terça-feira, 2 de julho de 2019

São João Crisóstomo - Tratado do Sacerdócio - Livro Quarto




1.      Depois de um instante de reflexão, Basílio respondeu ao discurso que acabara de escutar: “Se você tivesse desejado o sacerdócio e feito qualquer gestão para obtê-lo, seus temores seriam fundamentados. Ao buscar um posto declaramos ser capazes de preenche-lo, e não podemos atribuir à ignorância as faltas cometidas em sua administração. Desde logo ficamos privados dessa defesa pela pressa ávida com que nos atiramos sobre um emprego para obtê-lo. Chegamos a ele voluntariamente e com plena consciência, e não podemos mais dizer que cometemos tal ou qual falta malgrado nosso empenho, contra minha vontade que perdi tal ou qual alma. O juiz a quem iremos prestar contas responderá: Qual! Você conhecia sua incapacidade, sabia que sua inteligência não estava à altura dessa função, nem era suficiente para administrá-la sem cometer falhas, e você foi audacioso o bastante para correr a receber o encargo, um encargo tão desproporcional às suas forças? Quem o forçou? Que violência foi exercida contra você, para constrange-lo a sofrer esse jugo, apesar de sua resistência e de sua fuga? Mas você jamais escutará semelhantes desaprovações: sua consciência está perfeitamente tranquila a esse respeito; todo mundo sabe muito bem que a ambição pelo cargo não entrou na sua eleição, e que ela se deu apenas pela justiça dos eleitores: sendo assim, a mesma coisa que tira de outros quaisquer desculpas, no seu caso é precisamente o que o absolve”.

Eu acolhi suas palavras sacudindo levemente a cabeça e sorrindo; admirei a candura inocente de meu amigo. Então lhe disse: “Bem que eu gostaria que as coisas fossem como você diz, ó melhor dos meus amigos! Não por não ter me sujeitado a aceitar aquilo que recusei; pois, mesmo supondo que eu não tivesse que temer o castigo que ameaça o pastor negligente e incapaz do rebanho de Cristo, sempre eu traria em mim, no fundo de minha consciência, o mais insuportável dos castigos, o remorso de me achar indigno de tão augustas funções, ao próprio juízo daquele que as confiou a mim. Por que gostaria eu que sua opinião não fosse falsa? No interesse de tantos infelizes (essa é a qualificação que lhes convém, mesmo que você repita mil vezes que eles foram violentados e que pecaram sem o saber), tantos infelizes, digo eu, que ocupam postos cujas obrigações não podem cumprir, no interesse deles eu queria que sua opinião fosse verdadeira, a fim de que esses homens evitassem o fogo eterno, as trevas exteriores, o verme imortal e as cruéis separações que existirão entre os eleitos e os condenados”.

“Mas o que quer você que eu lhe diga? É um erro, incontestavelmente. Para prová-lo, posso começar me apoiando num argumento extraído do poder real, que aos olhos de Deus é bem menor do que a dignidade sacerdotal. O filho de Cis, Saul, não deveu sua coroa às intrigas. Ele tinha ido à procura de suas jumentas, quando encontrou o Profeta, a quem interrogou para saber aonde elas tinham ido; e foi Samuel quem lhe falou da realeza. Ainda que desse crédito às palavras do Profeta, Saul não demonstrou nenhuma pressa; ao contrário, ele se esquivou, e recusou: ‘Quem sou eu, disse ele, e qual é a casa de meu pai?[1]’. Tornando-se rei, Saul não fez bom uso do poder que lhe havia sido imposto; a resistência que mostrara, as palavras que mencionei, defenderam-no da cólera do Senhor, que o havia feito rei? Ele poderia responder às reprimendas que lhe fez o Profeta: ‘Terei eu corrido atrás da realeza? Fui eu que me coloquei no trono? Eu desejava viver a vida de um simples cidadão, vida de paz e de lazer, e você me obrigou a aceitar essa dignidade; se você me tivesse deixado na obscuridade, eu teria facilmente evitado essa pedra de tropeço; homem do povo, ignorado em suas fileiras, certamente eu não teria sido enviado a essa expedição; Deus não teria me ordenado ir contra os Amalecitas, e, se ele não me tivesse ordenado, eu não teria cometido a falha de que me acusam!’”.

“Mas tais escusas são vãs; e não apenas vãs, como perigosas: pois elas excitam primeiramente o fogo da cólera divina. Aquele que foi elevado a uma dignidade superior ao seu mérito, longe de alegar a magnitude de seu cargo para atenuar suas faltas, deve fazer com que sirvam para seu avanço no bem as atenções benevolentes da divina Providência a seu respeito. Pretender que a altura do posto ao qual fomos elevados nos dá o direito de falhar equivale a querer fazer da bondade de Deus a responsável por nossas faltas, como costumam fazer os ímpios e os preguiçosos que, por assim dizer, deixam suas vidas correr ao azar; sacrílega demência na qual devemos evitar cairmos, trabalhando de toda maneira para a obra de Deus, e conservando nossa língua e nosso coração puros de toda blasfêmia.”

“Depois desse exemplo emprestado à realeza, passo a outro mais apropriado ao nosso tema. O grande sacerdote Eli tampouco ambicionara o soberano sacrifício. De que lhe serviria, uma vez que havia pecado? Que digo eu – ambicionado? Ele sequer foi livre para recusá-lo, a lei o constrangeu a aceitar, porque ele era da tribo de Levi, e somente ele possuía o direito de nascença de ocupar essa dignidade hereditária de sua raça. Isso não o impediu de pagar pelas desordens de seus filhos com uma expiação terrível”.

