JOÃO DAMASCENO
DISCURSO ÚTIL À ALMA
João
Damasceno
Nosso Pai entre os Santos, João Damasceno, que, por
causa da graça radiante de seu ensinamento foi chamado de rio que transborda
ouro, viveu nos tempos de Leão o Isauriano, ao redor do ano 730. Ele foi a
santa musa da Igreja de Cristo. Ele deixou numerosos escritos resplandecentes
de prazer indizível e de graça espiritual. Inserimos aqui dentre seus numerosos
escritos o presente tratado, na medida em que este contribui totalmente para os
desígnios deste livro e pode ajudar aos que desejam possuir o conhecimento das
virtudes e dos vícios, que escapam à maioria. Pois ele ensina claramente quais
são, em quantas espécies e gêneros se dividem e como podemos possuir alguns e
despossuir a outros, usando a pedra de toque que consiste em distinguir sempre
e em toda parte, e com conhecimento de causa, o ouro experimentado das virtudes
do falso cobre dos vícios. Assim, aquele que depositar com precisão no tesouro
de seu coração este conhecimento, saberá rapidamente e de uma vez por todas, o
que são as virtudes e o que são as paixões.
*
A
origem deste “discurso” sobre as virtudes e os vícios, atribuído a João
Damasceno (675-749) e inserido dentre suas obras, é bastante incerta[1].
É possível que esta origem seja síria, ao menos em parte, e remonte a João o
Solitário (início do século VI). Seja como for, se nos ativermos ao texto, não
teremos aqui mais do que uma compilação. Algumas aquisições da reflexão e da
experiência, desde Evagro, são aqui como que expostas e servidas, sem esta
ruminação que torna viva e necessária a repetição.
Entretanto,
o quadro recapitulativo tem certamente sua utilidade. O compilador desdobra o
mapa de campo no qual se desenrola o combate espiritual. Primeiro, ele expõe a
longa lista dos protagonistas: as virtudes e os vícios da alma e do corpo.
Depois ele explica que o enfrentamento mais difícil se dá nas três partes da
alma: a razão, o ardor e o desejo. E ele mostra as séries de vícios e quais os
encadeamentos de virtudes conseguem sua alienação e sua cura. Enfim, ele lembra
que no coração do combate espiritual, o discernimento – a “virtude das
virtudes” – dá o acabamento a todas as operações e permite evitar que acabe mal
qualquer virtude exercida sem estar orientada para o fim último. Pois tudo deve
desembocar na “contemplação do Criador” e na passagem da imagem à semelhança de
Deus, que só pode ser adquirida pelos compassivos: razão e abandono do combate
espiritual, e finalmente convite a ultrapassar o próprio discurso.
[1] Também
atribuída a santo Atanásio ou a santo Efrém.
DE NOSSO PAI ENTRE OS SANTOS JOÃO DAMASCENO,
DISCURSO ÚTIL À ALMA
É
preciso saber que o homem é duplo, que ele é feito de alma e corpo, e que os
sentidos e as virtudes são igualmente duplos. Existem cinco sentidos da alma e
cinco sentidos do corpo. Os sentidos da alma, que os sábios chamam também de
potências ou de faculdades, são a inteligência, a reflexão, o julgamento, a
imaginação e a percepção. Os sentidos do corpo são a visão, o olfato, a
audição, o paladar e o tato. Mas se suas virtudes são duplas, segue-se
certamente que seus vícios serão também duplos. É assim necessário que todo
homem saiba claramente quais são as virtudes da alma, quais as virtudes do
corpo, e quais são, de resto, as paixões da alma e as paixões do corpo.
Diremos
que as virtudes da alma são essencialmente as quatro virtudes gerais: a
coragem, a prudência, a castidade e a justiça. É delas que nascem as demais
virtudes da alma, a fé, a esperança, o amor[1],
a prece, a humildade, a doçura, a paciência, a resignação, a bondade, a calma,
o conhecimento divino, o fervor, a simplicidade, a serenidade, a sinceridade, a
ausência de presunção, de orgulho, de inveja, de intriga e de avareza, a
compaixão, a misericórdia, a generosidade, a ausência de medo e de tristeza, a
compunção, o pudor, a piedade, a busca dos bens futuros, a tensão em direção ao
Reino de Deus, o desejo de adoção filial.
