I
Quer queiramos ou não, a questão da processão do Espírito
Santo foi o único motivo dogmático para a separação do Oriente e do Ocidente.
Todas as outras divergências que, historicamente, acompanharam ou seguiram a
primeira controvérsia dogmática sobre o Filioque, na medida em que também
tinham alguma importância dogmática, são mais ou menos dependentes dessa
questão original. Isso é muito fácil de entender, quando levamos em conta a
importância do mistério da Trindade e seu lugar em todo o corpo da doutrina cristã.
Assim, a batalha polêmica entre os Gregos e os Latinos foi travada
principalmente sobre a questão do Espírito Santo. Se surgiram outras questões e
tomaram o primeiro lugar em debates interconfessionais mais recentes, isso se
deu principalmente porque o plano dogmático em que opera o pensamento dos
teólogos não é mais o mesmo que no período medieval. Os problemas
eclesiológicos determinam cada vez mais as preocupações do pensamento cristão
moderno. Isto é como deveria ser. No entanto, a tendência de subestimar e até
mesmo desprezar os debates pneumatológicos do passado, que podem ser notados
entre certos teólogos Ortodoxos modernos (e especialmente entre os russos,
muitas vezes ingratos para Bizâncio) sugere que esses teólogos, tão prontos
para renunciar aos seus pais, carecem tanto do sentido dogmático quanto
reverência pela tradição viva.
É verdade que é sempre necessário revalorizar as verdades
que a Igreja afirmou no passado para atender às necessidades do presente. Mas
essa reavaliação nunca é uma desvalorização. É a reafirmação do valor daquilo
que foi dito em uma época diferente sob diferentes circunstâncias históricas. É
dever do historiador informar-nos sobre as circunstâncias em que um dogma foi
requerido pela primeira vez e indicar as implicações históricas do dogma. Mas
não é seu dever, como historiador, julgar os valores dogmáticos como tal. Se
isso não for lembrado, existe o perigo de que a teologia histórica se torne uma
"Eminência Parda", ou melhor, uma "Eminência Leiga", na
Igreja, buscando estabelecer pelos métodos da ciência secular um novo cânone de
tradição. Esta é uma espécie de Cesaropapismo dos estudiosos, que poderia ter
sucesso em impor sua autoridade sobre a Igreja, se a tradição não fosse, por
Ela mesma, uma realidade viva de revelação no Espírito Santo.
Assim, por exemplo, o erudito teólogo russo, V. Bolotov, um
eminente historiador de teologia, por ocasião das conversas de Bonn com os
Velho Católicos, considerou-se capaz de declarar, com base em uma análise de
textos Patrísticos, que o Filioque dificilmente constitui impedimentum dirimens no caminho da reconciliação dogmática[1].
De acordo com Bolotov, a questão dizia
respeito a dois "theologoumena",
expressando em duas fórmulas diferentes - a Filio e διἁ Υἱοῦ - a doutrina da
processão do Espírito Santo. Bolotov era historiador de teologia muito bom para
concluir que a doutrina de ambos os lados era idêntica. Mas ele não tinha o
sentido dogmático de perceber o verdadeiro lugar dessas duas fórmulas em duas
diferentes triadologias. Mesmo historicamente, ele cometeu um erro ao tratar a
Filio como o oposto de διἁ Υἱοῦ, como se fossem as duas fórmulas que expressam
a doutrina da processão hipostática do Espírito Santo. Foi a Patre Filioque e ἐκ
μόνου τοῦ Πατρὸς que, como fórmulas sobre a processão, entraram em conflito e,
portanto, expuseram uma divergência na teologia da Trindade. Bolotov deve ter
reconhecido, implicitamente, o caráter radical das divergências, uma vez que,
afinal, ele negou categoricamente o caráter causal da mediação do Filho na
processão do Espírito Santo: "Aber wenn auch in den innersten geheimnisvollsten
Beziehungen des trinitarischen Lebens begründet, ist das 'durch den Sohn' frei
von dem leisesten Anstrich einer Kausalitäts-Bedeutung[2]".
A fórmula διἁ Υἱοῦ, interpretada no sentido de uma mediação do Filho na
processão hipostática do Espírito Santo, foi uma fórmula de concórdia adotada
pelos partidários da união no século XIII precisamente porque a sua triadologia
não era a mesma que a da adversários do Filioque. Ao adotar a interpretação de
διἁ Υἱοῦ própria dos Gregos Latinizantes, Bolotov minimizou a divergência
doutrinária entre as duas triadologias; portanto, ele pôde escrever sobre duas
"opiniões teológicas" toleráveis.
Nossa tarefa aqui não será aquela de um historiador. Devemos
deixar de lado as questões relativas às origens das duas fórmulas diferentes.
Nós até admitiremos a possibilidade de uma interpretação Ortodoxa do Filioque,
como apareceu pela primeira vez em Toledo, por exemplo. Um estudo do
Filioquismo dos concílios espanhóis dos séculos V, VI e VII seria de importância
capital, para que uma apreciação dogmática dessas fórmulas pudesse ser feita.
Aqui, o trabalho desinteressado de teologia histórica poderia ser realmente
útil para a Igreja. Não estamos lidando com fórmulas verbais aqui, mas com duas
doutrinas teológicas estabelecidas. Devemos tentar mostrar os contornos da
teologia Trinitária que os teólogos Ortodoxos se consideram obrigados a
defender quando são confrontados com a doutrina da eterna processão pessoal do
Espírito Santo do Pai e do Filho, como de um único princípio. Devemos
limitar-nos a estabelecer certos princípios teológicos, de caráter geral, sobre
as fórmulas ἐκ μόνου τοῦ Πατρὸς e διἁ Υἱοῦ. Não devemos entrar nas
controvérsias do passado em detalhes. Nosso único objetivo será tornar melhor
compreendida a triadologia Ortodoxa.
II
Os teólogos Católicos Romanos e Ortodoxos concordam em
reconhecer que um certo anonimato caracteriza a Terceira Pessoa da Santíssima
Trindade. Embora os nomes "Pai" e "Filho" denotem
distinções pessoais muito claras, não são, de modo algum, intercambiáveis e,
não podem em qualquer caso, referir-se à natureza comum das duas hipóstases, o
nome "Espírito Santo" não tem essa vantagem. De fato, dizemos que
Deus é Espírito, significando com isso a natureza comum, assim como qualquer
uma das pessoas. Dizemos que Ele é Santo: o triplo Sanctus do cânon da Liturgia
faz alusão a Três Pessoas Sagradas, tendo a santidade comum da mesma Divindade.