“Antes dele, Aarão, o primeiro grande sacerdote dos Judeus, tantas vezes objeto das conversas familiares que Deus se dignava ter com Moisés, se tornou culpado por não ter resistido com força suficiente ao povo furioso. Poderia ele fazê-lo sozinho? Não lhe teria acontecido menos, se seu irmão não tivesse conseguido diminuir a cólera de Deus com suas preces. E, como falei de Moisés, não faria melhor do que tirar de sua vida um exemplo em favor da verdade que sustento. Longe de demonstrar pressa para se colocar à frente do povo hebreu, Moisés, esse santo personagem, chegou a recusar obedecer a Deus, que lhe ordenava adotar essa conduta, a ponto de provocar Sua cólera. Mais tarde, mesmo depois de ter se tornado chefe do povo de Deus, ele voluntariamente se ofereceu à morte para se ver desembaraçado de sua carga: ‘Deixa-me morrer, disse ele a Deus, se é para me tratar assim![2]’. Mais tarde, quando ele pecou por ocasião das águas da rocha[3], a perseverante recusa que fizera a respeito do soberano poder, serviu-lhe ela para obter Sua graça? Não foi esse o único motivo pelo qual ele não pode desfrutar da entrada na terra prometida? Todo mundo sabe que essa exclusão foi a pena pelo pecado de que falamos; não precisou de mais, para que esse homem de tantos milagres fosse privado de uma recompensa concedida a homens que estavam abaixo dele. Depois de uma infinidade de fadigas e trabalhos, depois de haver errado por tanto tempo no deserto, esse grande homem, marcado por tantos combates e vitórias, morreu sem poder pôr os pés na terra pela qual enfrentara tantos perigos. E aquele que escapara à fúria do mar não teve a felicidade de repousar no porto”.

“Assim, como você vê, quer se obtenham as dignidades pela disputa, quer pelos cuidados de outrem, não resta desculpa alguma para as faltas daqueles que se conduzem mal. Com efeito, se homens que tantas vezes as recusaram, resistindo ao chamado do próprio Deus, foram tão severamente punidos, se nada pôde isentar do castigo nem um Aarão, nem um Eli, nem mesmo esse admirável e santo profeta, Moisés, o mais manso dos homens que existiram sobre a terra, a quem Deus falava com a familiaridade de um amigo: como pretende você que a nós baste, para nos justificarmos, nós que estamos tão longe de suas virtudes, alegar que nada fizemos pela nossa elevação? Ainda mais quando a maior parte das eleições de hoje se faz, não pela graça e a vocação de Deus, mas pelas intrigas dos homens”.

“Tendo Deus escolhido Judas, assinalou a ele um lugar no colégio apostólico, conferindo-lhe a mesma dignidade dos demais apóstolos, e inclusive concedendo a ele um sinal de confiança especial, entregando-lhe o cuidado com o dinheiro[4]. Pois bem! Depois que ele abusou dessa dupla honraria, traindo Aquele cuja divindade deveria proclamar, dissipando indignamente os fundos depositados em suas mãos para usos mais nobres, evitou Judas a punição que ele tanto merecia? Ao contrário, seu castigo foi mais rigoroso do que se Deus o tivesse favorecido menos. Pois não nos é permitido abusar dos dons de Deus para ofendê-lo; mas devemos valorizá-los, para agradá-lo”.

“Aquele que pretende evitar a pena que lhe é devida, por ter sido colocado num posto elevado, raciocina mais ou menos como o teriam feito os Judeus infiéis, de quem Jesus Cristo disse: ‘Se eu não tivesse vindo e não tivesse falado, eles não seriam considerados culpados; e se eu não tivesse operado milagres entre eles, que ninguém fez antes, eles não teriam pecado[5]’. A essas palavras do Salvador, do Benfeitor do gênero humano, quem os impediria de responder: por que veio você? Por que falou você? Por que fez milagres? Foi para ter oportunidade para nos castigar mais severamente?”.

“Mas essa linguagem teria sido a do furor e da perdição. O Médico celeste não veio para fazê-los morrer, mas para curá-los; ele não podia abandoná-los ao seu mal, mas desejava libertá-los inteiramente dele; foram vocês que se privaram voluntariamente dos seus cuidados; assim, sejam vocês punidos com maior severidade. Quando se submeteram aos Seus mandamentos vocês se curaram de suas enfermidades antigas; mas ao fugir, quando Ele se apresentou, vocês se tornaram impotentes para recuperar a saúde; duplamente culpados por sua teimosia, primeiro por prejudicarem a si próprios, depois por desdenhar dos cuidados do médico. Depois de tê-los coberto de benesses Deus não os tratará da mesma maneira como se não tivessem recebido Dele favor algum; Ele os tratará com muito mais rigor. Se os benefícios não os tornarem melhores, eles os tornarão culpados, e passíveis de um castigo mais severo. Assim, o modo de justificação que você me indicou resulta ser sem valor; não apenas não salvaria, como exporia a uma perda mais completa aqueles que lançassem mão dele. É preciso que busquemos um asilo mais seguro”.

Basílio respondeu-me: “Onde poderemos encontrá-lo? Já não sei onde estou, tanto temor me inspira o que você acabou de falar”.