As
virtudes do corpo são sobretudo os instrumentos das virtudes, que são
praticadas com conhecimento de causa conforme a Deus, e na ausência de qualquer
hipocrisia ou de desejo de agradar aos homens; cada qual leva a progredir na
humildade e na impassibilidade. Elas são: a temperança, o jejum, a fome, a
sede, as vigílias, permanecer acordado toda a noite, permanecer de joelhos
constantemente, não se banhar, não possuir mais do que uma vestimenta, comer
alimentos secos, comer tarde, não beber senão água, dormir sobre o chão duro, a
pobreza, a despossesão, a miséria, a ausência de adornos e de amor próprio, a
solidão, a calma, jamais sair, a indigência, não ter necessidade de nada, o
silêncio, trabalhar com suas próprias mãos, todo sofrimento e toda ascese do
corpo, e outras virtudes igualmente necessárias e úteis ao corpo vigoroso e
perturbado pelas paixões da carne. Mas quando o corpo está enfermo e, com a
ajuda de Deus encontra-se para além destas virtudes, elas não mais são
necessárias: a santa humildade e a ação de graças cumprem com todas elas.
Falemos
agora dos vícios da alma e do corpo, ou seja, das paixões. As paixões da alma
são o esquecimento, a negligência e a ignorância, estes três vícios por meio
dos quais o olho da alma – o intelecto – ofuscado submete-se a todas as
paixões, que são a impiedade, a falsa opinião – ou seja, todas as heresias – a
blasfêmia, o ardor, a cólera, a amargura, ficar fora de si, o ódio aos homens,
o rancor, a calúnia, a condenação, a tristeza irracional, o medo, a preguiça, a
disputa, a rivalidade, o ciúme, a vaidade, o orgulho, a hipocrisia, a mentira,
a infidelidade, a avidez, o amor à matéria, os pendores passionais, a possessão
das coisas da terra, a acídia, a baixeza de alma, a ingratidão, a murmuração, a
alienação, a presunção, a arrogância, a vanglória, o amor ao poder, o desejo de
agradar aos homens, a intriga, a impudência, a insensibilidade, a bajulação, a
falsidade, a dissimulação, a duplicidade, os consentimentos que a parte
passional da alma concede aos pecados, a prática contínua dos pecados, a
dispersão dos pensamentos, o egoísmo – mãe dos vícios –, o amor pelo dinheiro –
a raiz de todos[2] –,
a malignidade e a desonestidade.
As
paixões do corpo são a gula, a glutoneria, o desfrute, a embriaguez, comer
escondido, o amor aos prazeres de toda espécie, a prostituição, o adultério, o
impudor, a impureza, o incesto, a corrupção das crianças, deitar-se com
animais, as más concupiscências e todas as paixões infames e contra a natureza;
o roubo, o sacrilégio, a bandidagem, o assassinato e toda licença e desfrute
das vontades da carne para confortar sempre antes o corpo; os oráculos, os
sortilégios, os presságios, os augúrios, o amor pelos adornos, a frivolidade, a
indolência, a maquiagem, a massagem no rosto, o ócio condenável, as distrações,
os jogos de azar, o mau uso passional dos prazeres do mundo, a vida que ama o
corpo, que torna pesado o intelecto, que o torna terrestre e bestial e não lhe
permite jamais elevar-se até Deus e praticar as virtudes. As raízes de todas
essas paixões, suas causas primeiras, podemos dizer, são o amor ao prazer, o
amor pela glória e o amor pelo dinheiro, de onde nasce todo mal. O homem não
cometerá nenhum pecado se de saída estes três gigantes, como os chama Marcos o
sábio asceta[3],
não o cercarem d dominarem: a saber, o esquecimento, a negligência e a
ignorância, que engendram o prazer, o conforto, a amor pela glória dos homens e
pelas distrações. A causa primeira de todos esses vícios e como que sua malvada
mãe é, como dissemos, o egoísmo, ou seja, o amor irracional pelo corpo e por
seus pendores passionais. Os transbordamentos e o relaxamento do intelecto – a
grosseria e a obscenidade –, como a liberdade de linguagem e as risadas, estão
na origem de muitos vícios e de muitas quedas.