Tomado em si, o termo "Espírito Santo" pode ser aplicado, não a uma
distinção pessoal, mas a natureza comum das Três. Nesse sentido, Tomás de
Aquino está certo em dizer que a Terceira Pessoa da Trindade não tem nome
próprio e que o nome "Espírito Santo" lhe foi dado com base no uso
das Escrituras (accomodatum ex usu Scripturae; I, q. 36, a. 1).
Encontramos a mesma dificuldade quando desejamos definir o
modo de origem do Espírito Santo, contrastando sua "processão" com a
"geração" do Filho. Ainda mais do que o nome "Espírito
Santo", o termo "processão" não pode ser considerado, em si, uma
expressão que contempla exclusivamente a Terceira Pessoa. É um termo geral, que
poderia ser aplicado, in abstracto,
ao Filho; a teologia Latina fala mesmo de duas processões. Deixamos de lado,
por enquanto, a questão de saber até que ponto uma forma tão abstrata de lidar
com o mistério da Trindade é legítima. O único ponto que enfatizamos aqui é que
o termo "processão não tem a precisão do termo 'geração'". O último
termo, ao mesmo tempo que preserva o caráter misterioso da divina Paternidade e
Filiação, estabelece uma relação definitiva entre duas pessoas. Não é o caso do
termo "processão" - uma expressão indefinida que nos confronta com o
mistério de uma pessoa anônima, cuja origem hipostática nos é apresentada
negativamente: não é geração, é diferente daquela do Filho[3].
Se procuramos tratar positivamente essas expressões, encontramos uma imagem da
economia da Terceira Pessoa, em vez de uma imagem de seu caráter hipostático:
encontramos a processão de uma força divina ou Espírito que realiza a
santificação. Chegamos a uma conclusão paradoxal: tudo o que conhecemos do
Espírito Santo refere-se à sua economia; tudo o que não sabemos nos faz venerar
Sua Pessoa, quando veneramos a inefável diversidade do Três consubstancial.
No século IV, a questão da Trindade foi examinada em um
contexto Cristológico e foi levantada em conexão com a natureza do Logos. O
termo ὁμοούσιος, enquanto assumia a diversidade das Três Pessoas, era para
expressar a identidade na Trindade, enfatizando a unidade da natureza comum
contra todo subordinacionismo. No século IX, a controvérsia Pneumatológica
entre os Latinos e os Gregos levantou a questão da Trindade em conexão com a
hipóstase do Espírito Santo. Ambos os partidos contendentes, enquanto assumia a
identidade natural das Três, tinham a intenção de expressar a diversidade
hipostática na Trindade. O primeiro partido se esforçou para estabelecer a
diversidade pessoal com base no termo ὁμοούσιος, a partir da identidade
natural. O último partido, mais consciente da antinomia trinitária da σὐσία e ὑπόστασις,
levando em consideração a consubstancialidade, enfatizou a monarquia do Pai,
como uma salvaguarda contra todo o perigo de um novo Sabellianismo. A expressão
é a de São Fócio[4].
Duas doutrinas da processão hipostática do Espírito Santo, a Patre Filioque tanquam ab uno principio
e ἐκ μόνου τοῦ Πατρός, representam duas soluções diferentes da questão da
diversidade pessoal na Trindade, duas triadologias diferentes. É importante que
descrevamos os contornos gerais dessas triadologias.
Partindo do fato de que o caráter hipostático do Espírito
Santo permanece indefinido e "anônimo", a teologia Latina procura
tirar uma conclusão positiva quanto ao seu modo de origem. Uma vez que o termo
"Espírito Santo" é, em certo sentido, comum ao Pai e ao Filho (ambos
são Santos e ambos são Espírito), ele deve denotar uma pessoa relacionada ao
Pai e ao Filho em relação ao que eles têm em comum[5].
Mesmo quando o assunto em questão é a processão, tomada como o modo de origem
da Terceira Pessoa, o termo "processão" - que em si não significa nenhum modo de origem
distinguível da geração - deve indicar uma relação com o Pai e o Filho juntos,
para servir de base para uma Terceira Pessoa, distinta das outras duas. Uma vez
que para "relação de oposição" Tomás usa as expressões relativa oppositio, opositio relationis
(isto acima de tudo com referência à essência), relatio (ou respectus) ad suum opositum e relationes oppositae
para significar o que aqui chamamos de "relação de oposição." Ao usar
essa expressão, não representamos de modo algum incorretamente o pensamento de
Tomás, pois a ideia de oposição está implícita em sua própria definição de
relação: "De ratione autem
relationis est respectus unius ad alterum, secundum quem aliquid alteri
adversitur relative[6]"
só pode ser estabelecido entre dois termos, o Espírito Santo deve proceder do
Pai e do Filho, na medida em que representam uma unidade. Este é o significado
da fórmula segundo a qual é dito que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho
como de um princípio de espiração[7].
Não se pode negar a clareza lógica deste processo de
raciocínio, que busca basear a diversidade hipostática no princípio das
relações de oposição. Este princípio triadológico, formulado por Tomás de
Aquino, torna-se inevitável no momento em que a doutrina da processão do
Espírito Santo ab utroque é admitida.
Isso pressupõe as seguintes condições: (1) Que as relações são a base das
hipóstases, Tomás de Aquino vai além: para ele, as pessoas da Trindade são
relações (persona est relatio, I, 40,
a.2) que se definem pela oposição mútua entre elas, a primeira com a segunda, e
essas duas juntas com a terceira. (2) Que duas pessoas representam uma unidade
não pessoal, na medida em que dão origem a uma outra relação de oposição. (3)
Que, em geral, a origem das pessoas da Trindade é impessoal, tendo sua base
real na essência única, diferenciada pelas suas relações internas. O caráter
geral desta triadologia pode ser descrito como uma preeminência da unidade
natural sobre a trindade pessoal, como um primado ontológico da essência sobre
as hipóstases.