Eu disse: “Pela graça, meu amigo, eu lhe conjuro, não se desencoraje. Nós temos esse asilo; para os fracos, como eu, ele consiste em não se arriscar; para os fortes, como você, a colocar a esperança da salvação no cuidado de nada fazer, com a graça de Deus, que seja indigno de seu cargo, nem Daquele que lho confiou. Certamente os grandes suplícios não têm nada que seja severo demais para aqueles que, depois de obter, à força de disputas, as dignidades do santuário, nele se comportam com indolência, ou com escândalo, ou com incapacidade; mas daí não se segue que não haja esperança de perdão para os que nada disputaram; não, quanto a esses, nada terão que dizer para se escusar. Mesmo exigidos, pressionados por milhares de vozes e votos, eles nada levarão em conta; o que é necessário, acima de tudo, é examinar a si mesmo, jamais ceder às obsessões diante desse olhar que perscruta até o fundo da alma. Ninguém se põe a construir uma casa, se não for arquiteto; ou a curar as moléstias, se não for médico. Por numerosos que sejam os que querem obrigá-lo, é preciso recusar e não enrubescer por confessar ignorância; e quando se trata de tomar como encargo um enorme número de almas, não será necessário nos interrogarmos para saber se somos capazes? E, não obstante a mais completa incapacidade, há quem aceite o santo ministério por complacência com fulano, ou porque cicrano o exige, ou por medo de ofender beltrano! Não equivale isso a correr junto com eles para uma perda certa? Ao invés de nos salvar-nos sozinhos, danamo-nos, a nós e aos outros. De que lado esperar a salvação? Como obter o perdão? Quem serão nossos intercessores? Talvez esses temerários que usaram de violência e que arrastaram o infortúnio a um perigoso extremo? Mas quem os poderá salvar, quando eles mesmos precisarem do auxílios de outros, se quiserem evitar o fogo do inferno?”.

2.      Quando falo assim não é com a intenção de assustar, mas de mostrar a verdade nua. Escute o que disse o apóstolo São Paulo a seu discípulo Timóteo, seu verdadeiro e caro filho: ‘Não se apresse a impor as mãos sobre ninguém, para não participar dos pecados de outrem[6]’. Veja, eu já não digo de que vergonha, mas de que castigo eu salvei, na medida em que pude, aqueles que desejavam minha promoção? Como não bastaria ao eleito dizer que não solicitou ser elevado, eu não fugi, porque não imaginei que pensassem em mim; da mesma forma, seria uma escusa vã para o eleitor dizer que não conhecia aquele a quem iria conceder seu voto. Essa pretensa justificação não faz mais do que agravar o erro. Qual! Não se adquire um escravo sem antes consultar os médicos, sem pedir garantias, sem tomar informações dos seus vizinhos; não contentes com isso, ainda se exige um tempo para testá-lo; mas quando se trata de escolher o sacerdote de Jesus Cristo, sem tomar tantos cuidados, toma-se o primeiro que aparece, desde que essa escolha seja do gosto desse ou daquele eleitor, instrumento dócil do favor ou do desfavor de um terceiro! Mas isso é absurdo. Sendo assim, quem implorará por nós a clemência divina, quando os mesmos que deveriam ser nossos defensores necessitam quem os defenda?”.

“É dever do eleitor dedicar-se a um exame aprofundado, e também é dever do candidato; pois ainda que os que o elegem devam carregar junto com ele a pena pelos seus pecados, isso não significará impunidade para ele. Ele deverá mesmo receber a maior parte do castigo, a menos que os eleitores não tenham agido por um motivo puramente humano, e contra todas as luzes e as inspirações de suas consciências. Se eles estiverem conscientes do crime que constitui terem introduzido no santuário, por motivos quaisquer, uma pessoa notoriamente indigna aos seus olhos, o mesmo castigo estará reservado a todos, e talvez maior àqueles que concederam as ordens. Que responsabilidade recairá sobre a cabeça do temerário que concede ao inimigo de Cristo o poder de devastar Sua Igreja! Pois, se o eleitor não é culpado nesse ponto, se ele diz ter sido enganado pela opinião pública, isso não bastará para absolve-lo inteiramente, mas ele será menos punido do que o eleito. Por que? Porque os eleitores podem ser enganados pela opinião pública ao dar seus votos. Mas ao eleito não será admitido dizer que não conhecia a si próprio, do mesmo modo como não era conhecido pelos demais”.

“Assim como ele deverá ser punido mais severamente do que os que o elegeram, ele deve também examinar a si mesmo e se testar com mais cuidado do que todos os demais. E, se as pessoas que não o conhecem bem quiserem constrange-lo a aceitar, ele deve procurá-los, declarar a eles seus defeitos, tirá-los do erro e se recusar absolutamente a receber sobre suas espáduas um fardo que não será capaz de suportar. Pois quando se trata da arte militar, do comércio, da agricultura ou de qualquer outra profissão da vida civil – por que jamais vemos um agricultor se meter a empreender uma viagem por mar, ou um soldado abrir uma empresa, ou um piloto conduzir uma expedição militar, ainda que se tente constrange-los sob pena de morte? É porque eles preveem perigo ao qual que sua incapacidade os exporia. Para interesses tão mínimos, quanta prudência! Nenhuma violência os faria ceder. Mas quando se trata do suplício eterno que ameaça os dispensadores infiéis dos dons sublimes do sacerdócio, já não se tem senão indiferença em face de tão grande perigo, e a ele se expõem as pessoas com o coração alegre, baseando-se no pretexto de que não houve constrangimento. O soberano juiz não admitirá semelhante escusa. É nosso dever dedicar mais precauções e cuidados aos interesses do espírito do que àqueles da carne. Ora, isso é exatamente o contrário do que fazemos. Você deseja construir um edifício e imagina que será um arquiteto hábil alguém que não entende nada de arquitetura; você o chama, ele vem e começa a trabalhar; mas assim que ele coloca a mão nos materiais preparados para a construção, ele estraga tudo: as madeiras, as pedras; em resumo, ele constrói tão mal o edifício, que ele não pode deixar de ruir em pouco tempo; bastará em sua defesa ele dizer que foi constrangido a fazê-lo, que ele não se apresentou de sua própria vontade? Absolutamente, responderão a razão e a justiça. Ele deveria, apesar de todas as solicitações, declinar da empresa. Mas, como! Um homem que tenha estragado as madeiras e as pedras não encontrará uma desculpa válida para escapar ao castigo; e aquele que perde as almas, que coloca tanta negligência em edificá-las, a esse bastará, para evitar o castigo, dizer que foi constrangido? Que não se fie nisso! Estará grosseiramente enganado.

