sábado, 18 de agosto de 2018

Dumitru Staniloae - A doutrina Ortodoxa da salvação e suas implicações para a Diaconia Cristã no mundo (Parte 1)


(Capítulo VI do livro Theology and the Church
St. Vladimir’s Seminary Press, NY, 1980)


Em geral, a Igreja Ortodoxa não utiliza o termo “reconciliação” para designar a totalidade da obra salvífica do Senhor Jesus Cristo e para a apropriação dessa salvação individualmente pelos fiéis. Esse termo foi adotado pela teologia Protestante com base em quatro textos das epístolas de São Paulo: Romanos 5: 10[1], II Coríntios 5: 18-20[2], Colossenses 1: 19-23[3] e Efésios 2: 14-18[4].

A teologia Católica Romana também faz uso do termo “reconciliação”, mas apenas como uma expressão secundária abaixo da palavra “redenção”[5], e ainda especificando que essa reconciliação ou redenção é obtida pela “reparação” oferecida a Deus por Jesus Cristo. Essa reparação se distingue em certa medida da “expiação” subjacente ao entendimento Protestante da reconciliação.

Durante algum tempo, no passado, os manuais de teologia Ortodoxos, aceitando o costume Ocidental, utilizaram também o termo “redenção”. Similarmente, o conceito de reconciliação também surgiu em anos recentes na teologia Ortodoxa, como uma expressão compartilhada com Igrejas Protestantes em contatos ecumênicos, tanto dentro como fora do Conselho Mundial das Igrejas. Trata-se de uma palavra que reflete ainda o entendimento comum entre Ortodoxos e Protestantes para promover todos os esforços feitos em favor da paz. A “reconciliação” foi aceita por teólogos Russos em seu diálogo com colegas Luteranos, no Terceiro Encontro de Arnoldsheim, em Março de 1967, como um termo capaz de expressar o inteiro conteúdo da obra salvífica de Cristo.

Mas podemos dizer mais genericamente que quando a teologia Ortodoxa aceita o uso dos termos “redenção” e “reconciliação”, ela lhes dá um significado mais amplo do que o faz o entendimento de Católicos e Protestantes. Isso é ainda mais verdadeiro na medida em que a teologia Ortodoxa retorna às suas bases patrísticas, aproximando-se de uma conformidade mais estreita com a tradição litúrgica da Igreja do Oriente. Esse significado mais amplo e multidimensional foi desde sempre expresso pela Igreja Ortodoxa pelo termo “salvação”, e esse segue sendo o costume preferido pela Igreja Ortodoxa, por muitas razões. Em primeiro lugar, trata-se da palavra que encontramos com mais frequência no Novo Testamento, tanto como denominação da obra realizada pelo Senhor Jesus Cristo (swthria – cerca de 40 vezes), quanto como título dado a Cristo em função da obra realizada (swthr – cerca de 20 vezes). Em segundo lugar, e sempre seguindo o exemplo do Novo testamento, “salvação” é o termo mais utilizado pela Igreja na sua tradição e no seu culto. Ele é encontrado, por exemplo, seja no Credo Niceno-Constantinopolitano, seja nas orações dos fiéis. Finalmente, ela expressa o mais profundo, mais compreensível e multidimensional significado da obra realizada por Jesus Cristo. Nessa última dimensão, vale dizer, entendida como a destruição da morte do homem em todas as suas formas e a certeza da vida plena e eterna, a palavra “salvação” produz no fiel Ortodoxo um sentimento de absoluta gratidão para com Cristo, a quem ele deve a libertação de sua existência e a esperança da vida eterna e da felicidade. Esse é um fato que não pode ser passado por alto.

É a perspectiva da Igreja Ortodoxa, bem como da Igreja primitiva, que a palavra “salvação” não apenas abarca o significado profundo, completo e complexo da atuação de Cristo, mais do que qualquer outra palavra, como ela ainda contém em si os diversos significados parciais da salvação que aqueles outros termos expressam. Ela inclui as ideias de “vida”, de “vida eterna” e do “Espírito”, que, juntamente com a multitude de seus dons, são concedidas àqueles que creem. Ela ainda inclui aquilo que é expresso pelas palavras “união com Cristo” e “vida em Cristo”[6], pela “adoção”[7], pela configuração do homem à imagem de Cristo[8], pela “conformação no mesmo corpo com Cristo”[9], pela “comunhão com o Pai e o Filho”[10], pela “comunhão com o Espírito Santo”[11], pelas condições de “justiça”, “santidade” e “filiação divina”[12], pela “participação na natureza divina”[13], pelo renascimento no Espírito e a “herança do que é imperecível, incorruptível e inapagável”[14].

A riqueza de nossa salvação por Cristo é tão grande que não pode ser completamente expressa por uma única fórmula, nem por todas elas conjuntamente. Trata-se de um mistério que jamais pode ser completamente entendido ou definido. São Gregório de Nazianze, por exemplo, depois de ter tratado brevemente da obra de salvação realizada por Cristo, declara: “Respeitemos com nosso silêncio aquilo que falta”, pois “nada pode se igualar ao milagre de minha salvação”. O uso exclusivo de qualquer termo, especialmente se ele se tornar a chave para a interpretação de todos os outros termos, irá inevitavelmente nos encerrar numa compreensão extremamente limitada de seu mistério inefável. Vladimir Lossky comenta o texto de São Gregório de Nazianze acima da seguinte forma: “Depois do horizonte restrito de uma teologia exclusiva e jurídica, redescobrimos nos Padres uma noção extremamente rica da redenção que inclui a vitória sobre a morte, as primícias da ressurreição geral, a libertação da natureza humana do mal, e ainda não apenas a justificação, como a restauração da criação em Cristo”.

Cada um desses termos é precioso porque coloca em relevo algum dos aspectos da salvação que Cristo trouxe a nós. É preciso, assim, considerar toda a linguagem bíblica para o entendimento da salvação, mas, ao mesmo tempo, devemos evitar forçar tudo no confinamento de uma simples e única palavra. Se existir a necessidade de empregar uma expressão mais geral, devemos escolher uma palavra que já seja a mais abrangente e que assim amplie seu sentido a ponto de incluir em si o significado de todas as demais. Em qualquer caso, precisaremos explicar cada termo em harmonia com todos os outros.

O valor específico do termo “reconciliação” está em que ele enfatiza o caráter tanto do homem como de Deus enquanto “pessoas”, na economia da salvação, do mesmo modo como a palavra “salvação” tomada em si sugere a libertação em relação a certos poderes malignos ou situações urdidas por forças impessoais ou pelas próprias ações humanas. A expressão “reconciliação”, por sua vez, torna claro que a salvação acontece pelo restabelecimento de uma relação pessoal normal entre o homem e Deus, pelo restabelecimento – por intermédio de um ato realizado em Cristo pelo Deus pessoal – de uma relação de paz entre Deus enquanto pessoa e o homem enquanto pessoa. Foi provavelmente por esse motivo q eu Lutero preferiu falar em “reconciliação”, embora, como vimos, o fiel Ortodoxo possa também experienciar sua “salvação” como a mais completa libertação de sua existência pessoal em relação aos poderes de destruição e, por conseguinte, como uma relação cotidiana profundamente pessoal com Deus.