A atitude do pensamento Ortodoxo, quando confrontado com o
nome misterioso do Espírito Santo, denotando uma economia divina ao invés de
uma marca hipostática de distinção, está longe de ser simplesmente uma recusa
em definir sua diversidade pessoal. Pelo contrário, por essa diversidade, ou
(para falar de forma mais geral) a diversidade das Três Pessoas, é apresentada
como algo absoluto, recusamos admitir uma relação de origem que opõe o Espírito
Santo ao Pai e ao Filho, tomado como um princípio único. Se isso fosse
admitido, a diversidade pessoal na Trindade em efeito seria relativizada: na
medida em que o Espírito Santo é uma hipóstase, o Espírito Santo apenas
representa a unidade dos dois em sua natureza idêntica. Aqui, a impossibilidade
lógica de qualquer oposição entre três termos intervém, e a clareza deste
sistema triadológico se mostra extremamente superficial. De fato, nessas linhas,
não podemos alcançar um modo de distinguir as três hipóstases uma da outra sem
confundi-las de uma forma ou de outra com a essência. De fato, a diversidade
absoluta das Três não pode ser baseada em suas relações de oposição sem
admitir, implícita ou explicitamente, o primado da essência sobre as
hipóstases, assumindo uma base relativa (e, portanto, secundária) para a
diversidade pessoal, em contraste com a identidade natural. Pe. Th. de Régnon,
perguntando por que as considerações Filioquistas nunca foram desenvolvidas nas
ricas obras dos Pais Gregos, pergunta: "Isso não é prova de que [tais
considerações] nunca lhes ocorreram na concepção da Trindade?" E ele
responde com uma confissão significativa: "De fato, todas essas
[considerações filioquistas] pressupõem que, na ordem dos conceitos, a natureza
é anterior à pessoa e que esta representa uma espécie de eflorescência da
natureza[8]".
Ele também escreve: "A filosofia Latina prevê primeiro a natureza em si
mesma e então procede à expressão; a filosofia Grega prevê primeiro a expressão
e depois a penetra para encontrar a natureza. A Latina considera a
personalidade como um modo da natureza, o Grego considera a natureza como o conteúdo
da pessoa[9]".
Mas isso é exatamente o que a teologia Ortodoxa não pode admitir.
Contra a doutrina da processão ab utroque, os Ortodoxos afirmaram que o Espírito Santo procede do
Pai apenas - ἐκ μόνου τοῦ Πατρός. Esta fórmula, embora verbalmente possa
parecer nova, representa em seu teor doutrinal nada mais do que uma afirmação
muito simples do ensino tradicional sobre a "monarquia do Pai", fonte
única das hipóstases divinas. Pode-se objetar que esta fórmula para a processão
do Espírito Santo do Pai, por si só, não fornece lugar para qualquer relação de
oposição entre a Segunda Pessoa da Trindade e a Terceira Pessoa. Mas aqueles
que dizem isso ignoram o fato de que o próprio princípio das relações de
oposição é inaceitável para a triadologia Ortodoxa - que a expressão
"relações de origem" tem um sentido diferente na teologia Ortodoxa do
que entre os defensores do Filioque.
Quando afirmamos que a eterna processão do Espírito Santo,
apenas do Pai, se distingue de forma inefável da eterna geração do Filho, que é
gerado pelo Pai, não se está tentando estabelecer uma relação de oposição entre
o Filho e o Espírito Santo. Isso não é meramente porque a processão é inefável
(a geração do Filho não é menos inefável)[10],
mas também porque as relações de origem na Trindade - filiação, processão - não
podem ser consideradas como base para as hipóstases, como aquelas que determinam
sua diversidade absoluta[11].
Quando dizemos que a processão do Espírito Santo é uma relação que difere
absolutamente da geração do Filho, indicamos a diferença entre eles quanto ao
modo de origem (τρόπος ὑπάρξεως) Mais exatamente, "modo de
subsistência". Esta expressão é encontrada, primeiramente, em São Basílio[12];
e mais tarde em São João de Damasco[13].
É muito usado por George de Chipre[14],
a partir dessa fonte comum para afirmar que a comunidade de origem não afeta de
modo algum a diversidade absoluta entre o Filho e o Espírito.
Aqui pode-se afirmar que as
relações apenas servem para expressar a diversidade hipostática das Três; elas
não são a base. É a diversidade absoluta das três hipóstases que determinam
suas relações diferentes entre si, e não vice-versa. Aqui o pensamento pára,
confrontado com a impossibilidade de definir uma existência pessoal em sua
absoluta diferença de uma outra, e deve adotar uma abordagem negativa para
proclamar que o Pai - Ele que é sem começo (ἄναρχος) - não é o Filho ou o
Espírito Santo, que o Filho gerado não é nem o Espírito Santo nem o Pai, que o
Espírito Santo "que procede do Pai" não é nem o Pai nem o Filho.
"Ser não-gerado, gerado e proceder - estes são os traços que caracterizam
o Pai, o Filho e Aquele a quem chamamos de Espírito Santo, de modo a
salvaguardar a distinção das três hipóstases na natureza única e a majestade da
Divindade, pois o Filho não é o Pai, porque há apenas um Pai, mas Ele é o que o
Pai é; o Espírito Santo, embora Ele proceda de Deus, não é o Filho, porque só
existe um só Filho gerado, mas Ele é o que o Filho é. As Três são Um na
divindade e o Um é Três em pessoas. Assim, evitamos a unidade de Sabelius e a
triplicidade da odiosa heresia atual[15]".
Aqui não podemos falar de relações de oposição, mas apenas de relações de
diversidade. Em sua polêmica contra os Latinos, São Marcos de Éfeso, afirmando
o princípio da diversidade das pessoas, critica o princípio tomista da oposição
das pessoas[16]. Para
seguir aqui a abordagem positiva e encarar as relações de origem, senão como
sinais da inexprimível diversidade das pessoas, é suprimir a qualidade absoluta
dessa diversidade pessoal, isto é, relativizar a Trindade e, em certo sentido,
despersonalizá-la.