“Ainda não é hora de demonstrar que ninguém pode violentar alguém que está determinado a recusar. Concordo, por um momento, que alguém tenha sido realmente constrangido; que com ele foram usadas tantas astúcias, que ele foi obrigado a se submeter: você pensa que por causa disso ele evitará a punição? Desiluda-se, e não finjamos ignorar aquilo que até as crianças sabem. No dia em que todas as contas forem prestadas, essa pretenda ignorância não servirá para nada. Você não fez nenhum esforço para ser promovido ao santo ministério, por conhecer sua própria fraqueza: muito bem! Seria então necessário perseverar nessas sábias disposições e não aceitá-lo, apesar de todas as solicitações. Qual! Você não tinha nem talento, nem virtude, tanto que ninguém pensava em você, mas assim que alguém disse: “suba”, você se tornou subitamente um outro homem! Isso não passa de uma gaiatice, até mesmo de loucura, para a qual nenhum suplício será severo demais. Não disse nosso Senhor: ‘quem deseja construir uma torre não deve iniciar as fundações sem antes haver calculado suas forças, se não quiser se tornar motivo de riso dos demais[7]’? E nesse caso, todo o risco que se corre é o de suportar algumas zombarias; aqui, trata-se de uma punição bem diferente, do fogo eterno, do verme que não morre, do ranger de dentes, das trevas exteriores, da separação dos bons, de um lugar no inferno entre os hipócritas”.

“Eis o que não querem ver aqueles que me acusam. De outro modo, eles não me apontariam como crime o fato de não ter corrido apressadamente para minha própria perda. Não se trata aqui de cultivar o trigo ou a cevada, de apascentar bois ou ovelhas, nem de cuidar de alguma mercadoria semelhante; trata-se do próprio corpo de Cristo. Pois, segundo São Paulo, a Igreja é o próprio corpo de Jesus Cristo. Convém assim que aquele a quem esse corpo foi confiado, trabalhe para mantê-lo em perfeita saúde e numa beleza irrepreensível, como lhe convém; que, por meio de uma supervisão ativa, ele o preserve das manchas, das rugas, em suma, de todo de defeito que possa alterar sua forma e brilho; não deve ele, de fato, na medida em que o permita a natureza humana, mostrá-lo digno do divino chefe, do chefe imortal e bem-aventurado que o domina? Se os que desejam estar prontos para os combates dos atletas precisam de médicos, de instrutores, de um regime minuciosamente observado, de exercícios contínuos e de mil outros cuidados, como aqueles que são escolhidos para governar o corpo de Jesus Cristo, cujo exercício não é corporal, mas espiritual, consistindo em combater os poderes invisíveis, poderão conservar-lhe a saúde e o vigor, se não possuírem todos os métodos necessários para tratá-lo de suas enfermidades, e se não estiverem dotados de uma virtude sobre-humana?”.

3.      “Não sabe você que o corpo místico está sujeito a mais enfermidades e acidentes do que nosso corpo material, que ele se altera mais depressa e se cura com mais dificuldade? Ora, aqueles que tratam dos nossos corpos inventaram uma grande variedade de remédios, toda espécie de instrumentos e aparelhos, bem como alimentos apropriados a cada espécie de doenças: algumas vezes basta uma simples mudança de ares, ou o sono adequado, bastam para curar a doença e tirar o médico do embaraço. O tratamento das doenças espirituais não tem os mesmos recursos. Além de um bom exemplo, o ministério sacerdotal não conhece outro método para curar, senão a predicação. Somente a palavra lhe serve de instrumento, de alimento e de ar salubre. A palavra é o remédio que ele administra, a palavra é o fogo de que se serve para cauterizar, a palavra é o ferro com o qual ele corta: ele não tem outras coisas à sua disposição; se a palavra for impotente, o sacerdote chegou ao fim dos seus recursos. Pela palavra levantamos a alma abatida, devolvemos ao seu estado natural aquela que está inchada, afastamos as superficialidades, preenchemos as faltas; em resumo, é por meio dela que fazemos todas as operações que podem ser úteis à saúde da alma”.

“Nos que se refere ao bom regramento da vida, o exemplo dos outros pode estimular nossa emulação e nos levar a imitá-los; mas quando se trata de curar uma alma imbuída de uma má doutrina, o emprego da palavra é indispensável, não apenas para confirmar aqueles que pensam como nós, como para combater nossos adversários. Se estivéssemos armados com a espada do espírito e o escudo da fé até o ponto de fazermos milagres e fecharmos a boca dos incrédulos à custa de prodígios, poderíamos passar sem o auxílio da eloquência; mas eu me engano, pois ela será sempre útil e necessária. O apóstolo Paulo fazia uso dela, embora o brilho de seus milagres ofuscasse todos os olhares. Outro membro desse mesmo colégio dos apóstolos nos exorta a não negligenciar o poder da palavra: ‘Estejais prontos, disse ele, a responder a quem quer que vos peça contas da esperança que há em vós[8]’. Santo Estevão e os demais diáconos não foram colocados a serviço das viúvas, senão para deixar aos apóstolos tempo para se dedicar ao ministério da palavra. Todavia, o dom da palavra nos seria menos indispensável se tivéssemos o dom dos milagres. Mas como não restou entre nós nenhum vestígio desse último poder, e como numerosos inimigos não cessam de nos ameaçar de todos os lados, é preciso necessariamente que estejamos armados com a espada da palavra, tanto para repelir seus ataques, como para feri-los por nossa vez”.

