mais ele escolheu se
limitar a citações simples e curtas do Evangelho. Normalmente estas eram
colocadas em conversas – às vezes em encontros da Irmandade na Inglaterra, às
vezes em Genebra ou Beirute – para depois serem agrupadas e publicadas na forma
de um livro. Sentado à sua mesa, sem um roteiro ou notas diante de si, mas
apenas com a Bíblia aberta, Frei Lev podia criar com poucas sentenças uma
atmosfera que era totalmente característica.
Econômico no uso das palavras, evitando artifícios de retórica, ele
falava com uma lucidez e segurança que provinham de uma profunda reflexão. Seu
raciocínio, nunca banal, é fácil de ser seguido. Ele fala de sua própria
experiência, ainda que não se referindo explicitamente a si próprio, com um
sentimento cálido, mas nunca sentimental. Ele era marcadamente original,
sugerindo significados que provavelmente nunca tinham ocorrido aos seus
leitores, mas sem ser afetado ou caprichoso.
O que mais me
impressionava ao ouvi-lo, era a leveza que caracterizava sua interpretação da
Escritura. Ele tomava alguma frase familiar ou algum incidente dos Evangelhos –
Jesus com o jovem rico, com a mulher Samaritana no poço, com a adúltera – e,
enquanto comentava o texto tão conhecido, era como se estivéssemos ouvindo as
palavras da Bíblia pela primeira vez, ou como se fizéssemos parte da cena que
ele descrevia. Ele não apenas comentava, ele anunciava o Evangelho. “Eu só
encontro contentamento no Evangelho”, escreveu ele a um amigo, e isso se tornou
cada vez ais manifesto em seus últimos anos. Nos anos 20 e começo dos 30, ele
se sentiu atraído primeiramente pela tradição Russa – pelos iurodivye ou “loucos de Cristo”, pela
luminosa compaixão de São Serafim, pela visão profética de Soloviov, pela
teologia de sobornost[1].
Em seus escritos dos anos 40, como Espiritualidade
Ortodoxa (Londres, 1945), o material provém largamente de autores da
Patrística Grega. Mas nas meditações escriturárias de seus últimos anos, já não
era sobre a Rússia Cristã que ele falava, nem sobre os Padres, mas simplesmente
sobre Jesus Cristo nos Evangelhos. Quanto mais velho, mais ele se tornou
transparentemente “evangélico”.
A simplicidade
e a liberdade evidente na maneira com que Frei Lev fazia suas falas – sem
anotações, apenas com a Bíblia diante de si – ficava aparente em outros aspectos
de sua vida. Ele adotou o caminho da kenosis,
a reserva, a renúncia. Muitos de seus escritos foram publicados sob o
pseudônimo de “Um Monge da Igreja do Oriente”, e por muitos anos a identidade
do autor permaneceu como um bem guardado segredo. Monge sem mosteiro, ele
observava a regra da pobreza tão estritamente como poucos que vivem na clausura
monástica. Com exceção de suas roupas, gastas e surradas, ele praticamente não
tinha posses materiais que pudesse chamar de suas. Ao contrário de muitos clérigos
monásticos, ele não acumulava ícones, vestimentas ou cruzes. Havia poucos
papéis e documentos, e quase nenhum livro em seu quarto. Até onde eu pude ver,
ele sequer possuía cópias de seus próprio livros, e parece jamais ter se
preocupado em manter uma lista de seus textos publicados. Em seu desligamento
ele era um verdadeiro monge.
A mesma visão
de esvaziamento de si (kenosis), a
mesma liberdade e radicalismo evangélicos, caracterizavam todo o seu serviço na
Igreja. Ele evitava todas as responsabilidades administrativas, as comissões e
as honras exteriores. Ele detestava todas as formas de clericalismo, as
“posturas de seminário” e a pompa eclesiástica, e chegava a ser agudamente
irônico a respeito dessas coisas. Seu ministério pastoral era conduzido de um
modo discreto, obscuro, por meio de conversações pessoais e falas informais
pronunciadas geralmente em pequenos grupos. Seus conselhos, que sempre tinham
uma profunda influência para o bem na vida das pessoas, eram dados de uma forma
direta que atingia rapidamente o coração do assunto, chegando mesmo a parecer
abruptos algumas vezes. Ele costumava sublinhar a necessidade daquilo que se
chamava “o sacramento do momento presente”. Cristo aparece nas pequenas coisas,
insistia ele; a presença divina deve ser encontrada, não tanto nas situações
extraordinárias, mas nas tarefas familiares que preenchem nossos dias. Ele
possuía um dom especial como amigo e guia espiritual de mulheres, e nos seus
textos sobre as mulheres dos Evangelhos – sobre a Mãe de Deus, a mulher
pecadora, Santa Maria Madalena no jardim – havia sempre um sentimento comovente
e terno para com o feminino.
O caráter de Frei
Lev formava uma unidade cheia de contrastes. Ele era manso e ardente; gentil e
compassivo, mas também temperamental, “difícil”, sujeito a repentes de ira,
nitidamente indignado diante de tudo o que ele considerava como mentira,
injustiça ou estupidez. Um homem de vasta cultura, sempre um ávido leitor, ele
ocultava deliberadamente seus estudos. Receptivo a novas ideias na política,
ciência e filosofia, ele era ao mesmo tempo profundamente tradicionalista. Sua
vida era, em suas próprias palavras, um “êxodo dirigido”, uma peregrinação
incessante: ele esperava pelo Espírito, e dizia a todos que fizessem o mesmo. E
ao lado dessa abertura para o Espírito, ele demonstrava perseverança,
consistência e continuidade. Em seu trabalho pastoral ele era sensível e
rigoroso, nunca disfarçando as exigentes demandas feitas a nós com aquilo a que
ele chamava de “amor sem limites”. Um ouvinte atento, sempre à inteira
disposição de cada visitante, ele permanecia entretanto como “um gato que
caminhava por si” – à vontade com os outros, ao mesmo tempo em que nunca
deixava de ser verdadeiro consigo mesmo.
Ele amava a
Igreja Ortodoxa, mas não fechava os olhos para as suas faltas. “Ó estranha
Igreja Ortodoxa, disse ele uma vez, tão pobre e fraca... ao mesmo tempo tão
tradicional e ainda assim tão livre, tão arcaica e tão viva, tão ritualística e
tão pessoalmente mística, a Igreja na qual a mais cara pérola do Evangelho está
preciosamente preservada, às vezes debaixo de uma camada de poeira... uma
Igreja que tantas vezes se mostrou incapaz de agir, mas que mesmo sabe, como
nenhuma outra, como cantar a alegria da Páscoa”.
Além das
fronteiras da Ortodoxia, ele mantinha laços espirituais não apenas com
Católicos Romanos e Anglicanos, mas também com a congregação dos Protestantes
Franceses em Londres, com Pentecostais e Quakers; e, fora da Cristandade, com
Judeus e Muçulmanos, Hindus e Budistas. Assim como o Quarto Evangelista e os
teólogos do Logos do século II, ele
acreditava que a verdadeira luz, a luz de Cristo “ilumina a todos os que
nasceram no mundo[2]”.
Sua universalidade era sem relativismo. Em sua busca pela unidade, ele estava
sempre procurando construir pontes entre mundos separados; não que ele
valorizasse de modo algum um amálgama eclético e sincrético de religiões, mas
ele valorizava a autenticidade onde quer que a encontrasse. Contatos de todos
os tipos eram possíveis para ele, precisamente porque ele próprio se achava
firmemente ancorado na Igreja, e assim podia reconhecer livremente a presença
de Cristo e o movimento do Espírito Santo em todas as pessoas.
A presente
obra foi originalmente publicada em Francês como uma série de artigos da
revista Irénikon, um periódico do
Mosteiro beneditino de Chevetogne na Bélgica, ao qual Frei Lev estava
estreitamente ligado por amizades pessoais, embora nunca tenha sido membro de
lá. Os capítulos I a V apareceram na Irénikon
XX (1947) e o capítulo V na Irénikon
XXV (1952); os capítulos de I a V, com dois apêndices, foram reunidos num livro
pelo Mosteiro de Chevetogne em 1951 sob o título de La Prière de Jésus. Em 1959 o trabalho foi reorganizado numa forma
revista e ampliada, que incluía agora o capítulo VI; na página de título ele é
descrito como a terceira edição, mas eu não consegui descobrir quando apareceu
a segunda edição, que talvez nunca tenha existido. Uma quarta edição,
extensamente revisada, foi publicada em 1963, e foi utilizada para a primeira
edição em Inglês, The Prayer of Jesus,
traduzida anonimamente pelo “Monge da Igreja do Oriente” (1967). Uma quinta
edição francesa, mais uma vez como várias modificações, apareceu em 1974 na
série Livres de Vie, e é esta que
forma a base da presente versão.
Nesta segunda
edição Inglesa, a tradução foi bastante retrabalhada; eu considerei necessário
fazer modificações em cada parágrafo, às vezes em cada sentença.
Ocasionalmente, quando eu detectava uma pequena falta de acuidade no original
referente a datas, atribuições de autoria ou coisas assim, eu me aventurei a
ajustar o texto; mas acredito que em nenhum momento eu alterei os valores da
perspectiva teológica ou dos juízos expressos por Frei Lev. Nas notas de rodapé
as referências bibliográficas foram dispostas e datadas sempre que possível;
todo material adicional do qual eu seja responsável foi colocado entre
colchetes. Eu também fui responsável pela seção final “Leituras adicionais[3]”.
Quais são as
características predominantes na perspectiva de Frei Lev sobre a Prece de
Jesus? Uma das características mais marcantes é o caloroso sentimento com que
ele fala, o evidente amor pela pessoa viva de Cristo no qual ele se inspira.
Isto fica especialmente claro no capítulo final, mas a mesma nota afetiva e
pessoal pode ser sentida em muitos pontos na primeira parte do livro, como, por
exemplo, na explicação que ele dá sobre o termo “misericórdia”. Para o “Monge
da Igreja do Oriente” a Prece de Jesus não constitui uma técnica, mas um ato de
amor. Ela expressa a relação direta entre pessoas. Ao dizer a Prece de Jesus,
diz-nos ele, não devemos pensar no fato de que estamos invocando o Nome, nem
sobre o “método” da prece que estamos empregando, e seus possíveis efeitos, mas
apenas e tão somente devemos pensar no próprio Jesus.
Através de seu
ensinamento sobre a Prece Frei Lev mostra uma grande sobriedade e discrição. Ao
mesmo tempo em que ele acredita que a Prece de fato possui um poder especial
para “simplificar e unificar nossa visa espiritual”, ele é cuidadoso em não
demonstrar exageradamente esta convicção. O Nome de Jesus não é um talismã ou
uma “fórmula mágica”, diz ele, “pois ninguém pode usar este Nome efetivamente
se não possuir uma relação interior com o próprio Jesus”. A Prece de Jesus não
é isolada, mas pressupõe a vivência total da vida Cristã em todas as suas
variadas formas – a prece comum, a recepção dos sacramentos, a leitura das
Escrituras, os atos pessoais de serviço e compaixão: “A Prece de Jesus é um
livro para ser aberto e lido apenas com um espírito evangélico de amor humilde
e autodoação”. Em particular, ela não torna desnecessária a Cruz para a qual
todo Cristão batizado está convidado: “Não imaginemos que a invocação do Nome é
um atalho que dispensa da purificação ascética”.
Alguns
expoentes falam como se a Prece de Jesus e a “espiritualidade Ortodoxa” fosse
termos mais ou menos intercambiáveis, mas Frei Lev não faz este tipo de
afirmação oblíqua. Ele respeita a plena diversidade e a liberdade em nossa
aproximação humana a Deus. O “caminho do Nome” é aberto a todos, mas ninguém é
obrigado a adotá-lo, e ele não desfruta de nenhum monopólio: “Não devemos
gritar com fervor doentio: ‘Esta é a melhor prece’, e menos ainda: ‘Esta é a
única prece’”. Apenas para os que receberam um “vocação especialíssima” a Prece
de Jesus se tornará “o método ao redor do qual toda sua vida interior se
organizará”.
Frei Lev
sabiamente nos previne contra os perigos da emotividade, da violência interior,
tanto nesta como em todas as formas de oração: “Seria um erro “forçar” essa prece,
elevarmos a voz interiormente, para tentar induzir intensidade e emoção (...)
Devemos banir toda sensualidade espiritual”. Ele dá alguns conselhos úteis
sobre os períodos de secura na prece: talvez os momentos em que não sentimos
consolação emocional ao orarmos sejam especialmente preciosos aos olhos de
Deus. Não estamos buscando “experiências”, estamos buscando apenas a Jesus
Cristo.
Ao discutir a
“técnica física” que algumas vezes é associada à Prece de Jesus, o “Monge” toma
grande cuidado em insistir que isso não passa de um acessório, que pode ser
benéfico para alguns, mas que de modo algum é obrigatório para todos: “A
invocação do Nome de Jesus é suficiente em si mesma. O melhor suporte para ela
é a ordem espiritual e moral. Ademais, nenhum dos seguidores da técnica
Athonita sustentaram ser essa técnica essencial à Prece de Jesus (...) A Prece
de Jesus nos confere uma absoluta liberdade em relação a tudo, exceto ao
próprio Jesus”. Frei Lev enfatiza ainda a importância da obediência, da direção
espiritual dada por um guia experiente. Isso é desejável para todos os que
utilizam a Prece de Jesus, e, no caso de alguém que tencione usar a “técnica
física”, é indispensável.
Em tudo isso Frei
Lev reflete fielmente o ensinamento clássico a respeito da Prece de Jesus.
Existem, no entanto, três pontos a respeito dos quais sua visão da Prece
reflete uma opinião pessoal, que não é partilhada hoje pela maior parte dos que
tratam desse tema. Em primeiro lugar, segundo seu julgamento, a Prece de Jesus
consistiria originalmente apenas na recitação do nome de “Jesus”, e não em uma
fórmula mais desenvolvida, como “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem
piedade de mim, pecador” ou algo do gênero. “A mais antiga, a mais simples e,
na minha opinião, a fórmula mais fácil, escreve ele, consiste na palavra
“Jesus” usada sozinha”: recitando o nome isoladamente, poderíamos reencontrar
uma “liberdade primitiva”, que é menos evidente durante o desenvolvimento
posterior da Prece. Por conseguinte, no capítulo a respeito do uso prático da
Prece Frei Lev tem em vista o emprego simples do nome “Jesus”, apesar do fato
de que quase tudo o que ele diz se aplica igualmente ao desenvolvimento da
fórmula em suas diferentes variações.
O estudioso
jesuíta Frei Irineu Hausherr discorda aqui do “Monge da Igreja do Oriente”. “A
Prece de Jesus, escreve ele em seu grande estudo Noms du Christ et voies d’oraison, não começa com o nome de Jesus.
Ela tem sua origem no penthos[4],
no luto, na tristeza pelo pecado (...) Quanto à fórmula desenvolvida, pelo
menos no que diz respeito à substância, temos páginas e páginas de evidências
documentais; quanto ao uso apenas do nome, temos poucos testemunhos;
formalmente falando, não temos nada”. Na visão de Frei Hausherr a “fórmula
desenvolvida” representa não uma expansão ou uma abreviação, mas uma
concentração numa curta frase da quintessência do espírito monástico do penthos.
Em favor do
Frei Lev, é possível encontrar alguns exemplos através dos séculos nos quais o
nome “Jesus” é empregado isoladamente. Mas devemos admitir que a maior parte
das evidências favorecem o Frei Hausherr. A Prece “monológica” – a prece do Logos único – geralmente significa a
prece de uma única frase, não de uma única palavra. São Diádoco de Foticéia, o
mais antigo autor a fornecer uma fórmula específica, não menciona “Jesus”
apenas, mas “Senhor Jesus”, possivelmente seguido de outras palavras. Poucos
anos depois os Santos Barsanulfo e João de Gaza dão uma variedade de fórmulas,
todas contendo muitas palavras, e nunca simplesmente “Jesus”. Mas, quaisquer
que seja a verdade dos fatos sobre o desenvolvimento histórico da Prece – e
hiatos no desenvolvimento histórico não permitem nenhuma conclusão final – Frei
Lev está plenamente qualificado para recomendar aos Cristãos de hoje o uso do Santo
Nome; isso, aliás, era costume no Ocidente durante a Idade Média. Alguns podem considerar que o Nome, invocado
isoladamente, é demasiado poderoso e intenso, e podem preferi “diluí-lo” junto
com outras palavras. Mas muitos podem concordar com Frei Lev que a simples
palavra “Jesus” é “a fórmula mais simples e mais fácil”. Quanto a isso, como em
todos os aspectos da vida de oração, a diversidade pessoal existe.
Em segundo
lugar, ao relatar o desenvolvimento da Prece de Jesus, Frei Lev distingue um
estágio “Sinaíta” (dos séculos V ao VII) de um estágio “Athonita” (por volta do
século XIV). Essa concepção de uma “espiritualidade Sinaíta” foi assumida por
Frei Lev a partir de um antigo trabalho do Frei Hausherr, La méthode d’oraison hésychaste (Roma, 1927), mas em seus trabalhos
posteriores por volta de 1934 o Jesuíta abandonou essa ideia. A primeira
evolução da Prece de Jesus, conforme ele sustenta em Noms du Christ, não está conectada de modo algum ao Sinai, e a
própria noção de um estágio especificamente “Sinapita” é artificial e enganoso.
Mais uma vez devemos admitir que a maior parte das evidências concorda com Frei
Hausherr. As fontes da Prece de Jesus residem na espiritualidade dos Padres do
deserto do Egito, enquanto que os mais antigos testemunhos explícitos estão
espalhados por uma grande área: Ásia Menor (São Nilo), norte da Grécia
(Diádoco) e Palestina (Barsanulfo e João, Doroteus). Clímaco, Hesíquio e
Filoteus de fato constituem uma escola Sinaíta distinta, mas eles não são as
testemunhas mais antigas da Prece de Jesus. Assim, muitos especialistas
preferem acompanhar Frei Hausherr, e evitam o termo “espiritualidade Sinaíta”,
exceto quando aplicado de maneira restrita àqueles três autores. Frei Lev, por
outro lado, é cuidados em especificar que ele não emprega o termo “Sinaíta” num
sentido geográfico.
Em terceiro
lugar, Frei Lev parece menos justo quando escreve a respeito de São Gregório
Palamas e a controvérsia hesiquiasta. Ele esta certo ao dizer que “Gregório não
discutiu a Prece de Jesus como um tema específico”, e que dedicou apenas um
espaço limitado em seus estudos devotados especialmente à invocação do Nome. É
também lamentavelmente verdade que muito do que Palamas escreveu foi marcado
por um tom claramente polêmico que os Cristãos modernos acham pouco atraente –
mas o mesmo pode-se dizer de muitos dos primeiros Padres. Mas São Gregório
Palamas possui um significado crucial para a espiritualidade e a teologia
Ortodoxa, que o “Monge” falhou em deixar claro. O tratamento que ele dispensa
ao grande teólogo Hesiquiasta é bastante insuficiente. Aqui frei Lev confessa
seu desgosto de toda uma vida em relação a controvérsias religiosas, que
empanou seu julgamento.
Mas no seu
todo, A Prece de Jesus é um trabalho
notável por seu equilíbrio, moderação e generosidade. Frei Lev escreveu essa
obra, como todos os seus livros, com um objetivo prático em vista: não
transmitir uma informação histórica, mas levar as pessoas a orar, acendendo
nelas um amor mais ardente por Jesus Cristo. Desde sua primeira publicação, A Prece de Jesus fez exatamente isso,
conforme sei pela minha própria experiência e de outros que me confirmaram o
fato. Ao final do último capítulo, o “Monge” nos diz a respeito da “bênção
especial” recebida por todos os que amam o Nome de Jesus. Possa este livro,
agora revisado, continuar a iniciar mais e mais Cristãos neste caminho de
oração que é antigo e sempre novo, e ajudar as pessoas a partilhar dessa
“bênção especial” de que ele fala. “Eu esperarei no Nome do Senhor[5]”.
Bispo Kallistos de Diocleia
INTRODUÇÃO
A história da
Prece de Jesus – um termo técnico da espiritualidade Bizantina que designa a
invocação do Nome de Jesus, sozinho ou inserido numa fórmula mais ou menos
extensa – ainda não foi contada de um modo abrangente, apesar de que existem
diversos estudos a respeito de aspectos específicos dela. Não estamos aqui
pretendendo fazer uma reconstituição histórica exaustiva; apenas gostaríamos de
indicar alguns estágios do desenvolvimento da Prece. O assunto tem um interesse
que não é meramente histórico. Ao mesmo tempo em que a Prece recua no tempo até
seus primórdios, ela ainda permanece totalmente viva no Oriente Cristão de hoje
em dia. Ela geralmente não é mencionada nos tratados normais sobre os “modos de
orar”, mas mesmo assim ela é mais antiga e mais disseminada do que os métodos
analisados nesses manuais clássicos. Um escritos Romeno, N. Crainic, escreveu
que a Prece de Jesus é “o coração da Ortodoxia”. Também os Uniatas a praticam;
Latinos têm interesse nela; existem Anglicanos e Protestantes modernos que
seguem fervorosamente este método de oração; ela é um patrimônio comum. Mais do
que uma devoção provada, ela faz fronteira com o domínio da liturgia e chega
mesmo a penetrar nele. Suas implicações possibilidades exigem uma cuidados atenção.