A escolha da “reconciliação” por Lutero, como sendo a mais adequada e sensível expressão do relacionamento pessoal entre o homem e seu Deus, chegou num tempo em que o homem despertava para uma consciência excepcionalmente aguda de seu próprio destino enquanto indivíduo, e também para uma ansiedade igualmente aguda quanto à medida de sua paz com Deus, e também sobre o quanto, dada a imperfeição ética de sua vida, ele poderia ser considerado justo perante Deus. Se num período anterior o homem se satisfazia em conhecer uma redenção objetiva dentro de uma estrutura coletiva, e contentava-se com que isso fosse expresso pela primitiva linguagem soteriológica da destruição universal do pecado e da morte ante a perspectiva vindoura de uma ressureição geral, no tempo de Lutero o homem acordava para a consciência de sua própria individualidade e começava a buscar acima de tudo a certeza de uma paz interior e pessoal com Deus, a segurança de que Deus se voltava amorosamente para ele como uma pessoa única, apesar do fato de ser o homem incapaz de abandonar sua condição pecaminosa. Num documento intitulado “A reconciliação por meio de Cristo e a paz do mundo”, o professor E. Wolf de Göttingen escreveu: “A paz da consciência, e mesmo uma boa consciência perante Deus, constitui assim as primícias da reconciliação. Portanto, é assim que Cristo nos torna confiantes diante de Deus e em paz com nossa consciência”.

Foi provavelmente pela mesma razão que Lutero aproximou tanto os termos “reconciliação” e “justificação”, convicto de que eles continham toda a herança do homem, como resultado da ação por meio da qual Deus reconcilia o homem consigo próprio. O homem da Renascença, com seu alto grau de consciência de si, percebia que a causa de sua carência de paz interior com Deus respondia pela carência de sua própria retidão diante da face de Deus. Ele se dava conta de que não poderia adquirir nenhuma retidão pessoal intrínseca, e assim encontrava consolo ou confiança na noção de que seria considerado justificado por Deus graças ao sacrifício expiatório oferecido por Cristo a Deus em benefício do homem. Dessa maneira, na ideia de “justificação” aparece em relevo a salvação como a restauração de uma relação pessoal do homem com Deus.

Ao mesmo tempo em que reconhece a importância da ênfase de Lutero na condição de salvação que Cristo trouxe para nós, a Igreja Ortodoxa também crê que o homem é capaz de crescer continuamente na nova vida em Cristo, tal como descrito pela Escritura e pelos Padres, e que o fundamento de seu crescimento, o fundamento da nova e verdadeira vida do homem, está no relacionamento de paz entre este e Deus, que agora pode ser experimentado conscientemente pelo homem como resultado do sacrifício de Cristo. Obviamente, esse crescimento espiritual não acontece no auto isolamento, mas no bojo de um diálogo de paz restabelecido com Deus. Porque aquilo que o homem experimenta nesse diálogo não constitui uma paz exterior e formal, mas consiste numa força que cresce dentro dele, preservando-o nessa paz e produzindo mais e mais frutos. Esses frutos, por sua vez, representam a retidão que aumenta até se tornar a expressão da soma de todas as virtudes. Essa é a retidão, tal como entendida pelo Antigo e o Novo testamentos. É assim que o próprio Cristo é chamado “justo”[15]; aí lemos ainda sobre o poder da oração do homem justo[16]; aí está a demanda para que o homem justo se torne ainda mais perfeito[17], e ainda para que ele não pratique sua justiça diante dos homens[18].

Parece-nos que atualmente a teologia Protestante vem se desenvolvendo cada vez mais na direção dessa semente contida em todo o ensinamento de Lutero, e assim, ela vem se movendo na direção de um encontro com o ensinamento Ortodoxo. Por outro lado, a teologia Ortodoxa enfatiza que a nova vida do homem não é produzida pelo próprio esforço do homem, mas pelo poder que ele recebe de seu diálogo com Deus. Essa ênfase fica clara no trecho a seguir, extraído do documento do Prof. Wolf: “Graças ao ato de reconciliação de Cristo, essa paz já é uma realidade oculta; ela se torna efetiva na comunidade Cristã, e, através dela, para todo o mundo”. Uma vez que percebamos a justificação concebida no ensinamento de Lutero como algo que é organicamente unido à paz, podemos dizer que a retidão que Cristo concede como um dom a todo homem é precisamente essa realidade oculta. Para que ela se torne efetiva dentre os membros da comunidade eclesial e, através dessa comunidade, para todo o mundo, essa paz e a retidão implicada nela devem possuir a natureza de uma força que, embora vinda de Deus, não deixa de ser manifestada através do homem e que é assimilada como um reflexo divino pelo sujeito humano em seu diálogo com Deus. Esse reflexo pode e deve ser ativado por nós, fiéis; de fato, é nossa responsabilidade considerá-lo como ativo.

A doutrina Ortodoxa da salvação em Cristo

 A seguir faremos uma breve descrição da vida nova e do poder que o Filho de Deus encarnado, crucificado, ressuscitado e exaltado, concede a nós, por intermédio do Espírito Santo, como constituindo a “salvação”, de acordo com o entendimento Ortodoxo dessa palavra. O Filho de Deus comunicou sua vida e seu poder em sua plenitude escatológica à humanidade que assumiu, e os comunicou a nós por graus através de sua própria humanidade; e nós os recebemos como um princípio de crescimento, como um dom e uma promessa que implicam um desenvolvimento escatológico e, portanto, uma esperança. Pois na medida em que Cristo é “cheio de graça e verdade”, na medida em que Ele é “perfeito homem”, temos aí apenas as primícias de sua plenitude, e devemos crescer Nele como perfeito homem[19], de acordo com a estatura da plenitude de Cristo[20]. A vida e o poder comunicados por Cristo à Sua humanidade se manifestaram em três direções: para Deus, para a natureza humana em si, e para seus queridos seres humanos.  Essa nova vida e esse poder que o Filho do Homem, através da humanidade que Ele assumiu, comunica àqueles que Nele acreditam, também se manifestam nas mesmas três direções. E assim como o Filho de Deus os comunicou à Sua humanidade assumida por meio de sua encarnação, crucificação, ressurreição e ascensão, da mesma forma ele os comunica aos que Nele acreditam, vale dizer, por intermédio dos atos que ele realizou e pelo estado que Ele atingiu enquanto homem.