4.      “É por isso que devemos cuidar para que a palavra de Jesus Cristo habite em nós com abundância[9]; porque devemos nos manter prontos para todas as sortes de combates; estamos diante de inimigos diversos, numerosos, que não se servem das mesmas armas nem seguem o mesmo plano de ataque. É preciso assim que aquele que deseja enfrentá-los conheça seus diferentes modos de combate, que saiba manejar igualmente o arco e a funda, que seja ao mesmo tempo infante e cavaleiro, soldado e capitão, pronto para os combates no mar e para os ataques aos postos terrestres. Nos combates normais, basta, para sustentar o choque com os inimigos, que cada um se mantenha em seu posto; naqueles aos quais nos referimos, é preciso conhecer a fundo cada uma das peculiaridades da arte do ataque e da defesa. Se houver um único local mal guardado, o inimigo saberá descobri-lo e introduzir no capril seus demônios devastadores para roubar as ovelhas; mas ele não tentará isso, se perceber que terá que enfrentar um pastor vigilante, que está a par de suas manobras artificiosas”.

“É preciso que estejamos munidos de todos os lados. Uma cidade cercada inteiramente por boas muralhas, ri dos esforços dos assaltantes e vive em segurança; mas basta que uma brecha seja aberta na muralha, da largura de uma porta, e todo o restante do cercamento já de nada serve, ainda que esteja em bom estado. O mesmo acontece com a cidade de Deus. Enquanto a solicitude e a prudência do pastor lhe servem de muralha e cercamento, as tentativas do inimigo se voltam contra ele, e ninguém está em perigo na cidade; mas, por menor que seja feita uma abertura ali, a queda de uma só parte arrasta consigo rapidamente a ruína de tudo”.

“Com efeito, de que serviria derrotar os Gentios, se os Judeus saqueassem o lugar? Ou triunfar sobre Gentios e Judeus, se os Maniqueus o entregassem à pilhagem? Qual o ganho em ter vencido os Maniqueus, se os fatalistas viessem degolar carneiros em plena Igreja? Mas de que serve apresentar aqui um catálogo completo das heresias inventadas pelo Diabo, das quais basta uma, se o pastor não souber repelir a todas, para lançar o rebanho inteiro na goela do lobo? Na guerra, é preciso estar presente no campo de batalha para vencer ou sucumbir; aqui, acontece com frequência que um combate entre dois lados acaba por dar a vitória a um terceiro que não havia aparecido no começo da ação, e que, por ser estranho à disputa, permanecera calmamente sentado em sua tenda. Ou bem, por ter negligenciado em se exercitar previamente, nos ferimos com nossas próprias armas, tornando-nos o riso de amigos e inimigos. Vou esclarecer meu pensamento por meio de um exemplo: os seguidores da loucura de Valentim e Marcion, além de outros doentes cuja moléstia é da mesma espécie, separa do cânone das divinas Escrituras a lei dada a Moisés pelo Senhor; por outro lado, os Judeus têm tão grande respeito por essa lei, que hoje, malgrado sua ab-rogação, eles ainda sustentam que se deve guardar todos os seus preceitos, ainda que contra os mandamentos do próprio Senhor; mas a Igreja de Deus, evitando ambos os excessos, tomou o caminho do meio: a Igreja não pensa que se deva carregar o jugo dessa lei, mas não tolera que a maldiga. Ela ainda a elogia, ainda que tenha sido suprimida, porque se trata de uma lei que foi útil durante o tempo em que esteve em vigor”.

“Para combater inimigos tão opostos entre si, é preciso manter um temperamento justo; pois, se ao querer ensinar aos Judeus que não é mais tempo de praticar as cerimônias dessa antiga lei, começamos a criticá-la sem reservas, daremos motivos aos heréticos que a rejeitam por completo; mas, se fecharmos a boca desses, como se ainda fosse preciso observá-la nos tempos atuais, abrimos o caminho para as declamações dos Judeus. Excessos contrários foram postos fora da verdadeira lei, tanto os maníacos sectários de Sabélio, como os Ários furiosos. Uns e outros utilizam o nome de cristãos; mas quando examinamos o fundo de suas doutrinas temos a convicção de que, ponto por ponto, os primeiros não valem mais do que os Judeus, e que os segundos se aproximam da heresia de Paulo de Samosate; e que, aliás, ambos se encontram igualmente longe da verdade”.

“Corremos grande perigo nos encontros com esses hereges, e caminhamos por uma via apertada, escarpada de ambos os lados com precipícios. Devemos temer que, pretendendo atingir um desses adversários, descobrimos nosso flanco ao outro. Com efeito, se dizemos que a divindade é una, logo Sabélio explora a proposição em proveito de sua louca impiedade; por outro lado, se a distinguimos e dizemos que um é o Pai, outro o Filho e outro o Espírito Santo, eis que Ários deduz, da diferença entre as pessoas, pela diversidade da essência. É preciso rejeitar igualmente a ímpia confusão de um e a divisão não menos sacrílega do outro; evitamos esses dois escolhos confessando que a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma, e reconhecendo as três Pessoas ou Hipóstases; é assim que podemos construir uma muralha contra o duplo ataque dos nossos inimigos. Eu poderia ainda assinalar muitos outros encontros, onde precisamos unir o ardor da coragem à precisão das manobras, sob pena de nos retirarmos cobertos de ferimentos”.