Além
disso, é preciso saber que o amor passional pelos prazeres é variado e toma
muitas formas: os prazeres que enganam a alma são numerosos, quando esta não é
fortalecida pelo temor divino e pelo amor a Cristo, permanecendo sóbria e
vigilante diante de Deus e se dedicando à prática das virtudes. Pois miríades
de prazeres atraem para si os olhos da alma: os prazeres do corpo, do dinheiro,
do desfrute, da glória, da indiferença, da cólera, do poder, da avareza, da
avidez. Sua aparência é enganadora, brilhante a amável, capaz de atrair até
aqueles que temem mas que ainda não estão fortemente tomados pela virtude e não
suportam seus rigores. Toda relação terrestre e pendor passional por qualquer
coisa de material mergulha no prazer e nas delícias aquele que se apaixona, e
mostra nele por meio desta paixão o quanto é vã e nociva a concupiscência da
alma, uma vez que por causa daquilo o que foi vencido fica submetido ao ardor e
à cólera, à tristeza, ao ressentimento e à privação daquilo que desejava. Mas
se junto com o pendor passional instala-se um pequeno hábito, este prepara de
modo insensível e incurável aquele que se deixou prender a ser possuído até o
fim pelos pendores irracionais, por intermédio dos prazeres que eles escondem.
Pois
o prazer da concupiscência é múltiplo, como dissemos: ele não acontece apenas
na prostituição e nas demais fruições do corpo, mas em todas as paixões. A
castidade não consiste apenas em se abster da prostituição e dos prazeres do
baixo ventre, mas em manter-se afastado de todas os outros prazeres. Assim,
quem é possuído pelo amor à riqueza, ao dinheiro ou à cupidez é um debochado.
Pois assim como aquele é presa do corpo,
este é presa da riqueza. Ele é ainda mais debochado, na medida em que a
natureza não o empurra com tanta força como àquele. O cavaleiro ignorante,
podemos dize-lo com verdade e justiça, não é o que não domina o cavalo selvagem
e fogoso e difícil de domar, mas o que é incapaz de submeter o cavalo arreado e
dócil. É evidente que o desejo de riquezas é vão e não conforme à natureza, uma
vez que ele não extrai sua força da natureza, mas de uma vontade pervertida. É
por isso que aquele que se deixa vencer por esta paixão peca imperdoavelmente.
Devemos então saber com clareza que não é apenas nas delícias e fruições do
corpo que se encontra o amor ao prazer, mas naquilo que, em qualquer modo e em
qualquer coisa, é amado por uma vontade e um pendor passional da alma. Devemos
sabê-lo, a fim de que as paixões sejam conhecidas com mais clareza nas três
partes da alma e para que possamos expô-las com concisão.
A
alma se divide em três: razão, ardor e desejo. Os pecados da razão são a
infidelidade, a heresia, a demência, a blasfêmia, a ingratidão, o consentimento
aos pecados que provêm da parte passional da alma. O remédio e o tratamento
destes vícios são a fé inquebrantável em Deus e os dogmas da piedade,
verdadeiros, infalíveis e ortodoxos, o estudo contínuo das palavras do
Espírito, a oração pura e sem descanso e a ação de graças dirigida a Deus. Os
pecados do ardor são a dureza de coração, a raiva, a insensibilidade, o rancor,
a inveja, o assassinato e a prática contínua de semelhantes vícios. Sua cura e
tratamento são o amor aos homens, a caridade, a mansidão, o amor fraterno, a
compaixão, a resignação e a bondade. Os pecados do desejo são a gula, a
glutoneria, a embriaguez, a prostituição, o adultério, a impureza, o despudor,
o amor pelo dinheiro, a concupiscência da vanglória, do ouro, da riqueza e dos
prazeres da carne. A cura e o tratamento destes vícios são o jejum, a
temperança, a vida dura, a despossessão, distribuir o dinheiro aos pobres, a
tensão em direção aos bens imortais do século futuro, a busca do Reino de Deus
e o desejo da adoção filial.