Devemos mencionar o fato de que nos últimos três ou quatro séculos a teologia Ortodoxa sofreu uma certa influência escolástica em seu ensino soteriológico, e que assim chegou a apresentar a salvação como algo adquirido exclusivamente por meio da cruz de Cristo, e a entender a salvação em geral como uma satisfação vicária[21] oferecida a Deus por Cristo. Todavia, a começar pela teologia Russa no século XIX, a teologia Ortodoxa retornou quase completamente ao entendimento estrito da salvação próprio dos Padres Gregos, e, sob a influência do ministério, ou Diaconia, mundial que a Igreja assumiu, a teologia Ortodoxa de anos recentes desenvolveu em uma forma contemporânea essas dimensões pan-humanas e cósmicas da salvação que são também parte da herança patrística.

Vamos agora considerar a vida nova e o poder que Cristo nos concedeu, e o modo como isso se manifesta por intermédio de sua encarnação, crucificação, ressurreição e ascensão.

A)     Desde a sua encarnação o Filho de Deus trouxe ao homem uma nova vida e um poder em suas relações para com Deus, para consigo mesmo e para com seu próximo. Cristo uniu a humanidade com Deus através da encarnação de uma maneira que é não apenas íntima, como ao mesmo tempo indissolúvel, inseparável e definitiva. O Filho de Deus fez com que o homem se tornasse, mesmo em sua qualidade de homem, Filho de Deus. Seu amor filial e eterno ao Pai encheu também toda a humanidade, e assim, como diz São João Damasceno, “a encarnação constituiu uma modalidade da segunda subsistência pessoal, adaptada exclusivamente ao Filho Unigênito de tal maneira que seu atributo individual pessoal permaneceu inalterado”. Somente o Filho seria capaz de preencher a humanidade que Ele assumiu com o amor filial ao Pai, e, através de Sua humanidade, encher cada homem que se une a Cristo pela fé, com o mesmo amor filial. O desejo humano se torna a vontade do Filho de Deus, que o dirige em direção ao Pai com seu amor filial. De acordo com São Máximo o Confessor, Cristo possuía uma vontade humana natural, mas, devido ao fato de que o sujeito – ou hipóstase – que sustentava Sua natureza era o próprio Logos, ele não poderia ter uma vontade gnômica, sentenciosa ou aforismática. Aqueles que atribuem uma vontade gnômica a Cristo pensam que, tal como nós, ele teria uma vontade que seria “ignorante, hesitante e em conflito consigo mesma [...] Na humanidade do Senhor, que não tinha apenas uma hipóstase humana, mas uma hipóstase divina [...] não se pode dizer que houvesse uma vontade gnômica”, vale dizer, uma vontade que se movesse independentemente da hipóstase divina e que fosse capaz de tomar decisões contrárias à vontade divina. Isso implica uma perfeita obediência ao Pai por parte do Cristo encarnado. Sua vontade humana era movida por sua hipóstase divina em conformidade com sua própria vontade divina, e a partir daí, com a vontade do Pai. Dessa maneira, Cristo dava ao Pai a perfeita glória sobre a terra também como homem. Em todos os movimentos de sua vontade humana, em todas as suas ações – e, portanto, também em seus pensamentos – Cristo era completamente devotado ao Pai.

Isso implica a completa santificação da humanidade que Ele assumiu. Toda a santidade de Sua divindade se tornou própria de Sua humanidade e tomou a forma humana. Cristo é santo em seus pensamentos, nos movimentos de sua vontade, em seus sentimentos e, por conseguinte, em sua carne. Ele se tornou o segundo Adão, ultrapassando o primeiro Adão em pureza, mesmo em relação ao estado de Adão anterior à Queda. Embora Cristo tenha carregado ao assumir sua natureza [humana] os efeitos e a opressão das necessidades sofridas por Adão depois da Queda, não obstante Ele próprio não estava sujeito à queda. Ao contrário, Ele exerceu a maestria do espírito sobre essas fraquezas; ele libertou a natureza da opressão que lhe havia sido imposta por elas e nos concedeu também o poder de fazer o mesmo.

Ele é a segunda raiz da raça humana, de acordo com São Cirilo de Alexandria, uma nova raiz que se mantém nova permanentemente, e da qual qualquer filho do primeiro Adão pode ser renovar continuamente, nascendo do Espírito do segundo Adão e permanecendo para sempre unido a Ele mesmo diante de qualquer deslize, como em relação a uma fonte revivificadora. “Embora o homem tenha se afastado de Deus e o tenha afligido por conta de sua desobediência e de seus inúmeros pecados, Cristo o restabeleceu perante a face de Seu Pai em Si próprio, como no primeiro homem”. Em Cristo o homem foi trazido novamente aos olhos de Deus. “Em Adão a raiz da raça humana, como uma mãe, morreu; mas os que vieram daí depois – ou seja, nós próprios – rebrotamos renovados em Cristo, e existimos e somos salvos na medida em que temos a Ele como nossa vida e nossa segunda raiz”. Ele é, como dizia São Gregório Palamas, “o novo Adão que nasceu depois, mas que é a fonte a partir da qual o mundo é continuamente renovado”.

Devido ao amor filial de Cristo pelo Pai e por causa de sua perfeita divindade, o Pai olha para a face humana de Cristo com o mesmo amor com que olha para Seu Filho Unigênito. Dessa maneira, tendo Seu Filho se tornado homem, Deus renovou a raça humana; Ele a reconciliou verdadeira e radicalmente consigo mesmo e a justificou de modo absolutamente real. Sustentada pela hipóstase divina do Filho, a natureza humana se tornou realmente santa e justa desde sua raiz. Sua paz com Deus reside no amor filial que Cristo, enquanto homem, tem por Seu Pai, e isso significa que a natureza humana foi restabelecida com o consentimento de sua própria vontade. Justiça e paz não lhe foram impostas contra sua vontade, nem permaneceram externas a ela; antes, elas foram assimiladas interiormente, assim como o solo seco assimila a umidade da chuva, mesmo que essa necessariamente tenha que vir do alto. Cristo “restabeleceu a natureza humana em conformidade consigo mesmo”, escreveu Máximo o Confessor, e ao se tornar homem Cristo preservou a livre vontade libertando-a das paixões e estabelecendo-a em paz com a natureza. É precisamente por meio dessa harmonização da vontade com a natureza que a reconciliação do homem com Deus pode ser adquirida. “Assim como a inclinação da vontade une a si mesma dessa forma com o logos da natureza, da mesma forma se produz a reconciliação de Deus com a natureza”. Mas isso só pôde ser adquirido pelo homem depois de ter se realizado em Cristo, em quem a vontade humana era a vontade de hipóstase divina. Somente pelo fato de que a hipóstase divina preencheu a natureza humana, que ela harmonizou a vontade humana com a natureza humana e conduziu a vontade simultaneamente à harmonia com Deus – que deseja apenas o que está em conformidade com a natureza humana, e que é o único que verdadeira deseja isso. Por meio da encarnação o Filho de Deus restaurou no homem “a grandeza da imagem divina”, porque ele possuía a razão não escravizada pelas baixas afeições e impulsos opostos a Deus. “O Verbo de Deus”, diz Santo Atanásio, “veio em Sua própria Pessoa, porque somente Ele, a Imagem do Pai, poderia recriar o homem segundo a Imagem”.