5.      “Quanto não teríamos nós a dizer das contendas e das disputas que se levantam entre os fiéis? Não menores do que os ataques vindos de fora, eles dão ainda mais trabalho àquele que ensina. Uns, levados pelo excesso de curiosidade, se ocupam, sem razão e por pura fantasia, de questões impossíveis de resolver, e cuja solução não conduz a nada de útil. Outros pedem contas a Deus de seus julgamentos; eles tentam medir o abismo sem fundo de seus conselhos: ‘Vossos julgamentos, diz o Profeta, são um abismo infinito[10]’. Poucos são os que se aplicam em conhecer os dogmas da fé e a regra dos costumes: muitos perdem seu tempo estudando aquilo que jamais conhecerão, e cujo estudo, por si só, já é uma ofensa a Deus. Pretender penetrar absolutamente naquilo que Deus nos proibiu saber, constitui um esforço inútil (quem seria capaz de violentar a Deus?), esforços culpáveis e perigosos. E, no entanto, se lançarmos mão da autoridade para reprimir esses pesquisadores de coisas inencontráveis, atrairemos a reputação de orgulhosos e de ignorantes. Esse é mais um ponto que exige do bispo uma grande prudência, tanto para afastar os espíritos de questões ociosas e absurdas, como para evitar acusações embaraçosas. Contra tantas dificuldades, a única arma que ele possui é a palavra, nada além da palavra. Se ele for desprovido de palavras, as almas, cujo governo lhe foi confiado, e em especial as almas fracas e exaustas pelo excesso de curiosidade, ficarão numa agitação contínua, como um navio batido pela tempestade: o que não deve então fazer um sacerdote para adquirir o talento com as palavras?”.

6.      Basílio disse: “Então, por que o apóstolo Paulo não se preocupou em adquiri-lo? Pois ele não se envergonhava de sua pobreza em matéria de eloquência; mas ele confessava abertamente sua ignorância, ao escrever aos Coríntios, admirados com seu excelente modo de falar, do qual gostavam tanto”.

Eu respondi: “É precisamente essa passagem que você alude que enganou a muitos, e os tornou negligentes no estudo da verdadeira doutrina. Na falta de ir ao fundo do pensamento do Apóstolo, e de compreender o sentido de suas palavras, eles passaram toda a vida na sonolência e na preguiça, seguidores fiéis da ignorância, não daquela confessada por São Paulo, mas de outra, da qual ele estava mais afastado do que de tudo nesse mundo. Mas reservarei esse ponto para mais tarde, e, para o momento, suponhamos que o Apóstolo tenha ignorado a arte de falar, como se pretende, e nesse caso o que podemos concluir dos homens de nosso tempo? Ele possuía um poder bem superior à eloquência, e capaz de produzir grandes efeitos; pois sua simples presença e figura, sem que sequer precisasse abrir a boca, bastavam para fazer tremer os demônios. Se todos os homens de hoje se pusessem a orar e chorar, eles não poderiam tanto quanto o podiam as simples vestes de São Paulo. Paulo ressuscitava os mortos com suas orações; ele operava tantos prodígios, que era visto como um Deus pelos infiéis. Ainda que revestido de um corpo mortal, ele foi considerado digno de ser arrebatado ao terceiro céu, e de ouvir coisas que o ouvido humano não é capaz sequer de escutar. Mas os homens de nossos dias... Eu paro por aqui, para não dizer nada que seja demasiado severo. Minha vontade não é de insultá-los; eu apenas me espanto de que eles não enrubesçam de se comparar àquele grande homem”.

“Com efeito, se considerarmos, não mais os prodígios, mas a vida do bem-aventurado Apóstolo, e sua conduta angélica, nós os veremos ainda mais triunfante por suas virtudes do que pelos seus milagres. Quem poderia representar a vivacidade de seu zelo, sua doçura, os constantes perigos, sua incessante solicitude, sua ansiedade constante pela salvação de todas as Igrejas; sua compaixão para com os que sofrem, suas tribulações; as perseguições renovadas sem cessar, suas mortes todos os dias? Qual lugar da terra habitada, qual continente, qual mar, não conheceram os combates desse justo? O próprio deserto o viu mais de uma vez, quando lhe ofereceu abrigo contra o perigo. Não há embustes a que ele não tenha sido exposto, mas também não há vitória que ele não tenha obtido. Sempre combater, sempre vencer, essa foi sua vida”.

“Mas estarei eu sendo suficientemente respeitoso com esse grande homem, ao ousar fazer seu elogio? Não estão seus grandes atos acima de todos os discursos, e tão acima dos meus quanto estão acima de mim os grandes oradores? Entretanto, persuadido de que o bem-aventurado Apóstolo teria mais atenção à intenção do que ao sucesso, não me deterei sem que fale de um ato que ultrapassa a tudo o que eu disse, tanto quanto São Paulo ultrapassa a todos os mortais. Que ato é esse? É que, depois de tão belas ações, e depois de ter merecido uma infinidade de coroas, ele aceitou ir ao inferno, a ser entregue a um suplício eterno para salvar e entregar a Jesus Cristo esses Judeus, que tantas vezes o lapidaram, e que o teriam morto se pudessem. Alguém mais amou Jesus Cristo a esse ponto, se é que podemos chamar de amor a esse sentimento que necessitaria de um termo ainda mais expressivo?”.