É
preciso que tenhamos também o conhecimento dos pensamentos passionais por
intermédio dos quais acontecem todos os pecados. Os pensamentos que abraçam o
mal são em número de oito: o pensamento da gula, o da prostituição, o do amor
ao dinheiro, o da cólera, o da tristeza, o da acídia, o da vanglória e o do
orgulho. Que estes oito pensamentos nos perturbem ou não faz parte de coisas
que não dependem de nós. Mas que eles permaneçam ou não em nós, que eles
suscitem ou não as paixões, faz parte daquilo que está em nosso poder. Uma
coisa é a sugestão, outra é a concordância. Uma coisa é a luta, outra coisa é a
paixão e o consentimento que leva ao ato. Da mesma forma, uma coisa é o
cumprimento e outra o cativeiro. A sugestão é simplesmente aquilo que nos é
proposto pelo inimigo, como por exemplo: “faça isto, faça aquilo”, como o que
foi sugerido ao Senhor nosso Deus: “Diga àquelas pedras que se transformem em
pães[4]”.
Isto, como dissemos, não depende de nós. A concordância é o acolhimento do
pensamento que o inimigo nos sugeriu por exemplo, nos ocuparmos e nos
entretermos com ele no prazer, malgrado nossa vontade. A paixão é o hábito da
concordância, hábito que nos vem da má sugestão do inimigo e que é como que uma
prática e uma imaginação contínuas. A luta é a resistência do pensamento para
afastar de si a sugestão, o pensamento passional, ou para consentir nele, como
diz o Apóstolo: “A carne deseja contra o espírito, e o espírito deseja contra a
carne. Eles se opõem mutuamente[5]”.
O cativeiro é o desenraizamento violento e involuntário do coração tiranizado
pela presunção e o mau hábito. O consentimento é o assentimento a paixão do
pensamento. O cumprimento é o próprio ato do pensamento passional ao qual se
consentiu.
Portanto,
quem considera com impassibilidade o primeiro vício, ou seja, a sugestão, ou
que a repele imediatamente pela contestação e a violência, de um só golpe
afasta todos os demais vícios. Mas para suprimir os oito pensamentos é preciso
agir como segue. A gula é suprimida pela temperança. A prostituição é suprimida
pelo desejo de Deus e a tensão em direção aos bens do século futuro. O amor ao
dinheiro é suprimido pela compaixão para com os pobres. A cólera é suprimida
pelo amor a todos e pela bondade. A tristeza que o mundo traz é suprimida pela
alegria espiritual. A acídia é suprimida pela paciência, a perseverança e a
ação de graças dirigida a Deus. A vanglória é suprimida pelo exercício oculto
das virtudes e pela prece contínua na contrição do coração. O orgulho é
suprimido evitando julgar e desprezar as pessoas como o Fariseu presunçoso[6],
mas, ao contrário, considerando a si mesmo como o último de todos. É assim que
intelecto, liberto das paixões que mencionamos e elevado até Deus, leva daí
para frente uma existência bem-aventurada e recebe a garantia do Espírito Santo[7].
Depois de haver abandonado pela impassibilidade e pelo verdadeiro conhecimento
as coisas daqui, ele se dirige à luz da Santa Trindade, iluminado com os anjos
divinos nos séculos infinitos.
A
alma é tríplice, como já dissemos, e suas três partes são a razão, o ardor e o
desejo. Se no ardor existir a caridade e o amor pelos homens, e se existir no
desejo pureza e castidade, a razão será iluminada. Mas se no ardor houver
aversão aos homens, e se no desejo houver deboche, a razão será entenebrecida.