Possa esta publicação ajudar a atrair as pessoas, ainda que poucas, à pratica
da Prece.
Soubemos com
alegria que as primeiras edições deste pequeno trabalho deram frutos. O livro,
disseram-nos, ajudou algumas almas a aprender melhor sobre os tesouros que
estão contidos no Dulcíssimo Nome do Salvador. Non nobis, Domine, sed nomini tuo...
CAPÍTULO I
A INVOCAÇÃO DO NOME DE JESUS NAS ESCRITURAS
E NA TRADIÇÃO PATRÍSTICA
A Prece de
Jesus tem suas raízes imediatas no Novo Testamento, mas suas raízes distantes
mergulham na Velha Aliança. Ela deriva, num certo sentido, da atitude que a
Bíblia Hebraica adota em relação ao nome de Deus. Para os Hebreus, o nome de
Yavé, em comum com esta palavra, constituía uma espécie de entidade destacada
da pessoa divina, uma grandeza existente por si só, paralelamente à pessoa.
Assim é que o anjo é considerado como o portador do nome[6],
e o profeta vê esse nome como algo que vem de muito longe[7].
Se o nome divino é invocado sobre um lugar ou uma pessoa, daí por diante esse lugar
ou essa pessoa passam a pertencer a Yavé; tornam-se estritamente seus e entram
numa relação íntima com ele[8].
O nome habita no Templo[9].
O nome é o guia da vida do homem e de seu serviço a Deus[10].
Através dos Salmos, o nome divino aparece como um refúgio, um poder que vem em
nosso auxílio, um objeto de adoração.
A veneração do
nome divino acontece entre outras nações além de Israel. Ela é encontrada
reiteradamente entre os Mandeus, e também nos cultos de Isis e Astarte. O nome
da divindade desempenha um papel importante na religião dos povos primitivos;
para eles, o nome é algo de real, substancial, um fragmento do ser da pessoa
nomeada, uma espécie de “duplo”. Mas apenas uma crítica superficial concluiria,
a partir dessas similaridades que a atitude Bíblica perante o nome de Deus não
passa de uma sobrevivência de formas de pensamento prerracionais. O uso do nome
de Yavé no Antigo testamento não parece provir de magia; não se trata de uma
fórmula abstrata usada para produzir determinados efeitos. É verdade que a
mentalidade Hebraica, como a dos Semitas, é especialmente ligada ao nome; mas
suas tendências psicológicas correspondem a uma revelação divina, objetiva, que
existia previamente no nível espiritual. Por um lado o nome de Yavé é uma
revelação de sua pessoa, uma expressão da essência divina. Por outro lado, essa
revelação, essa nova fase no conhecimento da divindade, sinaliza a entrada do
homem numa relação com Deus que é nova, pessoal e prática. Aprender quem e o
que ele é equivale a aprender também como devemos agir.
A tradição
Rabínica contribuiu bastante para a veneração do nome divino. Sabemos que por
uma questão de respeito o nome de Yavé, o tetragrama, nunca era invocado senão
pelo sumo sacerdote no dia do Yom Kippur;
a palavra Adonai o substituía. O próprio termo pelo qual o nome divino era
designado, shem ha-mephorash, ou
seja, “o nome inefável”, tem uma história curiosa. Literalmente essa expressão
denota o oposto de inefável, pois significa originalmente “nome claramente
pronunciado”. Mas, pouco apouco, na medida em que um véu de adoração recobria o
nome divino, o mesmo termo que significava que o nome era pronunciado
abertamente começou a indicar que o nome se tornara inexprimível. A evolução
semântica da palavra marca aqui o desenvolvimento do culto.
Os Cabalistas
ligam uma importância especial ao nome divino. Não se pode negar que alguns
deles caem em superstições em relação ao uso das letras, números e fórmulas;
mas mesmo assim, com toda justiça, devemos reconhecer que a Cabala em sua essência
nunca foi uma espécie de mágica, mas um método tanto de exegese espiritual como
de vida espiritual.
A tradição
Judaica utiliza o termo baal shem,
“mestre do nome”, sem conotações mágicas, para designar uma pessoal em
particular reconhecida por possuir uma prece efetiva e um certo poder diante de
Deus. É um título que foi aplicado, por exemplo, a Benjamin bem Zara no século
XI, e a Israel bem Eliezer no século XVIII – o santo Judeu que fundou a moderna
escola de misticismo conhecida como Hassidismo – e, mais recentemente, a Eli
Gutmacher no século XIX.
Finalmente,
devemos sublinhar a importância, tanto na espiritualidade Judaica ancestral
como na contemporânea, dos dois conceitos de kiddush hash-shem, “santificação do nome” e hilul hash-shem, “profanação do nome”. A expressão “santificação do
nome” não significa a simples honra ou o louvor devido ao nome de Deus.
Trata-se de um termo técnico já em uso desde o primeiro século com um
significado poderoso: santificar o nome é dar testemunho de Deus mesmo com o
risco da própria vida, é glorificar a Deus, se preciso, mesmo derramando seu
sangue. A santificação do nome se tornou quase sinônimo de martírio. Os
Macabeus eram considerados os santificadores por excelência do nome divino. A
noção Judaica de kiddush hash-shem
lança uma luz particular sobre a primeira súplica da Prece do Senhor.
***
O anjo
anunciou a Maria que seu filho seria chamado de Jesus, porque ele iria salvar
os homens de seus pecados[11].
O nome Iesous é a transcrição grega do
Hebraico Yeshua (Jesus), que por sua
vez é idêntico a Yehoshua (Joshua). A
primeira destas duas palavras Hebraicas é a contração da segunda, evitando a
sequência das vogais o e u que repugnava o ouvido Judeu. O
significado do nome Yeshua, embora
claro no sentido geral, é difícil de estabelecer com precisão estrita. A
tradução “salvador” é aproximadamente correta; mais especificamente, o nome
significa “salvação de Yavé”, ou “Yavé é a salvação”. Assim é que o antigo
adágio nomen est omen – o nome
expressa de certo modo a pessoa e seu destino – se aplica à Anunciação por
parte do anjo em relação ao nome do menino.
Três textos do
Novo Testamento são de especial importância para a veneração do nome de Jesus.
Em primeiro lugar (seguindo aquilo que acreditamos ser uma ordem cronológica)
vem o magnífico texto de São Paulo: “Deus lhe deu o nome que está acima de
todos os nomes, pois diante do nome de Jesus todo joelho se dobrará, dos que
estão nos céus, sobre a terra ou abaixo da terra[12]”.
Depois temos a solene declaração nos Atos dos Apóstolos: “Não existe outro nome
abaixo dos céus dado aos homens, por meio do qual eles possam ser salvos[13]”.
Finalmente, no Quarto Evangelho temos o segredo que Jesus revelou aos seus
discípulos: “Até agora vocês não pediram nada em meu nome (...) Tudo aquilo que
vocês pedirem ao Pai em meu nome, ele dará a vocês[14]”.
As referências
ao nome de Jesus no Novo Testamento são demasiado numerosas para que nos
detenhamos em cada uma delas; mas todo estudante, com o auxílio de uma
concordância, poderá fazer isso com grande proveito. O Apocalipse fornece uma
colheita especialmente rica. Mas é principalmente nos Atos dos Apóstolos que
temos o que se pode chamar de “livro do nome de Jesus”. “Em nome de Jesus”
prega-se a boa nova, os crentes são convertidos, confere-se o batismo,
realizam-se curas e outros “sinais”, arriscam-se e se entregam vidas. O que
está envolvido nessa insistência no nome de Jesus não é o emprego de uma
fórmula mágica, pois ninguém pode empregar esse nome efetivamente se não
possuir uma relação interior com o próprio Jesus.
Infelizmente a
expressão “em nome de”, em Inglês, bem como o Latim in nomine, é incapaz de
expressar a rica complexidade do termo Grego. Em Latim como em Inglês a
frase “em nome de Jesus” é mais ou menos sinônimo de “pela autoridade de
Jesus”; assim, “em nome de” se transforma em “por causa de”. Isso empobrece o
Novo Testamento Grego, despojando-o tanto de seu realismo quanto de suas
nuances. O texto Grego, ao se referir ao nome de Jesus, usa três fórmulas: epi tw onomati, eis to onoma, en
tw onomati. As três fórmulas não são equivalentes, mas cada uma expressa uma
atitude específica em relação ao nome. Na primeira, epi tw onomati, o locutor se apoia no nome: este é a
fundação sobre a qual se constrói, o terminus
a quo, o ponto de partida de uma ação subsequente, o começo de um novo
avanço. Em eis to onoma existe um
movimento na direção do nome, um relacionamento dinâmico de finalização que vê
o nome como objetivo a ser alcançado, o terminus
ad quem. Em en tw onomati a atitude
é estática: expressa o repouso que se segue ao atingimento do objetivo, e uma
certa interiorização ou imanência; nosso espírito é transportado “para dentro”
do nome, no interior do nome, ele se une ao nome e nele faz sua morada. A
expressão en tw onomati
corresponde ao Hebraico be-shem, eis to onoma ao Hebraico le-shem.
O Padre
Ferdinando Prat indicou claramente as diferenças entre essas três fórmulas, que
podem nos proporcionar um programa para um caminho completo de oração centrado
em torno do nome de Jesus.
***
A mais
antiga referência Patrística ao nome de Jesus é encontrada no Pastor de Hermas, da primeira metade do
século II. Hermas diz para alguém que “sustentar o nome do Filho de Deus”
equivale a “colocar-se à parte da mortalidade e assumir a vida”. Ele também diz
que “ninguém pode entrar no Reino de Deus a não ser através do nome de Seu
Filho”. Ele fala “daqueles que sofreram por causa do nome do Filho[15]”.
Podemos ver nisso apenas alusões ao batismo e ao martírio, ou os primeiros começos
de uma teologia do nome? A segunda hipótese poderia ser sugerida por um outro
enunciado de Hermas: “O nome do Filho de Deus é grande e ilimitado, e é ele que
sustenta todo o mundo[16]”.
Os místicos Bizantinos que propagaram a Prece de Jesus durante a Idade Média
teriam endossado alegremente esta colocação. Se lermos com cuidado as poucas
linhas que se seguem, bem como o capítulo precedente ao trecho do qual foram
extraídas, acharemos algo confusa a maneira pela qual o nome do Filho e os
nomes de virgens, poderes e pedras estão misturados. Mas ficamos com a
impressão de que para Hermas o nome era algo muito real, com um valor objetivo
e ontológico.
Orígenes,
no século III, não discute a teologia do nome, embora as especulações deste
Alexandrino pudessem ter encontrado nela muita matéria para reflexão. Mas ele
observa que por esse tempo o nome de Jesus produzia o mesmo efeito que na época
apostólica: “Ainda hoje o nome de Jesus liberta as pessoas da distração mental,
coloca em fuga o demônio, cura os doentes; ela infunde mansidão e tranquilidade
ao caráter, amor pela humanidade, ternura e gentileza[17]”.
Poderíamos esperar que os grandes teólogos Gregos dos séculos IV e V tivessem
meditado profundamente sobre o nome de Jesus. Mas de fato nem Atanásio, nem os Capadócios,
nem Crisóstomo, nem Cirilo de Alexandria deram atenção especial ao significado
dos nomes. Quando algum deles toca no assunto é de maneira incidental, às vezes
como um detalhes de uma biografia que estão escrevendo, mas nunca como um tema
desenvolvido em seus ensinamentos. Os Padres Gregos que influenciaram o
crescimento da devoção ao nome não eram teólogos dogmáticos, mas permaneceram
mais ou menos à parte das grandes correntes especulativas, ficando mais ligados
a questões da vida interior.
Se nos
voltarmos para o Ocidente Latino, encontraremos Santo Ambrósio (†387), que
dedicou muitas reflexões pessoais ao nome de Jesus. De acordo com ele, esse
nome estava contido em Israel como um perfume num vidro fechado. Agora o vidro
foi aberto e o perfume de espalhou por toda parte. Aconteceu um verdadeiro
“transbordamento desse nome”, um transbordamento ou uma inundação de graça;
como coloca Ambrósio, ex abundantia
superfluit quidquid effunditur[18].
São
Paulino de Nola (354-431) escreveu um poema sobre o nome de Cristo: este nome
“é néctar na boca, mel na língua (...) um ambrosia viva (...) se você prová-lo
uma única vez já não suportará ser separado dele (...) ele é uma serena luz
para os olhos, e para os ouvidos o som da vida[19]”.
Este é talvez o poema que, muitos anos depois, inspiraria São Bernardo. O papa
São Damasco (366-384) também escreveu dois poemas acrósticos sobre o nome de
Jesus[20].
São Cesário de Arles (470-542) ligou o nome de Jesus com a serpente de bronze: videte nomen Dei vestri quantum prodesse
possit gratia quod tantum profuit in figura, “Considere o quanto o nome de
seu Deus pode beneficiá-lo em graça, quando mesmo figurativamente seu poder era
já tão grande[21]”.
Santo Agostinho pouco ou nada falou a respeito do nome de Jesus. Um dia, porém,
ele comentou um texto de Habacuque cuja versão Latina traduzia como Gaudebo in Deo salutari meo, “Eu me
regozijarei em Deus, minha salvação”. Agostinho sabia que outros manuscritos
davam o texto como Gaudebo in Deu Jesu
meo, “Eu me regozijarei em Deus, meu Jesus”. A equivalência de significados
entre as palavras Latinas salutaris, salvator e o Hebraico Yeshua poderia justificar, em certa
medida, essa leitura alternativa. Então Agostinho escreveu estas palavras que
lançaram uma luz inesperada sobre seus sentimentos: “A leitura de alguns
manuscritos, ‘Eu me regozijarei em Deus, meu Jesus’, me parece melhor do que
aquelas em outros manuscritos, os quais, ao buscarem traduzir a palavra [Yeshua] para o Latim, não retiveram o
nome verdadeiro [de Jesus] – o nome que é tão querido a nós, e de pronúncia tão
doce[22]”.
Um dos
contemporâneos de Agostinho, o historiador Paulo Orosius, relata um evento que
provavelmente aconteceu por volta do ano 173. A invocação do nome de Jesus por
soldados Cristãos da Legio XII Fulminata
obteve para eles tanto a chuva como a vitória[23].
Que o nome divino tivesse operado maravilhas parece normal. Santo Atanásio
menciona de passagem que bastava invocar o nome de Cristo para colocar os
demônios em fuga[24].
São Gregório de Nisse, em sua Vida de São
Gregório o Taumaturgo, dizia que ele aterrorizava os demônios apenas com a
invocação do nome de Cristo[25].
Os Padres
do deserto estavam familiarizados com o poder do nome. Santo Atanásio reporta
que Santo Antônio do Egito (†cerca de 356) exorcizava os demônios usando apenas
o nome do Senhor Jesus Cristo[26].
São Jerônimo recorda a mesma coisa a respeito de Santo Hilário (†371)[27].
Não parece que os Padres do deserto tenham praticado a invocação do nome de um
modo organizado. Dentre os Apoftegmas
coletados por Bousset, encontramos apenas dois, de origem Síria, sobre o nome
de Jesus. Não é muito. Mas esses círculos monásticos prepararam o caminho para
a Prece de Jesus de outra maneira. Eles deram às suas orações privadas a forma
de curtas aspirações. Santo Agostinho escreveu a esse respeito a Proba: “Eles
dizem que os irmãos do Egito oferecem preces que são muito frequentes mas muito
breves lançadas impetuosamente[28]”.
Estas palavras de Agostinho, orationes
(...) quomodo jaculatas, deram origem
à expressão “prece jaculatória”. Era como flechas velozes lançadas diretamente
ao coração de Deus. Os Padres do deserto usavam a fórmula Kyrie eleison ou o
versículo “Senhor, venha em meu socorro; ó Senhor, apresse-se em socorrer-me[29]”.
É Deus quem se invoca; não existe uma menção específica ao nome do Filho. Mas
imagine que um dia este nome foi associado à prece jaculatória, que houve um
encontro, uma fusão, entre o nome e a aspiração – e então temos a Prece de
Jesus.
***
Essa
combinação foi trabalho do Hesiquiasmo. Este termo tem sido muitas vezes
empregado limitando-se a um significado histórico, com o título de
“Hesiquiasta” restrito aos místicos Bizantinos do século XIV, em especial
aqueles da escola Palamita. Na realidade o Hesiquiasmo constitui uma tradição
espiritual que se estende do século V até o XVIII. A palavra “hesíquia” foi
estabelecida como um termo técnico na primeira metade do século VII quando São
João Clímaco dedicou um capítulo ao tema no seu tratado A Escada Santa[30].
Mas desde o século V essa tradição foi também representada por homens como São
Nilo de Ancyra ou O Sinaíta, São Diádoco de Foticéia e São João o Hesiquiasta,
cuja vida foi escrita por Cirilo de Scythopolis. Devemos considerar São Nicodemos o Hagiorita, no século XVIII, como o último
porta-voz do Hesiquiasmo.
Então,
como podemos definir o Hesiquiasmo? A palavra hesíquia significa “repouso”. O
Hesiquiasta monástico ideal deve ser entendido em temos de sua relação tanto
com os primeiros Padres do deserto, como com o monasticismo cenobítico de São
Basílio e São Teodoro o Estudita. Assim como o primitivo monasticismo do
deserto, o Hesiquiasmo insiste no silêncio, no retiro, numa rigorosa separação
do mundo, quase um rompimento com todo contato humano. Mas a preocupação com as
proezas ascéticas é menor do que no deserto; ao contrário, o Hesiquiasmo coloca
a maior ênfase na oração, na contemplação e na vida mística, e – o que é
novidade – persegue métodos específicos de oração e busca desenvolver uma
técnica contemplativa. Comparado com o monasticismo de Basílio e de Teodoro, o
Hesiquiasmo difere de modo definitivo. As tradições de Basílio e do Estudita
recomendam um grau moderado de observância cenobítica, vida em comum e prece
comum; o Hesiquiasmo insiste na santificação individual na solidão. Os primeiros
permitem aos monges tomar parte em atividades eclesiásticas e caritativas
ocasionalmente; o segundo advoga a radical separação do mundo. Os primeiros
estão interessados especialmente na praxis,
enquanto o segundo está focado na theoria.
Podemos
distinguir na história do Hesiquiasmo, e consequentemente na história da Prece
de Jesus, duas fases bastante distintas: a fase Sinaíta e a fase Athonita.
CAPÍTULO II
A PRECE DE JESUS NO HESIQUIASMO SINAÍTA
Foi em 527
que o Imperador Justiniano I estabeleceu no Sinai o famoso mosteiro de Santa
Catarina que, até hoje, constitui por si só uma das Igrejas Ortodoxas
autocéfalas. Mas os Cristãos já viviam na península desde o ano 400.
Limitando-se com os monásticos desertos do Egito, o lugar oferecia uma
localização ideal para um mosteiro. Desde cedo ele se tornou um centro de
influência espiritual. Mas quando falamos da espiritualidade Sinaíta, não
devemos encará-la como sendo estritamente localizada. O que está implicado
nisso é a espiritualidade da qual o monasticismo do Sinai constitui o ponto
focal e exemplar; o que temos em mente é uma corrente de pensamento e uma
tendência comum, mas que não necessariamente estão geograficamente vinculados à
península. No Sinai (num sentido amplo) o Cristão enxerga o pensamento como uma
força geradora por trás da ação: ele acredita no primado do logos sobre o ethos, da teoria sobre a prática. Em Studion ele se pergunta: como
devo agir? No Sinai a questão principal é: como devo pensar?
A
espiritualidade Sinaíta tem um certo toque afetivo que a distingue da
sobriedade de Basílio e do Estudita. Trata-se de uma piedade permeada pela
ternura. Algo dessa ternura aparece desde as palavras dos primeiros Padres do
deserto. A combinação da espiritualidade do deserto com a ternura não parecerá
surpreendente para os que leram, em nossos dias, os escritos de Frei Charles de
Foucauld. Essa ternura está concentrada sobre a pessoa, a lembrança e o nome de
Cristo. De preferência a pessoa pode invocar o nome “Jesus” apenas, e isto já é
significativo. É nessa atmosfera que nasceu e floresceu a Prece de Jesus. E foi
no Sinai, como podemos lembrar, que há muito tempo Deus revelou seu nome a
Moisés.
Dos vários
testemunhos dessa espiritualidade, o mais antigo parece ser o de Diádoco, Bispo
de Foticéia, por volta do ano 458. Em
seus Cem Capítulos sobre a Perfeição,
ele recomenda purificar o coração por
meio da “lembrança de Jesus”, a qual, de fato, não apenas purifica, mas
inflama. “Devemos, diz ele, dar ao intelecto (nous) nada senão as palavras Senhor Jesus (to Kurie Ihsou)”. Tomemos nota desta frase. A Prece de Jesus
existe deste ponto em diante como uma fórmula e uma técnica. Diádoco é um
mestre espiritual da maior importância, ao qual não foi até hoje concedido todo
o mérito merecido.