A abordagem positiva empregada pela triadologia Filioquista
traz uma certa racionalização do dogma da Trindade, na medida em que suprime a
antinomia fundamental entre a essência e as hipóstases. Tem-se a impressão de
que os pontos altos da teologia foram abandonados para descer ao nível da
filosofia religiosa. Por outro lado, a abordagem negativa, que nos coloca face
a face com a antinomia primordial da identidade absoluta e a diversidade não
menos absoluta em Deus, não procura esconder essa antinomia, mas expressa-a
adequadamente, para que o mistério da Trindade possa nos fazer transcender o
modo filosófico de pensar e que a Verdade possa nos libertar de nossas
limitações humanas, alterando nossos meios de compreensão. Se, na abordagem
anterior, a fé procura a compreensão, para transferir a revelação para o plano
da filosofia, na última abordagem, a compreensão busca as realidades da fé,
para se transformar, tornando-se cada vez mais aberta aos mistérios da
revelação. Uma vez que o dogma da Trindade é a pedra angular do arco de todo
pensamento teológico e pertence à região que os Pais Gregos chamaram de
Θεολογία por excelência, é compreensível que uma divergência nesse ponto
culminante, insignificante como possa parecer à primeira vista, deve ter uma
importância decisiva. A diferença entre as duas concepções da Trindade
determina, em ambos os lados, todo o caráter do pensamento teológico. Isto é
assim, a tal ponto que se torna difícil de aplicar, sem equívocos, o mesmo nome
da teologia a estas duas formas diferentes de lidar com realidades divinas.
IV
Se a diversidade pessoal em Deus se apresenta como um fato
primordial, não deduzido de qualquer outro princípio ou baseado em qualquer
outra ideia, isso não significa que a identidade essencial das Três seja
ontologicamente posterior à sua diversidade hipostática. A triadologia Ortodoxa
não é uma contra-explosão ao Filioquismo; não se corre para o outro extremo.
Como já dissemos, as relações de origem significam a diversidade pessoal das
Três, mas indicam não menos a sua identidade essencial.
Na medida em que o
Filho e o Espírito Santo são distintos do Pai, nós veneramos três Pessoas; na
medida em que são um com Ele, confessamos sua consubstancialidade. "Para
nós existe um Deus, pois a Divindade é uma, e as Três em quem cremos procedem e
são referenciados ao Um. Assim, quando olhamos para a Divindade, a Primeira
Causa, e a Monarquia, o Um aparece para nós; mas quando olhamos para as Pessoas
em quem a Divindade é, que eternamente e com a mesma glória saem da Primeira
Causa, nós adoramos as Três[17]".
São Assim, a monarquia do Pai mantém o equilíbrio perfeito entre a natureza e
as pessoas, sem descer demais em qualquer um dos lados. São Fócio compara a
Trindade com um par de escalas, nas quais a agulha representa o Pai, e as duas
plataformas representam o Filho e o Espírito Santo[18].
Não há nem uma substância impessoal nem há pessoas não-consubstanciais. A única
natureza e as três hipóstases são apresentadas simultaneamente ao nosso
entendimento, com nenhuma antes da outra. A origem das hipóstases não é
impessoal, uma vez que se refere à pessoa do Pai; mas é impensável separada da
posse comum da mesma essência, a "divindade na divisão indivisa[19]".
Caso contrário, deveríamos ter Três Indivíduos Divinos, Três Deuses unidos por
uma ideia abstrata da Divindade. Por outro lado, uma vez que a
consubstancialidade é a identidade não-hipostática das Três, na medida em que
tem (ou melhor, são) uma essência comum, a unidade das três hipóstases é
inconcebível, separada da monarquia do Pai, que é o princípio da possessão
comum da mesma essência. Caso contrário, deveríamos nos preocupar com uma
essência simples, diferenciada por relações. "A única natureza nas Três é
Deus; mas a união (ἕνωσις) é o Pai, de quem as outras procedem e a quem se
referem, não para confundir, mas sim ter tudo em comum com Ele, sem distinção
de tempo, vontade ou poder[20]".
Vale a pena recordar aqui o que dissemos anteriormente sobre
a abordagem negativa característica do pensamento Ortodoxo - uma abordagem que
altera radicalmente o valor dos termos filosóficos aplicados a Deus. Não só a
imagem de "causa", mas também os termos "produção",
"processão" e "origem" devem ser vistos como expressões
inadequadas de uma realidade que é estranha a todo o devir, a todo processo, a
todo início. Assim como as relações de origem significam algo diferente das
relações de oposição, a causalidade não é mais que uma imagem um tanto
defeituosa, que tenta expressar a unidade pessoal que determina as origens do
Filho e do Espírito Santo. Esta causa única não é anterior aos seus efeitos,
pois na Trindade não há prioridade e posterioridade. Ele não é superior aos
seus efeitos, pois a causa perfeita não pode produzir efeitos inferiores. Ele
é, portanto, a causa de sua igualdade consigo mesmo. "Pois Ele seria a
origem (ἀρχή) de coisas insignificantes e indignas, ou melhor, o termo 'origem'
seria usado em um sentido insignificante e indigno, se Ele não fosse a origem
da Divindade (τῆς Θεότητος ἀρχὴ) e bondade contemplada no Filho e no Espírito:
no primeiro como Filho e Palavra, no último como Espírito que procede sem
separação[21]".
A causalidade atribuída à pessoa do Pai, que eternamente gera o Filho e
eternamente faz com que o Espírito Santo proceda, expressa a mesma ideia da
monarquia do Pai: que o Pai é o princípio pessoal da unidade das Três, a fonte
da possessão comum do mesmo conteúdo, da mesma essência.
As expressões "fonte Divina" e "fonte da
Divindade" não significam que a essência divina esteja sujeita à pessoa do
Pai, mas somente que a pessoa do Pai é a base da possessão comum da mesma
essência, porque a pessoa do Pai, não sendo a única pessoa da Divindade, não
deve ser identificada com a essência. Em certo sentido, pode-se dizer que o Pai
é esta possessão da essência divina em comum com o Filho e o Espírito Santo, e
que Ele não seria uma pessoa divina se fosse apenas uma mônada: Ele seria
identificado com a Essência divina. Aqui pode ser útil lembrar que São Cirilo
de Alexandria considerava o nome "Pai" superior ao nome
"Deus", porque o nome "Deus" é dado a Deus em relação às
suas relações com seres de uma natureza diferente[22].