“Podemos nos comparar ainda com tal homem, depois da imensa graça que ele recebeu do alto, e da enorme virtude que ele extraiu do fundo de si mesmo? Isso seria o cúmulo da presunção e da temeridade. Mas era ele tão ignorante quanto pretendia? Absolutamente, como veremos. Chamamos de ignorante, não a quem não é versado nos prestígios da eloquência profana, mas a quem não sabe combater pela defesa dos dogmas e da verdade; e nisso temos razão. Ora, Paulo não se declarou ignorante sob o primeiro e o segundo aspecto, mas apenas sob o primeiro. Ele próprio o afirmou, e fez expressamente essa distinção, ao dizer que ele era ignorante na arte da palavra, mas não na doutrina[11]. É bem verdade que, se ao ministro da santa palavra, eu pedisse a polidez de Isócrates, a veemência de Demóstenes, a majestade de Tucídites, a sublimidade de Platão, poder-se-ia opor a isso a passagem de São Paulo mencionada acima, mas eu inocento de tudo isso o pregador do Evangelho; para mim são coisas supérfluas todas essas disposições oratórias dos profanos; que me importam toda a harmonia dos períodos e as elegâncias das declamações? Que seja pobre, se quiser, pela dicção, que seja simples e sem arte no arranjo das palavras, desde que seja rico em ciência e que possua a arte de jamais falhar na regra dos dogmas; mas não permitirei que se chegue, para desculpar sua própria negligência e preguiça, arrebatar de São Paulo a mais ilustre de suas vantagens, e seu principal título a merecer a admiração geral”.

7.      De que modo confundiu ele os Judeus de Damasco[12], antes de ter começado a fazer milagres? Como arrasou ele os Judeus helenistas?  Por que foi ele enviado a Tarso[13], senão porque com a força irresistível de sua palavra ele vencera todos os seus adversários, e os pressionou de tal maneira que, não podendo suportar a derrota, eles se exasperaram a ponto de jurá-lo de morte? Pois, repito, nesse momento ele ainda não havia feito milagres. Não podemos assim dizer que, admirando-o a multidão como taumaturgo, tenham sido arrasados seus adversários pela imposição de seu renome. Ele até então não tinha outro poder do que a força de suas palavras. De que armas se serviu ele em Antioquia para combater os judaizantes[14]? Não foi somente por sua eloquência que em Atenas, a cidade mais supersticiosa do mundo, ele conquistou o Areopagita e sua esposa? Que encanto maravilhoso não possuía ele ao falar, pois passava-se a noite a ouvi-lo, como atesta Eutíquio que caiu da janela? Em Tessalônica, em Corinto, em Éfeso, em Roma, que fez ele? Ele pregou por dias inteiros, e por noites inteiras, explicando as Escrituras, discutindo com epicuristas e estoicos. Eu não terminaria nunca, se fosse mencionar todas as ocasiões em que ele mostrou seu talento pela palavra”.

“Antes que tivesse feito milagres, assim como ao longo de seus prodígios, nós o vemos usando frequentemente da palavra. Então, quem ousará chamar de ignorante a alguém que, quer estivesse em lide com um adversário, quer estivesse discursando perante uma multidão, fazia a admiração de todo mundo? Os Licônios pensavam ver nele Mercúrio; seus milagres, e os de Barnabé, os fizeram passar por deuses; mas somente a eloquência bastou para que Paulo fosse tido como o deus da eloquência[15]. Não foi assim que ele ultrapassou a todos os demais Apóstolos? Por qual outro motivo, por toda a terra seu nome se encontra com tanta frequência na boca dos homens? De onde vem que ele seja mais admirado do que todos os outros, não apenas entre nós, mas mesmo entre os Gregos e os Judeus? Não será por causa do prodigioso mérito de suas epístolas, que tanto bem fizeram aos fiéis de seu tempo e aos que vieram depois, e ainda aos que estão por vir, até o advento final de Cristo? Pois elas não deixarão de ser úteis aos homens enquanto durar o gênero humano. Seus escritos admiráveis são como uma muralha de diamante que envolve e protege as Igrejas em todas as partes do mundo. Campeão imortal de Cristo, ele permanece ainda hoje de pé no centro da Igreja, acorrentando todos os pensamentos sob obediência a Cristo, derrubando os presunçosos, abatendo toda altivez que se eleva contra a ciência de Deus[16]. Ora, tudo isso ele fez por meio das admiráveis epístolas que nos deixou, epístolas todas cheias de sabedoria divina”.

“Seus preciosos escritos serviram não apenas para derrubar as falsas doutrinas e para o sólido estabelecimento da verdadeira fé, como ainda foram de grande utilidade para instituir a regra dos bons costumes. É por meio deles que até hoje os bispos vestem e ornamentam a casta Virgem que ele denominou como sendo a esposa de Jesus Cristo, e que eles trabalham para conformar nela todos os traços da beleza espiritual; é por meio deles que eles afastam os males que rondam a Igreja, e conservam a saúde de que ela desfruta. Tais são os remédios que esse ignorante nos legou, e tal é sua virtude, como ensina a experiência àqueles que deles se utilizam continuamente. De tudo isso, concluímos que São Paulo dava grande importância ao talento da palavra”.

8.      “Escute agora em que termos Paulo escreve a seu discípulo: ‘Aplique-se à leitura, à exortação, à instrução’. E, para mostrar-lhe os frutos que ele extrairia daí, ele acrescenta: ‘Com isso você se salvará, e a todos os que o escutarem[17]’. E, em outra parte: ‘Um servidor de Deus não deve discutir; que ele seja manso com relação a todos, capaz de instruir e paciente[18]’. Em seguida, ele diz: ‘Quanto a você, permaneça firme no que aprendeu e que lhe foi confiado, sabendo de quem o aprendeu, lembrando-se de que, desde a sua infância, você foi instruído nas letras santas capazes de iluminá-lo para a salvação[19]’. E ainda: ‘Toda escrita que é divinamente inspirada é útil para ensinar, para repreender e para corrigir, para conformar à justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito[20]’”.