Também
representativos da espiritualidade Sinaíta estão dois santos inseparáveis,
Barsanulfo e João, que vieram pouco depois de Diádoco. São Barsanulfo († 540),
de origem Egípcia, viveu num mosteiro perto de Gaza. Ele era chamado de “o
grande ancião”, e, embora não fosse padre, os fiéis atribuíam a ele o poder de
perdoar os pecados, mesmo à distância. Havia uma identificação perfeita entre
Barsanulfo e seu amigo João o Profeta. Temos destes dois “anciãos” mais de 840
cartas espirituais, das quais 446 de João e 396 de Barsanulfo. Essas cartas não
são uma correspondência entre os dois amigos, mas são endereçadas a pessoas de
fora. Os dois missivistas recomendam o abandono da própria vontade, a direção
espiritual, o exame de consciência e, por fim, a invocação do nome de Jesus.
João desaprova o sistema “antirrético”, ou “método da contradição[31]”,
que consistia em confrontar as tentações cara a cara em combate e disputa
direta. Esse método só era recomendado aos “poderosos em Deus”, àqueles que
eram “como São Miguel”. Mas havia outro caminho. “Para nós, os fracos, o único
caminho é buscar refúgio no nome de Jesus”. Esta é uma das declarações mais
belas em toda a literatura a respeito da Prece de Jesus. Barsanulfo levanta a
questão sobre o que é preferível, se a salmodia ou a Prece de Jesus. Ele
responde: “Ambas devem ser praticadas”. Os Hesiquiastas de Athos seriam mais
radicais, afirmando que a Prece de Jesus absorveria todas as outras orações. As
cartas de Barsanulfo e João desfrutaram de grande sucesso na Rússia, onde,
desde o século XVIII, foram traduzidas muitas vezes.
São João
Clímaco (†649) foi um Sinaíta no sentido plenamente geográfico do termo, uma
vez que ele se tornou monge na península com a idade de dezesseis anos e foi
sucessivamente cenobita, anacoreta e superior monástico no Sinai. Sua Escada Santa constitui um tratado
clássico da espiritualidade Sinaíta. A prece ideal para ele era aquela que
eliminasse os elementos discursivos ou logismoi,
e se transformasse numa única palavra ou frase, numa monologia. A “lembrança de
Jesus” daria a essa prece seu conteúdo e sua forma. Em seus ensinamentos
espirituais encontramos uma antecipação das futuras teorias Hesiquiastas que
associam a Prece de Jesus com a percepção da luz sobrenatural, pois, de acordo
com João, o “olho do coração” é capaz de enxergar o divino “Sol da
inteligência” e, quando isso acontece, o contemplativo se torna completamente
luminoso. O principal texto da Escada
sobre a invocação do nome é este: “Possa a lembrança de Jesus unir-se à sua
respiração, e então você compreenderá o valor da hesíquia”. Não há dúvida de
que para os Sinaítas a “Lembrança de Jesus” não era apenas um sistema
mnemônico, mas que estava fundado firmemente sobre o nome divino. É por isso
que João sugere que devemos de certo modo “amarrar” à nossa respiração o nome
de Jesus, para daí por diante possibilitar nossa vida de contemplação a se
tornar verdadeiramente plena. Essa ideia, como veremos, estava destinada a um
estranho fado.
***
As Centúrias atribuídas a Hesíquio são um
dos textos mais importantes na literatura da Prece do Coração. O trabalho foi
erroneamente atribuído a Santo Hesíquio, um sacerdote de Jerusalém (†450), que
aliás não tinha conexão alguma com o Hesiquiasmo. As Centúrias são trabalho de um autor, e provavelmente de muitos
autores, associados ao mosteiro de Bathos (a Sarça ardente) no Sinai. O
trabalho é posterior a São João Clímaco, porque este o menciona na seguinte
passagem: “Possa a lembrança de Jesus se unir à sua respiração (...) prossegue
Hesíquio (...) por toda a sua vida[32]”.
A adição é importante. Não se trata simplesmente de rezar, mas é toda a nossa
vida que deve ser controlada pela “lembrança de Jesus”. A espiritualidade do
nome cresce ainda mais e abarca a tudo. As Centúrias
falam da Prece como sendo monológica. O trabalho utiliza o termo “Prece de
Jesus” (euch tou Ihsou) e, que tenhamos conhecimento, esta é
a primeiríssima menção a essa frase, embora a realidade que ela denota já fosse
bastante conhecida. O trabalho também emprega a expressão epiklhsis Ihsou, “chamado”, “invocação”, epiclese de Jesus.
Às vezes fala-se aí também no “santo nome de Cristo”.
A Prece de
Jesus deve ser “respirada” continuamente. Quando o intelecto se vê purificado e
unificado nela, nossos pensamentos nadam nele como alegres golfinhos num mar
calmo. Então começa um diálogo no qual Cristo, que se tornou nosso mestre
interior, nos faz conhecer sua vontade ao coração. Quando a Prece de Jesus é
compreendida desta maneira, claramente seu objetivo final não é o silêncio
místico, mas a escuta da palavra divina. Não permanecemos no exterior do nome
invocado, mas a invocação nos permite “participar do santo nome de Jesus”. Ela
nos concede as virtudes da temperança e da continência. O nome de Jesus entra
em nossa vida primeiramente como uma lâmpada na escuridão; depois como a luz da
lua, e finalmente como um sol que nasce. Ao se mostrar como o sol de nosso
intelecto, ela cria nele pensamentos luminosos, pensamentos que se assemelham
ao sol. É o amor que nos eleva – devemos observar a parte que é desempenhada
pelo amor divino nesse processo de transformação – e nos torna prwtaggeloi, mais altos do que os anjos. Pronunciar o
nome de Jesus de um modo sagrado consiste num socorro autossuficiente e
superabundante para qualquer vida humana. “Verdadeiramente abençoado, proclama
a Centúria, é aquele que pronuncia
incessantemente em seu coração o nome de Jesus, e que nas profundezas de sua
mente está unido à Prece de Jesus como o corpo ao espaço que o rodeia ou a cera
da vela à chama[33]”.
Nos Outros Capítulos (Capita alia) que aparecem na edição de Migne sob o nome de São
Máximo o Confessor (†662), há uma insistência na prece monológica. Serão esses
fragmentos realmente de Máximo? Argumentos existem contra e a favor. É possível
que de fato Máximo seja o autor desses textos, e muito provável que ele tenha sido
agraciado com os ensinamentos de João Clímaco sobre a Prece de Jesus.
***
Nos
séculos VIII e IX não existem textos notáveis referentes à Prece de Jesus. A
Prece existia; ela era recomendada e, inclusive, fazia parte da tradição
espiritual Bizantina. Mas ela permaneceu como se fosse fluída, algo inconstante.
Não existem traços das técnicas psicofisiológicas que viriam a aparecer mais
tarde. A própria forma da Prece parece não ter sido fixa. O nome de Jesus era
obviamente um elemento necessário, era seu centro e sua fonte de poder. Apesar
disso era consentida uma grande liberdade na sua utilização. Alguns
pronunciavam apenas o nome, enquanto outros o associavam a alguma curta
invocação. Para encontrarmos a Prece de Jesus, em certa medida, cristalizada, teremos
que esperar pela aparição de um trabalho de data e autoria incertas, mas de
importância e influência decisivas, o Método
da Santa Prece e Atenção. A edição Migne apresenta este trabalho apenas na
sua versão neo-Grega. Para Hausherr, estamos nos devendo uma primeira edição
crítica do Método, baseada nos
principais manuscritos.
Uma
tradição geral e ininterrupta atribui o Método
a São Simeão o Novo Teólogo (949-1022), abade do mosteiro de São Mamés em
Constantinopla. Já Combefis no século XVIII, e hoje Holl, Stavrou, Stein e
Papamikhail, colocaram em xeque essa atribuição. Haussher a rejeita
categoricamente; ele acredita inclusive ter estabelecido a identidade do
verdadeiro autor, que de seu ponto de vista foi um monge do Monte Athos,
Nicéforo, de quem falaremos mais adiante. Os argumentos de Hausherr não
convenceram o acadêmico Bizantino Frei Martin Jugie. Depois de estudar seus
argumentos, o leitor provavelmente se inclinará para a solução proposta por
Hausherr. Entretanto, nos parece melhor deixar a questão em aberto. Desta
forma, poderemos falar do Método sem
prejulgar a questão de sua origem. Mas o Método
é tão dependente da atmosfera espiritual criada por Simeão que, mesmo que este
não seja seu autor, algumas linhas a respeito do Abade de São Mamés nos
ajudarão a entender essa atmosfera.
São Simeão
o Novo Teólogo já foi comparado por seus admiradores com o autor do Quarto
Evangelho. Ele é com certeza o maior nome na história da espiritualidade
Bizantina pós-patrística. Se é certo que as Igrejas Ortodoxa e Romana se
separaram mais por determinadas tendências espirituais do que por conflitos nos
níveis estritamente dogmáticos e históricos, devemos afirmar que Simeão, e dois
séculos mais tarde São Gregório Palamas, tiveram mais participação nisso do que
Photius e Cerularius na divergência das “duas mentalidades”. Através de sua
perspectiva sobre o ministério do “pai espiritual” e a necessidade da
experiência mística, Simeão, provavelmente sem que tivesse a intenção,
contribuiu para uma certa concepção da “primazia do espiritual”, entendida como
o primado do elemento pneumático e carismático sobre o
hierárquico-institucional, e também como o primado da contemplação sobre a vida
intelectual e ativa. Essas noções, ou antes, essas atitudes ainda permanecem mais
ou menos latentes na alma Ortodoxa. Ela foi desenvolvida por algumas escolas
Russas de teologia, que se mostram especialmente partidárias dessa posição; e
elas marcaram a Ortodoxia tanto quanto a Contrarreforma, o Concílio de Trento e
o Primeiro Concílio Vaticano marcaram a Igreja Romana.
Mas o que
nos interessa aqui é a relação de Simeão com a Prece de Jesus. Deixando de lado
o tratado sobre o Método, não
encontramos escritos de Simeão que façam referência direta a essa oração.
Entretanto, três comentários são necessários.
Em
primeiro lugar, a Prece de Jesus, tal como descrita no Método não teria sido unanimemente, nem continuamente atribuída a
Simeão, se os círculos monásticos Hesiquiastas, nos quais a memória de Simeão
permanece especialmente viva, não tivessem observado uma conexão muito próxima
entre essa Prece e a espiritualidade do abade de São Mamés. Estamos muito
inclinados a acreditar que os detalhes do Método
não são atribuíveis a Simeão; é mais provável que Simeão tivesse extraído de
João Clímaco e Hesíquio do que ter ele próprio advogado essa prece que, na
época, era considerada a prece contemplativa por excelência, e que ele tenha
inspirado seus discípulos a que desenvolvessem ulteriormente a prática dessa
oração. Devemos notar que Simeão, que seguia ele próprio a vida Estudita,
estava permeado pela espiritualidade Sinaíta na qual o nome de Jesus ocupava um
lugar privilegiado. De fato, a influência Sinaíta era uma das razões das
dificuldades encontradas por Simeão em suas relações com o meio Estudita.
Em segundo
lugar, o extraordinário Cristocentrismo de Simeão o predispunha à Prece de
Jesus. Em toda a Idade Média Bizantina não houve escritor mais Cristocêntrico
do que Simeão. Nenhuma história de demonstração de amor a Cristo precisaria ser
especialmente atribuída a ele. Simeão expressava seu amor por Jesus com a mais
emocionada ternura, com o sentimento lírico mais vívido. Sua teologia era
essencialmente uma teologia do “corpo de Cristo”. Não dizemos do “corpo místico
de Cristo”, porque esta é uma expressão estranha à tradição Patrística; mas
Simeão foi realmente interessado na incorporação do homem em Cristo. É bem
conhecido que a tradição Grega via essa incorporação de um modo mais realista
do que o Ocidente Cristão jamais o fez. Mais além de uma mera analogia entre a
estrutura local da Igreja e o organismo biológico humano, além mesmo da
incorporação pela graça, os Padres Gregos, sem cair em nenhum tipo de
identificação panteísta, basearam sua concepção do corpo de Cristo na ideia de
que o Logos assumiu a natureza humana; e esta última, no seu modo de pensar,
era muito similar à Ideia ou Forma platônica de humanidade. Simeão desenvolveu
o tema de nossa incorporação em Cristo com tamanho realismo psicológico que
seus editores Latinos ficaram escandalizados. Quando o leitor de Migne chegou
às passagens mais ousadas dos Hinos do
Amor Divino, ele se deparou com um corte e uma nota na qual o Jesuíta Jacob
Spanmuller (†1626) declarava que esse tipo de desenvolvimento seria “melhor
deixado em silêncio, pois seria dificilmente seria considerado digno de ouvidos
Latinos”; o Jesuíta falava também de “ideias que são escassamente piedosas ou
decentes”. Mas existe prece mais Cristocêntrica do que a Prece de Jesus? Alguma
que expresse melhor nossa incorporação em Cristo? Alguma em que Jesus chegue a
tamanho grau de substancialidade de nosso pensamento e nossa fala? É por isso
que, na história da Prece de Jesus, Simeão permanece “ausente no nome, mas
presente em espírito”.
Mas isso
não é tudo. Parece que podemos ter uma evidência definitiva da ligação que une
Simeão à Prece de Jesus. O biógrafo de Simeão, Nicetas Stetathos, reporta o
seguinte episódio durante a juventude de seu herói: “Por esse tempo ele ficava,
durante a prece, cheio de uma grande alegria que lhe infundia lágrimas ardentes.
Não tendo sido ainda iniciado nessas revelações, em seu espanto ele clamava em
alta voz e continuamente, “Senhor, tem piedade” (...). Sob esta luz, então, ele
recebeu o poder de ver; e então, em direção aos céus, apareceu a ele uma
espécie de nuvem luminosíssima, sem forma nem contorno, cheia da inefável
glória de Deus (...). Finalmente, mais tarde, quando a luz gradualmente
evanesceu, ele se viu novamente em seu corpo e dentro de sua cela, e sentiu seu
coração cheio de uma indescritível alegria, enquanto sua bica clamava alto:
“Senhor, tem piedade”, e toda sua pessoa estava banhada em lágrimas mais doces
do que o mel”. Encontramos nesse episódio a alegria do coração e a visão da luz
que o Hesiquiasmo mais tarde iria associar à Prece de Jesus.
Mas será
que as palavras de Simeão, “Senhor, tem piedade”, estavam endereçadas a Cristo?
Um dos escritos de Simeão nos autoriza a responder afirmativamente. Simeão é o
autor de um discurso sobre a necessidade da experiência mística. Nesse discurso
ele descreve uma experiência idêntica àquela reportada por Nicetas, mas sem
colocar que ele próprio era o sujeito da experiência. Um homem, dizia Simeão,
que passou pela experiência da luz, da doçura e das lágrimas, sabia que “alguém
aparecera diante de seu rosto”. Começa então um diálogo: “Meu Deus, é você?”;
“Sim, sou eu, Deus, que me tornei home por você”. Portanto, é a pessoa de Jesus
que apareceu a Simeão. Então, se, como suspeitamos, Simeão está relatando a
visão extática que ele teve em sua juventude, as palavras “Senhor, tem piedade”
estão dirigidas a Cristo. Ainda não é a Prece de Jesus, no sentido de que o
nome real de Jesus está faltando nela. Mas a união de “Senhor, tem piedade” com
o pensamento de Jesus já aponta para a fórmula na qual a frase “Senhor, tem
piedade” e o nome de Jesus estarão unidos; é uma fórmula como esta que
provavelmente, senão certamente, o tratado do Método nos apresenta.
Esse
tratado, que vamos agora analisar, começa com um alerta contra os perigos de
usar a imaginação na prece. E assim como a prece da imaginação, existe
(disseram-nos) uma forma alternativa de prece que consiste me lutar
violentamente contra os demônios; mas este método apresenta muitas
dificuldades. Existe ainda uma terceira forma de prece. Mas antes de
considerá-la, devemos notar que ela pressupõe a obediência, sem a qual não
existe a consciência pura. Ela pressupõe ainda a “guarda sobre o coração”, que
permite à pessoa obter facilmente todo o resto.
Isso nos
leva à passagem centra do trabalho. Para orar, está dito, o discípulo deve
fechar a porta de sua cela, deve se colocar num estado de quietude, sentar-se,
colocar seu queixo contra o peito, olhar para o centro de seu abdome, segurar a
respiração e fazer um esforço mental para encontrar o “lugar do coração”, ao
mesmo tempo em que repete incessantemente “a epiclese de Jesus Cristo[34]”.
De início ele só experimentará dificuldade e obscuridade, mas logo perceberá
uma espécie de luz. Desse ponto em diante, assim que um mau pensamento se
levantar, e antes mesmo que ele possa se completar e tomar forma, será expelido
e destruído. “Por meio da invocação do Senhor Jesus, os ventos das paixões se
dissolvem e desaparecem como cera”. Evidentemente que este resultado não pode
ser obtido num dia. A pessoa deve passar pelos sucessivos estágios da dominação
sobre as paixões, por meio do enternecimento da salmodia primeiramente e depois
pela substituição desta pela Prece de Jesus; assim, finalmente, ela alcançará a
theoria, a contemplação que passa a
estar firmemente estabelecida e que já não se desvia mais. Nesta fase está
sendo construída a morada espiritual em que Cristo virá residir. Tudo isso está
além de nosso alcance. “O resto você aprenderá com a ajuda de Deus, permanecendo
alerta em seu intelecto e mantendo Jesus em seu coração; conforme prosseguir a
oração, sente-se em sua cela, e sua cela lhe ensinará tudo”. Uma frase
deliciosa que poderia bem ter sido escrita pelo autor da Iniciação.
É
importante notar que o Método não
oferece nenhuma fórmula definitiva da Prece de Jesus ; ele fala apenas na
invocação da “epiclese” de Jesus. O mesmo está nos manuscritos Gregos e no
texto crítico baseado nos manuscritos feito por Frei Hausherr. Mas a versão
neo-Grega do Método, que encontramos em Migne e que às vezes constitui uma
paráfrase, por duas vezes dá a fórmula: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de
mim”. A versão neo-Grega não é anterior ao século XVIII; mas ela traz o
testemunho daquilo que é certamente uma interpretação muito antiga e
tradicional da “epiclese de Jesus”. Mais do que possível, é provável que a
fórmula “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” seja aquela a que o Método se refere quando fala da
invocação do nome. Em todo caso, essa era a interpretação corrente nos séculos
XIII e XIV.
***
Uma leitura
do Método deixa em nós uma impressão assaz complexa. Por um lado, ele oferece
um alerta clássico quanto à vida espiritual. Por outro, existe uma inovação, à
primeira vista francamente desconcertante, na medida em que a invocação do nome
é ligada a determinados métodos psicofisiológicos. Voltaremos a esse ponto mais
adiante. A tese de Hausherr, que atribui o Método
ao monge Athonita Nicéforo, parece bastante provável se compararmos o Método com o tratado Da guarda do coração, do qual Nicéforo é
de fato autor.
Nicéforo
advoga a Prece de Jesus, acompanhada de uma retenção da respiração no coração,
de modo a facilitar, conforme ele coloca, a entrada do intelecto (nous) no coração. A colocação mais
importante do tratado de Nicéforo é a seguinte: “Retire todo pensamento
discursivo da razão (você pode, se desejar fazê-lo) e dê a ela a invocação
“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”; e obrigue-se, no
lugar de todos os demais pensamentos, a apenas gritar essa prece dentro de si
mesmo”. A fórmula da prece aparece aqui expandida pela adição do “Filho de
Deus”. Ao mesmo tempo, como o indica o próprio título do tratado, Nicéforo
apresenta a Prece de Jesus dentro de um contexto ascético emprestado dos Padres
e muito consistente com a espiritualidade tradicional. É difícil datar este
tratado. De acordo com a tradição Athonita, Nicéforo foi monge na Montanha
Santa por volta de 1340, desfrutando de grande reputação de santidade ali; ele
foi um dos mestres de Gregório Palamas. Estranhamente, Nicéforo teria origem
Latina. Mas tudo isso é duvidoso. Talvez o tratado deva ser datado dos séculos
XII ou XIII.