V
Com referência ao Pai, a causalidade expressa a ideia de que
Ele é Deus-Pessoa, na medida em que Ele é a causa de outras pessoas divinas - a
ideia de que Ele não poderia ser plenamente e absolutamente Pessoa, a menos que
o Filho e o Espírito Santo sejam iguais a Ele na posse da mesma natureza e são
da mesma natureza. Isso pode levar à ideia de que cada pessoa da Trindade
poderia ser considerada como a causa das outras duas, na medida em que cada
pessoa não é a essência comum; isso equivaleria a uma nova relativização das
hipóstases, transformando-as em sinais convencionais e intercambiáveis de três
diversidades. A teologia Católica Romana evita este relativismo pessoal ao
professar a crença na processão do Espírito Santo ab utroque, isto é, caindo em um relativismo impessoal, o das relações
de oposição, que são consideradas como a base das três pessoas na unidade de
uma essência simples. A teologia Ortodoxa, ao tomar como ponto de partida a
antinomia inicial da essência e da hipóstase, evita o relativismo pessoal ao
atribuir a causalidade ao Pai apenas. A monarquia do Pai estabelece assim relações
irreversíveis, que nos permitem distinguir as outras duas hipóstases do Pai, e
ainda relacioná-las ao Pai, como um princípio concreto de unidade na Trindade.
Não há apenas unidade da mesma natureza nas Três, mas também unidade das Três
Pessoas da mesma natureza. São Gregório de Nazianzus expressa isso de forma
clara: "Cada uma considerada em si mesma é inteiramente Deus, como o Pai,
assim o Filho, como o Filho, assim o Espírito Santo, mas cada uma preserva suas
propriedades; consideradas juntas, as Três são Deus; cada uma (considerado em
si mesma é) Deus por causa da consubstancialidade, as Três (considerados juntas
são) Deus por causa da monarquia[24]".
No que diz
respeito a Trindade, estamos na presença de Um ou de Três, mas nunca de dois.
A processão do Espírito Santo ab utroque não significa uma passagem além da díade, mas sim
reabsorção da díade na mônada, o retorno da mônada sobre si mesma. É uma
dialética da mônada que se abre para a díade e se fecha novamente em sua
simplicidade. A ideia do Espírito Santo como o amor mútuo do Pai e do Filho é
característica, neste sentido, da triadologia Filioquista. Por outro lado, a
processão do Espírito Santo somente do Pai, ao enfatizar a monarquia do Pai
como o princípio concreto da unidade das Três, passa além da díade sem retorno
à unidade primordial, sem a necessidade de Deus retrair-se na simplicidade da
essência. Por esta razão, a processão do Espírito Santo do Pai apenas nos
confronta com o mistério da "Tri-Unidade". Não temos aqui uma
essência simples e fechada em si mesma, sobre a qual as relações de oposição
foram superpostas para disfarçar um deus da filosofia como Deus da revelação
cristã. Dizemos "a Trindade simples", e essa expressão antinômica,
característica da hinografia Ortodoxa[28].
ressalta uma simplicidade na qual a diversidade absoluta das três pessoas não
pode de modo algum relativizar.
VI
Quando a teologia Católica Romana apresenta as relações de
origem como atos nocionais e fala de duas processões per modum intellectus e per
modum voluntatis, compromete-se do ponto de vista da triadologia Ortodoxa -
um erro inadmissível de confusão sobre a Trindade. Com efeito, as qualidades
externas de Deus - intelecto, vontade ou amor - são introduzidas no interior da
Trindade para designar as relações entre as três hipóstases. Esta linha de
pensamento nos dá uma individualidade divina ao invés de uma Trindade de pessoas
- uma individualidade que, no pensamento, é consciente de seu próprio conteúdo
essencial (geração da Palavra per modum
intellectus) e que, ao se conhecer, ama a si mesmo (a processão do Espírito
Santo ab utroque, per modum voluntatis ou per modum amoris). Estamos aqui
confrontados com um antropomorfismo filosófico que não tem nada em comum com o
antropomorfismo bíblico; pois as teofanias bíblicas, ao mesmo tempo em que nos
mostram em aparência humana os atos e manifestações de um Deus pessoal na
história do mundo, também nos colocam face a face com o mistério de Seu Ser
incognoscível, que os Cristãos, no entanto, ousam venerar e invocar como o Ser
único em Três Pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo, que vivem e reinam na luz
inacessível de sua essência.
Para nós, a Trindade permanece o Deus absconditus, o Santo dos Santos da existência divina, onde nenhum
"fogo alheio" pode ser introduzido. A teologia será fiel à tradição,
na medida em que seus termos técnicos - οὐσία, ὑπόστασις, consubstancialidade,
relações de origem, causalidade, monarquia - servem para apresentar mais e mais
claramente o mistério inicial de Deus a Trindade, sem obscurecer com
"deduções Trinitárias" derivado de outro ponto de partida. Ao
defender a processão hipostática do Espírito Santo somente do Pai, a Ortodoxia
professa sua fé na "Trindade simples", onde as relações de origem
denotam a diversidade absoluta das Três ao mesmo tempo indicando sua unidade,
representada pelo Pai, que não é simplesmente uma mônada, mas - na medida em
que ele é o Pai - o princípio da Tri-Unidade. Isto significa que, se Deus é
verdadeiramente o Deus Vivo da revelação e não a essência simples dos
filósofos, Ele só pode ser Deus da Trindade. Esta é uma verdade primordial,
incapaz de se basear em qualquer processo de raciocínio, porque todos os
raciocínios, toda a verdade e todo pensamento se revelam posteriores à
Trindade, a base de todo ser e todo conhecimento.
Como vimos, toda triadologia depende da questão da processão
do Espírito Santo:
(1) Se o Espírito Santo procede apenas do Pai, essa
processão inefável nos apresenta com a diversidade absoluta das três
hipóstases, excluindo todas as relações de oposição. Se Ele procede do Pai e do
Filho, as relações de origem, em vez de serem sinais da diversidade absoluta,
tornam-se determinantes das pessoas, que emanam de um princípio impessoal.
(2) Se o Espírito Santo procede apenas do Pai, esta
processão nos apresenta uma Trindade que escapa às leis do número quantitativo,
uma vez que vai além da díada de termos opostos, não por meio de uma síntese ou
de uma nova série de números, mas por uma diversidade absolutamente nova que
chamamos a Terceira Pessoa. Se o Espírito Santo procede ab utroque, obtemos uma Trindade relativizada, submetida às leis de
número e de relações de oposição - leis que não podem servir de base para a
diversidade das Três Pessoas sem confundi-las entre si ou com sua natureza
comum.