“Escute ainda o que ele diz a Tito sobre a ordenação dos bispos: ‘É preciso que um bispo esteja ligado à verdadeira palavra, àquela que é conforme ao ensinamento, a fim de que ele possa convencer os contraditores[21]’. Como então um ignorante poderá convencer os contraditores da verdadeira fé, e calar-lhes a boca? De que serve aplicar-se à leitura e às Escrituras, e ao mesmo tempo manter-se nessa ignorância? Isso não passa de desculpas vãs e falsos pretextos, atrás dos quais se escondem a preguiça e a indolência”.

“Mas, dir-me-ão, esses conselhos estão endereçados aos sacerdotes. E eu responderei desde logo que é exatamente deles que se trata aqui. Mas acrescento que eles também se dirigem aos simples fiéis, pois escute o que diz o Apóstolo em outra epístola, desta vez falando não apenas aos sacerdotes, mas a todo mundo: ‘Que a palavra de Cristo habite em vocês abundantemente e com toda sabedoria[22]’. E mais: ‘Que todas as suas palavras sejam acompanhadas da graça, e temperadas com o sal da sabedoria, de modo a que vocês saibam responder a cada um como convém[23]’. Ora, o preceito de que estejamos prontos a responder diz respeito a todo mundo. Escrevendo aos Tessalonicenses, ele diz: ‘Edifiquem uns aos outros, como costumam fazer[24]’. Quando ele fala aos sacerdotes, eis o que ele diz: ‘Que os sacerdotes que bem governam sejam duplamente honrados, principalmente os que trabalham para a predicação e a instrução[25]’. Pois o fim último da perfeição é alcançado na instrução quando, tanto por seus exemplos como por suas palavras, os pregadores conduzem os homens à vida bem-aventurada preparada por Jesus Cristo. Somente os exemplos não bastam para instruir; e não sou eu que o digo, mas o próprio Salvador: ‘Aquele que praticar e ensinar será chamado de grande[26]’. Se praticar fosse a mesma coisa que instruir, seria supérfluo acrescentar o segundo; bastava dizer ‘aquele que praticar’. Mas ao distinguir as duas coisas, nosso Senhor nos ensina que as obras não são as palavras; e que, para edificar perfeitamente os povos, o exemplo e os discursos devem auxiliar uns aos outros. Você não escutou o que disse o vaso de eleição aos sacerdotes de Éfeso: ‘Vigiem, e não se esqueçam que durante três anos, noite e dia, eu não cessei de advertir com lágrimas a cada um de vocês[27]’. Por que essas lágrimas, esses discursos, essas advertências, enquanto que o brilho de sua vida apostólica ainda estava tão vivo? Sem dúvida, o bom exemplo contribui muito para o cumprimento dos mandamentos; porém, mesmo nessa parte, não ousarei dizer que basta”.

9.      Quando se desenrolar um combate no terreno do dogma, e tivermos que combater com armas tiradas das divinas Escrituras, de que nos servirá a santidade da vida? De que servirão as fadigas e o suor, se depois dessas austeridades cairmos na heresia por ignorância, e formos separados do corpo da Igreja? Conheço muitos que sofreram essa infelicidade. Que frutos obtiveram eles de sua paciência? Nenhum; não mais do que se possuíssem uma fé santa e uma conduta viciosa. É preciso, portanto, uma grande habilidade nesses combates pela fé¸ para quem está encarregado de ensinar os demais. Ainda que ele seja inabalável na fé e invulnerável aos golpes do inimigo, a multidão de almas simples que lhe está submetida, vendo seu chefe vencido e reduzido ao silêncio por seus contraditores, mostrará não a imbecilidade do homem, mas a fraqueza do dogma; e assim, a ignorância de um único causará a perda de todo o povo. Ele não se entregará imediatamente ao inimigo, mas começará a duvidar dos princípios, mesmo os mais acreditados; já não se verá mais tão solidamente ligado a determinadas crenças, que havia antes abraçado com todas as forças de sua fé. A derrota do mestre produz nas almas uma tempestade tão violenta, que só pode terminar em naufrágio. Dizer-lhe agora quais calamidades, quais carvões em brasa se acumularão sobre a cabeça do infeliz, que será acusado pela perda de tantos homens, será coisa supérflua; você o sabe melhor do que eu”.

“Eis, portanto, esse crime de orgulho e de vanglória que pretendem me imputar, porque recusei ser a causa da ruína de tantas almas, e assim atrair sobre mim um castigo terrível no dia do juízo. Quem ousará ainda sustentá-lo? Certamente, ninguém; a menos que se pretenda persistir numa acusação sem motivo, e fazer filosofia com a infelicidade de outrem”.




[1] 1 Reis 9: 21.
[2] Números 11: 15.
[3] Cf. Números 20: 12.
[4] Cf. João 12: 6.
[5] João 14: 22.
[6] 1 Timóteo 5: 22.
[7] Lucas 15: 28.
[8] 1 Pedro 3: 15.
[9] Colossenses 3: 16.
[10] Salmo 35: 7.
[11] Cf. 2 Coríntios 11: 6.
[12] Atos 9: 22.
[13] Atos 9: 29-30.
[14] Gálatas 2: 11.
[15] Atos 14: 11.
[16] 2 Coríntios 10: 5.
[17] 1 Timóteo 5: 16.
[18] 2 Timóteo 4: 16.
[19] 2 Timóteo 3: 14-15.
[20] 2 Timóteo 3: 16.
[21] Tito 1: 9.
[22] Colossenses 3: 16.
[23] Colossenses 4: 6.
[24] 1 Tessalonicenses 5: 11.
[25] 1 Timóteo 5: 17.
[26] Mateus 5: 19.
[27] Atos 20: 31.

Nenhum comentário:

Postar um comentário