Fora de
dúvidas, a carta endereçada aos monges, preservada em meio aos escritos de
Crisóstomo, deve ter sido escrita depois do tempo de Nicéforo. Seu editor,
Migne, a chama de omnino futilis et
inepta. Esta avaliação parece completamente injusta. O autor desconhecido
nos conta em substância que podemos superar todos os maus pensamentos invocando
o nome de Jesus. Devemos repetir de manhã até de noite, “Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de nós”. Devemos orar assim mesmo quando estamos
comendo ou bebendo. Devemos chamar Jesus Cristo à nossa mente até que o nome do
Senhor penetre no coração e desça até suas profundezas, destruindo o dragão e
dando vida à alma. Nosso coração deve absorver o Senhor e o Senhor absorver
nosso coração até que os dois se tornem um. Isso não é tarefa para um ou dois
dias, mas requer tempo e exercício. Mas é algo que podemos fazer em qualquer
lugar: a prece não está restrita ao edifício da igreja: “Você é o templo: não
procure outro lugar”. Podemos notar que o autor utiliza a fórmula de Nicéforo,
mas substitui o pronome singular pelo plural “nós”. E ele também não faz
nenhuma menção a uma técnica física.
Por volta
de 1200, a monja Teodora, irmã do Imperador Isaac Angelos, trocou
correspondência com um certo Abba Isaías, que costuma ser confundido com o
escritor Monofisista do século V. Este Abba Isaías inicialmente recomendou a
Teodora que usasse o Kyrie eleison.
Podemos nos perguntar se, para Isaías, o Kyrie
eleison mantinha o significado geral de uma invocação a Deus, como era
entre os Padres do deserto, ou se Kyrios, como acontece com frequência no Novo
Testamento, designava aqui especificamente a pessoa de Cristo. O que torna esta
segunda alternativa provável é o fato de que Isaías incorporou em suas cartas
uma passagem preservada do manuscrito Athonita Codex Panteleimon 571, um texto que já havia sido utilizado por
Nicéforo, que nitidamente o relacionou à Prece de Jesus. Nesse caso, as cartas
de Isaías nos permitem traçar de perto o processo pelo qual o uso do Kyrie eleison pode ter conduzido à Prece
de Jesus.
CAPÍTULO III
A PRECE DE JESUS NO HESIQUIASMO ATHONITA
São
Gregório Sinaíta (†1346) representa, na história da Prece de Jesus, o fim da
fase Sinaíta e o começo da fase Athonita. Ele próprio, quando em Creta, recebeu
do monge Arsênio a tradição da Prece de Jesus; em seguida ele foi para uma
região próxima a Athos e depois se retirou para o Monte Katakryomenos. Certamente
não foi ele quem introduziu a Prece de Jesus em Athos; em relação à Prece,
aliás, Athos não difere essencialmente do Sinai. O que Gregório fez foi
reavivar a chama. Quando ele chegou a Athos, encontrou ali apenas três monges,
Isaías, Cornélio e Macário, que tinham experiência na vida contemplativa. Mas,
do t empo de Gregório em diante, foi Athos, não mais o Sinai, que se constituiu
no principal centro de prática e difusão da Prece de Jesus. Em Athos a prece
perdeu sua inconstância original. Gradualmente Athos restringiu a prece a uma
fórmula fixa na qual não eram permitidas variações, e insistiu em particular no
acompanhamento da técnica psicofisiológica. Resumidamente, Athos exibiu uma
maior rigidez. Algo da ternura e da espontaneidade do Sinai se perdeu na
Montanha Santa, e isto é algo que podemos lamentar.
Tudo isso,
naturalmente, não se aplica ao próprio Gregório do Sinai. Três de seus
trabalhos são de especial interesse para a história de espiritualidade. Em seu
tratado Da quietude e da oração, ele
estabeleceu os fundamentos teológicos da vida mística em termos que o leitor
contemporâneo poderá achar familiar e atrativo. De acordo com Gregório, a vida
mística é energeia, a manifestação
ativa e operativa do Espírito recebida no batismo; é a descoberta de um dom
latente, é tornar atual ou que era potencial. Gregório distingue dois modos
pelos quais isso pode ser obtido: o caminho dos mandamentos, que requer muito
tempo e trabalho, e o caminho da invocação contínua ou “epiclese” do Senhor
Jesus. É óbvio que deve ser claramente entendido que ninguém está dispensado da
observação dos mandamentos, mas a Prece de Jesus cria em nós a humildade e a
contrição que torna essa praxis mais
fácil.
Seu
tratado Da quietude e os Dois Métodos da
Prece chegam a detalhes concretos. O aspirante espiritual deve se dedicar à
Prece de Jesus pela manhã. Ele deve permanecer sentado, com a cabeça baixa. Ele
deve pronunciar insistentemente a fórmula “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
tem piedade de mim”, colocando tanto sua alma como seu intelecto (nous) a trabalhar, imergindo seu
intelecto no coração. Ao pronunciar o nome de Jesus, ele será alimentado por
esse nome divino como se fora um alimento (seguindo essa linha de raciocínio,
podemos explorar o uso eucarístico do nome de Jesus, sendo a Prece de Jesus
entendida como uma forma de comunhão espiritual). Ele deve se dedicar a dar um
pleno significado a cada uma das palavras. Gregório concede uma certa variedade
no uso de fórmulas: é legítimo alternar entre “Senhor Jesus Cristo, tem piedade
de mim” e “Filho de Deus, tem piedade de mim”, embora não se deva mudar a
fórmula da invocação com frequência, assim como uma planta frequentemente
transplantada não cria raízes. A Prece
de Jesus nos permite alcançar o estado descrito por São Paulo: “Já não
sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim[35]”.
Também deve ser deixado um espaço para a salmodia e a leitura.
O tratado Como o Hesiquiasta deve se sentar para a
Prece e não se levantar logo retorna para a questão da forma das palavras.
Qual a melhor fórmula a empregar? Alguns dizem: “Jesus, Filho de Deus, tem
piedade de nós”. Falar “Jesus” ao invés de “Senhor Jesus” é mais fácil, “por
causa da fraqueza de nosso intelecto”. De fato, sabemos pela Escritura que
ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor sem uma inspiração especial do Espírito
Santo. A pessoa pode dizer “de modo puro e perfeito” as palavras “Senhor Jesus”
apenas no Espírito[36].
É melhor evitar usar essas palavras do que repeti-las inconscientemente como
uma criança balbuciando por aí. Neste último ponto devemos concordar ou
discordar de Gregório,; mas o que permanece fora de dúvida é a alta visão
espiritual expressa em seus escritos.
***
No Monte
Athos Gregório conheceu e admirou grandemente um anacoreta do século XIV, São
Máximo Kapsokalyvia. Máximo era tão apaixonado pela vida solitária que por
várias vezes queimou sua cela[37]
para escapar do fluxo de visitantes. A ele se creditava possuir o dom de
discernir os corações dos homens. Os Imperadores João VI Cantacuzeno e João V
Paleólogo o consultavam sempre. Ele disse a Gregório de que modo, entre
lágrimas, ele pediu à Virgem Maria a graça da “prece espiritual” (termo
sinônimo de Prece de Jesus). Enquanto ele permanecia diante do ícone da Santa
Virgem, ele sentiu um calor e uma doçura em seu peito, e seu coração começou a
dizer a Prece. Máximo costumava unir “a lembrança de Jesus e da Mãe de Deus”.
Vimos que a expressão “lembrança de Jesus” é equivalente à invocação do nome.
Teria Máximo utilizado uma fórmula na qual os dois nomes de Jesus e Maria
apareciam juntos? Não podemos afirmar. Mas aqui nos defrontamos com um caso
notável – único, até onde sabemos – no qual a Prece de Jesus e a prece à Virgem
e aos santos estão de certo modo unidas. Veremos mais adiante, é verdade, algo
de análogo na utilização do rosário monástico Grego; mas no século XIV parece
não ter havido nada de semelhante ou paralelo. Isso mostra como a Prece de
Jesus e a devoção à Bendita Virgem Maria e aos santos podiam ser harmonizadas.
Mais do que isso, temos aí uma indicação de como Maria pode conformar a Prece
de Jesus em nosso interior. Máximo insiste na unificação de nosso espírito através
da Prece de Jesus; o espírito ou intelecto, diz ele, “se torna monos na lembrança de Cristo”.
Libertando-nos de tudo o que nos é estranho, atemo-nos apenas a essa lembrança
e a essa prece.
Teolepto,
Arcebispo de Filadélfia, que morreu entre 1310 e 1320, ocupa na história da
Prece de Jesus o papel de um expoente teórico – um expoente, entenda-se, não da
técnica psicofisiológica da Prece (atitude corporal, respiração, etc.), mas de
sua psicologia das operações mentais implicadas nela. Teolepto é um dos autores
espirituais que merecem ser resgatados de um não merecido esquecimento. A maior
parte de seus trabalhos não foi publicada. Ele assinala a cada uma de nossas
funções mentais seu respectivo papel na prática da Prece de Jesus. Nossa dianoia, nossa inteligência discursiva
ou entendimento, concebe e repete incessantemente o nome do Senhor. Nosso nous, nossa potência intelectual ou racional,
se dedica inteiramente a este nome. Quando invocamos o nome em nossa
“epiclese”, fazemos uso da faculdade da fala, da palavra ou logos. Finalmente, o espírito, pneuma, cria em nós a compunção e o
amor.
Teolepto
não menciona uma fórmula definida da invocação; ele sequer diz explicitamente
que o nome invocado seja o de Jesus. Mas os termos “lembrança de Deus”, “nome
do Senhor” e “epiclese” já possuíam na linguagem técnica espiritual do século
XIV um significado tão preciso que não hesitamos em considerá-los como
sinônimos à Prece de Jesus. Ademais, a tradição monástica Ortodoxa há muito
considera Teolepto como um dos mestres desta Prece.
Teolepto
fala em logos e pneuma. Estas palavras, no entanto, não têm apenas um significado
psicológico, mas nos conduzem aos umbrais do mistério da Trindade, dado que
elas designam teologicamente o Verbo de Deus e o Espírito Santo. No documento
reproduzido em Migne, Teolepto escreve: “A prece pura reúne em si o nous, o logos e o pneuma. Por
meio do logos ela invoca o nome de
Deus, por meio do nous ela calmamente
fixa seu olhar no Deus que ela invoca.
Por meio do pneuma ela manifesta a
compunção, a humildade e o amor. Desta forma ela chama pela Trindade eterna,
Pai, Filho e Espírito Santo, o Deus único e uno”.
De acordo
com Filoteu Kokkinos, Teolepto foi o reverenciado mestre de São Gregório
Palamas (1296-1359). O renome do discípulo eclipsou o mestre. Gregório seguiu a
vida Hesiquiasta em vários centros monásticos na Montanha Santa, e ainda por
algum tempo nos arredores da montanha de Beroea. Quando o monge calabrês
Barlaam começou uma campanha contra os Hesiquiastas, atacando-os como
heréticos, Messalianos e “onfalopsíquicos”, Gregório saiu em defesa destes e
daí por diante se envolveu numa acalorada polêmica. Por volta de 1341 os
superiores e os principais monges de Athos vieram dar suporte a Gregório num
documento chamado de Tomo Hagiorítico.
O Concílio de Santa Sofia, sob a presidência do Imperador, condenou Barlaam.
Mas Gregório iria conhecer a seguir estranhas e súbitas mudanças da sua sorte.
Ele foi aprisionado, excomungado e depois elevado ao Arcebispado de
Tessalônica; depois ele foi capturado por corsários Turcos e mantido um ano sob
custódia. Em 1368 sua doutrina foi declarada como sendo o ensinamento oficial da
Igreja Bizantina. Já em 1851 o Concílio de
Blachernae havia incorporado no Sinódico do Domingo da Ortodoxia,
anátemas contra Acindino, Nicéforo, Gregoras e outros adversários de Palamas.
Este último não foi apenas o autor de inúmeros escritos controversos, como a Tríade em defesa dos Santos Hesiquiastas,
mas ainda o autor místico e ascético de trabalhos como Três Capítulos sobre a
Prece e a Pureza do Coração, Sobre as
Paixões e as Virtudes, e o Decálogo
das Leis segundo Cristo.
Gregório
não discutiu especificamente a Prece de Jesus como um de seus temas, mas esta
está presente em quase todos os seus escritos, uma vez que ele estava
replicando ataques diretamente direcionados contra ela. O aspecto mais original
e controverso de sua teologia é seu entendimento da “luz incriada” e sua
distinção entre a divina essência e as energias divinas. Foi a Prece de Jesus
que permitiu a Gregório desenvolver essas ideias, uma vez que a visão da luz
divina, da “luz do Tabor”, era para Gregório o objetivo normal da prece Hesiquiasta
e da invocação do nome. Foi em relação a esta perspectiva sobre a luz incriada
que um violento conflito se desenvolveu. Não pretendemos entrar nessa
controvérsia. Só diremos o seguinte: houve uma tendência a perder de vista o
fato de que a teoria Hesiquiasta sobre a visão da luz divina está ligada a um
nível sobrenatural, e não à ordem psicológica normal; ademais, essa
controvérsia, como a disputa do filioque,
resulta mais de um mal-entendido entre as partes. Corremos o risco de criar
monstruosidades quando transpomos um conceito de um sistema para outro que é
estranho a ele, divorciando-o de seu contexto, e quando traduzimos para
determinadas categorias intelectuais ideias que só podem ser concebidas e
expressa numa categoria completamente diferente.
Sendo
assim, permanece o fato de que a Prece de Jesus foi talvez a causa direta da
controvérsia Palamita e da animosidade que a partir daí se instalou entre
Gregos e Latinos. Essa corrente de devoção simples e terna se expandiu no
século XIV por todo um estuário de discussões hostis. Isso foi lamentável.
Monges que haviam aprendido a contemplar em paz se lançaram na batalha a
propósito dos conceitos intelectuais nos quais se expressava sua contemplação;
como sempre acontece, o resultado foi se tornarem menos monges. O próprio
Gregório Palamas sofreu o infortúnio de todos os místicos que interrompem sua
prece para se engajar em disputas a respeito dela. É verdade que ele foi
provocado por ataques que eram em sua maioria injustos e insultantes. Mas não teria
sido uma resposta melhor para a ofensiva direta contra a Prece de Jesus, a
influência pacífica que a própria Prece irradia, um mergulho exploratório mais
profundo, e, se preciso, um breve testemunho baseado na experiência pessoal,
livre de teorias e polêmicas? Qualquer que tenha sido o ganho para a
especulação teológica a partir da disputa Hesiquiasta – se ganho houve – para a
pura espiritualidade só houve perdas.
Emergindo
desse conflito, é refrescante ler um trabalho tão cheio de paz, devoção e rara
beleza espiritual, como as Centúrias
de Calixto e Inácio Xanthopouloi. Os dois buscaram permanecer acima de todos os
monges e contemplativos. Eles eram membros do mosteiro de Xanthopouloi em
Constantinopla. O Calixto das Centúrias
é o Patriarca de Constantinopla, São Calixto II, que ocupou a sede patriarcal
em 1397 por apenas três meses, e que não deve ser confundido com o homônimo
Patriarca Calixto I.
As Centúrias constituem uma completa regra
de vida para o Hesiquiasta. O centro da vida é a Prece de Jesus. Com uma visão
técnica, a Centúria recomenda a fórmula “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
tem piedade de mim”. Os autores distinguem aqui um duplo movimento: um,
ascendente e direcionado a Jesus Cristo na primeira parte da prece, “Senhor
Jesus Cristo, Filho de Deus”; e um retorno sobre si mesmo em “tem piedade de
mim”. O ritmo da respiração é associado a esse duplo movimento. Essa prática
produz um certo aquecimento do coração.
O mais
importante é que as Centúrias inserem
a Prece de Jesus num contexto geral ascético. Elas tomam o Hesiquiasta pela mão
e o conduzem desde a alvorada até o crepúsculo. Fica estabelecido como um
princípio fundamental que não pode haver hesíquia sem uma fé Ortodoxa e boas
obras; assim, o risco do quietismo é eliminado. A seguir vêm orientações
diretas e precisas: sobre o silêncio, a leitura das Escrituras, a vigília
noturna, as prostrações (trezentas por dia), o jejum (uma dieta de vegetais
secos, pão e água; algum vinho é permitido), a comunhão com “o coração puro”, a
salmodia para os que são incapazes de se concentrar na Prece de Jesus.
Permeando todas essas recomendações detalhadas, o objetivo espiritual sempre se
mantém à vista. A finalidade é alcançar um estado no qual a alma devotada à
Prece de Jesus possa dizer como nos Cânticos,
“Eu fui ferido de amor[38]”.
As Centúrias permanecem até hoje como
um manual precioso. Atualmente, para aqueles que foram chamados por Deus para
adotar a Prece como seu caminho pessoal e que têm condições de organizar sua
vida em torno dela, não há guia melhor a ser recomendado – com algumas
adaptações – ou, no mínimo, não há iniciação melhor.
Do Monte
Athos, a Prece de Jesus se espalhou não apenas através do Oriente Grego, como
também pelo mundo Eslavo. Por volta da primeira metade do século XV, se não
antes, ela começou a ser praticada na Rússia. A Prece de Jesus é mencionada
numa instrução para o treinamento de jovens noviços, datada desse período e
proveniente do Mosteiro da Trindade, próximo a Obnora, fundado em 1389 por
Paul, discípulo de São Sérgio de Radonezh. Ela devia ser falada segundo as
contas do rosário monástico. São Nilo Sorsky (1433-1508), que viveu em Athos e
esteve sob a influência de Gregório Sinaíta, propagou a Prece de Jesus entre os
“monges ao longo do Volga”. Nesse trabalho ele a apresenta como uma tarefa
ascética, um “trabalho”, uma “ação”, e este modo de ver nunca desapareceu do
monasticismo Russo. O movimento espiritual dos monges do Transvolga, tão
profundamente oposto ao institucionalismo que prevalecia na Igreja Russa, teve
uma afinidade natural com o Hesiquiasmo e com as tendências representadas pela
Prece de Jesus. No século XVI encontramos a Prece completamente estabelecida na
Rússia. No século XVII a Prece era advogada por São Dimitri, Metropolita de
Rastov (1651-1709), que era não apenas um teólogo dogmático e um escritor
catequético, como também o autor das obras Medicina
Espiritual (sobre os modos de libertar-se dos maus pensamentos) e O Homem Interior (sobre a efetividade da
Prece). É interessante que Dimitri era ao mesmo tempo um latinizador que
aceitava a visão dos teólogos Romanos
sobre a Imaculada Concepção de Maria e a epiclese eucarística.
CAPÍTULO IV
A ERA DA FILOCALIA
Desde que
se encerrou a controvérsia Palamita o Monte Athos deixou de desempenhar papel ativo
no desenvolvimento da prece Hesiquiasta. No século XVIII, entretanto, a
Montanha Santa voltou a ser o centro de uma intensa difusão da Prece de Jesus.
Isto se deveu ao trabalho de dois guias espirituais cujos nomes não podem ser
separados: São Macário de Corínto e São Nicodemos Hagiorita.
O
Metropolita Macário de Corinto (1731-1805) foi destituído de seu bispado por
pressão dos Turcos e se viu reduzido a uma existência errante. Ele faleceu como
eremita em Chios. Ele causou um certo escândalo ao publicar anonimamente em
Veneza, em 1777, um Encheiridion
sobre a “participação nos divinos mistérios”; nessa obra ele sustentou a
prática da comunhão frequente, que nessa época era considerada um costume
Latino. No decurso desse mesmo ano ele fez sua primeira viagem ao Monte Athos,
e ali ele encontrou Nicodemos de Naxos, conhecido como “o Hagiorita”, ou seja
“da Montanha Santa”. Canonista, tendo desempenhado papel predominante na edição
do Pedalion, hagiógrafo, liturgista,
escritor místico e ascético, Nicodemos (1749-1809) reivindica junto com Eugênio
Boulgaris (1716-1806) o mesmo título de maior escritor religioso Grego do
século XVIII; e não resta dúvida que, espiritualmente, ele era muito superior a
Boulgaris.
Nicodemos
dividiu com Macário uma atitude simpática em relação a algumas noções que
prevaleciam no Ocidente Latino. Ele traduziu para o Grego, em 1796, o Combate Espiritual de Lorenzo Scupoli, e
em 1800 ele chegou a publicar um Exercícios
Espirituais muito próximo daqueles de Santo Inácio de Loyola, compreendendo
34 meditações, cada qual com três pontos. Ele partilhava com Macário sua
opinião a respeito da comunhão frequente e auxiliou o santo bispo a revisar seu
livro em 1777, que resultou na publicação em Veneza em 1783, de outro trabalho
anônimo intitulado Um livro muito útil
para a alma digna da participação nos mais puros mistérios de Cristo.
Trata-se de um livro de Macário, mas que foi adaptado por Nicodemos, que lhe
acrescentou alguns desenvolvimentos. A obra foi inicialmente proibida pelo
Patriarca de Constantinopla, mas quando os monges de Athos expressaram seu
apoio a condenação foi retirada. Macário não residiu permanentemente em Athos;
depois de sua primeira visita em 1777 ele não pode retornar até 1784. De fato,
o livro de 1783 foi apenas uma publicação menor dos dois escritores. Foi no ano
precedente que a maior obra de Macário e Nicodemos apareceu: a Filocalia.