(3) Se o Espírito Santo procede apenas do Pai, como a causa
hipostática das hipóstases consubstancial, encontramos a "Trindade
simples", onde a monarquia do Pai condiciona a diversidade pessoal das
Três, ao mesmo tempo que expressa a unidade essencial delas. O equilíbrio entre
as hipóstases e a οὐσία é salvaguardado. Se o Espírito Santo procede do Pai e
do Filho como de um único princípio, a unidade essencial tem precedência sobre
a diversidade pessoal, e as Pessoas tornam-se relações da essência,
diferenciando-se umas das outras pela oposição mútua. Esta não é mais a
"Trindade simples", mas uma simplicidade absoluta da essência, que é
tratada como uma base ontológica em um ponto onde não pode haver base, exceto a
própria Tri-Unidade primordial.
VII
Com o dogma do Filioque, o Deus dos filósofos e sábios é
introduzido no coração do Deus Vivo, tomando o lugar do Deus absconditus, qui posuit tenebfas latibulum
filum. A essência incognoscível do Pai, Filho e Espírito Santo recebe
qualificações positivas. Torna-se o objeto da teologia natural: temos então o
"Deus em geral", que poderia ser o deus da Descartes, ou o deus de
Leibnitz, ou mesmo talvez, até certo ponto, o deus de Voltaire e dos deístas
descristianizados do século XVIII. Os manuais de teologia começam com uma
demonstração de Sua existência, dali deduzem, a partir da simplicidade de Sua
essência, o modo pelo qual as perfeições encontradas entre as criaturas podem
ser atribuídas a esta essência eminentemente simples. De Seus atributos,
iniciam uma discussão sobre o que Ele pode ou não pode fazer, se Ele pode ou
não contradizer-se e permanecer fiel à sua perfeição essencial. Finalmente um
capítulo sobre as relações da essência - que não abole a simplicidade - serve
como uma ponte frágil entre o deus dos filósofos e o Deus da revelação.
Com o dogma da processão do Espírito Santo somente do Pai, o
Deus dos filósofos estará para sempre banido dos "Santos dos Santos, que
está escondido do olhar dos Serafins e é glorificado através do
Triplamente-Santo, unido em uma única Soberania e Divindade[30]".
A essência inefável da Trindade escapa toda a qualificação positiva, incluindo
aquela da simplicidade. Se nós falamos de "Trindade simples", esta
expressão contraditória significa que as distinções entre as três hipóstases e
entre elas e a essência não introduz na Tri-Unidade nenhuma divisão nos
"elementos constitutivos." Onde a ideia da monarquia do Pai permanece
inabalável, nenhuma distinção postulada pela fé pode introduzir composição na
Divindade. Precisamente porque Deus é incognoscível naquilo que Ele é, a
teologia Ortodoxa distingue a essência de Deus e Suas energias, entre a
natureza inacessível da Santíssima Trindade e suas "processões naturais[31]".
Todos os nomes, exceto os do Pai, do Filho e do Espírito
Santo - até mesmo os nomes de "Palavra" e "Paráclito" - são
inadequados para designar as características especiais das hipóstases na
existência inacessível da Trindade e se referem ao aspecto externo de Deus,
para a Sua manifestação, e é assim que o Logos do Prólogo do Evangelho de São
João significa o Filho, na medida em que Ele manifesta a natureza do Pai - a
natureza comum da Trindade. Nesse sentido, o Logos também inclui o papel
manifesto do Espírito Santo: "Nele estava a vida e a vida era a luz dos
homens" ou mesmo Sua economia. O dogma da Trindade marca o cume da
teologia, onde nosso pensamento permanece parado diante do mistério primordial
da existência do Deus pessoal. Além dos nomes que denotam as três hipóstases e
o nome comum da Trindade, os inúmeros nomes que aplicamos a Deus - os
"nomes divinos" que os livros de teologia chama de seus atributos - denotam
Deus não em seu Ser inacessível, mas no "que circunda a essência" (τὰ
περὶ τῆς οὐσίας)[32]. Este
é o resplendor eterno do conteúdo comum das Três Pessoas, que revelam sua
natureza incomunicável nas "energias". Este termo técnico da teologia
bizantina, denotando um modo de existência divina além da essência, não
introduz nova noção filosófica estranha à revelação. A Bíblia, em sua linguagem
concreta, não fala de outra coisa senão das "energias" quando nos
fala da "glória de Deus" - uma glória com inúmeros nomes que circunda
o Ser inacessível de Deus, fazendo Ele conhecido fora de Si mesmo, enquanto
esconde o que Ele é em si mesmo. Esta é a glória eterna que pertence às Três
Pessoas, que o Filho "tinha antes que o mundo fosse". E quando
falamos das energias divinas em relação aos seres humanos a quem são
comunicadas e por quem são apropriadas, essa realidade divina e incriada dentro
de nós é chamada de Graça.
VIII
As energias manifestantes de Deus -
que significam um modo de existência divina diferente da própria Trindade, em
sua natureza incomunicável - não fazem uma ruptura na sua unidade; elas não
abolem a "Trindade simples". A mesma monarquia do Pai, que é a causa
das hipóstases consubstanciais do Filho e do Espírito Santo, também preside a
manifestação externa da unidade da Trindade. Aqui, o termo
"causalidade", aplicado à Pessoa do Pai, na medida em que Ele é o
princípio das diversidades absolutas das Três Pessoas consubstanciais (um termo
que implica a processão hipostática do Espírito Santo apenas do Pai) deve ser
claramente distinguido da revelação ou manifestação do Pai pelo Filho no
Espírito Santo. Causalidade, com todos os seus defeitos como termo, expressa
muito bem o que representa: a distinção hipostática das Três que surge da
Pessoa do Pai - uma distinção entre diversidades absolutas, provocada pelo fato
do Pai não ser exclusivamente a essência. Não é possível substituir o termo
convencional "causalidade" por "manifestação" do Pai - como
o Pe. Bulgakov tentou fazer[33]
- sem confundir os dois planos de pensamento: o da existência da Trindade em
si, e a da existência ad extra, na radiância da glória essencial de Deus.
Se o Pai é a causa pessoal das hipóstases, Ele também é,
pela mesma razão, o princípio da possessão comum (das Pessoas) de uma e mesma
natureza; e nesse sentido, Ele é a "fonte" da divindade comum das
Três. A revelação desta natureza, a externalização da essência incognoscível
das Três, não é uma realidade estranha às Três hipóstases. Toda energia, cada
manifestação, vem do Pai, é expressa no Filho, e segue no Espírito Santo.