Portanto, a razão é sã, sábia e luminosa quando as paixões lhe são submetidas,
quando ela contempla pelo Espírito as razões das criaturas de Deus e quando ela
se eleva até a bem-aventurada e santa Trindade. O ardor, por sua vez, se
desenvolve de acordo com a natureza quando ele ama a todos os homens, não é
afligido por nenhum e não sente ressentimento por ninguém. Quanto ao desejo,
ele é conforme à natureza quando, pela humildade, a temperança e a
despossessão, leva as paixões à morte, vale dizer, os prazeres da carne e a
busca do dinheiro e da glória passageira, e quando ele se volta para o fervor
do amor imortal a Deus. Com efeito, o desejo se volta para três direções: para
o prazer da carne, para a glória efêmera ou para a aquisição da riqueza. Nesta
busca desprovida de razão, ele despreza a Deus e a seus mandamentos, esquece-se
da nobreza de sua origem divina, torna-se como uma besta selvagem para o
próximo, obscurece a razão e não lhe permite enxergar a verdade. Mas aquele
cujo sentimento é mais alto do que estas coisas recebe daí em diante o Reino
dos céus, como dissemos, e leva uma vida bem-aventurada, no aguardo da
beatitude reservada aos que amam a Deus. Possamos nós também ser considerados
dignos disto, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
Também
é preciso saber que não é possível alcançar a dimensão de uma tal virtude se
não se buscar acima de tudo, por toda a vida e tanto quanto se puder, trabalhar
para se obtê-la por meio de uma ativa solicitude: por exemplo, pela compaixão,
ou pela temperança, a prece, a caridade ou alguma outra das virtudes gerais. É
com efeito a partir destas que cada qual
obtém parcialmente a virtude. Por exemplo, alguém exerce a compaixão em
certos momentos, mas raramente; não diremos então que ele seja compassivo,
mormente se o gesto não for feito como se deve e para agradar a Deus. Pois o
bem não é bom quando não é feito corretamente. O bem é verdadeiro quando ele
não recebe como se fosse seu direito um salário por isto ou por aquilo, quando
ele não busca agradar aos homens e não tenta receber a glória através do
renome, da violência, da cupidez ou da injustiça. Pois aquilo que Deus busca
não são os bens que se faz ou que parece serem feitos, mas o objetivo pelo qual
são feitos. Os Padres teóforos expressam-se assim: quando o intelecto esquece o
objetivo da piedade a obra manifesta da virtude é em vão. Os gestos cumpridos
sem objetivo ou discernimento não apenas
de nada servem como ainda são prejudiciais, ainda que sejam bens. Inversamente,
gestos aparentemente marcados pelo mal podem
ser feito segundo Deus, tendo em vista a piedade, como o gesto daquele
que penetra num lugar suspeito e liberta a prostituta de sua perdição. Donde
fica claro que não é compassivo aquele que raramente manifesta a compaixão, nem
temperante o que, da mesma forma, pratica pouco a temperança. Virtuoso é quem,
longamente e durante toda sua vida, busca em tudo e por tudo a virtude, com um
discernimento seguro.
Pois
o discernimento é a maior de todas as virtudes: ele é a rainha das virtudes, a
virtude das virtudes.
Assim,
igualmente, em sentido inverso, não chamamos de prostituído, bêbado ou
mentiroso àquele que caiu uma vez nestes vícios, mas ao que neles reincide
frequentemente e de modo incorrigível.
Além
do que dissemos, é preciso saber também o que é mais necessário para todos os
que desejam praticar a virtude e que se esforçam por se afastar do vício: na
mesma medida em que a alma é incomparavelmente melhor do que o corpo, supera-o
e é mais preciosa do que ele em muitas coisas e nas melhores coisas, também as
virtudes da alma, em especial as que imitam a Deus e que levam o nome de Deus,
são melhores do que as virtudes do corpo. Contrariamente, devemos considerar
que os vícios da alma superam as paixões do corpo pelo modo como se cumprem e
pelos castigos que sofrem, mesmo que isto escape a muitos, não sei como.