A palavra Filokalia significa “amor ao belo”, mas este termo deve
ser entendido de acordo com a perspectiva Helenística que identifica o belo e o
bom; aqui se trata da beleza espiritual. Existe também uma seleção de trabalhos
de Orígenes com o mesmo título. Macário pretendia compor uma antologia do
Hesiquiasmo, e mais especificamente da prece Hesiquiasta e da Prece de Jesus. Nicodemos
também se sentia atraído por ideias similares. Ele admirava Simeão o Novo
Teólogo, cujos trabalhos ele traduziu e editou em Grego vernacular em
colaboração com Denis Zagoraios (Veneza, 1790). Ele também preparou uma edição
das cartas de Barsanulfo e João de Gaza, que foi publicada apenas depois de sua
morte, em Viena, no ano de 1816. Ele estava assim interiormente muito bem
preparado para o empreendimento, que todavia fora de iniciativa de Macário. Não
é possível determinar com precisão a parte que cada um teve na composição da
Filocalia; tudo o que podemos dizer é que a colaboração entre os dois foi
estreita. O resultado foi um trabalho de consideráveis dimensões, no qual foram
reunidos os textos mais significativos referentes à vida Hesiquiasta e,
sobretudo, à Prece de Jesus, não apenas dos escritores que nós mesmos citamos
neste livro, como de um grande número de outros. O leitor poderá avaliar a
importância da Filocalia para o nosso tema se dissermos que o trabalho de
Macário e Nicodemos constitui a “Suma da Prece de Jesus”.
***
Nicodemos
o Hagiorita também escreveu um trabalho original sobre a prece Hesiquiasta
intitulado. Um manual de conselhos para a
guarda dos cinco sentidos, da imaginação, do intelecto e do coração. O
autor fornece algumas recomendações definidas sobre a Prece de Jesus. No
capítulo X podemos ler: “Os iniciantes costumam obter este retorno do intelecto
(nous) ao coração, como disseram
nossos Padres ascéticos, inclinando a cabeça e apoiando o queixo sobre o
peito”. O discípulo é aconselhado a sustar momentaneamente a respiração, porque
isso auxilia no controle da dispersão e da dissipação do intelecto. Ele deve
praticar esse controle da respiração pela tarde, por uma hora ou duas sem
interrupção, num lugar obscuro e quieto. Dessa forma o intelecto “é recolhido,
reunido e retorna ao coração”. Ali ele encontra o “discurso interior” , e é
esta voz interior que recita a Prece de Jesus. “Portanto, quando seu intelecto
encontrar esse discurso interior, não o permita dizer mais nada senão a curta
prece chamada de monológica: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade
de mim’”. Nada de mecânico deve haver na Prece de Jesus. Ela deve ser colocada
em seu contexto espiritual pleno. “Apenas essa prece não é o bastante. A pessoa
deve colocar em movimento a força de vontade da alma; esta deve orar com toda
sua vontade, toda sua força e todo o seu amor”. Deve ser evitado todo tipo de
imaginação, toda “impressão de forma, seja qual for”, lembrando a advertência
de São Nilo (isto é, de Evagro): “Aproxime-se do Imaterial de um modo
imaterial”.
Esse
trabalho de Nicodemos parecerá desconcertante para o leitor Ocidental, por
causa do modo como ele combina uma técnica física específica com a
espiritualidade de um despojamento profundo de si e uma interiorização. Seu
espanto (poderíamos dizer, seu embaraço) aumentará quando, na página 328 da
edição de 1801 que temos diante de nós, ele se deparar com diagramas anatômicos
do coração humano, desenhados da maneira mais científica e precisa. Aqui,
portanto, no início do século XIX, temos um escritor com uma bagagem literária
e teológica excepcional, com uma experiência espiritual profunda e autêntica,
muito bem informado sobre as teorias dos anatomistas e dos fisiologistas de seu
tempo; e ainda assim ele não hesita em recomendar os métodos psicofisiológicos
de oração, criados na Idade Média Bizantina por monges cujas noções sobre e
respiração, o coração e o cérebro estavam próximas de parecer primitivas. Uma
vez que Nicodemos é historicamente o último dos Hesiquiastas – o que, como
poderemos ver, não significa que a história da Prece de Jesus termina com ele –
talvez seja útil fazermos uma pausa para olhar mais de perto a Prece de Jesus
tal como ele a descreve, refletindo fielmente uma longa tradição.
Invariavelmente,
essencialmente, a Prece de Jesus consiste numa fórmula na qual o nome de Jesus
é invocado. Em segundo lugar, de acordo com muitos autores, isso envolve um
método físico dado, para facilitar a recitação da fórmula. Vamos começar por
considerar a fórmula em si.
A fórmula,
conforme existe no moderno uso monástico, é: “Senhor Jesus Cristo, Filho de
Deus, tem piedade de mim, pecador”. A palavra “pecador” falta na fórmula
indicada por Nicodemos, mas sua fórmula de certo modo a implica. A fórmula
moderna combina duas orações do Evangelho, de um modo algo modificado: a grito
dos dois cegos, “Filho de Davi, tem piedade de nós[39]”,
e o humilde pedido do Publicano, “Deus, tem piedade de mim, pecador[40]”.
O elemento comum às duas orações é “tem piedade”. A prece dos dois cegos
fornece o vocativo “Filho”, mas a expressão “Filho de Davi” é substituída por
“Filho de Deus”.
Essa frase
é precedida pelas palavras “Senhor Jesus Cristo”. Estas três palavras são
encontradas juntas pela primeira fez em Atos 16: 31: “Creia no Senhor Jesus
Cristo”. A justaposição das duas palavras “Jesus” e “Cristo” já consiste numa
confissão de fé. A primeira, de um ponto de vista etimológico, implica a
existência, no nome de Jesus, de uma swthria, um
mistério de salvação, e coloca na pessoa de Jesus a presença do poder salvador
de Deus. A segunda palavra atribui a Jesus uma unção messiânica, tanto
sacerdotal como real. A palavra “Senhor” confessa a “soberania” de Jesus, e
esse termo possuía uma significado especialmente forte no primeiro século,
quando o culto ao imperador tendia a monopolizar seu uso de uma forma idólatra.
Seu emprego pelos Cristãos fez a este costuma uma veemente oposição. A
transição de “Senhor Jesus Cristo” para “Filho de Deus” – outra confissão de fé
explícita – pode talvez ter sido sugerida pelas palavras do alto sacerdote:
“...se você é o Cristo, o Filho de Deus[41]”.
A frase
“tem piedade” é geralmente expressa pelo Grego elehson, que é o
termo usado pelos dois cegos no Evangelho de Mateus. Mas algumas vezes, na
Prece de Jesus, ao invés de elehson, se usa a palavra ilasqhti, que Lucas coloca nos lábios do Publicano[42].
A diferença de significado dessas duas palavras é considerável. As palavras eleos, “piedade”, eleew, “eu demonstro piedade” e elehmosunh, “esmola”, todas expressão a noção de
misericórdia compassiva, expressa através de uma auto-humilhação. Encontramos a
mesma ideia nas palavras Eslavônicas milost,
milostiv, pomilovat, pomilui,
utilizadas nas versões Eslavônicas da Prece de Jesus; aqui, porém, existe ainda
uma nuance que pode ser expressa pela palavra “benignidade”. Mas ilasqhti diz algo diferente. O verbo ilaskomai implica a ideia de apaziguar, reconciliar,
propiciar; o mesmo sentido é encontrado também nas palavras ilasmos, ilasthrios, ilastherion. Podemos lembrar que este último termo
designa, na Bíblia Grega, a “conciliação” ou “lugar do perdão” que recobriu a
Arca e que é descrita no Livro do Êxodo[43].
Esse poderoso significado não existe originalmente, por exemplo, no termo
Homérico ilaos, “divindade”, “graça”, ou em ilaros, “alegre”, do qual deriva nossa palavra “hilário”; mas
gradativamente ele foi sendo acentuado, de modo que a prece do Publicano pode
ser traduzida como “seja propício a mim”, mais do que “tem piedade de mim”.
Assim, se, na Prece de Jesus, empregarmos ilasthti ou invés
de elehson, estaremos introduzindo nela a noção
do mistério da redenção e de tudo o que os Alemães entendem por Versöhnung e os Ingleses por Astonement, “expiação”. O texto Grego da
Liturgia justapõe esses dois verbos na prece dita pelo sacerdote na Prótese:
“Deus, sê propício para comigo, pecador, e tem piedade de mim[44]”.
O texto Eslavônico traduz com muita precisão: “Deus, purifica (otchisti) a mim, pecador, e tem piedade
de mim”. A expressão litúrgica Kyrie
eleison também deve ter tido sua influência sobre a Prece de Jesus; não
existe registro dela antes do Livro VIII das Constituições Apostólicas, na metade do século IV. O fato de que
ela aparece primeiro na região de Antioquia sugere que pode ter sido usada nos
desertos monásticos da Síria.
A partir
de tudo isso fica claro que existe, debaixo da fórmula tão simples da Prece de
Jesus, uma teologia extremamente rica. Longe de ser monótona, essa prece contém
uma diversidade maravilhosa, se a pessoa que a utiliza enfatizar
sucessivamente, conforme sua necessidade específica ou a graça recebida, os
diversos aspectos contidos na fórmula. Entretanto, devemos nos lembrar de que o
nome de Jesus basta por si só pata constituir a Prece de Jesus. Foi somente
depois de muitos séculos, durante os quais a Prece teve um caráter indefinido e
vago, que uma forma bastante fixa e rígida chegou a se impor. Mas quem quiser
retornar à liberdade primitiva e se concentrar apenas no nome, pode proclamar
plenamente que está praticando a Prece de Jesus. Pois ele estará de fato
retornando ao mais antigo uso da Prece, e restaurando o termo monologistos em seu sentido literal, de
“uma prece constituída de uma única palavra”, sendo esta única palavra o
próprio Verbo no sentido absoluto expresso eternamente pelo Pai.
Desde a
Idade Média os monges do Oriente Bizantino associaram a recitação da Prece de
Jesus ao uso do rosário ou cordão de oração que auxilia na contagem das
invocações. Esse rosário é entregue aos monges e monjas durante a cerimônia de
profissão monástica. A recitação da Prece de Jesus, ou, em outras palavras, de
um certo número de rosários – acompanhado de “metanias” e prostrações – pode
substituir no todo ou em parte o ofício divino, de acordo com uma tabela que
define claramente as equivalências. Desta forma a Prece de Jesus se torna algo
além de uma devoção privada. Numa certa medida, ela faz parte da prece canônica
da Igreja, e inclusive é prescrita na regra 87 do Nomocanon.
Passemos
agora da fórmula para os métodos físicos que passaram a ser associados a ela.
Já vimos que os Hesiquiastas Athonitas ligavam a Prece de Jesus a certas
práticas ou experiências – retenção da respiração, fixar o olhar no meio do
corpo, percepção da luz – que podem nos chocar ou, no mínimo, nos surpreender.
Faremos apenas duas observações a esse respeito.
Em
primeiro lugar, precisamos ser muito prudentes, muito precavidos, ao falarmos
de um método que assistimos de fora e não experimentamos pessoalmente. É fácil
para os escritores Latinos falar com ironia sobre a técnica Hesiquiasta, ou
ficar escandalizados com ela. Tudo o que eles conhecem dessa técnica é o que
leram dela. Aqueles que possuem um conhecimento prático dos métodos
Hesiquiastas – e essas pessoas existem ainda em nossa época – já não escrevem a
respeito. Mas não se pode desaprovar a
priori alguém que tenta encontrar corporalmente as disposições capazes de
tornar mais fácil a oração. Santo Inácio de Loyola, em seus Exercícios Espirituais, ligou uma
importância considerável à postura exterior e a atitude corporal da pessoas que
desempenha os exercícios. Isso é natural e legítimo. Um Cristão Oriental que
critique ou ironize os Latinos por fazerem genuflexões ou rezar com os braços
estendidos em cruz estará mostrando o mesmo mau gosto. Quando uma tradição de
oração, como a de Athos, é antiga de muitos séculos, quando gerações de ascetas
e místicos cujo testemunho não pode ser simplesmente rejeitado acreditaram que
determinados métodos os ajudaram a rezar, é sinal de sabedoria nos perguntarmos
até que ponto, afinal, não haverá algo de positivo nesses métodos. Aqui como
sempre, é apropriado demonstrar uma certa reserva respeitosa, especialmente
entre aqueles que pertencem a uma tradição diferente.
Dito isso,
é importante fazer uma clara distinção entre a Prece de Jesus e todas as formas
de técnicas psicofisiológicas. A invocação do nome de Jesus é suficiente por si
só. Seus melhores suportes são de ordem espiritual e moral. Ademais, nenhum dos
seguidores da técnica Athonita jamais sustentou que essa técnica fosse
essencial para a Prece de Jesus. Hoje, de fato, quando algum fiel, depois de
ler os textos do passado, se sente tentado a adotar a técnica Hesiquiasta, a
orientação prática dos diretores espirituais da Ortodoxia consiste em
dissuadi-lo de fazê-lo. Para a maioria das pessoas, essa tentativa seria inútil
e perigosa, apesar de que em certos casos, e sob a guia de um orientador
experiente, ela possa dar frutos. O Cristão que se sente atraído pela Prece de
Jesus e que pretende iniciar esse caminho espiritual deve, portanto, evitar os
métodos psicofisiológicos recomendados pelos monges do passado. Ele deve dizer
para si mesmo simplesmente que essas coisas, que podem ter sido excelentes em
determinado meio e em circunstâncias específicas, não foram escritas para ele.
O caminho do método psicofisiológico não está fechado para que pretender
segui-lo com a prudência necessária e sob orientação confiável. Mas todo
Cristão pode alcançar o cume da Prece de Jesus sem nenhuma “técnica” a não ser
o amor e a obediência. É a atitude interior que importa aqui. A Prece de Jesus
nos concede a liberdade em relação a tudo, com exceção do próprio Jesus.
***
O que foi
dito parece ser evidente por si só. Porém, existe um perigo real de cairmos em
certas incompreensões a respeito do assunto. Seria uma grande falta de
entendimento da evidência histórica, ver na Prece de Jesus uma espécie de
método exterior, uma “receita” que nos dispensaria de um sério esforço moral.
Isso equivale a esquecer tudo o que os Hesiquiastas escreveram sobre a “guarda
do coração”, como condições indispensável para a Prece de Jesus. Eles nunca
viram a Prece como um “caminho curto” para evitar a renúncia que a estrada real
da Santa Cruz exige de nós. O que os distinguia do “ascetismo” puro e simples
era sua crença de que era a Prece de Jesus que os conduzia a essas renúncias e
que as tornava mais leves e menos severas; mas eles jamais imaginaram que a
Prece de Jesus poderia existir sem a nhyis, ou
“sobriedade”. Esta palavra Grega implica a total vigilância e controle sobre
si, condição também expressa na palavra “ascetismo”. “A sobriedade e a prece
estão unidas como a alma e o corpo; se uma falta, a outra não consegue se
manter firme”. Esta recomendação é feita no início do Método da Santa Prece e Atenção, o manual básico do Hesiquiasmo.
O
entendimento Hesiquiasta sobre a relação existente entre a prece e o ascetismo
nunca foi mais bem expresso do que pelo monge Estudita Nicetas Stethatos, o
biógrafo e devoto admirador de Simeão o Novo Teólogo, em suas Centúrias. Ele diz que o retorno do
homem à imagem divina original exige uma remodelagem de nossos sentidos e sua
reordenação sob a direção do intelecto (nous).
Os sentidos externos devem receber apenas os logoi ou impressões essenciais das coisas; eles devem ser
desmaterializados e submeter o irracional ao que é inteligível; o sentido do
paladar deve ser dirigido pelo discernimento da razão, a audição pelo
entendimento da alma, e assim por diante para os demais sentidos. Deixamos a
satisfação carnal para alcançar fins mais elevados. Este é o mais alto
ascetismo que o Hesiquiasmo recomenda. Então, pode isto ser considerado um
sistema fácil? Além disso, nem os discípulos do Novo Teólogo, nem os monges de
Athos estiveram jamais em risco de esquecer a importância crucial do “pai
espiritual”, cuja orientação protege o iniciante da autoindulgência e da
ilusão. O mesmo Nicetas escreve: “Não se submeter a um pai espiritual, imitando
o Filho que era obediente ao Pai até a morte na Cruz, equivale a não nascer
para o alto”. Portanto, ninguém pode falar em métodos mecânicos ou em
“atalhos”. A Prece de Jesus é um livro que só pode ser aberto e lido dentro de
um espírito evangélico de humilde amor e autodoação.
***
Tendo
assim, numa certa medida, clareado a atmosfera, vamos retornar à história da
Prece de Jesus. Paissy Velichkovsky (1722-94), de origem Russa, foi o apóstolo
da Prece de Jesus na Romênia, onde ele dirigiu o mosteiro de Niamets. Um dos
grandes nomes da história monástica da Ortodoxia, ele viveu em Athos por algum
tempo. Ele traduziu a Filocalia para a Igreja Eslavônica sob o título de Dobrotolubie (o “amor ao belo”
transformou-se em Eslavônico em “amor ao bom”). A Dobrotolubie teve uma influência ainda maior sobre o povo Russo, do
que a Filocalia entre os Gregos. Foi por meio dessa coleção de textos que não
apenas os monges, mas as pessoas simples das cidades e vilas se familiarizaram
com os Padres e com a Prece de Jesus. Paissy também escreveu uma carta aos
“inimigos e difamadores da Prece de Jesus”. Nela, ele dizia: “É preciso que se
saiba que essa ação divina era a ocupação constante de nossos pais que estavam
inteiramente preenchidos por Deus. Ela brilhou como o sol em inúmeros lugares,
tanto no deserto como nos mosteiros cenobíticos: no Sinai, nas sketes no Egito, no Monte Nitria, em
Jerusalém e nos mosteiros das vizinhanças, numa palavra, em todo o Oriente e
mais tarde em Constantinopla, na Sagrada Montanha de Athos, em muitas ilhas, e,
nestes últimos tempos, pela graça de Cristo, na Rússia”.
São
Serafim de Sarov (1759-1833), o mais popular dos santos Russos, não insistiu de
modo especial na Prece de Jesus. Mas é preciso dizer que ele possuía uma alma
que estava acima de todo Pentecostes, e que ele concentrava sua vida espiritual
na “aquisição do Espírito Santo”. Isso é evidente para os leitores de sua
famosa Conversação com Motovilov. Ele
escreveu as seguintes linhas: “De modo a receber e sentir a luz de Cristo no
coração, é preciso se retirar o máximo possível das coisas visíveis. Quando a
alma, com fé interior no Crucificado, purificou a si mesma pelo arrependimento
e as boas obras, é preciso então fechar os olhos do corpo, fazer a inteligência
descer ao coração e chamar incessantemente pelo nome de nosso Senhor Jesus
Cristo: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim’. Então a
pessoa, de acordo com a medida de seu zelo e de seu fervor pelo Amado,
encontrará na invocação do nome consolação e ternura, e nela crescerá o desejo
de buscar por uma iluminação mais elevada”. É também notável que uma das
primeiras biografias de Serafim contenha um longo suplemento sobre a Prece de
Jesus. Nele estão incluídas interessantes reflexões a respeito do retorno do
espírito ao coração, sobre a sensação de calor que se produz neste momento, e
sobre a transição da “prece completa” (‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem
piedade de mim’) para um simples chamado: Iissousse
moi!, “Meu Jesus”!
Um dos
principais mestres espirituais Russos do século XIX, Inácio Brianchaninov
(1807-1867), Bispo de Kostroma, devotou uma de suas obras à Prece de Jesus. Ele
também publicou uma edição da Dobrotolubie,
mais completa do que a de Paissy. A história da Prece de Jesus no século XIX
está em grande medida ligada à história da Dobrotolubie
e da Filocalia. Outro famoso asceta Russo, Teófano Govorov (1815-1894), chamado
de Teófano o Recluso, Bispo de Tambov e depois de Vladimir, e que finalmente se
retirou para o “deserto” de Vyshen, preparou uma nova edição da Dobrotolubie, consideravelmente mais
extensa do que as anteriores, e que foi reimpressa muitas vezes. Nessa edição
estabelece-se uma clara distinção entre a Prece de Jesus enquanto tal e as
técnicas psicofisiológicas. Teófano coloca que ele omitiu “certos métodos externos
que podem escandalizar a alguns e levá-los a abandonar a prática da Prece,
enquanto outros poderão deformar a própria prática da Prece”. Esses métodos são
apenas “preparações exteriores para a atividade interior, sem nenhuma
contribuição essencial para ela”. A advertência prossegue: “Deve ser lembrado
que, de nossa parte, está apenas o esforço, enquanto que a realidade em si,
especialmente a união do intelecto com o coração, é um dom da graça concedido
quando e como o Senhor desejar (...). A essência da prática da Prece de Jesus
consiste em adquirir o hábito de manter o intelecto em guarda dentro do coração
(...) dentro do coração físico, embora não de um modo físico[45]”.
A edição de Teófano está em Russo; mas uma reedição da Dobrotolubie pela Igreja Eslavônica foi publicada no inicio do
século XX. Os Gregos, por sua vez, reeditaram muitas e muitas vezes a
Filocalia.