A verdadeira paz e justiça que Cristo, por meio de sua encarnação como homem, partilha com Deus, se torna para aqueles que Nele creem uma paz e uma justiça verdadeiras através de sua união com Cristo. Pois o relacionamento entre o Pai e o homem Jesus inclui em si, primeiro potencialmente mas progressivamente também em ato, todos aqueles que acreditam em Cristo. A divindade de Cristo enquanto homem está ao alcance de todos, e está dirigida direta e ativamente para todos. Se de modo geral é verdade que o santo é um homem para os homens, o homem que é estranho a qualquer tipo de individualismo ou egoísmo, mais verdade ainda é que Cristo, mesmo em sua humanidade – que não é sustentada por uma hipóstase humana, mas por uma hipóstase divina – não pode ser encerrado dentro de si numa espécie de individualismo, mas, graças à divina hipóstase que é o Deus de todos, comunga a si próprio com todos com sua divindade e perfeita generosidade. “Em favor deles Eu me consagro, para que eles possam ser consagrados na verdade[22]”. Num relacionamento de união com Cristo em que a vontade humana é a pura vontade da divina hipóstase, também o resto dos homens podem se tornar santos. A vontade humana cortou os laços de unidade entre os homens por sua própria escolha arbitrária e egoísta. Em Cristo, a vontade humana abandona sua escolha e se conforma não apenas com a vontade de Deus, como com a natureza humana, com aquilo que em verdade promove a vida para todos os homens. Por essa razão aqueles que estão unidos a Cristo já não trabalham pelo desmembramento da sociedade, mas para a fraternidade entre os homens.

Por intermédio de suas vontades humana e divina, ambas guiadas pelo amor, Cristo exerceu e ainda exerce, cada vez mais, no presente, uma influência unificadora sobre a humanidade. “O Verbo não ficou limitado ao seu corpo”, diz Santo Atanásio. “Presente em toda parte [do universo] e além, ele se revela tanto pelas ações de seu corpo, como pela sua atividade no mundo”.

A importância que o Oriente dá à encarnação do Senhor para a unificação da espécie humana se deve, por um lado, à hipóstase divina que assumiu a natureza humana de Cristo, e, por outro, à doutrina das energias incriadas. A hipóstase divina se abre ativamente pela humanidade [de Cristo] porque essa última não está encerrada dentro de uma hipóstase humana, portanto não se encontra sujeita às limitações da natureza criada. A humanidade do Verbo, hipostatizada Nele e penetrada por sua energia, constitui o fermento que opera secretamente dentro da totalidade do corpo da espécie humana, e é o fundamento da doutrina da deificação do homem, um ensinamento tão caro aos Padres Gregos. “É no contexto desse pensamento de Cirilo que se pode entender o que Leôncio de Jerusalém quis dizer quando falou da hipóstase comum de Cristo: uma hipóstase que, ao invés de ser mais uma hipóstase isolada e individualizada dentre todas as hipóstases que constituem a natureza humana, é a hipóstase arquetípica de toda a espécie humana. Nela, a humanidade “recapitulada”, não apenas enquanto indivíduos, recupera sua união com Deus. Isso só é possível na medida em que a hominidade de Cristo não consiste na natureza humana de um mero homem, mas em uma hipóstase independente das limitações da natureza criada”. Pode-se dizer que Cristo é a hipóstase central que conecta todas as hipóstases humanas umas às outras, porque primeiro Ele as conecta consigo mesmo.

A encarnação é uma espantosa kenosis do Filho de Deus por meio da qual ele se tornou a hipóstase tanto das afeições que escravizam a natureza humana como das limitações que a confinam, a fim de libertar a natureza humana das primeiras e romper as barreiras da segunda. Mas a encarnação é também uma kenosis da humanidade em Cristo, a qual não possui sua existência autônoma em sua própria hipóstase, mas na hipóstase divina – uma kenosis que é inteiramente dedicada a Deus. O esvaziamento de si é tanto um sinal de amor, que sem ele o amor não pode ser manifestado. Pois no amor a pessoa esquece de si e se entrega por inteiro à outra numa rendição total; e somente por meio desse amor é possível revelar-se a si mesmo em sua própria plenitude. “Pois na medida em que o homem não existe senão na medida em que abandona a si mesmo, a encarnação de Cristo surge como o exemplo supremo e único da plenitude essencial da realidade humana”. A partir desse supremo foco de amor divino – que igualmente eleva o amor humano ao mais alto grau e que se mantém aberto para todos os homens, tomando seu lugar dentre eles – o amor brilha entre nós e nos arrebata em seu próprio movimento interior.

A importância da encarnação para o entendimento de nossa salvação em Cristo fica clara a partir do que foi escrito acima, mas existem ainda outras dimensões da encarnação. Se virmos apenas a cruz de Cristo e não sua vida terrena enquanto Deus feito carne, ficaremos sem os ensinamentos de Cristo e o exemplo de sua vida. Essas coisas não apenas nos revelam o significado da cruz, como ainda nos ensinam e nos encorajam a viver uma vida de obediência a Deus, uma vida de pureza e de amor ativo a serviço de nosso próximo. Santo Atanásio insiste sobre esse fato: “O homem deus as costas à contemplação de Deus nas alturas, e passou a olhar para si na direção oposta, para baixo, entre as coisas criadas e o mundo dos sentidos. O Salvador de todos nós, o Verbo de Deus, em seu grande amor, tomou para si uma corpo...”. Deus, vendo o homem vagando no erro não quis deixar que se perdesse aquele que um dia participou de Sua imagem, mas quis que essa imagem fosse renovada nele para que, através dela, os homens voltassem a conhecê-lo. “Assim é que o Verbo de Deus veio em Sua Pessoa, pois somente Ele, a Imagem do Pai, poderia recriar o homem a partir dessa Imagem”.