Aqueles que se guardam da embriaguez, da prostituição, do adultério, do roubo e
dos vícios correlatos, fogem deles e os afastam, tendo-os como execráveis,
visivelmente, a maior parte do tempo. Mas as paixões da alma, que são bem
piores e mais graves do que os vícios do corpo, e que reduzem ao estado de
demônios e conduzem ao castigo eterno merecido os que se submetem a eles
irremediavelmente, não são percebidas. Falo da inveja, do ressentimento, da
malignidade, da insensibilidade, e da raiz de todos os vícios segundo o
Apóstolo: o amor pelo dinheiro[8],
assim como das paixões similares.
Expusemos
todas essas coisas de maneira elementar, como se fôssemos ignorantes, redigindo
de maneira clara e fácil de compreender este discurso sobre as virtudes e as
paixões, a fim de que se possa discernir e distinguir, com clareza e minúcia,
aquilo que as separa e faz sua diferença. É por isso que expusemos cada coisa
em sua diversidade e suas variações, a fim de que, na medida do possível, não
fique ignorada nenhuma idéia de virtude ou de vício, e para que pratiquemos de
bom coração as primeiras, em especial das virtudes da alma por meio das quais
nos aproximamos de Deus, e escapemos aos últimos – falo dos vícios –
afastando-os por completo. É de fato bem-aventurado quem se esforça por
descobrir a virtude, que a busca e procura com cuidado saber no que ela
consiste, pois por intermédio dela ele se aproxima de Deus e permanece com ele
em seu intelecto. Elevar-se pela virtude ativa à contemplação do Criador é o
que se chama propriamente prudência e coragem, sabedoria, conhecimento
verdadeiro e riqueza indefectível. A virtude tem este nome porque ela é
escolhida[9].
Ela é escolhida e desejada, porque fazemos o bem escolhendo-o e desejando-o por
nós mesmos, não de maneira involuntária e forçada. E o que chamamos de
sabedoria consiste em ter no intelecto aquilo que é útil.
Se
você quiser, acrescentaremos a este discurso elementar, como um selo de ouro,
algumas palavras sobre a mais preciosa de todas as criaturas de Deus, aquela
que é sua imagem e semelhança: o ser vivo, dotado de intelecto e de razão, o
homem, único dentre todas as criaturas feito à imagem e semelhança de Deus[10].
Todo homem é chamado de “imagem”, de acordo com a dignidade do intelecto e da
alma, vale dizer, o incompreensível, o invisível, o imortal, o livre arbítrio,
mas também aquilo que é original, que engendra, que edifica. E ele é chamado de
“semelhança”, segundo a razão da virtude e segundo os atos que levam o nome de
Deus e que imitam a Deus, ou seja, segundo nosso comportamento benevolente para
com nosso semelhante: ter compaixão e piedade por nosso companheiro de serviço,
amá-lo, dar provas de toda misericórdia e caridade para com ele. “Sejam
compassivos, disse Cristo nosso Deus, como vosso Pai celeste é compassivo[11]”.
Todo homem traz em si a criação à imagem, pois os dons de Deus são irrevogáveis[12].
Mas são raros os que carregam em si a criação à semelhança: somente os
virtuosos, os santos, aqueles que imitam a bondade de Deus, na medida m que
isto é possível aos homens.
Também
nós possamos ser dignos de seu amor pelo homem, que ultrapassa toda bondade,
agradando-o com boas obras e tornando-nos imitadores dos que agradaram a Cristo
desde o início dos tempos. Pois a ele pertence a piedade, e dele é toda a
glória, a honra e a adoração, assim como de se Pai, que não teve começo, e do
Espírito Santo, bom e vivificante, agora e para sempre, pelos séculos dos
séculos. Amém.
[1] Cf. I
Coríntios XIII, 13.
[2] Cf. I Timóteo
VI, 10.
[3] Marcos o
Asceta – Carta ao monge Nicolas
[4] Mateus IV, 3.
[5] Gálatas V, 17.
[6] Cf. Lucas
XVIII, 11-12.
[7] Cf. II
Coríntios I, 22.
[8] Cf. I Timóteo
VI, 10.
[9] Jogo de
palavras intraduzível entre aretè (virtude) e airetè (escolhido)
[10] Cf. Gênesis I,
26.
[11] Lucas VI, 36.
[12] Romanos XI, 29.
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