CAPÍTULO V
O CAMINHO DO PEREGRINO E A PRECE DE JESUS EM
NOSSA ÉPOCA
Um pequeno
livro intitulado Sinceras Conversas de um
Peregrino com seu Pai Espiritual apareceu em Kazan em 1884. Para os
leitores Ocidentais ele é geralmente conhecido como Relatos de um Peregrino Russo. Ele havia sido copiado pelo Frei
Paissy (†1883), na época Abade do Mosteiro de São Miguel de Cheremissi em
Kazan, a partir de um manuscrito de posse de um monge Athonita. A julgar por
certas alusões feitas pelo autor anônimo, ele foi provavelmente escrito depois
da guerra da Crimeia e antes da abolição da servidão Russa, ou seja, entre 1855
e 1861. O “peregrino” (strannik)
descreve sua odisseia através da Rússia, que ele percorre tendo apenas um saco
contendo pão seco e uma Bíblia. Num mosteiro ele encontra um estaroste (um pai
espiritual) e lhe pergunta como é possível realizar o conselho do Apóstolo:
“Orai sem cessar[46]”.
O estaroste coloca em suas mãos a Dobrotolubie
e explica a ele a prática da Prece de Jesus. Ele o submete ao que podemos
chamar de um regime de treinamento progressivo. Ele deveria começar dizendo a
Prece de Jesus 3.000 vezes por dia, depois 6.000 vezes e por fim 12.000 vezes.
Então o peregrino poderia parar de contar as orações; ele teria unido a prece
“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador” com cada
respiração, cada batida do coração. Chegaria um momento em que nenhuma palavras
precisaria mais ser pronunciada: seus lábios permaneceriam em silêncio e tudo o
que ele tinha a fazer era escutar o coração orando. A Prece de Jesus servia-lhe
de alimento quando estava faminto, de bebida quando estava sedento, de descanso
quando se cansava, de proteção contra lobos e outros perigos. Ela o inspirava
nas conversações que ele tinha com as pessoas que encontrava, pessoas simples
como ele próprio. Eis algumas poucas passagens significativas:
“Todo o
meu desejo estava fixado numa única coisa, dizer a Prece de Jesus, e, assim que
consegui me devotar inteiramente a ela, me senti cheio de alegria e consolação.
Era como se meus lábios e minha língua pronunciassem as palavras sem nenhum
esforço de minha parte”.
“Então eu
senti como que uma sutil sensação de queimação em meu coração, e um amor tão
grande por Jesus Cristo em meu pensamento que imaginei que me lançava a seus
pés – se eu pudesse ao menos vê-lo – e que o segurava num abraço, beijando seus
pés afetuosamente em lhe agradecendo com lágrimas por ter me permitido, com sua
graça e seu amor, encontrar tamanha consolação em seu nome – eu, sua mais
indigna e pecadora criatura. Então nasceu em meu coração um calor agradável que
se espalhou por todo meu peito”.
“Às vezes
meu coração sentia como se explodisse de alegria, tão leve ficava, e cheio de
liberdade e consolação. Às vezes eu sentia um amor abrasador por Jesus Cristo e
por todas as criaturas de Deus (...). Uma vez, ao invocar o nome de Jesus, eu
fui invadido pela felicidade, e daí por diante eu entendi o significado destas
palavras: O Reino de Deus está dentro de você”.
Seriam os Relatos de um Peregrino realmente
autobiográficos? Ou seria uma novela espiritual, talvez uma peça de propaganda?
Se for este o caso, de que meio teriam eles saído? Somos obrigados a deixar sem
resposta essas questões. Nem tudo nessa obra foi modelado com ouro da mesma
pureza. A Prece de Jesus é apresentada nela um pouco demasiado pensada como se
agisse ex opere operato. Um teólogo,
um superior monástico, um padre encarregado de almas saberia se expressar de
modo mais sóbrio e prudente. Mas não podemos ficar insensíveis à leveza da
narrativa, sua evidente sinceridade, sua beleza espiritual, enfim, aos dons
literários do autor.
Os Relatos deixaram uma sequência. Uma segunda
partem atribuída ao mesmo autor da primeira, aparecer vinte e sete anos depois.
Esta segunda parte é bastante diferente. Ela é mais teológica, reproduz
conversas nas quais, em um caso, intervêm um professor e um estaroste; ela
perde a inocência (talvez apenas aparente) e o encanto da obra original, e as
duas não parecem ter sido escritas pela mesma pena. Veremos adiante como o
peregrino foi recebido no Ocidente atual.
***
A história
da Prece de Jesus nos primeiros anos do século XX inclui um lamentável episódio
que teve lugar no Monte Athos. O monge e sacerdote Antonio Bulatovich, um
antigo oficial do Exército Russo, e outro monge Hilarion, que havia sido
eremita no Cáucaso, propagaram nos círculos monásticos Russos na Montanha
Santa, por volta do ano de 1912, uma doutrina segundo a qual o próprio nome de
Jesus é a Divindade. Os que adotaram essa doutrina se chamavam “glorificadores
do nome” (imenoslavtsi, em Russo).
Joaquim III, Patriarca de Constantinopla, condenou a doutrina como sendo
herética; mas os “glorificadores do nome” persistiram em seus ensinamentos e
perturbaram enormemente a península. Em 1913 o governo imperial Russo enviou um
navio de guerra a Athos, embora este se localizasse em território Grego, e os
dois recalcitrantes monges foram presos por marinheiros Russos. Os
“glorificadores” foram deportados para a Rússia. Ecos destes distúrbios foram
ouvidos ainda durante a Primeira Guerra Mundial.
Os
“glorificadores do nome” expressavam-se de uma forma rude e atrapalhada a
respeito de um assunto que requer o mais alto discernimento. Sua teoria era
obviamente inadmissível, mas eles haviam tocado num problema real. Frei Sérgio
Bulgarov (1871-1944), do Instituto Russo de Teologia Ortodoxa de Paris, colocou
a questão em termos precisos. Permitam-nos colocar aqui sua considerações,
embora um pouco longas:
“O
significado mais importante na vida da oração consiste no Nome de Deus invocado
na prece (...). O que existe de mais importante na prece, o que constitui seu
coração, é aquilo que é chamado Prece de Jesus: “Senhor Jesus Cristo, Filho de
Deus, tem piedade de mim, pecador”. Esta prece, repetida centenas de vezes, ou
mesmo continuamente, forma o componente essencial de toda regra de prece
monástica; ela pode até, se necessário, substituir o Ofício e todas as outras
orações, pois seu valor é universal. O poder dessa prece não reside no seu
conteúdo, que é simples e claro – é a prece do coletor de impostos – mas no
Dulcíssimo Nome de Jesus. Os ascetas testemunham que esse nome traz em si o
poder e a presença de Deus. Não apenas Deus é invocado por intermédio desse
nome, mas ele próprio se torna presente na invocação. É claro que isto pode ser
dito para cada um dos nomes de Deus; mas é especialmente verdadeiro para o nome
divino e humano de Jesus, que é ao mesmo tempo o nome de Deus e do homem, em
resumo, o nome de Jesus, presente no coração humano, comunica a este o poder da
deificação[47],
que o Redentor nos concedeu (...). Brilhando no coração, a luz do nome de Jesus
ilumina todo o universo. Esse estado não pode ser descrito por palavras, mas
ele prenuncia o Último Dia, quando ‘Deus será tudo em todos’”.
“A prática
da Prece de Jesus levou naturalmente a discussões teológicas sobre o nome de
Deus e seu poder, sobre o significado da veneração do nome de Deus e sobre sua
força ativa. Essas questões ainda não receberam uma solução que tenha a força
de um dogma para a Igreja como um todo; de fato, elas ainda não foram
suficientemente consideradas pela literatura teológica. Neste momento,
coexistem duas perspectivas. Um primeiro grupo, que se autodenomina
“glorificadores do nome”, adota uma atitude realista em relação ao significado
do nome em geral. Eles acreditam que o nome de Deus, invocado em prece, já
contém em si a presença de Deus (Frei João de Kronstadt e outros). O segundo
grupo prefere um ponto de vista mais racional e nominalista : o nome de Deus é
visto como uma meio humano e instrumental para expressar o pensamento da alma
sobre Deus e seu esforço em sua direção. Aqueles que praticam a Prece de Jesus,
bem como os místicos em geral, sustentam a primeira opinião, junto com alguns
teólogos e membros da hierarquia. O segundo ponto de vista é característico da
escola de teologia Ortodoxa que reflete a influência do racionalismo europeu.
De qualquer maneira, a doutrina teológica do nome de Deus é um problema para os
tempos atuais, um problema essencial para a expressão e a compreensão da
Ortodoxia, um problema que nossa época irá legar as futuras gerações. Esse
problema indica o principal caminho que permanece aberto perante o pensamento
teológico contemporâneo”.
Sérgio
Bulgarov ainda deixou um trabalho, não publicado até o tempo de seu
falecimento, sobre a Filosofia do Nome.
Nesta obra ele lida com o nome em geral, mais do que com o nome de Deus, mas no
pensamento do autor toda a questão está intimamente ligada à Prece de Jesus.
***
Foi
durante a emigração que Frei Bulgarov escreveu as linhas que transcrevemos; de
fato, foi no seio da emigração Russa que aconteceu um verdadeiro renascimento
da Prece de Jesus. Esse renascimento se tornou mais aparente nas devoções
privadas dos fiéis do que na atitude oficial da Igreja. A Dobrotolubie desfrutou de uma revivência de sucesso. Os Relatos de um Peregrino foram
republicados. Mais do que isso, foram traduzidos para várias línguas
Ocidentais, e essa obra tão característica da Rússia Ortodoxa foi recebida com
simpatia inesperada por Romanos, Anglicanos, Luteranos e Calvinistas. A obra se
tornou, como se diz, um dos “clássicos menores” da literatura devocional. Os monges
do mosteiro Russo de Valamo na Finlândia publicaram dois volumes de textos
selecionados sobre a Prece de Jesus a partir da Patrística e de autores
ascéticos.
***
Mais do
que qualquer outro país do Ocidente, a Inglaterra deu atenção especial à Prece
de Jesus. Evelyn Underhill (pseudônimo de Mrs. Stuart Moore, 1875-1941), um dos
discípulos Anglicanos de Von Hügel, que se esforçou para criar interesse em seu
país por autores místicos e questões da vida espiritual, falava da Prece de
Jesus em termos admiráveis: “Essa técnica é tão simples que está ao alcance do
mais humilde fiel, e tão penetrante que pode introduzir aos que a usam com fé
nos mais profundos mistérios da vida contemplativa (...). Ela traz em si o
apelo simples e infantil do camponês devoto, e o esforço contínuo e a aspiração
do grande contemplativo”.
Foi por
intermédio da Irmandade de Santo Albano e São Sérgio, à qual ela pertencia, que
Evelyn Underhill entrou em contato com a espiritualidade Russa. A Irmandade
merece uma menção na história da Prece de Jesus por causa do modo pelo qual
membros não Ortodoxos vieram a aprender, através de seu contato com os membros
Ortodoxos, o que é esta Prece. Ela foi um tema tratado muitas vezes em leituras
e retiros organizados pela Irmandade. Muitos Ingleses passaram desde então a
praticar a Prece de Jesus. Recentemente fomos surpreendidos por um Inglês que,
sem ter lido nada a respeito do assunto, devotou-se à Prece – e de modo sério e
frutífero – apenas porque um amigo lhe falara dela. Os Dominicanos de Oxford
acolheram um artigo em sua publicação mensal, no qual um escritor Ortodoxo
falava da Prece de Jesus em termos tão acertados que iremos aqui reproduzir um
trecho:
“Muitos
parecem ter construído toda a sua vida espiritual sobre a Prece de Jesus (...).
Uma determinada técnica corporal foi indicada pelos metres para o ato de orar:
imobilidade, respiração regular, fixar os olhos sobre o coração, etc. Esses
exercícios “físicos” são permitidos apenas àqueles que dispõem de um orientador
experiente para auxiliá-los. Todos os Padres enfatizara, entretanto, que esses
métodos consistiam apenas em “muletas” para suportar o corpo e a alma até que a
pessoa consiga o controle sobre si mesma. O objetivo é o de purificar o corpo e
transformá-lo em instrumento da prece (...). A invocação pode ser repetida
oralmente ou mentalmente (...). Para evitar a repetição mecânica, é possível
modificar as palavras de tempos em tempos, mas não com muita frequência.
Algumas pessoas consideram suficiente apenas repetir: Jesus, Jesus (...)”.
“É esta
uma prece para monges , os únicos que podem dedicar todo o seu tempo a ela? De
fato, a Prece de Jesus é largamente praticada por leigos da Igreja Ortodoxa.
Ela é tão simples que não necessita treinamento algum para ser lembrada. Ela
pode permanecer nos lábios até dos que estão por demais enfraquecidos para
rezar o Pater (...). Muitos vão aos
seus empregos habituais repetindo essa prece. O trabalho doméstico, no campo,
em fábricas e escritórios não são incompatíveis com ela e, na realidade, certas
formas de trabalhos manuais podem mesmo ajudar na concentração. Também é
possível, embora mais difícil, realizar ocupações intelectuais juntamente com a
prece contínua. Ela resguarda a pessoa de muitas palavras vãs e pouco
caridosas, santifica a dura rotina diária e os relacionamentos. As palavras se
tornam familiares; depois de um tempo, elas saem por si só. Mais e mais elas
conduzem a pessoa à prática da Presença de Deus (...). Gradualmente, as
palavras parecem desaparecer; um silêncio, uma vigília indizível junto com uma
profunda paz do coração e da mente se mantém durante a azáfama da vida
cotidiana. Mas em casos de distração, de tentação, cansaço ou aridez, é útil
recorrer novamente à invocação oral: ‘Eu durmo, mas meu coração vigia[48]’.
O ato de orar passou a um estado de oração”.
“Como todo
caminho espiritual, a Prece requer fidelidade, perseverança e coragem. Mas essa
lembrança contínua de Jesus Cristo se aprofunda em nós e lança uma nova luz
sobre toda a nossa vida. Ela se liga à lembrança do Calvário e da Última Ceia;
nossa comunhão e o sacrifício do altar penetram o coração, a mente e a vontade
, oferecidos numa incessante invocação ao nome de Jesus. Por outro lado,
podemos aplicar este nome às pessoas, aos livros, às flores, a tudo o que encontramos,
vemos ou pensamos. O nome de Jesus pode se tornar uma chave mística para o
mundo, um instrumento de uma oferenda oculta de tudo e de todos, estabelecendo
o selo divino sobre o mundo. Talvez possamos falar aqui no sacerdócio de todos
os fiéis. Em união com nosso Alto Sacerdote, imploramos ao Espírito: Transforme
nossa prece num sacramento”.
O
principal interesse do artigo do qual extraímos essas extensas colocações é que
ele constitui uma espécie de síntese das intenções da Prece de Jesus e de seu
uso prático. Ele abre avenidas e perspectivas, mostrando quais possibilidades
são oferecidas para uma exploração orante e amorosa do nome de Jesus. Notamos
em particular o que é dito sobre o aspecto eucarístico da Prece de Jesus: com
efeito, ela se torna uma oferenda e uma comunhão. Notamos ainda as sugestões
sobre a aplicação do nome de Jesus às pessoas e coisas do dia-a-dia, e sobre o
emprego deste nome como um meio para a transfiguração do mundo; temos aqui um
desenvolvimento bastante concreto da teologia do Corpo de Cristo.
Talvez
seja apropriado acrescentar aqui uma série de títulos sobre a Prece de Jesus,
que fazem parte do esquema de estudos proposta pela Irmandade de Santo Albano e
São Sérgio aos seus membros:
“O Nome de
Jesus e a Prece de Jesus. A Prece de Jesus como: a) um chamado para a meditação
e a intercessão; b) a realização da Presença; c) a oferenda sacrificial; d) a
partilha da alegria e do poder da Ressurreição; e) a vinda do Espírito Santo;
f) um instrumento para a transfiguração dos homens e das coisas. Suas técnicas
e possibilidades. Sua ligação com ouso do Nome de Deus no Velho Testamento e
com o Nome de Jesus nos Atos dos Apóstolos”.
Para
aqueles que considerarem atrativos os horizontes abertos por este esquema de
estudos, a Prece de Jesus não constituirá uma relíquia do passado. Se nos
aproximarmos dela com discrição e respeito, ela pode trazer nova vida às nossas
almas. Essa renovação poderá servir de causa para a unidade do Cristianismo,
porque a invocação do nome de Jesus foi de início comum a todos, e ela ainda
permanece aceitável e acessível a todos. Mas sua proposta não é apenas de
estabelecer laços entre os que se acham divididos, mas em primeiro lugar e
acima de tudo reacender a devoção a nosso Senhor.
***
Tentamos
dar alguma ideia a respeito do que a Prece de Jesus foi e ainda é. Esperamos
que um historiador se dedique a este tema e escreva um livro digno dele. Mas
nenhum estudo histórico sobre a Prece de Jesus, por mais exaustivo que seja,
jamais será senão uma introdução, conduzindo o leitor ao verdadeiro ponto de
partida, o ponto onde os fatos e a crítica intelectual não estão distantes, e
no qual nossa vontade e nosso amor se acham também envolvidos. Se esse trabalho
chegar a ser escrito, sua conclusão mais adequada consistirá nas palavras com
as quais São Bernardo – um dos Padres Latinos que melhor falou sobre o nome de
Jesus – terminou os cinco livros que ele dedicou ao Papa Eugênio III:
“devemos
buscar por aquele que nunca foi suficientemente encontrado, a quem nunca procuramos
o bastante; e talvez seja por meio da oração, mais do que com discussões
eruditas, o modo mais digno de buscá-lo e o meio mais fácil de encontrá-lo. Que
seja este o fim de nosso trabalho, mas não o fim de nossa busca”.
CAPÍTULO VI
O USO PRÁTICO DA PRECE DE JESUS
I.
A forma da Prece
O Oriente
Bizantino, como vimos, designou algo inadequadamente como “Prece de Jesus” todo
tipo de invocação centrada no nome literal do Salvador. Essa invocação assumiu
diferentes formas específicas dependendo de se no nome era usado sozinho ou
inserido em fórmulas mais ou menos desenvolvidas. Sempre coube, porém, a cada
indivíduo determinar sua própria forma de invocação do nome, no Oriente a
invocação acabou cristalizando-se na fórmula “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
tem piedade de mim, pecador”, mas esta fórmula nunca foi nem é a única.
Qualquer invocação repetida, em que o nome de Jesus forme o núcleo e imprima
sua força, pode ser autenticamente a Prece de Jesus no sentido Bizantino. A
pessoa pode dizer, por exemplo, “Jesus Cristo”, ou “Senhor Jesus”. A mais
antiga, a mais simples e, em nossa opinião, a fórmula mais fácil consiste
apenas na palavra “Jesus” usada sozinha. É a partir dessa última possibilidade
que passaremos a falar agora da Prece de Jesus.
Essa modalidade
de prece pode ser pronunciada ou meramente pensada. Seu lugar encontra-se assim
na fronteira entre a prece vocal e a mental, entre e prece de meditação e a
prece de contemplação. Ela pode ser praticada a qualquer momento e em qualquer
lugar: na igreja, no quarto, na rua, no escritório, no trabalho, e assim por
diante. Podemos repetir o nome enquanto caminhamos. Os iniciantes, porém, farão
melhor se se limitarem a uma certa regularidade em sua prática da Prece,
escolhendo tempos e lugares fixos e solitários para orar. Claro que esse treino
sistemático não exclui um uso paralelo e inteiramente livre da invocação do
nome.
Antes de
começar a pronunciar o nome de Jesus, devemos primeiro nos colocar num estado
de paz e recolhimento, e então implorar o socorro do Espírito Santo, pois
“apenas nele podemos dizer que Jesus Cristo é o Senhor[49]”.
Todas as demais preliminares são supérfluas. Quem quer nadar deve primeiro
entrar na água; da mesma forma, devemos num único salto nos colocarmos dentro
do nome de Jesus. Depois de começarmos a pronunciar o nome com amorosa
adoração, tudo o que temos a fazer é nos ligarmos a ele, agarrarmo-nos a ele e
repeti-lo lenta, suave e quietamente. Seria um erro “forçar” essa prece, erguer
a voz interiormente, tentando introduzir intensidade e emoção. Quando Deus se
manifestou ao profeta Elias, não foi através de uma forte ventania, nem de um
terremoto, nem do fogo, mas com uma suave brisa murmurante que se seguiu a
todos estes[50]. Pouco a pouco iremos concentrar todo nosso
ser em torno do nome, aquiescendo a ele como a uma gota de óleo que
silenciosamente penetra e impregna nossa alma. Ao invocar o nome, não é
necessário repeti-lo continuamente. Uma vez pronunciado, o nome pode ser
“prolongado” por vários minutos de repouso, de silêncio, de pura atenção
interior, do mesmo modo como um pássaro alterno no voo o bater das asas e o voo
planado.