Assim, todos os nomes divinos, denotando como fazem a natureza comum, podem ser
aplicados a cada uma das Pessoas, mas apenas na ordem energética - a ordem da
manifestação da Divindade. Veja, por exemplo, São Gregório de Nyssa[34]:
"A fonte do poder é o Pai, o poder é o Filho, o espírito de poder é o
Espírito Santo". São Gregório de Nazianzus[35]:
"O Verdadeiro, a Verdade, o Espírito da Verdade". Essa processão -
natural, "enérgica", manifesta - deve ser claramente distinguida da
processão hipostática, que é pessoal, interna, do Pai apenas. A mesma monarquia
do Pai condiciona tanto a processão hipostática do Espírito Santo - Sua
existência pessoal ἐκ μόνου τοῦ Πατρὸς - como a manifestação, processão natural
da Divindade comum ad extra no Espírito Santo, através do Filho - διἁ Υἱοῦ.
Se, como já dissemos, o nome "Espírito Santo"
expressa mais uma economia divina do que uma qualidade pessoal, isto é porque a
Terceira hipóstase é, por excelência, a hipóstase de manifestação, a Pessoa em
quem conhecemos a Trindade. Sua Pessoa está escondida de nós pela própria
profusão da Divindade que Ele manifesta. É essa "kenosis pessoal" do Espírito Santo no plano da manifestação e
da economia que dificulta a compreensão de sua existência hipostática.
O mesmo plano de manifestação natural dá ao nome
"Logos", aplicado ao Filho, todo seu significado. O Logos é "uma
declaração concisa da natureza do Pai", como diz São Gregório de Nazianzus[36].
Quando São Basílio nos fala do Filho que "mostra em Si todo o Pai,
brilhando com toda a Sua glória em resplandecência[37]",
ele também se preocupa com o aspecto manifesto e enérgico da Trindade.
Da mesma
forma, todas as passagens patrísticas em que o Filho é chamado de "imagem
do Pai" e o Espírito Santo é chamado de "imagem do Filho[38]"
referem-se à manifestação energética do conteúdo comum as Três; Pois o Filho
não é o Pai, mas Ele é o que o Pai é; o Espírito Santo não é o Filho, mas Ele é
o que o Filho é[39]. Na
ordem da manifestação divina, as hipóstases não são as respectivas imagens das
diversidades pessoais, mas da natureza comum: o Pai revela a Sua natureza
através do Filho, e a divindade do Filho é manifestada no Espírito Santo. É por
isso que, no domínio da manifestação divina, é possível estabelecer uma ordem
de Pessoas (τάξις) que, estritamente falando, não deve ser atribuída à
existência Trinitária em si mesma, apesar da "monarquia" e
"causalidade" do Pai: estes não conferem a Ele nenhuma primazia
hipostática sobre as outras duas hipóstases, uma vez que Ele é uma pessoa
apenas porque o Filho e o Espírito Santo são também.
IX
A distinção entre a essência incognoscível da Trindade e
suas processões enérgicas, claramente definidas pelos grandes concílios do
século XIV, permite que a teologia Ortodoxa mantenha firmemente a diferença
entre a existência tri-hipostática em si mesma e a existência tri-hipostática
na manifestação comum fora da essência. Em Sua existência hipostática, o
Espírito Santo procede apenas do Pai; e esta processão inefável nos permite
confessar a diversidade absoluta das Três Pessoas, isto é, nossa fé na
Tri-Unidade. Na ordem da manifestação natural, o Espírito Santo procede do Pai
através do Filho (διἁ Υἱοῦ), após a Palavra; e esta processão nos revela a
glória comum das Três, o esplendor eterno da natureza divina.
A pobreza do vocabulário às vezes torna difícil reconhecer se
é a processão hipostática do Espírito Santo ou a processão de manifestação a
que se refere um escritor: ambos são eternos, embora tenham um ponto de
referência diferente. Muitas vezes, os Padres empregam simultaneamente
expressões que se referem à existência hipostática do Espírito Santo e à
manifestação eterna da natureza divina no Espírito Santo, mesmo quando estão
definindo Suas qualidades pessoais ou distinguindo Sua pessoa das outras duas.
No entanto, eles distinguiram bem entre os dois modos diferentes de
subsistência hipostática e de manifestação. Em evidência, podemos citar esta
passagem de São Basílio: "Do Pai procede o Filho, por meio de quem todas
as coisas são, e com quem o Espírito Santo é inseparavelmente conhecido, pois
ninguém pode pensar no Filho sem ser iluminado pelo Espírito.
Assim, por um
lado, o Espírito Santo, a fonte, de todas as coisas boas distribuídas aos seres
criados, está ligado ao Filho, com quem Ele é inseparavelmente concebido; por
outro lado, o Seu ser depende do Pai, de quem Ele procede. Portanto, a marca
característica de Sua qualidade pessoal é ser manifestado após o Filho e com
Ele, e subsistir procedendo do Pai[41]".
Muitos outros textos patrísticos poderiam ser citados, em que o escritor se
preocupa simultaneamente com a manifestação eterna da Divindade no Espírito
Santo e com a Sua existência pessoal. Por exemplo, a fórmula pneumatológica do Synodicon de São Tarasio, lido no Sétimo
Concílio Ecumênico, na qual a distinção entre o plano de subsistência e a
manifestação eterna não é notada[42].
Foi com base nesses textos que os Gregos Latinizantes buscaram defender a processão
hipostática do Espírito Santo "através do Filho" para conciliar duas
triadologias tão diferentes.