Através de sua vida terrestre em um corpo, o Filho de Deus deixou claro de modo geral o valor de nossa existência na terra para adquirir a salvação. Ele mostrou como devemos nos esforçar enquanto estamos por aqui para obtermos uma profunda reconciliação com Deus e com nosso próximo, uma reconciliação cheia de amor. O fato de que Deus se abriu, de modo pessoal e hipostático, para criar a existência terrestre, e concordou em vivê-la em nosso favor, prova que essa existência possui valor mesmo para Ele. Santo Atanásio diz que no princípio o homem foi criado por um decreto da vontade de Deus. “Mas uma vez que o homem passou a existir, e as coisas que existiam – não as coisas que não existiam – pediam para ser curadas, seguiu-se logicamente que o médico e Salvador deveria alinhar-se com aquelas coisas que existiam, a fim de poder curar o mal existente. Por esse motivo Ele se fez homem, e serviu-se do corpo como de um instrumento humano [...] abrindo-se, por meio disso, a todos”. Não era seu desejo conduzir-nos à vida eterna sem nenhuma consideração por nossa vida terrena. Essa vida teria que ser também santificada como uma condição para a vida eterna. Tomando na sua base a sugestão de São Paulo, de que devemos crescer no amor a fim de “compreender o que é a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que ultrapassa todo conhecimento[23]”, Santo Atanásio diz: “A auto revelação do Verbo se dá em todas as dimensões: acima, na criação; abaixo, na encarnação; na profundidade, no Hades; na amplitude, por todo o mundo. Todas as coisas estão cheias do conhecimento de Deus. Por esse motivo Ele não ofereceu o sacrifício em favor de todos imediatamente ao chegar, pois se Ele tivesse se entregado à morte e se levantado a seguir Ele teria deixado de ser objeto de nossos sentidos. Ao invés disso, Ele permaneceu em seu corpo e se deixou ver nele, realizando ações e deixando sinais que mostravam não ser Ele apenas humano, mas Deus o Verbo” [...] “...o Verbo aceitou aparecer num corpo, para que, como homem, pudesse concentrar os sentidos de todos em si, e convencer a todos, por meio de suas ações humanas, de que ele não era somente homem, como também Deus...”. O Filho de Deus não desdenhou a vida humana na terra como indigna ou insignificante; ao contrário, ele adotou-a para si, de tal modo que, no decurso dessa própria vida a cura e a santificação do homem pudesse ter seu início.

B)     Mas das três maneiras pelas quais a nova vida e o poder de Cristo se manifestam, existem mais coisas na sua morte na cruz, por meio da qual Cristo efetuou a restauração da natureza humana. A cruz de Cristo representa um novo passo na obra de nossa salvação. Sem a cruz de Cristo, a salvação não poderia ter se efetivado. Com sua morte, Cristo se entregou ao Pai não apenas por meio de uma vida exemplar mas ainda pela completa renúncia à vida em si. Como homem Ele entregou tudo a Deus e não deixou nada para si próprio. Na sua morte, a kenosis amorosa atingiu seu clímax. São Cirilo de Alexandria desenvolveu a ideia de São Paulo de que o homem só pode se apresentar a Deus na condição de vítima imaculada, mas que nós não estamos em condições de levar ao Pai tal oferenda. Assim sendo, Cristo, enquanto homem, ofereceu o sacrifício imaculado ao Pai, não com a intenção de apresentar ao Pai alguma espécie de equivalente jurídico, mas para nos dotar, mediante nossa união com ele, da capacidade de nos tornarmos, nós próprios, vítima imaculada, para podermos entrar com Ele na presença do Pai. Dessa forma, nós obtemos acesso ao Pai por intermédio da Cruz de Cristo, através de Seu corpo crucificado na cruz. “Pois através Dele temos acesso num único espírito ao Pai[24]”. Apenas se Cristo está em nós como vítima imaculada, ou se estamos nós nele – o único que possui a condição de vítima impecável – podemos ter acesso ao Pai. E, junto com esse acesso, de acordo com São Paulo, também obtemos a reconciliação ou a paz entre nós e entre nós e Deus. Pois através da cruz de Cristo, de sua suprema entrega enquanto homem, a hostilidade que reside em nosso interior chegou ao fim[25]. E ao mesmo tempo, em seu corpo sacrificado na cruz (e, portanto, na condição de suprema entrega ou kenosis amorosa perante Deus em nosso favor), nós, suas criaturas mais amadas, reconciliamo-nos entre nós e também com Deus. É admirável o modo como São Paulo liga a reconciliação e a paz entre a espécie humana e Deus, com o acesso ao Pai, e como, para ele, essa reconciliação implica também que aqueles que eram hostis e inimigos uns dos outros são agora reconstruídos em um novo homem. O poder para realizar tais coisas se encontra na cruz de Cristo, em seu sacrifício totalmente puro, a completa entrega de si. Esse sacrifício olimpo, como um holocausto oferecido ao Pai com fragrância de suave olor, não é outra coisa senão sua total rendição ao Pai. São Cirilo diz que onde quer que exista pecado, não pode haver aí um sacrifício que seja puro. O sacrifício é a rejeição de todo individualismo egoísta, que é a forma real do pecado. Ele consiste na rendição total ao Pai, e somente Cristo foi capaz de oferecer tal sacrifício. Ele fez isso de modo a criar em si mesmo enquanto homem a condição de completa submissão ao Pai, para que assim, como um ímã, pudesse nos atrair para sua própria condição, de modo a formar Sua imagem em nós, a imagem de Si no estado sacrificial[26]. “É coisa certa que o pecado que existe em nós é uma coisa triste e que cheira mal... Mas em Cristo essa vida de tristeza e mau odor se transforma em alegria. A fé derrama aí uma doce fragrância. Através de Cristo nós nos oferecemos a Deus. Pois é ele quem purifica os pecadores e lava espiritualmente aqueles que estão manchados... Através de Cristo oferecemos a nós mesmos, através dele ousamos nos aproximar. Mas nos aproximamos pela fé, e nos oferecemos ao Pai com uma doce fragrância, apenas se cessarmos de existir apenas para nós mesmos, se tivermos em nós somente a Cristo, como o suave sabor do Espírito”. E esse suave sabor é a morte de Cristo.

Nesse sentido, morremos também nós no batismo à semelhança da morte de Cristo, ou melhor, somos enraizados na semelhança dessa morte, tendo sido enterrados em Sua morte[27]. Assim nos tornamos justos em Cristo perante o Pai. Não se trata de uma justiça de vanglória, mas de nossa rendição a Deus. Pois a verdadeira união no amor, ou no diálogo do amor, só vem por meio da total submissão. É somente nessa rendição em Cristo quer nos reconciliamos com Deus, somente nessa condição sacrificial recebemos a santidade de Deus, uma santidade que só existe na transcendência total de todo egoísmo, raiz do pecado. É nessa santidade que consiste nossa justiça perante o Pai, a justiça que adquirimos por intermédio de Cristo. Obtemos essa santidade, ou essa justiça, do Pai, pois quando entramos por meio de Cristo na presença do Pai num estado de puro sacrifício, somos estabelecidos numa condição na qual se torna possível uma plena comunicação com Deus. E, como apenas nesse estado de total rendição em Cristo somos reconciliados com Deus, podemos dizer que essa reconciliação demanda sacrifício, o sacrifício de nossa própria existência, essa mesma existência que tentamos reter e tornar boa apenas para nós quando nos encontramos numa condição de pecado e egoísmo individualista. Assim o fundamento de nosso próprio sacrifício e fonte de seu poder, a fonte de nosso amor a Deus que constitui a verdadeira vida, é o sacrifício de Cristo, sua imaculada entrega ao Pai realizada no amor ao Pai e a nós, e no amor ao Pai que Ele teve em nosso favor enquanto homem. Comungando da morte de Cristo, “comungamos de uma morte que traz a vida”.