Toda
tensão e toda pressa devem ser evitadas. Se a fadiga se abater sobre nós, a
invocação deve ser interrompida e só retomada quando nos sentirmos impelidos a
ela. Nosso objetivo não é uma repetição constante e literal, mas uma espécie de
presença do nome de Jesus em nosso coração, latente e passiva. “Eu durmo, mas
meu coração vigia[51]”.
Devemos banir toda sensualidade espiritual, toda busca de emoção. Não há dúvida
de que é natural esperar resultados que sejam em certa medida tangíveis, querer
tocar a barra da túnica do Salvador e não largar até que ele nos conceda sua
bênção[52].
Mas não pensemos que foi perdida a hora durante a qual invocamos o nome sem
“sentirmos” nada, durante a qual permanecemos no frio e na aridez. Essa
invocação que imaginamos ter sido estéril será, ao contrário, muito bem aceita
por Deus, desde que seja quimicamente pura, se podemos nos expressar assim,
pura porque despida de toda preocupação com delícias espirituais e reduzida
apenas a uma oferenda da vontade nua. Em outros momentos, em sua generosa
misericórdia, o Salvador poderá envolver seu nome numa atmosfera de alegria,
calor e luz: “Seu nome é como o azeite escorrendo... arraste-me com você,
corramos![53]”.
II.
Circunstância ou método?
Para
algumas pessoas a invocação do nome poderá ser uma circunstância em sua jornada
espiritual; para outros, será mais do que uma circunstância, ela se
transformará em um dos métodos habitualmente empregados, ainda que não seja o
método por excelência; para outros ainda, ela será o método por excelência, em
torno do qual toda sua vida interior irá se organizar. Decidir por uma escolha
arbitrária, apenas por capricho, que nosso caso seja o último, seria como
construir um edifício condenado a ruir desgraçadamente. Não somos nós que
escolhemos a “Prece de Jesus”. Nós somos chamados a ela, conduzidos a ela por
Deus, se ele assim o desejar. Podemos nos devotar a ela por obediência ou por
uma vocação especial, desde que outras obediências não sejam prioritárias. Se
esta forma de oração não estiver no caminho de outras formas com as quais
estamos comprometidos em virtude de nosso modo de vida, se ela estiver
acompanhada de uma atração que nos apressa, se produzir em nós frutos de
purificação, caridade e paz, se nosso guia espiritual nos encoraja a
praticá-la, em tudo isso poderemos ver, se não os sinais infalíveis de uma
vocação, ao menos indicações que devem ser consideradas com humildade e
atenção.
O “caminho
do nome” foi provado e aprovado por muitos Padres e monges do Oriente, e também
por muitos santos do Ocidente. Portanto, trata-se de um caminho legítimo e que
permanece aberto como uma possibilidade para todos. Mas devemos evitar todo
zelo indiscreto, toda propaganda fora de hora. Não devemos bradar com fervor
doentio, “É a melhor prece”, e muito menos, “É a única prece”. Os segredos do
Rei devem ser guardados e escondidos num lugar secreto. Aqueles que estiverem
ligados a uma comunidade ou a uma regra saberão discernir em que medida o
caminho do nome é compatível com os métodos aos quais obedecem; as autoridades
competentes os auxiliarão na tarefa do discernimento. Não estamos nos referindo
aqui à prece litúrgica, pois esta não pode conflitar com o tipo de prece
interior que estamos discutindo aqui. Em particular, não pretendemos sugerir
àqueles cuja prece é um autêntico diálogo com o Senhor, nem aos que estão
estabelecidos no profundo silêncio da contemplação, que abandonem seus caminhos
de oração para praticar a Prece de Jesus. Não depreciamos o valor de nenhum
modo de oração. Porque em última análise a melhor prece para cada um é aquela,
qualquer que seja, por meio da qual a pessoa se vê conduzida pelo Espírito
Santo, dentro de suas circunstâncias específicas, e sob a orientação de um guia
espiritual.
O que
podemos dizer com tranquilidade e segurança em relação à Prece de Jesus é que
ela ajuda a simplificar e unificar nossa vida espiritual. Enquanto que métodos
complicados tendem a dissipar e enfraquecer a atenção, esta “prece de uma só
palavra” possui o poder de unificação e integração, assistindo à alma
fragmentada que descobre que seu nome e seus pecados são uma “legião[54]”.
O nome de Jesus, quando começa a se tornar o centro de nossa vida, carrega todo
o resto consigo. Mas não devemos imaginar que a invocação do nome seja um
“atalho” que nos dispensa da purificação ascética. O nome de Jesus é em si um
instrumento de ascetismo, um filtro pelo qual só passam os pensamentos, as
palavras e as ações compatíveis com a realidade viva e divina que este nome
simboliza. O crescimento do nome em nossa alma implica uma diminuição
correspondente de nosso “eu” separado, uma morte diária de nossa
autocentralidade, da qual deriva todo pecado.
III.
Os primeiros passos: adoração e salvação
Existem
muitos níveis na Prece de Jesus. Ela se aprofunda e se alastra na medida em que
vamos descobrindo novos níveis no nome. Ele normalmente começa como uma
adoração e uma sensação da presença. Então, essa presença começa a ser experimentada
especificamente como sendo a presença do Salvador (pois este é o significado da
palavra “Jesus”). A invocação do nome constitui um mistério de salvação no
sentido que ela traz consigo uma libertação. Ao proferir o nome, já estamos
recebendo aquilo de que necessitamos. Nós o recebemos aqui e agora em Jesus,
que é não apenas aquele que dá, mas que é também o próprio dom; não só o
purificador, mas toda a pureza; não apenas o que alimenta o faminto e
dessedenta o que tem sede, mas que é ele mesmo alimento e bebida. Ele é a
substância de todas as coisas boas (se não empregarmos esse termo num sentido
estritamente metafísico).
O nome de
Jesus traz paz àqueles que são tentados: ao invés de argumentar com a tentação,
ao invés de pensar nela como um tempestade furiosa – que foi o erro de Pedro no
lago, depois de um bom começo – porque não enxergarmos apenas a Jesus e
caminharmos até ele andando sobre as ondas, refugiando-nos em seu nome? A
pessoa tentada deve se recolher calmamente e pronunciar o nome sem ansiedade,
de um modo não febril; então seu coração se encherá com o nome e desse modo se
protegerá dos ventos violentos. Se um pecado foi cometido, o nome serve como
uma imediata reconciliação. Sem demora ou delongas, deixe que ele seja
pronunciado com perfeita caridade e arrependimento, e ele logo se tornará um
ponto de perdão. De um modo inteiramente natural Jesus retomará seu lugar na
vida do pecador, assim como depois da Ressurreição ele voltou e tomou de modo
simples seu lugar à mesa com os discípulos que o haviam abandonado, e que então
lhe ofereceram peixe e mel[55].
É claro que não estamos rejeitando ou subestimando os meios objetivos de
arrependimento e absolvição que a Igreja oferece aos pecadores; falamos aqui
apenas do que acontece nas profundezas ocultas da alma.
IV.
Encarnação
O nome de
Jesus é mais do que o mistério da salvação, mais do que o socorro em tempos de
necessidade, mais do que o perdão depois do pecado. Ele é um meio pelo qual
podemos aplicar a nós mesmos o mistério da Encarnação. Para além de sua
presença, ele traz união. Ao pronunciar o nome, entronizamos Jesus em nossos
corações, nele colocamos Cristo; oferecemos nossa carne ao Verbo para que ele a
assuma em seu Corpo Místico; provocamos a realidade interior e o poder interior
da palavra “Jesus” para que cubram nossos membros que estão sujeitos à lei do
pecado. Dessa maneira nos purificamos e nos consagramos. “Grave-me como selo em
seu coração, como selo em seu braço[56]”.
Mas a invocação do nome de Jesus faz mais do que nos capacitar para que
apreciemos o significado do mistério da Encarnação para nós pessoalmente. Por
meio dessa prece também nos tornamos capazes de captar um vislumbre da
“plenitude daquele que preenche tudo em todas as coisas[57]”.
V.
Transfiguração
O nome de
Jesus é um instrumento e um método de transfiguração. Quando o pronunciamos,
ele nos ajuda a transfigurar – sem nenhuma confusão panteísta – todo o mundo em
Jesus Cristo.
Isso é
verdadeiro inclusive em relação à natureza inanimada. O universo material, que
não é apenas um símbolo visível da invisível beleza divina, mas que “geme” por
Cristo[58],
e cujos misteriosos movimentos elevam todos os que chegam a ser ao patamar do
Pão e do Vinho da salvação, esse universo murmura secretamente o nome de Jesus:
“Até as pedras gritarão seu nome[59]”.
Cabe ao ministério sacerdotal de todo Cristão dar voz a essa aspiração,
pronunciar o nome de Jesus sobre os elementos da natureza, pedras e árvores,
flores e frutos, montanhas e mar, e assim levar até sua plenitude o segredo das
coisas, levando uma resposta a essa longa, silenciosa e inconsciente espera.
Podemos
também transfigurar o mundo animal. Jesus, que declarou que sequer um pardal é
esquecido por seu Pai[60],
e que esteve no deserto “com os animais selvagens[61]”,
jamais deixou os animais fora da esfera de sua divindade e influência. Como
Adão no Paraíso, deveremos dar nome a cada animal. Qualquer que seja o nome
dado pela ciência, devemos invocar sobre cada um o nome de Jesus, e dessa forma
devolver a eles sua dignidade primitiva que tantas vezes esquecemos,
lembrando-nos de que eles foram criados e amados pelo Pai em Jesus e por Jesus.
Mas é
especialmente em relação aos nossos irmãos humanos que o nome de Jesus nos
ajuda a exercitar o ministério da transfiguração. Jesus, que depois de sua
Ressurreição escolheu diversas ocasiões para aparecer a seus discípulos com
“outra aparência[62]”
– o viajante desconhecido na estrada para Emaús, o jardineiro junto ao túmulo,
o estrangeiro à beira do lago – continua a nos encontrar diariamente de forma
velada, para nos confrontar com este importantíssimo aspecto de sua presença:
sua presença no homem. Aquilo que fazemos ao menor de nossos irmãos, a ele o
fazemos. Por sob o rosto de homens e mulheres somos capazes, com nossos olhos
de fé e amor, de ver a face do Senhor; ao assistirmos ao sofrimento dos pobres,
dos doentes, dos pecadores, de todos os homens, colocamos nosso dedo no lugar
dos pregos, introduzimos nossa mão no flanco aberto, e experimentamos
pessoalmente a Ressurreição e a presença real (sem nenhuma confusão de
essência) de Jesus Cristo em seu Corpo Místico; e assim poderemos dizer com São
Tomé: “Meu Senhor e meu Deus[63]”.
O nome de
Jesus é um meio concreto e poderoso para transfigurar os homens em sua mais
profunda e divina realidade. Observemos os homens e mulheres que cruzamos pela
rua, que encontramos no escritório ou na fábrica – em especial aqueles que nos
parecem irritantes a antipáticos – com o nome de Jesus em nossos corações e
nossos lábios. Pronunciemos o nome silenciosamente sobre essas pessoas, pois
esse é se verdadeiro nome; chamemo-los por esse nome com um espírito de
adoração e serviço. Devotemo-nos a eles de um modo prático, se possível, ou em
todo caso com uma aspiração interior, pois através deles estaremos nos
devotando realmente a Jesus Cristo. Ao reconhecermos e silenciosamente
adorarmos a Jesus prisioneiro num pecador, num criminoso, numa prostituta, de
certa forma libertamos tanto a eles como ao nosso Mestre. Se virmos a Jesus em
todas as pessoas, se pudermos dizer “Jesus” para todos, atravessaremos o mundo
com uma nova visão e um novo do em nosso coração. Desse modo, tanto quanto
estiver ao nosso alcance, podemos transformar o mundo em tornar nossas as
palavras que Jacó disse a seu irmão: “Eu vi seu rosto, e era como se fosse o
rosto de Deus[64]”.
VI.
O Corpo de Cristo
A
invocação do nome de Jesus possui um aspecto eclesial. Neste nome encontramos
todos os que se uniram ao Senhor, e em meio aos quais ele se mantém. Neste nome
podemos abraças a todos os que se encontram dentro do Divino Coração.
Interceder pelo próximo não é tanto suplicar em seu favor perante Deus, mas
aplicar a seu nome o nome de Jesus e nos unirmos pela intercessão de nosso
Senhor em pessoal por aqueles a quem ele ama.
Neste
ponto tocamos no mistério da Igreja. Onde está Jesus Cristo, ali está a Igreja.
O nome de Jesus é um meio de nos unirmos à Igreja, porque a Igreja está em
Cristo. Em Cristo a Igreja está imaculada. Não se trata de tentarmos nos
dissociar da existência e dos problemas da Igreja terrestre, ou fecharmos os
olhos para as imperfeições e a desunião dos Cristãos. Não queremos separar ou
opor os aspectos visíveis e invisíveis da Igreja. Mas sabemos que o que está
implicado no nome de Jesus é o aspecto impecável, espiritual e eterno da
Igreja, que transcende toda e qualquer manifestação terrena e que nenhuma cisma
pode destruir. Quando Jesus falou à mulher Samaritana sobre a hora “que está
para chegar e é agora[65]”,
na qual os verdadeiros adoradores adorarão ao Pai, já não em Jerusalém ou em Gerizim,
mas em espírito e verdade, havia uma aparente contradição em suas palavras.
Como poderia a hora ter chegado e ainda estar por chegar? O paradoxo é
explicado pelo fato de que a mulher Samaritana estava naquele momento diante de
Jesus. Certamente a oposição entre Jerusalém e Gerizim ainda existia, e Jesus,
longe de minimizá-la, declara que a salvação viria dos Judeus e que, portanto,
a hora ainda estava por chegar. Mas, pelo fato de que Jesus estava ali em
pessoa, Jerusalém e Gerizim tinham sido infinitamente transcendidas, e a hora
ali havia chegado. Quando invocamos o nome do Salvador, estamos numa situação
análoga. Não podemos acreditar que as diferentes interpretações do Evangelho
sejam todas igualmente verdadeiras ou que os Cristãos divididos possuam todos a
mesma medida de luz; mas acreditamos que aqueles que, pronunciando o nome de
Jesus, tentam se unir ao seu Senhor por um ato de obediência incondicional e
perfeita caridade, estes transcendem as divisões humanas, participam de alguma
maneira da unidade sobrenatural do Corpo Místico de Cristo e se tornam, se não
visível e explicitamente, ao menos invisível e implicitamente membros da
Igreja. E assim a invocação do nome de Jesus, feita com uma coração direito, é
uma via para a unidade Cristã.
Ela também
nos ajuda, em Jesus, a que encontremos os fiéis que partiram. A Marta, que
professava sua fé na futura Ressurreição, Jesus respondeu: “Eu sou a
Ressurreição e a Vida[66]”.
Isso significa que a ressurreição dos mortos não é meramente um evento futuro;
que a pessoa de Cristo reerguido é desde já a ressurreição e a vida de todos os
redimidos; e que, aos invés de buscarmos, seja pela prece, pela memória ou pela
imaginação, estabelecer um contato espiritual direto entre nós e nossos mortos,
devemos buscá-los em Jesus, onde está sua verdadeira vida, ligando o nome de
Jesus aos seus próprios nomes. Esses que partiram, cuja vida está oculta em
Cristo, estão no seio da Igreja celestial que forma a mais numerosa parte da
Igreja eterna e total.
No nome de
Jesus encontramos os santos que “trazem seu nome em sua fronte[67]”,
e também os anjos, um dos quais disse a Maria: “Seu nome será Jesus[68]”,
e encontramos também Maria. Que possamos no Espírito buscar ouvir e repetir o
nome de Jesus, assim como Maria ouviu e repetiu!
VII.
A Ceia do Senhor
O nome de
Jesus se tornou para nós uma espécie de Eucaristia. Assim como o mistério da Sala
Superior consistiu no sumo de toda a vida e missão do Senhor, também um certo
uso “eucarístico” do nome de Jesus traz a si e une todos os aspectos do nome
considerado em sua extensão.
A
Eucaristia sacramental não cabe dentro dos limites de nosso tema. Mas nossa
alma também se encontra na sala superior na qual Jesus quis comer a Páscoa com
seus discípulos, e onde a Ceia do Senhor pode ser celebrada a qualquer momento,
ainda que de modo invisível. Nessa Última Ceia puramente espiritual, o nome do
Salvador toma o lugar do pão e do vinho do sacramento. Podemos fazer do nome de
Jesus uma oferenda de ação de graças – e este é o sentido original da palavra
“eucaristia” – o suporte e a substância de um sacrifício de louvor oferecido ao
Pai. Nessa oferenda interior e invisível, apresentamos ao Pai, ao pronunciarmos
o nome de Jesus, o cordeiro sacrificado, a vida entregue, o corpo destroçado, o
sangue vertido. O nome sagrado, utilizado dessa maneira sacrificial, se torna
um meio para aplicarmos a nós mesmos, aqui e agora, os frutos da perfeita
oblação oferecida de uma vez por todas no Gólgota.
Não existe
Ceia do Senhor sem comunhão. Nossa Eucaristia invisível implica aquilo que a
tradição chama de “comunhão espiritual”, ou seja, o ato de fé e desejo por meio
do qual a alma se nutre do Corpo e Sangue de Cristo, sem fazer uso dos
elementos visíveis do pão e do vinho. Nada pode estar mais distante de nosso
pensamento do que diminuir ou subestimar o sacramento da Eucaristia, tal como
praticado pela Igreja, o qual não podemos simplesmente identificar com a
comunhão espiritual. Mas acreditamos estar dentro da mais autêntica tradição da
Igreja ao afirmar a realidade de uma aproximação constante, invisível e
puramente espiritual do Corpo e Sangue de Cristo, uma aproximação que é
diferente do encaminhamento geral à sua pessoa, porque implica um tipo especial
de relação entre nós e o Salvador, que é considerado, nesse caso, como aquele
que alimenta, e que ao mesmo tempo é o alimento de nossas almas. O nome de
Jesus pode ser usado como a forma, o suporte e a expressão dessa aproximação.
Ele pode ser para nós o alimento espiritual, a partilha do Pão da Vida.
“Senhor, dá-nos sempre deste pão[69]”.
Nesse nome, nesse pão nos unimos a todos os membros do Corpo Místico de Cristo,
a todos os que se sentam no banquete do Messias, todos os que, “sendo muitos,
são um só pão, um só corpo[70]”.
E uma vez
que a Eucaristia proclama “a morte do Senhor, até que ele venha[71]”,
uma vez que ela é uma antecipação do reino eterno, o uso “eucarístico” do nome
de Jesus também possui um sentido “Escatológico”. Ele proclama o “fim” e a
Segunda Vinda, ele se apresenta como um desejo ardente, não apenas pelas
ocasionais “aparições” de Cristo em nossa vida terrena, mas pela chegada
definitiva de Cristo a nós, que acontecerá no momento de nossa morte. Existe
uma maneira determinada de dizer o nome de Jesus que constitui uma preparação
para a morte, um salto de nosso coração para além da barreira, um último apelo
geral ao Noivo, “a quem, sem vê-lo, você ama[72]”.
Dizer “Jesus” é, assim, repetir o grito do Apocalipse: “Vem, Senhor Jesus[73]”.
VIII.
O Nome e o Espírito
Quando
lemos os Atos dos Apóstolos, vemos o lugar central ocupado pelo nome de Jesus
na mensagem e nas ações dos apóstolos. Por meio deles “o nome do Senhor Jesus
foi glorificado[74]”;
neste nome sinais milagrosos foram praticados e vidas se transformaram. Depois
do Pentecostes os apóstolos se tornaram capazes de proclamar o nome “com poder”.
Temos agora o uso “pentecostal” do nome de Jesus, um uso do qual os apóstolos
não possuem o monopólio, mas que está aberto a todos os fiéis. Apenas a
fraqueza de nossa fé e caridade nos impedem de renovar no nome de Jesus os
frutos do Pentecostes, de expulsar os demônios, impor as mãos sobre os doentes
e curá-los. Os santos continuaram atuando assim. O Espírito escreve o nome de
Jesus em letras de fogo sobre os corações dos eleitos. Este nome se torna neles
uma chama ardente.
Mas existe
também, entre o Espírito Santo e a invocação do nome de Jesus, outra ligação
mais interior do que o ministério “pentecostal” dos Cristãos. Ao pronunciar o
nome de nosso Salvador, obtemos uma certa “experiência” – este termo deve aqui
ser entendido com as necessárias reservas – da relação entre o Filho e o
Espírito. Podemos fazer coincidir em nossa pessoa a descida da pomba sobre
nosso Senhor; podemos unir nosso coração – na medida em que uma criatura pode
se unir à atividade divina – ao eterno movimento do Espírito em direção a
Jesus. “Oh, se eu tivesse asas como uma pomba[75]”,
não apenas para voar para longe dos assuntos terrenos, mas para pousar junto a
ele que é todo o meu bem! Se ao menos eu soubesse como escutar “a voz da
rolinha[76]”,
quando ela fala “com suspiros demasiado profundos para palavras[77]”
o nome do Amado! Então a invocação do nome de Jesus seria uma iniciação ao
mistério da relação de amor entre Cristo e o Espírito.