X
É fácil compreender as dificuldades que a distinção entre a
existência hipostática do Espírito Santo e a manifestação eterna da natureza
divina em Sua pessoa apresentou às mentes teologicamente rudes e não educadas
dos Cristãos Ocidentais do período Carolíngio. Pode-se supor que foi a verdade
da manifestação eterna que as primeiras fórmulas Filioquistas, na Espanha e em
outros lugares antes do século IX, pretendiam expressar. É possível que o
Filioquismo de Santo Agostinho também possa ser interpretado no mesmo sentido,
embora aqui o problema seja mais difícil e uma análise teológica do tratado De Trinitate seja necessária - algo que
ainda não foi feito pelos Ortodoxos. Filoquismo enquanto doutrina da processão
hipostática do Espírito Santo do Pai e do Filho, como de um único princípio,
alcançou sua forma mais clara e definitivamente explícita nos grandes séculos
da escolástica. Depois dos conselhos de Lyons e Florença, já não era mais
possível interpretar a formula Latina da processão do Espírito Santo no sentido
da manifestação eterna da Divindade. Ao mesmo tempo, também tornou-se
impossível para os teólogos Católicos Romanos admitirem a manifestação
energética da Trindade como algo que não contradiga a verdade da simplicidade
divina. Não havia mais lugar algum para o conceito das energias da Trindade:
nada era admitido existir fora da essência divina exceto efeitos criados, atos
de vontade análogos ao ato de criação. Os teólogos ocidentais tiveram que
professar o caráter criado da glória e da graça santificante, e renunciar o
conceito de deificação; e, ao fazer isso, eles são bastante consistentes com as
premissas de sua triadologia.
Capítulo 4 do livro In the Image and Likeness of God (SVS
Press, Crestwood, NY), pp. 71-96.
[1] "Thesen
über das Filioque (von einen russischen Theologen)," Révue internationale
de théologie (publicado em Berne pelos Velho Católicos) 6 (1898), pp. 681-712.
[2] “Mas
se justifica na relação misteriosa mais íntima da vida trinitária, que está
livre da imagem mais silenciosa de um sentido de causalidade por meio do filho”.
Op. cit. p. 700; Bolotov.
[3] São
Gregório de Nazianzus, Or. 20, 11; PG 35, col. 1077C. Ou 31, 8; PG 36, col.
141B.
[4] Mistagogia
9; P.G. 102, col. 289B: καὶ ἀναβλαστήσει πάλιν ἡμῖν ὁ Σαβέλλιος, μᾶλλον δέ τι
τέρας ἕτερον ἡμισαβέλλειον.
[5] Tomás
de Aquino, Summa Theologica I, qu. 36, a. 1, com referência a Santo Agostinho,
De Trinitate I, 11.
[6] I
, Qu. 28, a. 3)
[7] I,
qu. 36, a. 2 e 4.
[8] Études
de théologie positive sur La Sainte Trinité I (Paris, 1892), pág. 309.
[9] Ibid.,
P. 433.
[10] São
João de Damasco, De fide orthodoxa I, 8; P.G. 94, cols. 820-824a.
[11] Cf.
São Gregório de Nazianzus, loc. Cit. N. 4 supra.
[12] De
spiritu sancto 18; P.G. 32, col. 152B
[13] De
fide orthodoxa I, 8 e I, 10; P.G. 94, cols. 828D, 837C
[14] Apologia,
P.G. 142, col. 254A et passim.
[15] São
Gregório de Nazianzus, Or. 30, 9; P.G. 36, col. 141D-144A.
[16] Capita
syllogistica contra Latinos 24; P.G. 161, cols. 189-193.
[17] Gregório
de Nazianzus, Or. 31, 14; P.G. 36, cols. 148D-149A.
[18] Amphilochia
qu. 181; P.G. 101, col. 896.
[19] São
Gregório de Nazianzus, Or. 31, 14; P.G. 36, col. 148D.
[20] São
Gregório de Nazianzus, Or. 42; P.G. 36, col. 476B.
[21] São
Gregório de Nazianzus, Or. 2, 38; P.G. 35, col. 445.
[22] Thesaurus,
assert. 5; P.G. 75, cols. 65, 68
[23] P.
ex. Comentário sobre São João 2, 2; P.G. 14, col. 19.
[24] São
Gregório de Nazianzus, Or. 40 (In Sanctum baptisma), 41; P.G. 36, col. 417B.
[25]
Capita theologica et oeconomica 2, 13; P.G. 90, col. 1125A.
[26] De
spiritu sancto 18; P.G. 32, col. 149B.
[27] São
Gregório de Nazianzus, Or. 23 (De pace 3), 10; P.G. 35, col. 1161. Or. 45 (In
sanctum pascha); P.G. 36, col. 628C.
[28] Cf.
Grande Canon de São André do arrependimento, odes 3, 6, 7.
[29] São
Gregório de Nazianzus, Or. 23 (De pace 3), 8; P.G. 35, col. 1160C. Veja também
Or. 29 (Theologica 3), 2; P.G. 36, col. 76B.
[30] São
Gregório de Nazianzus, Or. 38 (In Theophaniam), 8; P.G. 36, col. 320BC.
[31] Veja
os atos dos Concílios de Constantinopla em 1341, 1347 e 1350; Mansi, vol. 25,
cols. 1147-1150, vol. 26, cols. 105-110, 127-212. São Gregório Palarnas,
Theophanes, P.G. 150, cols. 909-960.
[32] São
Gregório de Nazianzus, Or. 38 (In theophaniam), 7; P.G. 36, col. 317B.
[33] S.
Bulgakov, Le Paraclet (Paris: Aubier, 1946) pp. 69-75.
[34] Adversus
Macedonianos 13; P.G. 45, col. 1317
[35] Or.
23, 11; P.G. 35, col. 1164A
[36] Or.
30 (Theologica 4), 20; P.G. 36, col. 129A.
[37] Adversus
Eunomium II, 17; P.G. 24, col. 605B.
[38] São
Cirilo de Alexandria, Thesaurus assert. 33; P.G. 75, col. 572. São João de
Damasco, De imaginibus III, 18; P.G. 94, cols. 1337D-1340B; De fide orthodoxa
I, 13; P.G. 94, col. 856B
[39] São
Gregório de Nazianzus, Or. 31 (Theologica 5), 9; P.G. 36, col. 144A.
[40] Expositio
fidei, P.G. 142, col. 241A; Confessio, col. 250; Apologia cols. 266-267; De
processione Spiritus Sancti, cols. 290C, 300B.
[41] Ep.
38, 4; P.G. 32, col. 329C-332A. Veja também duas passagens em São Gregório de
Nyssa, Adversus Eunomium I; P.G. 45, cols. 369A e 416C.
[42] Mansi,
vol. 12, col. 1122.
A Paz, Tito! Como católico, descobri recentemente os Santos Padres e encontrei em seu blog um material riquíssimo. Louvado seja Deus por isso! Obrigado por partilhar.
ResponderExcluirGostaria de saber se você tem as Conferências de João Cassiano para postar.
Um abraço em Cristo! Deus te abençoe!
Roberto Del Moro