É claro que essa concepção do sacrifício implica a visão ascética de São Paulo e dos Padres de acordo com a qual a queda de Adão na carne de tornou o trono do pecado por intermédio dos apetites que operam aí.  Essa carne deve morrer para que o pecado morra com ela. Também é claro, todavia, que a carne de Cristo não constituía o trono para esse tipo de apetites, e assim ela jamais foi sede do pecado. Ele levou à morte mesmo as afeições sem pecado que ele assumiu juntamente com o corpo. E assim ele crucificou a carne na cruz de modo a que seu corpo crucificado pudesse se tornar a fonte de mortificação para nossos próprios corpos. Como diz Nicholas Cabasilas: “Essa morte, na medida em que foi uma morte, acabou com a vida do pecado. Na medida em que foi uma punição, removeu a culpa do pecado que cada um de nós carrega por conta de suas más ações”. Tal é o estado de justiça que Cristo conquistou para nós na cruz, a reconciliação das duas partes do homem – o espírito e a carne – por meio da reconciliação com o Pai, e o fim de toda hostilidade[28]. Essa visão da crucificação significa que o corpo de Cristo deveria conter potencialmente todos os corpos, e que todos os homens deveriam ser arrastados ao estado sacrificial de Cristo. “Assim ele morreu por todos, de modo que os vivos possam viver, não mais para si, mas para Ele que, por sua salvação, morreu e se reergueu. Portanto, se alguém está em Cristo, nova criatura é[29]”.

Nesse sentido, embora Cristo já não morra tal como um dia morreu na terra, ele não obstante mantém permanentemente sua disposição de total entrega ao Pai de modo a conduzir todos os homens para essa mesma condição. “Cristo desejou preservar em seu corpo o testemunho de seu sacrifício e suportar em sua própria pessoas as cicatrizes e as feridas que recebeu na crucificação. Desse modo Ele quis mostrar que quando vier novamente numa luz deslumbrante ele permanecerá sendo para seus servidores o mesmo Senhor, crucificado e ferido, e essas feridas servirão como seus ornamentos reais”.

Uma vez que a morte entrou no mundo pelo pecado, e que Cristo não cometeu pecado, foi por conta de nossos pecados que ele morreu na cruz. E por meio de sua morte o pecado e o egoísmo foram destruídos até a raiz, juntamente com o fruto que produziram, a morte. Todos os homens podem escapar a essas coisas, desde que se enraízem na morte e no sacrifício de Cristo. Ao oferecer Sua humanidade em sacrifício ao Pai, o Filho a elevou a um estado de suprema perfeição, de modo a que, a partir desse estrado de perfeita plenitude, todos os homens possam resgatar sua própria perfeição junto com a liberdade, do poder do pecado e da morte eterna. Vemos assim que esse entendimento do sacrifício como o dom imaculado de si ao Pai pressupõe a encarnação do Filho de Deus, pois somente na Sua hipóstase divina a espécie humana era capaz de apresentar a si mesma como uma oferenda perfeita ao Pai.

C)     C. Se São Cirilo de Alexandria enfatiza o sacrifício e morte de Cristo numa perspectiva teocêntrica – como fariam Anselmo e Lutero depois dele –, Santo Atanásio, São Máximo o Confessor e outros Padres enfatizam a direção antropocêntrica, seu poder de curar e fortalecer a natureza humana, seu poder de sobrepujar o pecado e a morte. Temos nesses autores uma espécie de antropocentrismo da graça. Deus, em seu grande amor por nós, não se preocupou consigo sequer no menor grau, mas apenas conosco.

Entre essas duas explanações sobre a morte do Senhor, a teocêntrica e a antropocêntrica, devemos situar a explicação de São Gregório de Nazianze, que serve como uma espécie de ponte entre elas, rejeitando a teoria de um resgate, seja devido ao diabo, seja a Deus, ele diz: “Não está claro que o Pai recebe o sacrifício, não porque precise, mas porque em seu plano era necessário que o homem fosse santificado por meio da humanidade de Cristo, e para que Deus pudesse nos chamar para si por intermédio de Seu Filho, o Mediador, que preencheu a tudo pela glória do Pai?”.

De acordo com Santo Atanásio, São Máximo e outros Padres, o sujeito imortal aceita a morte em seu corpo para sobrepujar a morte. A morte de Cristo foi a ocasião da luta vitoriosa da natureza humana, suportada pela hipóstase divina, em sua batalha contra seu mais poderoso adversário. Foi a ocasião para o supremo esforço da natureza humana e do espírito que nela reside. “Aconteceram então simultaneamente duas maravilhas opostas: a morte de todos foi consumida no corpo do Senhor; e também, porque o Senhor estava nele, a morte e a corrupção foram no mesmo ato completamente abolidas”. A cruz de Cristo foi a ocasião da revelação do poder de Deus e de seu amor pelo homem que fora submetido à morte devido ao pecado, e foi a ocasião para a destruição da morte.

A maioria dos Padres Gregos sublinhou esse entendimento da morte de Cristo a fim de ligar essa morte mais estreitamente à Sua ressurreição, bem como à Sua encarnação. De fato, eles nunca falam da morte de Cristo sem fazer a conexão com a ressurreição e sem apresentar essa vitória como um ato do Verbo encarnado. Cristo aceita a morte de maneira a destruí-la por meio de Sua ressurreição, mas isso só acontece porque ele era o Verbo de Deus. Os Padres não falam da morte de Cristo como um evento independente da ressurreição e ada encarnação. Assim sendo, se a encarnação é o fruto do amor de Deus pela humanidade com a qual Ele se une definitiva e indissoluvelmente, e se na paixão esse amor é levado ainda mais longe, então sua finalidade e seu resultado podem ser vistos na ressurreição que conduz à perfeição a união de Deus conosco por toda a eternidade. Cristo não se encarna e morre simplesmente em função de uma reconciliação externa conosco e para que nos tornemos justos perante Ele. O propósito da encarnação foi a nossa libertação da morte eterna, nossa completa e eterna união com Ele na condição de paz que é constituída precisamente pela mais completa união amorosa entre Ele próprio e nós, uma condição na qual vivemos Sua total justiça e divindade em união com Ele. Se o Pai ama a face de todos os homens quando a contempla na face de Seu Filho encarnado, então, na face do Cristo crucificado e ressuscitado a face da espécie humana aparece ao Pai ainda mais digna de amor, porque por intermédio da cruz a humanidade se tornou uma com Deus numa ato de supremo amor por Ele. Nós próprios consentimos nessa entrega suprema, e no estado de ressurreição a penetração da humanidade pelo Espírito de Deus é perfeita e assegurada por toda a eternidade. A economia total que Deus criou para nós através de Seu Filho teve como finalidade essa perfeição escatológica da união de Deus com toda a espécie humana.

Em Sua ressurreição, Cristo ergueu Sua inteira humanidade – alma e corpo – a um estado de justiça e de união com Deus, numa perfeita e eterna santidade. Esse é o estado de total submissão ao Pai. Na ascensão, a justiça de Deus, a verdadeira glória do Pai, é comunicada ao homem. Essa glória se revela perfeitamente por intermédio do Cristo encarnado em cada momento no qual Ele, como homem, oferece um louvor perfeito ao Pai.