Inversamente,
podemos nos esforçar para coincidir – sempre respeitando os limites apropriados
– com o relacionamento reverso, ou seja, a atitude de Jesus em relação ao
Espírito Santo. Concebido pelo Espírito, conduzido pelo Espírito, Jesus mostrou
a mais humilde docilidade para com o Sopro de seu Pai. Ao pronunciar o nome de
Jesus, deixemo-nos unir, tanto quanto é possível aos humanos, à completa
entrega que Jesus dez de sua vida ao Sopro divino.
Procuremos
ver no nome de Jesus um coração de onde irradia o Espírito, e ver em Jesus o
ponto de partida a partir do qual o Espírito é enviado aos homens, a boca de
onde o Espírito é assoprado em nós. A invocação do nome de Jesus, unindo-nos a
esses diferentes momentos – Jesus sendo preenchido pelo Espírito, o envio do
Espírito aos homens por Jesus, e ainda o anseio de Jesus pelo Pai – nos fará
crescer no conhecimento e na união com aquilo que Paulo chamou de “Espírito de
seu Filho[78]”.
IX.
EM direção ao Pai
Existe o
Filho, e existe o Pai. Nossa leitura do Evangelho permanecerá superficial
enquanto o considerarmos apenas como uma mensagem dirigida aos homens. O
coração do Evangelho, o mistério de Jesus, consiste na relação entre o Pai e
seu único Filho amado.
Proferir o
nome de Jesus equivale a proferir o Verbo tal como “era no princípio[79]”,
o Verbo que o Pai pronunciou por toda eternidade. O nome de Jesus, podemos
dizê-lo com um pouco de antropomorfismo (facilmente corrigível), é a única
palavra humana que o Pai pronunciou quando engendrou o Filho e se entregou a
ele. Proferir o nome de Jesus equivale a colocar-se junto ao Pai, contemplando
o amor e o dom do Pai concentrados sobre Jesus; é sentir, numa limitada medida,
um pouco desse amor e unir-se a ele desde tão longe; é ouvir a voz do Pai que
declara: “Este é meu Filho muito amado[80]”,
e humildemente responder “sim” a essa declaração.
Pronunciar
o nome de Jesus é, por outro lado, penetrar, na medida em que isso é possível a
uma criatura, na consciência filial de Cristo. Depois de encontrar na palavra
“Jesus” o terno apelo do Pai, “Meu Filho!”, encontramos no Filho sua terna
resposta, “Meu Pai!”. Isso significa reconhecer em Jesus a perfeita expressão
do Pai, significa que nos unimos à eterna orientação do Filho para o Pai, à
eterna oferenda do Filho ao Pai. Pronunciar o nome de Jesus – se podemos
dizê-lo assim – é de certo modo juntar o Filho ao Pai e vislumbrar um pequeno
reflexo do mistério de sua unidade. É encontrar a melhor perspectiva para
aproximar o coração do Pai.
X.
Jesus em sua totalidade
Nós
consideramos os vários aspectos da invocação do nome de Jesus. Nós os
organizamos numa espécie de escala ascendente, talvez útil pedagogicamente, mas
artificial, porque na verdade existem inúmeros degraus intermediários e “Deus
dá o Espírito sem medida[81]”.
Em diversos estágios da prática da invocação do nome de Jesus pode ser bom, e
até necessário, concentrar nossa atenção sobre um ou outro aspecto particular
do nome divino. Mas chega um momento em que essa especialização se torna
cansativa, difícil, às vezes impossível. A contemplação e a invocação do nome
de Jesus se tornam então abarcantes. Toda implicação do nome se torna
simultaneamente, embora obscuramente, presente em nossa mente. Dizemos “Jesus”
e nos colocamos numa plenitude e numa totalidade que já não podem nos ser
tiradas. O nome de Jesus se torna um veículo de Cristo por inteiro. Ele nos
coloca em sua presença total.
Nessa
presença total encontram-se as realidades para as quais o nome serviu como um
meio de aproximação: salvação e perdão, a Encarnação e a Transfiguração, a
Igreja e a Eucaristia, o Espírito e o Pai. Todas as coisas aparecem para nós
“unidas em Cristo[82]”.
A presença total é tudo. O nome não é nada sem a Presença. Aquele que alcançar
a Presença já não necessitará do nome, pois este é apenas o suporte da
Presença. No final da estrada, nos tornamos livres do nome em si, livres de
tudo exceto Jesus, exceto de do contato vivo e inefável com a sua Pessoa.
Um raio de
luz traz consigo as várias cores que o prisma divide. Da mesma forma, o “nome
total”, o sinal e o suporte da Presença Total, age como uma lente que recebe e
concentra a luz branda de Jesus. Essa lente nos ajuda a acender o fogo do qual
foi dito: “Eu vim trazer o fogo à terra[83]”.
Se nos apegarmos ao nome de Jesus, poderemos receber a bênção especial que a
Escritura promete, “Volta-te para mim, tem piedade de mim: é a justiça para os
que amam o teu nome[84]”.
E possa o Senhor dizer a nós o que ele disse a Saulo: “Ele foi escolhido por
mim como um vaso, para carregar meu nome[85]”.
APÊNDICE 1
O MÉTODO
PSICOFISIOLÓGICO DA PRECE DE JESUS
Nós não
estamos comprometidos com a defesa dessa método, mas gostaríamos de explicá-lo
numa certa medida. A diminuição ou a retenção da respiração é um método
conhecido para obter calma. Um homem de espiritualidade profunda e interior
como Vladimir Soloviov recomendava essa prática. Santo Inácio de Loyola, em
seus Exercícios, sugeria uma “prece
rítmica (...) entre uma respiração e outra”. Cada movimento respiratório pode
equivales a uma prece. Ademais, os Hesiquiastas atribuíam grande importância em
manter o espírito “dentro dos limites do corpo”; estamos aqui, vale dizer,
prevenindo o espírito de se dispersar nas coisas externas, coisa que costuma
acontecer nos exercícios das funções visuais, táteis e locomotoras. Se a pessoa
retém a respiração e ao mesmo tempo de mantém imóvel, com os olhos baixos ou
fechados, e se essa atitude corporal é acompanhada de um esforço para “trazer
de volta o espírito para o interior do corpo”, e não partir para além dos
limites do corpo, essa operação, quase impossível de descrever, produz um
sentido de contração (que pode se tornar doloroso), mas também um sentido de
cooperação claramente definido entre o espírito e o corpo, um sentido de
intensa concentração.
Quanto ao
caso da “onfaloscopia”, ou a fixação do olhar sobre o umbigo, nem o nome nem a
coisa correspondem àquilo que o Hesiquiasmo recomenda. Nunca foi recomendado
que se contemplasse o próprio umbigo, coisa que se pareceria mais com o puro
Yoga. Trata-se antes de fixar o olhar, estando na posição sentada, no centro do
corpo. O umbigo representa, de um modo algo ingênuo, um ponto de concentração,
mas também podemos dizer com a mesma acuidade que o olhar deve ser dirigido ao
peito.
“Uma
prática bizarra, quase escandalosa”, escreveu o Frei Jugie em seu artigo sobre
Gregório Palamas, que já citamos. Por coisas como essa é que precisamos
entender a questão. O objetivo é “encontrar o lugar do coração”, para fazer o
espírito descer até este. Desconsiderando uma psicologia desatualizada, isso
significa que devemos, ao mesmo tempo em que concentramos o olhar na direção do
coração, figurarmos vividamente nosso coração como o local simbólico de toda a
nossa vida afetiva e volitiva, o lugar do amor; então devemos mergulhar nesse
fogo chamejante nossos pensamentos “intelectuais” para que eles se inflamem,
para que acendam e peguem fogo em contato com essa chama, até que um grito
abrasador estale de dentro de nós e suba até Jesus.
A atitude
física, com a cabeça inclinada para o coração, está, ao mesmo tempo,
relacionada com aquilo que Denis o Pseudo-Areopagita chamou de “movimento
circular” da alma. “O movimento da alma é circular, escreveu ele, quando,
penetrando em si mesma, ele dá as costas às coisas exteriores e se apega à
unidade dos poderes espirituais[86]”.
Esse movimento cíclico da prece expressa o transbordamento do espírito dentro
do coração, a interpenetração entre o intelecto e o amor. Ele também
representa, ainda que de um modo grosseiro, a interpenetração circular da
Trindade, a comunhão de amor entre as Três Pessoas. O famoso ícone da Trindade
de Andrei Rublev, que talvez seja a mais alta expressão artística da Ortodoxia,
sugere claramente, mesmo em seus menores detalhes, um movimento circular (por
sinal anti-horário). Resumidamente, é nosso objetivo, por intermédio de
atitudes corporais, criar poderosas representações mentais que por sua vez irão
liberar determinados dinamismos psíquicos. A estreita relação entre a
representação mental e a configuração espacial foi bastante estudada pela
Psicologia da Gestalt.
Em relação
à visão luminosa à qual conduz a Prece de Jesus, devemos distinguir duas
possibilidades. Em primeiro lugar, existe a percepção, pelos órgãos naturais,
de uma luz produzida sobrenaturalmente; isso acontece com santos e pecadores.
Depois, muito acima disso, como num caso limite, existe a percepção
sobrenatural de uma luz sobrenatural, uma percepção que não é sensível nem
física, que consequentemente transcende a psicologia normal; isso acontece
quando se torna visível a luz da Transfiguração, não pelos órgãos dos sentidos
e da percepção em seu estado normal, mas pelos olhos já transfigurados. Na
parte de baixo da escada da ascensão espiritual, existe um uso puramente
simbólico da palavra “luz”, quando o nome de Jesus é visto num sentido figurado
como o sol da alma. Entre esse estágio e o primeiro mencionado acima, existe espaço
para possibilidades intermediárias: a prática frequente ou constante da Prece
de Jesus pode estabelecer a pessoa num estado interior de “luminosidade”. Mesmo
fechando os olhos, ela tem a impressão de estar penetrada pela irradiação e de
se mover na luz. Isso é mais do que um símbolo; é menos do que uma percepção
sensível, e certamente não é um êxtase; mas já é algo real, embora
indescritível.
Não vamos
entrar aqui na questão Palamita sobre a relação entre a essência de Deus e a
luz divina. Lembraremos apenas que o misticismo oriental sempre foi o
misticismo da luz (como no caso dos Judeus e da Shekina, ou “glória”). “Deus é luz”.
APÊNDICE 2
A
INVOCAÇÃO DO NOME DE JESUS NO OCIDENTE
A Igreja
Romana inclui entre suas festas a do Sagrado Nome de Jesus (que a Igreja
Ortodoxa não tem); desde Pio X essa festa tem sido celebrada no Domingo que cai
entre o dia 1 de Janeiro e a Epifania, ou, se falhar, no dia 2 de Janeiro. A
Missa e o Ofício da festa foram compostos por Bernardino dei Busti (†1500) e
aprovados pelo Papa Sixto IV. Originalmente restrita às casas Franciscanas, a
festa foi expandida para toda a Igreja. O estilo das preces carrega a marca do
período em que foram compostas, e difere bastante do antigo estilo Romano. Não
podemos deixar de nos admirar, porém, da beleza das lições da Escritura e da
Homilia de São Bernardo escolhida para as Matinas.
Os hinos Jesu dulcis memoria e Jesu rex admirabilis, falsamente
atribuídos a São Bernardo, foram extraídos de um jubileus escrito por uma autor desconhecido no século XII. As
litanias do Sagrado Nome de Jesus aprovadas por Sixto IV são de origem
duvidosa; talvez tenham sido compostas por volta do começo do século XV por São
Bernardino de Siena ou São João Capistrano. Essas litanias, como indicam as
invocações – “Jesus, esplendor do Pai”, “Jesus, sol de justiça”, “Jesus, manso
e humilde coração”, “Jesus, amante da castidade” – são devotadas mais aos
atributos do que ao nome de Jesus em si. Podemos compará-las com os akathistos do “Dulcíssimo Jesus” da
Igreja Bizantina.
Sabemos
quanta devoção cerca o monograma IHS. Ele não significa, como se costuma dizer,
Jesus Hominum Salvator, mas
representa simplesmente uma abreviação do nome de Jesus. Os Jesuítas, encimando
com uma cruz a letra H, fizeram desse monograma o emblema de sua Sociedade. Em
1564 o Papa Pio IV aprovou a Fraternidade dos Santos Nomes de Deus e Jesus, que
depois se tornaria a Sociedade do Santo Nome de Jesus, que existe até hoje. Sua
fundação resultou do Concílio de Lyons (1274) que prescreveu uma especial
devoção ao nome de Jesus. A Inglaterra do século XV usava um Saltério de Jesus composto por Richard
Whytford; ele compreendia uma série de petições, cada qual começando pela
tripla repetição d sagrado nome. Esse Saltério
existe até hoje.
O grande promotor
da devoção ao nome de Jesus durante a Idade Média foi São Bernardino de Siena
(1380-1444). Ele recomendou que as pessoas carregassem tabuinhas com a
inscrição IHS, e, substituindo por essas tabuletas as inscrições de Guelfos e
Gibelinos que cobriam os muros das ruas, ele esperava levar um sentido de paz
aos corações dos homens. Essa propaganda mereceu-lhe um ataque do Agostiniano
André Biglia, numa longa dissertação em dois livros escritos em tom de
reprimenda, e outro, também por parte de um Agostiniano, André de Cascia, num
tratado ainda mais violento endereçado ao Papa Martinho V, no qual se lia:
“Este culto destrói a fé na Santíssima Trindade e diminui a dignidade da
humanidade de Cristo; ele deixa de lado o culto da cruz”. Apesar disso, Martinho
V e Eugênio IV declararam que Bernardino estava certo. Mas o humanista Poggio
denunciou o que ele chamou de illa
jesuitas e “a impudência desses homens que, devotados apenas ao nome de
Jesus, estabelecem uma nova heresia”. São João Capistrano, um discípulo de
Bernardino, foi também um fervoroso promotor da devoção ao nome de Jesus. Os
dois santos pertenciam à família religiosa de São Francisco de Assis. Sabemos
que o próprio Francisco sentia um terno amor pelo nome de Jesus. O culto do
Sagrado Nome se tornou uma tradição Franciscana, e é significativo que uma
versão Italiana dos Fioretti, feita
em Trevi em 1458 por um Frade Menor da reforma de Bernardino, contenha um
capítulo adicional sobre o culto prestado por São Francisco ao nome de Jesus.
Mas ao
final foi São Bernardo de Clairvaux, durante o século XII, quem foi o mais
inspirado pelo nome de Jesus. É preciso ler sobretudo seu sermão sobre o Cântico dos Cânticos. Comentando um
verso dos Cânticos, ele compara o
nome de Jesus à unção que é derramada[87],
e desenvolve a ideia de que o nome sagrado traz a luz, alimenta e unge,
exatamente como faz o óleo. “Não foi através da luz desse nome que Deus nos
chamou para sua luz maravilhosa?” (podemos nos lembrar dos Hesiquiastas). “O
nome de Jesus não é apenas luz, mas também alimento”. Este nome castas fovet affectiones, “estima as
castas afeições” – palavras que iluminam com maravilhosa claridade a relação
entre a Prece de Jesus e a amizade humana ou o amor conjugal. Finalmente:
“Escreva o que quiser, não sentirei prazer nisto a menos que possa ler aí o
nome de Jesus. Fale ou argumento como quiser, considerarei vazio e sem graça a
menos que ouça o nome de Jesus. Jesus é mel para a boca, melodia para o ouvido,
um sentido de alegria para o coração. E esse nome é ainda um remédio. Você está
triste? Deixe que Jesus entre em seu coração e que daí ele brote em sua boca.
Você caiu em pecado? Se você invocar o verdadeiro nome de vida, não soprará ele
logo um hálito de vida?”. Estas passagens contêm uma profunda teologia do nome
sagrado.
[1]
Literalmente: “comunidade espiritual de pessoas que vivem em comunhão”.
[2]
João 1: 5.
[3] A
presente tradução não apresenta a maior parte das notas de Kallistos Ware, por
se tratar de questões de extrema erudição que não nos interessam para o
presente. Do mesmo modo, a seção “Leituras Adicionais” foi suprimida, por se
tratar de livros que não são encontrados em português. (N.T.)
[4]
Dor, aflição.
[5]
LXX, Salmo 52: 9.
[6]
Êxodo 23: 21.
[7]
Isaías 30: 27.
[8]
Gênesis 48: 16; Deuteronômio 28: 10; Amós 9: 12.
[9] I
Reis 8: 29.
[10]
Miquéias 4: 5.
[11]
Mateus 1: 21; cf. Lucas 1: 13.
[12]
Filipenses 2: 9-10.
[13]
Atos 4: 12.
[14]
João 16: 23-24.
[15] Pastor de Hermas, Livro III, Sim. IX.
[16]
Ibid.
[17]
Orígenes, Contra Celsum I, 67.
[18]
Ambrósio, De Spiritu Sancto, I, VIII,
96 (PL 16, col. 727D).
[19]
PL 61, col. 741ª.
[20] Carmina IV-V (PL 13, cols. 377-8)
[21] Homilia 2 (PL 67, col. 1047B).
[22] De civitate Dei XVIII, 32 (PL 41, col.
591).
[23] Historiarum adversum paganos libri VII,
15.
[24] Da Encarnação 48 (PG 25, col. 181B)
[25]
PG 46, col. 916A.
[26] Vida de Santo Antônio 63 (PG 26, col.
933A).
[27] Vida de Santo Hilário 22 (PL 23, col.
40A).
[28] Epístola
CXXX, 20 (PL 33, col. 501).
[29]
Salmo 70: 1.
[30] A Escada Santa 27 (PG 88, cols.
1096-1101).
[31]
Podemos aqui lembrar o Antirrhetikos de
Evagro o Pôntico.
[32] Centúria I, 99.
[33]
Todas as citações anteriores: Centúria
II, 85,87, 54,84, 96, 64, 94, 69, 94.
[34]
Apesar de que as instruções nem sempre são claras, parece que o autor do Método considera o controle da
respiração como um exercício preliminar que precede, mais do que acompanha, a
“epiclese de Jesus Cristo”. Esta começa apenas depois que o discípulo, com o
uso da técnica psicossomática, encontra o “lugar do coração”. No tratado Da Guarda do Coração, de Nicéforo, a
técnica respiratória também é vista como um exercício preliminar antes de
começar a Prece de Jesus. Mas em Gregório Sinaíta e Calixto e Inácio
Xanthopouloi, o controle da respiração acompanha a recitação da Prece.
[35]
Cf. Gálatas 2: 20.
[36]
CF. I Coríntios 12: 3.
[37]
Sua alcunha de Kapsokalyvia significa “o que queima as celas”.
[38]
Cânticos 5: 8.
[39]
Mateus 9: 27.
[40]
Lucas 18: 13.
[41]
Mateus 26: 63.
[42]
Lucas 18: 13.
[43]
Êxodo 25: 17-22. Cf. Hebreus 9: 5.
[45]
Esta frase requer um comentário cuidadoso: esse esforço de uma descida lenta e
calma, que conduz o intelecto a se estabelecer no coração, é uma experiência
perfeitamente real, mas que é inútil tentar descrever por escrito.
[46]
Tessalonicenses 5: 17.
[47] “Deificação”
deve ser entendida aqui no sentido dos Padres Gregos, como a participação e a
união, mas não como a identidade de natureza. Os seres criados e incriados
permanecerão sempre distintos no que se refere à sua essência.
[48]
Cânticos 5: 2.
[49]
Cf. I Coríntios 12: 3.
[50] I
Reis 19: 11-12.
[51]
Cânticos 5: 2.
[52]
Cf. Mateus 9: 21; Gênesis 32: 26.
[53]
Cânticos 1: 3-4.
[54]
Marcos 5: 9.
[55]
Cf. Lucas 24: 41-42.
[56]
Cânticos 8: 6.
[57]
Efésios 1: 23.
[58]
Romanos 8: 22.
[59]
Lucas 19: 40.
[60]
Lucas 12: 6.
[61]
Marcos 1: 13.
[62]
Marcos 16: 12.
[63]
João 20: 28.
[64]
Gênesis 33: 10.
[65]
João 4: 23.
[66]
João 11: 25.
[67]
Apocalipse 22: 4.
[68]
Lucas 1: 31.
[69]
João 6: 34.
[70] I
Coríntios 10: 17.
[71] I
Coríntios 11: 26.
[72] I
Pedro 1: 8.
[73]
Apocalipse 22: 20.
[74]
Atos 19: 17.
[75]
Salmo 55: 6.
[76]
Cânticos 2: 12.
[77]
Romanos 8: 26.
[78]
Gálatas 4: 6.
[79]
João 1: 1.
[80]
Lucas 3: 22.
[81] João
3: 34.
[82]
Efésios 1: 10.
[83]
Lucas 12: 49.
[84]
Salmo 119: 132.
[85]
Atos 9:15.
[86]
Sobre os Nomes Divinos IV, 9.
[87]
Cânticos 1: 3.
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