Todos os que acreditam Nele participarão dessa paz, dessa justiça, santidade e glória, e, por intermédio do Espírito Santo, participarão das primícias desses dons ainda no decurso de sua vida terrestre.  Pois a partir do Cristo ressuscitado e exaltado o Espírito Santo brilha de forma imediata e superabundante, exatamente como o calor irradia de um corpo incandescente. O estado ressuscitado e exaltado de Cristo constitui Sua humanidade plenamente preenchida e penetrada pelo Espírito Santo, na irradiação sem obstáculos do Espírito a partir de Seu interior. Seu corpo já não representa um obstáculo que O separa daqueles que Nele acreditam. Ao contrário, esse corpo recebeu o poder de compartilhar perfeitamente a Divindade com aqueles que estão unidos a ele.

Na cruz Cristo tomou a todos nós num abraço, pois Seu amor se dirige a todos, conduzindo-nos à Sua condição de auto entrega a Deus e ao homem, a condição na qual ele se esvaziou de Si mesmo em favor de Deus e do homem. E em Seu amor ele nos concede o poder para superarmos a nós mesmos e a todos os nossos impulsos egoístas.

Por meio da ressurreição Cristo combina em si a condição de vítima e o estado de ressurreição, a plena revelação da vida divina em Sua humanidade. E para aqueles que Nele acreditam Ele infunde essa mesma natureza combinada. São Paulo diz: “Sem cessar e por toda parte levamos em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo. De fato, embora estejamos vivos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal[30]”. E, por sua vez, diz Santo Atanásio: “Cristo, àqueles que Lhe dão testemunho, concede a cada um pessoalmente a vitória, tornando a morte completamente impotente para os que mantêm sua fé e carregam em si o sinal da cruz”. Por intermédio de Cristo temos o poder de morrer para as paixões e apetites egoístas e de morrer para nós próprios; mas também adquirimos o poder de viver uma nova vida, uma vida que triunfa em nós, que nasce em nosso espírito mas que também se revela em nosso corpo. Trata-se de um poder que sabemos não provir de nós, mas que tem sua fonte objetiva além de nós. Do Cristo ressuscitado Seu Espírito brilha mais intensamente, dando-nos um antegozo da semelhança com Sua morte e ressurreição e ao mesmo tempo nos conduzindo a uma perfeita semelhança com Ele.

Por meio de Sua encarnação, morte e ressurreição o Verbo de Deus encarnado ascende por degraus a um estado no qual o Espírito Santo brilha cada vez mais intensamente Nele. É através desse mesmo Espírito Santo que o Verbo une a si mesmo, depois que foram separados dele e dispersos por todos os cantos, todas as criaturas que jamais existiram, existem e existirão[31]. A Salvação, em seu estado final, de acordo com São Paulo, consiste na reunião de todas as coisas em Cristo. Assim como o pecado consiste no egoísmo que separa os homens de Deus e uns dos outros, a salvação consiste em superar o egoísmo, num mútuo amor entre todos os homens e em união com Deus. Entre a ressurreição de Cristo e a nossa própria ressurreição desenrola-se o intervalo no qual Cristo opera para nos unir a todos em Si, e no qual nos esforçamos para o mesmo objetivo, estimulados e sustentados por Sua atividade. Essa atividade de Cristo é dirigida a todos os homens e opera em todos os homens de maneira mais ou menos tangível e visível, em maior ou menor grau. Ela combate o egoísmo que existe em todos os homens, mas não os liberta dele sem seu próprio consentimento, e sua luta consiste em obter do homem o consentimento e a colaboração tendo em vista sua união com Cristo.

Cristo estabeleceu em Si próprio o fundamento e assegurou o poder para essa reunião de toda a humanidade Consigo por meio de sua encarnação, paixão, ressurreição e ascensão, e ao enviar Seu Espírito Santo que opera secretamente no mundo e visivelmente na Igreja. Daí por diante o Espírito de Cristo é infundido em nós continuamente como o poder unificador de Cristo. Em relação a isso, o Verbo, por intermédio de quem e em quem todas as coisas foram criadas no princípio, confere uma nova orientação e integração da totalidade da criação ao assumi-la em Si, a mesma criação que outrora abandonou a direção original que Deus quis para ela. Cristo superou as inimizades que que apareceram entre as criaturas quando os elementos que deveriam constituir uma criação simples e unificada se desintegraram e se afastaram uns dos outros. Assim é que o poder que emanou dessa unidade realizada em Cristo exerce sua influência unificadora sobre toda a criação. Por meio de seu nascimento virginal Cristo superou a oposição entre os sexos. Em Cristo “não existe homem ou mulher[32]”. Por meio de sua morte e ressurreição ele desmanchou a separação entre o Paraíso e o universo que surgiu após a Queda. Ele abriu para a humanidade a entrada proibida do Paraíso, e veio em pessoa à terra depois de Sua ressurreição para mostrar que Nele o Paraíso e o universo haviam se tornado uma só coisa. Através de sua ascensão Ele uniu os céus e a terra, levantando o corpo humano que assumira, um corpo de mesma substância e natureza que o nosso. Tendo exaltado o corpo e a alma acima das hostes dos anjos, Ele restaurou a unidade entre os mundos sensível e inteligível e assegurou a harmonia de toda a criação.

Assim é que foi por meio de Sua encarnação, paixão, ressurreição e ascensão, e por meio da missão e da atividade de Seu Espírito Santo que Ele uniu todas as coisas. Por meio de Sua encarnação o modo de união se tornou, por assim dizer, ontológico. Com Sua morte Ele purificou todo o cosmo, e de modo especial purificou a todos os homens como agentes conscientes do cosmo, tornando possível a eles exercer uma atividade unificadora. Por meio de Sua ressurreição Ele preencheu todas as coisas com o significado último de toda essa busca pela unidade, enchendo-as de luz.

Mas a união mais essencial que Cristo buscou, e que constitui sua contribuição decisiva para efetuar a unidade de toda a espécie humana, consiste na união de nós com Deus e na união mútua entre todos nós. Foi com essa finalidade que fomos criados no princípio. A fim de efetuar a união entre todos os homens, Cristo primeiramente uniu todas as coisas criadas nos mais profundos níveis de sua existência, e foi por intermédio dessa união que Ele trouxe a união a todos os homens. Santo Atanásio diz: “O Senhor veio para derrubar o demônio e para purificar o espaço, construindo para nós um caminho para os céus, como disse o Apóstolo, ‘através de um véu, ou seja, de Sua carne [33]’ [...] e assim, ele reabriu o caminho para os céus, dizendo mais uma vez: ‘Abri vossas portas, ó príncipes, e que elas permaneçam abertas, as portas eternas[34]’. Pois o próprio Verbi não necessita que se abram as portas, sendo Ele o Senhor de tudo, nem qualquer de Suas obras foi-Lhe obstada. Não, somos nós que o necessitamos, nós a quem Ele suportou em Seu próprio corpo – esse corpo que primeiramente Ele ofereceu à morte em favor de todos, e então, tendo feito isso, transformou em caminho para os céus”. Vemos aqui mais uma vez o quão estreitamente Santo Atanásio conecta a morte de Cristo com Sua ressurreição. Seu corpo teria que morrer para se levantar outra vez, de modo que por intermédio desse corpo reerguido e transfigurado todos nós, com nossos corpos, pudéssemos alcançar os céus e a transfiguração. Assim é que Santo Atanásio prossegue: “Ademais, como não foi Sua própria morte, mas a de toda a espécie humana que o Salvador veio para cumprir, Ele não deitou Seu corpo por um ato individual de morrer, pois para Ele, enquanto vida, isso não tinha cabimento; mas Ele aceitou a morte pelas mãos dos homens, para dessa maneira destruí-la completamente em Seu próprio corpo”.

Uma vez conduzidos à união com Deus pelo corpo sacrificado e reerguido do Senhor, nós, as obras de Suas mãos, somos também levados à união entre nós. Nossos próprios logoi e os logoi de nossas existências são atraídos à união com o Divino Logos, o Verbo no qual encontramos nossos arquétipos eternos e por quem nossas naturezas anseiam, como pelas profundezas insondáveis da vida e a fonte secreta desse conhecimento que buscamos como a essência de todas as coisas. Quando nossos desejos retornarem à sua conformidade com seu próprio ser e com suas finalidade e estrutura racional internas (logoi), e houverem rejeitado as disposições arbitrárias de seu egoísmo individualista irracional e antinatural, então seremos chamados a nos unirmos ao desejo humano de Cristo e, através dele, ao Seu desejo divino, que é um com Seu desejo humano.

A força de atração em Cristo é o Seu amor. Esse amor se revela no ato da encarnação e na forma de Sua vida terrena. Ela se revela mais enfaticamente no modo de Seu sacrifício, e com mais eficácia no seu estado reerguido e exaltado do qual o amor irradia como Espírito Santo. Todas essas maneiras de ser, concentradas no estado reerguido de Cristo, nos atraem para a ressurreição como o clímax da união com Ele e para conosco, fazendo uso simultâneo tanto de nossos anseios naturais como de nosso sacrifício que é alimentado pelo Seu sacrifício. Embora Cristo tenha ascendido, ele não obstante permanece em contato conosco e com os mais profundos níveis do mundo por intermédio da força de atração exercida por Seu amor. “Vede que eu estarei convosco até o fim das eras[35]”. Essas palavras foram ditas pelo Senhor para aqueles que foram enviados para chamar o mundo para Ele, mostrando que Ele próprio conduziria a todos os homens para Si por meio deles.

É uma verdade geral que o amor atrai e conecta. Ele é uma força unificadora que nasce da razão divina e da vontade divina na qual as demais razões e vontades têm sua origem, e no qual e através do qual todas as coisas podem encontrar sua harmonia comum. A razão divina é a base da harmonia de nossas razões e vontades que são unidas intimamente, e essa união se realiza por meio do amor, assim como a união de Deus com todos os homens e desses entre si se processa através do amor.

A união final de todos em Deus, o objetivo para o qual Cristo deseja conduzir os homens, de acordo com São Paulo[36], é equivalente ao Reino de Deus, o Reino do Amor. Essa é a proposta de toda a obra de salvação de Cristo, uma obra que é inconcebível sem esse objetivo escatológico e sem nosso esforço em direção a ele.



[1] “Se quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus por meio da morte do seu Filho, muito mais agora, já reconciliados, seremos salvos por sua vida”.
[2] “Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação. Pois era Deus quem reconciliava com ele mesmo o mundo por meio de Cristo, não levando em conta os pecados dos homens e colocando em nós a palavra da reconciliação. Sendo assim exercemos a função de embaixadores em nome de Cristo, e é por meio de nós que o próprio Deus exorta vocês. Em nome de Cristo, suplicamos: reconciliem-se com Deus”.
[3] “Porque Deus, a Plenitude total, quis nele habitar, para, por meio dele, reconciliar consigo todas as coisas, tanto as terrestres como as celestes, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz. Antigamente vocês eram estrangeiros e inimigos de Deus, por causa das obras más que praticavam e pensavam. Agora, porém, com a morte que Cristo sofreu em seu corpo mortal, Deus reconciliou vocês, para torná-los santos, sem mancha e sem reprovação diante dele”.
[4] “Cristo é a nossa paz. De dois povos, ele fez um só. Na sua carne derrubou o muro da separação: o ódio. Aboliu a Lei dos mandamentos e preceitos. Ele quis, a partir do judeu e do pagão, criar em si mesmo um homem novo, estabelecendo a paz. Quis reconciliá-los com Deus num só corpo, por meio da cruz; foi nela que Cristo matou o ódio. Ele veio anunciar a paz a vocês que estavam longe, e a paz para aqueles que estavam perto. Por meio de Cristo, podemos, uns e outros, apresentar-nos diante do Pai, num só Espírito.”.
[5] “Cristo nos resgatou da maldição da Lei, tornando-se ele próprio maldição por nós, como diz a Escritura: ‘Maldito seja todo aquele que for suspenso no madeiro’.” (Gálatas 3: 13). “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho. Ele nasceu de uma mulher, submetido à Lei para resgatar aqueles que estavam submetidos à Lei, a fim de que fôssemos adotados como filhos”. (Gálatas 4: 4-5).
[6] João 14: 20-23; 15: 1-9; Gálatas 2: 19-20; Efésios 3: 17.
[7] Gálatas 4: 4; Romanos 8: 15.
[8] Gálatas 4: 19.
[9] Efésios 3: 6.
[10] I João 1: 3; I Coríntios 1: 9.
[11] II Coríntios 13: 14; Filipenses 2: 1.
[12] Romanos 8: 14, 19; 9: 26; Gálatas 4: 6-7; Hebreus 2: 10, etc.
[13] II Pedro 1: 4.
[14] I Pedro 1: 4.
[15] I Pedro 3: 18.
[16] Tiago 5: 16.
[17] Apocalipse 22: 11.
[18] Mateus 6: 1.
[19] II Coríntios 1: 22; Efésios 1: 14.
[20] Efésios 4: 13.
[21] Do latim vicarius, o que faz as vezes de outro, substituto.

[22] João 17: 19.
[23] Efésios 3: 17-19.
[24] Efésios 2: 18.
[25] Efésios 2: 16.
[26] Gálatas 4: 19.
[27] Romanos 6: 3-5.
[28] Efésios 2: 16-18.
[29] II Coríntios 5: 15, 17.
[30] II Coríntios 4: 10-11.
[31] Efésios 1: 10; Colossenses 1: 16.
[32] Gálatas 3: 28.
[33] Hebreus 10: 20.
[34] Salmo 23: 7.
[35] Mateus 28: 20.
[36] Efésios 1: 10; Colossenses 1: 16-20.

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